Uma história feita por mãos negras | Beatriz Nascimento, organizado por Alex Ratts

Beatriz Nascimento Imagem AdUFRJ 2
Beatriz Nascimento | Imagem: AdUFRJ

Nascida em Aracaju (SE), Maria Beatriz Nascimento (1942-1995)[1] produziu reflexões diversas e dispersas em artigos, entrevistas, roteiros cinematográficos sobre a história do negro no Brasil, ganhando visibilidade no debate historiográfico no país, nos últimos anos, por conta da publicação de seus textos em livros (Ratts, 2006; 2021), reveladores da atualidade de suas ideias sobre as relações raciais e de gênero. Graduada em História, em 1971, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ela contribuiu, decisivamente, para a rearticulação do movimento negro no Rio de Janeiro, seja “participando das reuniões no Centro de Estudos Afro-Asiáticos (CEAA), situado na Universidade Cândido Mendes (UCAM)”, seja criando coletivos como o Grupo de Estudos André Rebouças (GTAR), na Universidade Federal Fluminense (UFF). Ela cursou especialização em História do Brasil, na Universidade Federal Fluminense, ingressando no Mestrado Acadêmico, sem concluí-lo (Pinn; Reis, 2021, p. 3). Em 1995, o curso de Mestrado na Escola de Comunicação, na UFRJ, sob a orientação de Muniz Sodré, foi interrompido, abruptamente, por sua morte prematura. Grande parte dessa experiência de vida e trajetória acadêmica está no livro Uma história feita por mãos negras, organizado por Alex Ratts, e lançado em 2021.

Beatriz Nascimento Uma historiaA recuperação de suas ideias está vinculada à emergência das perspectivas decoloniais dos estudos de gênero e de raça no contexto da presença de governos de centro-esquerda no Brasil, entre 2003-2016, haja vista que os atuais “estudos sobre escravidão, o movimento social e operário, o tempo presente, a memória, a história da historiografia, dentre outras”, estão em conexão, consciente ou não, com as “pautas que emergiram da luta pela redemocratização no país, desde a década de 1970” (Pereira, 2022, p.31). Leia Mais

Uma história feita por mãos negras: relações raciais, quilombos e movimentos | Beatriz Nascimento

Beatriz Nascimento Imagem Carta Capital
Beatriz Nascimento | Imagem: Carta Capital

Uma história feita por mãos negras: relações raciais, quilombos e movimentos, coletânea lançada pela editora Zahar em 2021, reúne um conjunto muito especial de escritos da intelectual sergipana Beatriz Nascimento (1942-1995), entrelaçando os sentidos de sua atuação enquanto militante antirracista e feminista, à efervescência do período em que a temática da desigualdade racial adentra o universo acadêmico e disputa uma representação na mídia impressa nacional. Sua trajetória de vida, assim como sua aguçada sensibilidade, foi significativa para a construção deste seu papel de pioneirismo e de “afirmação da mulher negra como sujeito do conhecimento sobre seu povo” (Sueli CARNEIRO, 2006, p. 11)1. Organizada pelo antropólogo Alex Ratts, o conjunto de vinte e quatro escritos produzidos entre 1974 e 1994, primorosamente selecionados e devidamente contextualizados, não apenas fazem justiça ao legado de um pensamento de alto teor crítico-revolucionário, que fora, ainda, pouco reverberado no espaço acadêmico, mas também reitera a atualidade de suas formulações. Leia Mais

Em busca da África: pretitude e modernidade | Manthia Diawara

O livro de Manthia Diawara tece uma instigante investigação sobre algumas das tensões que explodem em países africanos após sua independência dos países europeus, remetendo-nos aos debates de ideias que motivavam, na segunda metade do século XX, algumas das principais querelas que então se produziam em torno do ideal de modernidade que ali se alçava, anelando a história pessoal do autor à do próprio continente: Leia Mais

O maior revolucionário das Américas: a vida épica de Toussaint Louverture | Sudhir Hazareesingh

