Posts com a Tag ‘ZANOTTO Karin (Res)’
Não violência na educação – MULLER (C)
MULLER, Jean-Marie. Não violência na educação. Trad. de Tônia Van Acker. São Paulo: Pala Athena, 2006. Resenha de: ZANOTTO, Karin. Conjectura, Caxias do Sul, v 14, n. 3, p. 209-215, set/dez, 2009.
Jean-Marie Muller, filósofo francês é pesquisador há mais de trinta anos da teoria da não violência, é autor de 27 livros relacionados ao tema e coloca em prática o que prega. Dentre os quais destacam-se aqueles já traduzidos para o português: Não-violência na educação e O princípio da não-violência: uma trajetória filosófica, ambos editados pela Editora Palas Athena, e Princípios e métodos de intervenção civil pela Editora Piaget. Em 1970, para protestar contra a venda de aviões Mirage ao governo militar brasileiro, fez greve de fome. Participou da ação do Batalhão da Paz, que conseguiu pôr fim aos testes nucleares a céu aberto realizados pela França, em 1972.
Muller é fundador e diretor do Instituto de Pesquisas sobre a Resolução Não-Violenta de Conflitos e participa das reuniões da Defesa Nacional Francesa. A ideia de não violência defendida por Muller não é sinônimo de passividade ou covardia. Na maioria das vezes, há mais coragem na não violência do que na violência. Um exemplo disso foi o que aconteceu com Rosa Parks, a mulher negra que, no início da década de 50, lançou a resistência dos negros nos EUA, ou seja, os ônibus, na época, tinham lugares reservados para brancos. Certa vez, ela se sentou em um desses lugares e permaneceu sentada, quando um branco pediu que ela se levantasse. Quando o condutor do ônibus pediu o mesmo, ela continuou lá e não se moveu nem quando os policiais chegaram. Permanecer sentada exigia muita resistência, energia e coragem. Para Muller, principalmente por não se dar de forma natural, a construção de uma sociedade não violenta é tarefa difícil.
O livro Não-violência na educação faz parte das iniciativas promovidas para a Década Internacional para uma Cultura de Paz e Não Violência para as Crianças no Mundo (2001-2010) pela Unesco que, originalmente, o publicou. Nele Muller recomenda uma abordagem muito prática de como resolver confrontos violentos nas escolas. Explica que a cultura da violência já está instalada nas sociedades de nosso tempo e é diariamente reforçada por todos os meios de comunicação. Quando uma criança toma o brinquedo de outra, a sociedade vê como perfeitamente natural que a segunda avance e o arranque de volta ou tome outro brinquedo em retaliação ou, ainda, que bata no colega. Contudo, conforme aponta o autor, a contraviolência gera apenas mais violência – a primeira criança vai sentir-se agredida e também ela retribuirá, levando a uma possível escalada de violências que não beneficia nenhum dos participantes e poderá até causar a destruição do brinquedo originalmente disputado. Já a não violência é vista como algo utópico, contrário até à natureza humana agressiva e competitiva. O professor Muller, nesse livro, define violência não como sendo agressividade, esta sim, natural na espécie humana, mas como ameaça à vida ou à integridade do outro. A violência é um desrespeito básico do humano pelo outro, que o torna passível de ser usado ou explorado ou destruído.
No primeiro capítulo, o autor discorre sobre o conflito, explicando que nosso relacionamento com os outros forma nossa personalidade, pois que se existe somente em relação a outros. A existência individual como ser humano tem menos a ver com estar-no-mundo e mais com estar-com-os-outros. No entanto, a experiência de encontro com o outro tende a ser marcada por adversidades e confrontos, surgindo o medo dos outros, pois o aparecimento de um outro ao meu lado pode ser ou não perigoso. O medo pelo outro é duas vezes maior quando não se parece comigo, quando não fala a mesma linguagem, não tem a mesma cor de pele, não acredita no mesmo Deus. Assim, os outros me preocupam, assustam. Segundo o autor, é preciso transformar o conflito, transformar o confronto em um nível de cooperação, para que se chegue à solução de problemas conflitantes, pois a rivalidade entre os humanos somente é superada quando cada um limita seus próprios desejos, quando existe o respeito pelo outro, ou seja, quando busca o grau certo de distância, para que as pessoas possam ver, reconhecer e identificar umas às outras sem fusão nem confusão. Para formar uma comunidade humana, os homens devem manter um relacionamento de duas mãos: baseado na dádiva e na partilha, porque é na bondade que reside a hospitalidade. A violência é uma fraqueza, e a bondade é a força dos fortes.
