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130 Anos de Abolição | Revista Historiar | 2018

130 anos da abolição: da escravidão à invenção da liberdade

Brasil, ano de 1888. Às vésperas da Abolição, a escravidão era uma forma de trabalho que definhava. Havia aproximadamente 700 mil escravizados no país, cerca de 5% da população na época. Ainda que esse sistema de trabalho impulsionasse os setores econômicos mais dinâmicos – como o do café, do açúcar e da produção mercantil de alimentos –, o regime escravista entrava em colapso, progressivamente. Nesse contexto, os senhores continuavam apostando nessa modalidade de trabalho e viam a escravidão como a forma ideal de exploração da mão de obra, o parâmetro a partir do qual se acenavam as possibilidades de trabalho livre.

No entanto, a mobilização e campanha abolicionista, com suas conexões nacionais e internacionais; a ação ativista no teatro, no parlamento e no meio jornalístico; as lutas na Justiça pela conquista da liberdade, o apoio de diversos segmentos sociais, especialmente das camadas médias e de trabalhadores urbanos, a crescente resistência escrava, com as fugas e as revoltas dos cativos e a formação de quilombos delinearam o mosaico de fatores que levaram à abolição da escravidão, em 13 de maio de 1888. A historiografia reconhece há tempo, e a sociedade civil brasileira se sensibiliza cada vez mais, para o fato de que a extinção do cativeiro foi um marco importante na jornada emancipatória da população negra, mas não resolveu uma série de impasses, dilemas e assimetrias no campo dos direitos e da cidadania, sem contar que reconfigurou ou criou novas relações de dominação / subordinação. As desigualdades raciais continuam sendo um problema no século XXI.

O atual dossiê da Revista Historiar, “130 da Abolição: da escravidão à invenção da liberdade”, apresenta uma gama variada de contribuições de historiadores, de distintas regiões, que se debruçaram em torno dos temas da escravidão e liberdade no Brasil. Ao reunirmos num único volume questões tão diversas sobre a experiência negra, procuramos abrir uma espaço de debate e reflexão. Afinal, os artigos aqui selecionados encerram uma interlocução propositiva, tanto com as perspectivas analíticas e abordagens tradicionais, quanto com os campos temáticos e as linhas investigativas contemporâneas.

Este dossiê traz um conjunto de treze artigos. Como ponto de partida, o historiador Benedito Carlos Costa Barbosa realiza um estudo sobre o tráfico negreiro. Baseando-se em documentação de arquivo e no banco de dados da Slave Voyages, o autor analisa os naufrágios das embarcações, as doenças e as mortes de cativos no contexto da Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, entre 1755 e 1778. No artigo seguinte, Marley Antonia Silva da Silva discute o tráfico de escravos do Pará para as capitanias do interior do Brasil, notadamente para as capitanias de Mato Grosso e Goiás, durante o século XVIII.

Já Iamara Viana e Flávio Gomes tecem notas sobre aspectos da demografia escrava em Vassouras, importante município do Vale do Paraíba Fluminense, no século XIX. Josenildo de Jesus Pereira, em artigo subsequente, examina as ideias e proposições relativas às reformas do trabalho no Brasil Império, tendo por cenário a província do Maranhão na década de 1880. Higor Figueira Ferreira, por sua vez, investiga o universo educacional da cidade do Rio de Janeiro oitocentista, enfocando algumas experiências de ensino formal e informal de escravos, libertos e livres de cor. Lucian Souza da Silva e Solange Pereira da Rocha esquadrinham o movimento abolicionista na Paraíba do Norte, entre 1871 e 1888, atentando-se para a atuação dos abolicionistas, para as ações de liberdade e outras formas de mobilização que contribuíram para solapar o regime de cativeiro na província.

Questões ligadas ao “elemento servil” – trabalho compulsório, propriedade privada e associativismo – no Rio de Janeiro, durante o século XIX, são analisadas por Antonio Carlos Higino da Silva. Na sequência, o historiador Lucas Ribeiro Campos reconstitui parte da trajetória da Sociedade Protetora dos Desvalidos, demonstrando como essa associação civil se tornou um espaço importante de formação de identidade racial entre trabalhadores livres de cor da cidade de Salvador nas últimas décadas oitocentista.

Em artigo que inaugura a seção dedicada ao pós-abolição, Edvaldo Alves de Souza Neto perscruta como a realização do censo populacional em 1890 provocou, nos libertos de Sergipe, o medo da reescravização. Abordando a trajetória do jornal O Exemplo, fundado na cidade de Porto Alegre em 1892, José Antônio dos Santos examina como esse veículo de comunicação da chamada imprensa negra discutiu as questões de identidade racial e mobilização política, tendo em vista à inserção social daqueles que se envolveram com o semanário até o início de 1930. Ruan Levy Andrade Reis também se debruça sobre o assunto, mas, no caso de seu artigo, o foco são os poemas produzidos pelas “mulheres de cor” nas páginas dos jornais da imprensa negra editados em São Paulo, entre os anos de 1915 e 1930.

No artigo posterior, Júlio César da Rosa aborda a formação dos clubes negros em Santa Catarina na primeira metade do século XX, procurando compreender seus projetos de reconhecimento e visibilidade, suas dinâmicas organizativas, estratégias de ações coletivas, redes de contatos e conexões, sem falar nas suas lutas e expectativas no campo dos direitos e da cidadania. Apoiando-se numa variedade de fontes impressas e orais, Andersen Kubnhavn Figueirêdo, por seu turno, analisa o percurso do movimento negro de Salvador na década de 1970, conferindo atenção especial às imbricações entre política e cultura tecidas pelos ativistas na luta contra o racismo.

Dossiês como este têm fomentado um diálogo profícuo entre pesquisadores e colaborado, tanto para a renovação dos estudos sobre a escravidão, quanto para a consolidação do campo do pós-abolição. De uma época em que se atribuía pouca importância à agenda de pesquisa sobre a experiência negra na historiografia brasileira, nos deparamos agora com um contexto sui generis, em que investigações instigantes e originais, respaldadas em sólida pesquisa com diferentes fontes históricas, (re)discutem temas como tráfico negreiro, demografia escrava, experiências de trabalho compulsório no ambiente rural e urbano, letramento de cativos, libertos e “livres de cor”, trajetórias individuais e familiares, movimento abolicionista, os significados da liberdade e dos embates pela cidadania, construções identitárias, a vida dos libertos e seus temores e incertezas, associativismo negro, imprensa do “homens de cor”, relações raciais e de gênero, clubes negros e movimentos sociais. Este repertório plural e multifacetado indica a potencialidade dessas novas pesquisas.

Rememorar os 130 da Abolição, para nós historiadores, é uma tarefa que implica o exame crítico do nosso passado escravista. A Lei Áurea, grafada em apenas duas linhas, não previa políticas públicas de inclusão social. Curta e conservadora, produziu na etapa pós-abolicionista muitas dificuldades para a população de libertos e seus descendentes. Este dossiê oferece chaves preciosas de leitura dessa herança. Fazemos então o convite ao leitor para aproveitar essa oportunidade e refletir sobre como a escravidão e seu legado produziu essa nação, com todas as suas contradições sociais e raciais que nos desafiam no tempo presente

Petrônio José Domingues – Doutor em História (USP) Professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS). E-mail: pjdomingues@yahoo.com.br


DOMINGUES, Petrônio José. Apresentação. Revista Historiar. Sobral, v. 10, n. 18, Jan. / Jun., 2018. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Itamar Freitas

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