A publicação do livro de Sudhir Hazareesingh diminui em alto nível a escassez de bibliografia disponível no Brasil acerca dos acontecimentos que eclodiram em agosto de 1791, conhecidos por Revolução Haitiana, que levou à abolição da escravidão em 1793 naquela lucrativa colônia francesa, fundando novos direitos para seus habitantes, e da qual resultou sua independência da França, em janeiro de 1804. Apesar das traduções para o português de livros como os de C. R. L. James e de Michael-Rolph Trouillot, este mais recente, e da publicação do de Marco Morel,1 ainda há pouca coisa sobre suas repercussões por aqui, mais especificamente, sobre como escravizados, libertos, senhores e autoridades policiais reagiram ao evento, revelando, a depender do protagonista, rebeldia, ameaça e medo de abalos à escravidão.2 Leia Mais

A autobiografia de Martin Luther King | Clayborne Carson e Martin Luther King

Em função de sua influência midiática global, as recentes manifestações estadunidenses, pautadas primordialmente no antirracismo, ressuscitaram o debate sobre discriminação racial nas imprensas espalhadas pelo mundo. Seja para criticar a raiva dos manifestantes, representada pela destruição de símbolos escravistas, como estátuas de senhores de escravos, por exemplo, ou para apoiar a causa da população negra, opiniões têm sido levantadas sobre esses episódios sociais. Entretanto, se engana quem pensa que tais demandas e reivindicações são totalmente novas no âmbito social dos Estados Unidos da América. Não é de hoje que esse ativismo urgente reúne milhares de atuantes em seu centro e milhões de espectadores em seu entorno.

No cerne dessa questão, importantes lideranças negras se consolidaram como catalisadores de mudanças sociais no continente americano. Dentre elas, destaca-se o inesquecível pastor batista Martin Luther King Jr (1929- 1968), reconhecido por lutar em prol da universalização dos espaços sociais. Nascido no ápice da Grande Depressão, o menino da classe média de Atlanta, desde cedo, nutria um forte sentimento contra o sistema segregacionista que vigorava nos Estados Unidos. Acusado de ser negro1, inevitavelmente enveredou pelos caminhos militantes do pai2 e, em poucos anos, tornou-se a liderança central do movimento por direitos civis na América do Norte, questionando a predominância exclusivamente branca nos espaços sociais de seu país. Leia Mais

A metamorfose do mundo: novos conceitos para uma nova realidade | Ulrich Beck

O diálogo com sociólogos como Jürgen Habermas e Pierre Bourdieu ampliaram os horizontes da História e levaram a produções fundamentais dentro da historiografia. Contudo, parece que o trabalho de Ulrich Beck ainda não foi devidamente apreciado pelos historiadores. A metamorfose do mundo: novos conceitos para uma nova realidade pode ser uma oportunidade interessante para se aproximar de sua teoria social, além disso, é um diagnóstico histórico ambicioso sobre as transformações do mundo contemporâneo.

Ulrich Beck foi professor de sociologia na Universidade de Munique, na London School of Economic’s and Political Science e doutor honoris causa por diversas universidades europeias. As preocupações e questões desenvolvidas no conjunto de sua obra o colocam ao lado dos grandes intérpretes da modernidade, como o próprio Jürgen Habermas, Michel Foucault e Zygmunt Bauman. Beck tornou-se conhecido após a publicação de Risikogesellshaft (1986), traduzido para o português com o título Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade (BECK, 2011). Esse livro foi publicado no mesmo ano em que ocorreu o acidente nuclear de Chernobyl, as incertezas e o sentimento de falta de controle em relação ao uso da energia nuclear apresentavam uma impressionante coincidência com as análises desenvolvidas por Beck. Leia Mais

1968: Eles só queriam mudar o mundo | Regina Zappa e Ernesto Soto

Em um mundo onde movimentos sociais ainda engatinham precariamente, posto que são sufocados por regimes autoritários, exclusão das minorias e opressão exercida pela classe dominante, os jornalistas Regina Zappa e Ernesto Soto, em sua obra “1968: Eles só queriam mudar o mundo”, discorrem sobre os elementos artísticos, culturais e sociais que marcaram o referido ano no Brasil e no mundo. Buscando resgatar experiências e relatos no período, os autores ressaltam memórias e fatos que influenciaram os desencadeamentos dos movimentos sociais no final da década de ‘60 e a busca pela liberdade coletiva.