No segundo capítulo, Muller fala sobre a agressividade, especificando que não é a violência que é natural no ser humano, mas a agressividade, pois o ser humano é instintivo e impulsivo, e a agressividade faz parte do instinto. É uma energia que pode fazer o bem ou pode fazer o mal. É uma força combativa; assim, mostrar agressividade é aceitar o conflito com o outro, sem precisar submeter-se a ele, pois, como o medo está presente em cada indivíduo, ele juntamente com a emoção, dispara o instinto de sobrevivência e mobiliza o ser humano para se proteger. De fato, é necessário que o medo seja domesticado, ou seja, que os sentimentos que ele provoca sejam dominados, a fim de que a agressividade não seja uma violência destrutiva.
No Capítulo 3, o autor discorre sobre a violência, especificando que ela surge de um desejo ilimitado que se confronta com os limites impostos pelos desejos dos outros. Ser violento, conforme Kant, é “usar a outra pessoa simplesmente como meio, ignorando o princípio de que as outras pessoas, como seres racionais, devem sempre ser consideradas também fins”.
Certamente, todos estão de acordo com o autor, posto que a violência é um abuso em si. Com certeza, pois o autor tem razão: toda violência contra o ser humano é uma violação: a violação do seu corpo, da sua identidade, da sua personalidade, da sua humanidade; ela é brutal, ofensiva, destrutiva e cruel; afeta o semblante, deformando-o em virtude do sofrimento infligido; toda violência é desfigurante, é despersonalizante.
E o pior: as pessoas violentadas pela experiência verificam que também são capazes de ser violentas com os outros. Portanto, a violência fere e marca também o semblante do perpetrador. O resultado, conforme Weil, é que a prática da violência petrifica o ser humano, transforma o perpetrador e a vítima em um “coisa”, que os despersonaliza completamente.
No quarto Capítulo, Muller escreve sobre a não violência, esclarecendo que, para Gandhi, a não violência perfeita é a total ausência de animosidade em relação a tudo quanto vive. Em sua forma ativa, a não violência se expressa como cordialidade em relação a tudo que vive.
Assim, o primeiro requisito para a não violência é a negação: é preciso que se deixe de lado toda animosidade em relação ao nosso semelhante.
A animosidade, na visão de Kant, é determinada pelo egoísmo, no sentido de amor exclusivo por si mesmo, sendo que o cuidado de si não deixa lugar algum para o cuidado dos outros. Quando o ser humano age “sempre se defronta com seu querido eu, que nunca deixa de aparecer no final, e o resultado, como se observa cotidianamente, é que, quando dois indivíduos se encontram, cada qual desejando fazer que seus próprios desejos, necessidades e interesses prevaleçam, “segue-se de modo inevitável um confronto, que tende perigosamente à violência, que nada mais é que o choque entre dois egoísmos. Por isso, com certeza, é preciso proibir-se o cometer-se violência contra qualquer pessoa. Cada pessoa deve agir de tal forma que seu comportamento e suas decisões possam ser considerados adequados para todos, ou seja, que possam ser universalizados. E é necessário que aquele que parte para a violência reflita sobre: que parte da sua natureza vai decidir cultivar em si próprio? Nos outros e especialmente nas crianças, a decisão a ser tomada envolve tanto uma escolha filosófica quanto educacional, pois o ser humano que é capaz de ser razoável e/ou violento, tem a liberdade de escolha: diante de uma provocação, ou usar a violência ou usar a razão.
No quinto capítulo, explicando sobre a democracia, o autor coloca que o que dá a cada ser humano o autocontrole e os recursos, para dizer sim ou não à violência, de acordo com sua avaliação pessoal, é a educação.
