Petit traité de la bêtise contemporaine: suivi de comment (re)devenir inteligente – AMORIM (B-RED)

AMORIM, Marília. Petit traité de la bêtise contemporaine: suivi de comment (re)devenir inteligente. Toulouse. Éditions Érès. 2012. 141 p. Resenha de: FLORES, Valdir do Nascimento. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.8 n.2, São Paulo July/Dec. 2013.

O livro de Marília Amorim surpreende em todos os sentidos da palavra: o tema é inusitado, a perspicácia do olhar é incomum, a originalidade da abordagem é inspiradora, as conclusões são impactantes.

Petit traité está dividido em três partes (Parole et identitéParole et mémoireUne intelligence bête) seguidas de Conclusão e de uma generosa Bibliografia, tudo distribuído ao longo de mais de 140 páginas. O livro é conciso, escrito em estilo dialógico, com raciocínio construído sobre uma infinidade de exemplos retirados, em sua maioria, do cotidiano das sociedades europeia (em especial, a francesa) e latino-americana (em especial, a brasileira).

A linguagem utilizada por Marília Amorim, na elaboração de seu livro, merece uma nota especial. O leitor é convocado, a cada instante, a uma posição ativa de interlocução. A autora conversa com o leitor, dirige-lhe a palavra, chama-lhe a atenção. Esse estilo está em absoluta sintonia tanto com a temática da obra quanto com a visão teórica que a sustenta. Falemos, primeiramente, sobre a temática.

É difícil dizer em poucas palavras qual é o tema do livro, dada a sua complexidade. A primeira parte do título, embora pareça um recurso retórico (poderia receber, em português, a tradução literal de Pequeno tratado da besteira contemporânea, mas também caberia, numa tradução mais livre, da idioticeda imbecilidadeda estupidez ou, em uma tradução mais livre ainda, da bestagem contemporânea) é absolutamente adequado. A autora recorta um objeto de análise, a besteira, por uma via específica, a da fala que torna o homem estúpido (bête). Sua hipótese é que existem maneiras de falar que colocam o interlocutor numa posição que o impede de exercer sua inteligência plenamente, a menos que haja um trabalho de resistência por parte desse interlocutor, uma resistência que implica análise crítica do que o cerca.

Essa forma de falar que torna o homem estúpido – e este é um dos grandes ganhos teóricos do raciocínio de Amorim – independe do conteúdo do que é dito (pode ser uma bula de remédio, uma recomendação de segurança em um transporte público, as recomendações de reciclagem de uma embalagem qualquer, etc.). É, na verdade, a posição enunciativa em que ele é colocado – e não, propriamente, o conteúdo – que define um lugar bête de fala. Marília Amorim, para desenvolver essa primeira parte de seu raciocínio, toma por base a ciência linguística da enunciação, de Émile Benveniste, muito especialmente, o aspecto figurativo do aparelho formal da enunciação, compreendendo-o, à moda benvenistiana, como a base das relações a partir da qual é possível falarEu fala a um Tu a propósito de um Ele.

A autora elabora uma categoria de análise – o enunciado fusional – que permite visualizar uma crise contemporânea do paradigma enunciativo, enquanto marca profunda da cultura pós-moderna. O enunciado fusional – no livro, há variações terminológicas: forma enunciativa fusional (p.13), forma fusional da enunciação (p.19) e enunciação fusional (p.20), por exemplo – opera uma fusão, com o perdão da redundância, entre aquele que fala e aquele a quem se fala. As consequências disso são inúmeras. Vejamos um exemplo dado pela autora.

Em uma bula de remédio, é possível encontrar, além das informações técnicas, aquelas dirigidas ao paciente em que o dito deixa de ser assumido pelo especialista farmacêutico para se tornar um enunciado que é colocado a partir da posição do paciente. São enunciados como: como devo utilizar este medicamento? Ou ainda: em que caso não devo utilizar este medicamento? Eis um exemplo da forma fusional de enunciar, que opera uma mistura que permite suprimir a voz de autoridade do especialista.

Exemplos como esses são abundantes na obra de Amorim: recicle minha embalagem (escrito em uma embalagem de bolo); eu me identifico (escrito em um site de revista científica na internet). Quem pede para ser reciclado? A embalagem? Quem diz que se identifica? O usuário?

Há uma espécie de infantilização do destinatário. E o questionamento que se impõe é: em que a enunciação fusional poderia ser mais compreensível que a enunciação ordinária? Por que há uma tentativa de fazer com que o locutor ocupe, formalmente, lugares de fala tão bobos?

Um das conclusões de Amorim (p.29) é instigante: esta fusão/confusão de lugares enunciativos produz uma supressão da distância/referência e da tensão entre quem fala e seu destinatário. De certa forma, o desaparecimento da assimetria dos lugares enunciativos atende a uma tática que busca diluir a voz de autoridade e de toda instância injuntiva. Para a autora, essa forma de discurso instaura um outro modo de alteridade, que ela denomina de metamorfose: “o Tu se metamorfoseia em Eu, o Ele se metamorfoseia igualmente em Eu, pois a nova injunção enunciativa não admite mais que as primeiras pessoas” (p.35). Somente o que expusemos até aqui já seria o suficiente para comprovar que estamos frente a um livro que inova. Mas o leitor encontrará mais.