Dividido em 12 capítulos nomeados seguidamente conforme os meses do ano, o livro busca, através de uma série de imagens, depoimentos, composições artísticas e relatos de pessoas que estiveram presentes em 1968, discutir as consequências (in)diretas de vários acontecimentos históricos, como a Guerra do Vietnã, os Panteras Negras, os desdobramentos dos AI-5 no Brasil, as agitações na França e as mortes de Martin Luther King e John Kennedy, problematizando, assim, tais eventos e recuperando as lutas travadas a partir das insatisfações populares, desprezos e preconceitos. Leia Mais

Retrotopia | Zygmunt Bauman

As primeiras publicações do autor surgiram no Brasil, nos anos de 1970. Poucos textos foram traduzidos nas décadas seguintes, todavia ocorrendo uma inflexão editorial em 1998, com O mal-estar da pós-modernidade e Modernidade e holocausto. Alguns anos depois, com Modernidade Líquida, esse escritor polonês tornou-se conhecido e apreciado para além do ambiente acadêmico e começou a ser discutido como teórico da modernidade líquida. A partir de então, seus livros eram traduzidos aqui tão logo lançados originalmente na Inglaterra, onde lecionou. Duas características pouco comuns destacam-se: escritor prolífico e editoração rápida, ambas de alta qualidade. Mais de quarenta títulos estão publicados no Brasil. Retrotopia, lançado na Europa, em 2017, foi o último escrito pelo autor, falecido nesse mesmo ano.

Bauman expôs, ao periódico alemão Der Spiegel, em setembro de 2016, o projeto sobre o qual trabalhava e que se transformaria no livro. Terrorismo, crise financeira, estagnação econômica, desemprego e precariedade colocavam em xeque a ideia de progresso, destruindo esperanças e gerando desapontamentos: “uma vez que não consigo encontrar a felicidade no futuro, volto-me para o passado” (BAUMAN, 2016, p. 124). A rearticulação temporal quanto ao novo termo não era privilégio dos estudos do sociólogo polonês naquele momento. Enquanto Bauman rascunhava seu projeto sob o espírito de desencantamento, era lançado o livro de mesmo título escrito pelo norte-americano John Michael Greer. O romance futurista tem como cenário uma América do Norte esfacelada por conflitos e misérias. Em meio às novas repúblicas decadentes, somente uma alcança a prosperidade ao voltar-se para o passado na busca de modelos. Leia Mais

Ruptura: a crise da democracia liberal | Manuel Castells

Manuel Castells é doutor em sociologia pela Universidade de Paris, onde leciona nas áreas de Sociologia, Comunicação e Planejamento Urbano e Regional. Estudioso da era da informação, Castells avalia a influência da comunicação em rede nas sociedades conectadas e suas principais transformações no final do século XX. Das suas obras principais, destaca-se a coleção A era da informação, composta por três livros (A sociedade em rede, O poder da identidade e Fim de milênio). Nesta resenha, apresenta-se uma de suas mais recentes contribuições para o debate acerca da Democracia e dos inimigos que a rodeiam, oferecendo uma perspectiva de interpretação que aponta para a ruptura no processo de consolidação das democracias no mundo.

“Sopram ventos malignos no planeta azul”. Assim, Castells abre seu livro de cinco capítulos, montando, inicialmente, o panorama no qual sua contribuição se inscreve. Crises múltiplas, precariedades no mundo do trabalho, fanatismos de toda ordem, restrição das liberdades em nome de uma segurança vigiada – “Fomos transformados em dados” (CASTELLS, 2018, p. 4), diz o autor. A era da comunicação foi convertida em uma era da pós-verdade, em que mentiras são torpedeadas por diversos mecanismos de comunicação e alçadas à categoria de verdades absolutas. Existe, porém, segundo o autor, uma crise ainda mais significativa: o colapso das instituições representativas, que se configura enquanto crise cognitiva e emocional. Nosso modelo de representação e governança, a democracia liberal caiu em descrença e enfrenta hoje a fúria das ruas. Dessa rejeição, surgem figuras políticas que negam a estrutura partidária e aprofundam a desordem mundial ao promover o segregacionismo e o protecionismo. De modo geral, o autor aborda nesse livro a crise da democracia liberal; a ruptura da representatividade entre cidadãos e governos; e os desafios da procura por instrumentos legítimos capazes de sanar esse “furacão sobre nossas vidas”. Leia Mais