Esse autocontrole permite participação, e participação significa democracia. Por isso, as crianças, na escola, devem ter espaço para praticar a democracia, devem ser incentivadas para usar esse espaço, que pode ser expandido à medida que os alunos forem crescendo. Aprendizado esse que deve permanecer sob a autoridade de adultos que devem estabelecer limites e, em alguns casos, limites não negociáveis com as crianças.
Entretanto, democracia tem um significado mais essencial: um governo que respeita as liberdades, os direitos humanos. Ela é uma aposta na sabedoria do povo. Sabe-se que a verdadeira democracia não é o governo do povo, mas dos cidadãos, e o ideal democrático implica uma igual distribuição entre os cidadãos, não só de poder, mas de propriedade e conhecimento. O fundamento da política é o diálogo humano e não a violência, pois essa só acontece entre os seres humanos quando o diálogo é interrompido. A cidadania jamais deve basear-se na disciplina cega, mas na responsabilidade e na autonomia pessoal de cada um.
No sexto capítulo, o autor comenta a mediação, que significa um método de regulação não violento de conflitos, ou seja, é a intervenção de um terceiro que se coloca entre os protagonistas de um conflito, entre dois adversários, alguém que se virou contra, que está em oposição e podem ser dois indivíduos, duas comunidades ou duas nações que se enfrentam e se opõem uma à outra. O objetivo da mediação é levar os oponentes a se voltarem um para o outro, a fim de dialogar, entender-se mutuamente e, se possível, encontrar um acordo capaz de abrir caminho para a reconciliação. Contudo, a mediação só pode acontecer se os dois adversários concordarem em se envolver voluntariamente no processo conciliatório. O importante é saber se o papel vital do mediador é facilitar a expressão e incentivar a escuta de ambos os lados, a fim de restabelecer a comunicação, dirimir os mal-entendidos e permitir a compreensão mútua.
No sétimo capítulo, Muller esclarece sobre os maus-tratos, colocando que o mundo da escola encontra-se na intercessão de três espaços: a família, a vida econômica e a vida política. A tarefa assumida pelos educadores – de formar uma criança tendo em vista basear o plano educacional nos princípios da não violência – bate de frente com a realidade, na qual as coisas facilmente se desviam para bem longe desse ideal, pois as crianças vão à escola e levam consigo todos os problemas que encontram: situações de violência dentro da própria família ou na vizinhança, até mesmo dentro dos portões da própria escola. Isso posto, conclui-se que é importante que os professores estabeleçam relações de cooperação com os pais e pessoas com responsabilidade pessoal, porque o abuso ou maus-tratos contra crianças é uma das categorias de violência mais disseminadas na nossa sociedade. Comprovadamente, essa violência causa traumas graves, que deixam marcas duradouras em sua vida afetiva e psicológica.
Também, que as primeiras relações que a criança tem com as pessoas mais próximas e mais queridas contribuem de forma decisiva para a construção de sua identidade. A criança que experimenta a violência, muito provavelmente, se tornará um adulto violento, corre sérios riscos de se tornar incapaz de respeitar os outros e, ainda mais, estudos já comprovaram que as crianças que são respeitadas e amadas pelos mais íntimos durante sua infância ficam predispostas a respeitar e a amar os outros e têm força para resistir ao desprezo, à raiva e à coisificação por parte do outro. Por isso, erradicar a violência contra as crianças é um grande desafio, e é dever dos professores denunciar as violações, as negligências observadas nas crianças que educam.
No oitavo capítulo, o autor discorre sobre a delinquência e explica que a escola faz parte da comunidade onde está inserida. A criança é diretamente afetada pela delinquência com a qual seus alunos estão envolvidos fora dos portões da escola. A violência parece ser o último recurso dos indivíduos privados de toda e qualquer participação na vida da comunidade, e sua violência é uma demonstração de sua existência.