A autora dispõe-se, ainda, a tocar no tema da linguagem vista pela sua relação com a memória e, por aí, com a cultura. Amorim, para tanto, formula um axioma (p.40): a fala que torna inteligente é aquela que transmite a cultura.

Sem dúvida, estamos, aqui, em um dos pontos altos da reflexão da autora. É a linguagem mesma que é colocada sob exame. Para ela, cada vez que falamos, “confirmamos e atualizamos o patrimônio comum que é a língua. Lugar do laço social, a língua apenas existe se ela é falada. Cada ato de fala a faz viver e, pelo mesmo gesto, faz viver uma humanidade comum” (p.41).

Mais uma vez, é necessário ir além do conteúdo: trata-se da transmissão da língua propriamente dita. É o aparelho combinatório que a constitui que está em questão, o que permite em cada época criar novas palavras e eliminar outras, o que “permite a cada esfera social de atividade renovar o estoque e as variações dos gêneros discursivos” (p.41). A diversidade e a complexidade de uma língua são enormes. É próprio de uma língua, simultaneamente, conservar-se e transformar-se. As formas da língua, assim como as da cultura em geral, que deixam de ser usadas caem no esquecimento. E o “emprego generalizado ou exclusivo de certas formas produz um empobrecimento das possibilidades do ‘aparelho linguístico'” (p.44). Ora, “se nossa língua se reduz à linguagem informal e familiar, […], nós perdemos a possibilidade de habitar outros espaços simbólicos” (p.48).

Isso posto, a autora pode exteriorizar com maior propriedade seu raciocínio, neste momento; ” […] a fala que torna inteligente transmite, antes de qualquer coisa, a língua em todas as suas possibilidades e as relações de lugar que constituem as condições do diálogo” (p.53). A partir dessa discussão, o leitor é levado a se deparar com outra questão fundamental: a do objeto cultural entendido como um objeto falante. Inspirada na teoria de Mikhail Bakhtin, a autora considera que um objeto cultural – tomado como todo o objeto cuja função é a de remeter à própria cultura (p.55) –, sendo construído como qualquer objeto, é portador de uma memória coletiva. Ambos – objeto e memória –possuem uma dimensão discursiva que “completa a dimensão enunciativa”, tratada acima: o objeto cultural comporta uma abordagem polifônica pela qual ele é entendido como um objeto falante. Em outras palavras, sempre que um objeto é colocado em posição de fazer falar a cultura que o torna possível, ele se transforma em um objeto cultural.

Na terceira e última parte de seu livro – Une intelligence bête –,Marilia Amorim dedica-se, entre outras coisas, a analisar a televisão em sua fala A pergunta da autora é: como fala a televisão? O leitor será, mais uma vez, agraciado com uma reflexão, no mínimo, original.

A autora inicia falando na relação entonação/sentido e propõe o termo entonação falseada/deformada (intonation/fausée) para aquela entonação idêntica e invariável utilizada pelos repórteres de televisão para falar qualquer conteúdo, independentemente de sua natureza. Para Amorim, “a entonação cessa de ser uma pista para a construção do sentido das informações transmitidas para se tornar o componente de um formato de emissão” (p.79). E acrescenta: “um formato que busca nos dizer ‘mesmo se eu acabei de informá-lo que uma catástrofe chegou, não se preocupe muito e, principalmente, ‘fique conosco”” (p.79). A essa discussão seguem três capítulos: As duas inteligências (Les deux intelligences), O sistema sem sujeito (Le système sans sujet) e Memória e educação (Mémoire et éducation). O leitor experimentará um misto de riso e indignação ao ler Le système sans sujet. A autora, em um texto leve, que vai do irônico ao sarcástico, discute a automatização dos serviços e, especialmente, a personagem denominada de sistema. Sim, aquele sistema dos bancos, das companhias telefônicas, das companhias áreas, etc. Um sistema sem sujeito, que caminha sozinho, pela simples troca de informação.

Como se pode notar, são muitos os objetos da reflexão de Marília Amorim em seu grande Petit traité de la bêtise contemporaine. Antes de finalizar, falemos um pouco sobre a visão teórica assumida pela autora. Além de Benveniste – cujo aparelho formal da enunciação é apresentado como um modelo político uma vez que instaura um modo de relação de alteridade que se encaixa no ideal moderno de ligação social –, o leitor encontrará no Pequeno tratado uma plêiade de linguistas, filósofos, antropólogos, cientistas sociais, psicanalistas, etc. Vemos referências a Levinas, Lyotard, Bakhtin, Freud, Lacan, Dufour, Martinet, Bourdieu, entre muitos outros. Tudo apresentado em linguagem simples, elegante e, o principal, garantindo a complexidade do que está sendo exposto.

Tudo no livro convoca a lê-lo: sua originalidade, sua linguagem, sua erudição despojada, sua elegância de raciocínio. O texto da contracapa bem que avisa: “o leitor se encontra embarcado em uma aventura: ver o que ele não via, entender o que ele não entendia, compreender o que ele não compreendia”. Abra, leitor, o Petit traité de la bêtise contemporaine e veja por que faltam palavras para tudo aqui dizer.

Como se vê, o leitor encontrará mais.

Valdir do Nascimento Flores – Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil; CNPq; valdirnf@yahoo.com.br.

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