Ela exerce um fascínio para os que se sentem excluídos e, por isso, humilhados. Ela é um pedido de socorro, é a expressão do desejo de comunicar-se. É obrigação da sociedade ouvir esse grito. É preciso entender a violência para também proibi-la. A violência é sinal de que os que se entregaram a ela não foram capazes de encontrar limites, e estão pedindo que lhes sejam agora impostos. As crianças e os adolescentes precisam enfrentar os limites estabelecidos pela autoridade dos adultos, pois esses oferecem a eles a segurança necessária para que consigam estruturar sua personalidade. A ausência de limites fá-los mergulhar em ansiedade, e a ansiedade gera violência. Mas os adultos só conseguirão demarcar os limites novamente se eles mesmos exibirem uma atitude não violenta. É na escola básica que um professor atento, observador, pode detectar aquela criança que está indo diretamente para a delinquência: comportamento antissocial, grosserias, agressão verbal, provocações. Já nos primeiros anos de escola, é preciso frear esse processo com a mediação de especialistas no assunto.
No nono capítulo, o autor ensina que se deve educar a criança em cidadania. Explica que, através da educação, deve-se ter em vista erradicar a violência, e, como as leis justas são o fundamento do Estado Democrático de Direito, na escola, as regras estabelecidas pelo professor devem levar as crianças a aprender a conviver num ambiente de respeito mútuo.
No décimo capítulo, o autor escreve sobre a autoridade, explicando que uma educação não violenta não decreta que os adultos devem deixar de exercer sua autoridade, pois, para que a personalidade da criança se estruture, é preciso que aprenda a obedecer, e o adulto deve exigir obediência. Nesse viés, acredita-se que a autoridade do adulto deve prevalecer sempre, mas sempre através de um processo de comunicação e diálogo que permita à criança sentir que o mundo da escola é seu, que é um lugar onde ela tem o direito de falar, onde seus pontos de vista serão ouvidos e levados em conta, pois é muito fácil uma criança passar dos limites. O essencial é que a educação fomente a autonomia ao invés da submissão; uma mente crítica em vez de obediência passiva; responsabilidade em lugar de disciplina; cooperação em substituição à competição; e solidariedade no lugar de rivalidade. Segundo o entendido, quando há submissão demais, surge um adulto sem caráter. A criança precisa entender que a não violência é lei universal, ou seja, o princípio ético que qualquer ser racional deve observar. A base da vida comunitária não é o amor, mas a justiça e o respeito pelos direitos de todos.
No décimo primeiro capítulo, ao explanar sobre a “solução construtiva de conflitos”, o autor advoga que o relacionamento entre professor e aluno jamais estará livre de conflitos, e é responsabilidade do adulto não suprimir esses conflitos em nome da submissão da criança. O educador deve buscar soluções construtivas para os conflitos que surgem, cedendo espaço para as necessidades e solicitações expressas pela criança.
Isso a ajudará a construir autoconfiança, pois o ambiente da sala de aula se torna insuportável, quando os dois extremos de uma situação levam professores e alunos a um impasse. E ninguém é beneficiado. Fato esse absolutamente visível, pois a construção da autoconfiança não é apenas o fim primeiro da educação, mas também o meio. É importantíssimo que o professor envolva os alunos na busca de soluções, devendo apelar à criatividade dos alunos e ter a ousadia de perguntar a eles que soluções proporiam. O lugar onde a violência surge com muita frequência, comprovadamente, é no pátio da escola. O professor sempre precisa ficar muito atento, pois é importante sempre que haja adultos por perto nesses momentos para garantir o cumprimento das regras no pátio: separar as crianças que brigam, terminar com a violência e descobrir, através do mediador (pai, professor ou até mesmo um aluno preparado), a origem dos conflitos, permitindo que a criança perseguida se sinta protegida, pois o seu papel é restabelecer a comunicação entre as partes em conflito, permitindo que cada um apresente seu ponto de vista. Desse modo, o adulto estará ajudando a criança a solucionar, juntamente com a outra, o desentendimento. Considera-se de suma importância a tese do professor Muller ao colocar que a não violência se apresenta como o único meio para garantir a convivência pacífica e a justiça entre todos os seres humanos. Esse princípio deve, pois, ser ensinado cotidianamente, nas escolas.
Referências
MULLER, Jean-Marie. Não violência na educação. Trad. de Tônia Van Acker. São Paulo: Pala Athena, 2006. 110 p.
Karin Zanotto – Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Caxias do Sul. E-mail: karinquiro@yahoo.com.br