Estranho à nossa porta | Zygmunt Bauman

O presente trabalho de Zygmunt Bauman, é muito rico e capaz de nos informar e, mais que isto, capaz de tornar compreensível um tema contemporâneo, que clama por uma atenção e solução. O tema abordado pelo eloquente sociólogo e filósofo polonês (1925- 2017) se refere à questão da “crise migratória”, que em suas próprias palavras “inunda os noticiários” que comunica seu “avanço sobre a Europa”. Leia Mais

Protesto: uma introdução aos movimentos sociais – JASPER (RTA)

JASPER, James M. Protesto: uma introdução aos movimentos sociais. Tradução: Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2016. Resenha de: ZANGELMI, Arnaldo José. Um olhar sobre a dimensão cultural dos protestos e os dilemas da mobilização. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.10, n.25, p.502-508, jul/set., 2018.

Publicada originalmente pela editora Polity em 2014, com o título Protest: a cultural Introduction to social movements, a obra aqui apresentada foi disponibilizada em português pela Zahar no ano de 2016, em edição que conta com prefácio e posfácio dedicados especialmente ao contexto brasileiro. James Macdonald Jasper, professor da City University of New York, busca compreender as dinâmicas de mobilização em diversos contextos, dando especial atenção à dimensão cultural dos protestos. Apesar do reconhecimento sobre a relevância das forças estruturais, a atenção do autor está direcionada principalmente para as significações, emoções, valores morais e estratégias de ação dos atores em interação nas diversas arenas.

O livro é formado por oito capítulos, cada um baseado na articulação entre as mobilizações de um determinado movimento e um dos aspectos centrais nas dinâmicas dos movimentos em geral. Ao longo da obra, o autor também relaciona reflexões sobre os movimentos mais recentes e processos históricos mais antigos, como o caso de John Wilkes, ator que desencadeou uma série de movimentos na Inglaterra do século XVIII.

O primeiro capítulo é voltado principalmente para as definições e abordagens sobre os movimentos sociais. Jasper traça um breve panorama das principais perspectivas, delimitando entre as teorias psicológicas (ressentimento, multidões, escolha racional etc.), estruturalistas (oportunidades políticas, mobilização de recursos etc.) e históricas (Marx, Touraine, Tilly etc.). O autor busca, então, demonstrar como essas várias tendências, quando isoladas, se mostraram incapazes de compreender a realidade social, problema que tem levado algumas delas a incorporar a dimensão cultural em suas análises. Um exemplo é o sociólogo estadunidense Charles Tilly, que incorporou a persuasão como elemento relevante em seus últimos trabalhos. Jasper embasa parte significativa de suas reflexões nas concepções conceituais e históricas de Tilly, especialmente sobre as mudanças nos repertórios de ação dos movimentos nos séculos XVIII e XIX, em países como França e Grã-Bretanha.

O segundo capítulo trata da construção e projeção de significados, utilizando o movimento feminista como principal referencial empírico. Jasper salienta como a feminilidade é uma construção cultural, não um imperativo biológico, sendo assim foco das mobilizações de diversos movimentos ao longo da história. O movimento feminista, por diversos meios físicos e figurativos, buscou transformar as significações vigentes, influenciar a sociedade e conquistar novos direitos.

No terceiro capítulo, o autor trata das infraestruturas (comunicações, transporte, redes sociais, organizações, profissionais etc.) nas quais os atores se mobilizam, espaços que influenciam no processo de criação e transmissão de significados culturais pelos movimentos. Tratando especialmente das mobilizações da direita cristã nos Estados Unidos, Jasper deixa entrever que sua perspectiva tem um forte caráter relacional, na medida em que argumenta que o surgimento e desenvolvimento dos movimentos se dão nas interações com outros atores em diversas arenas. Assim, o autor demonstra como as ações de religiosos conservadores tiveram como principais contrapontos o feminismo e o movimento LGBTQ, se constituindo, em grande medida, pelo contraste em seus enfrentamentos.

As análises de Jasper também têm um enfoque processual, pois abordam as continuidades e transformações nas formas de enfrentamento, demonstrando como antigos movimentos deram base para novas mobilizações. Nesse sentido, o autor explica como os conservadores da direita cristã tiveram influência do anticomunismo dos anos de 1950, assim como os movimentos de homossexuais se valeram das linguagens de direitos praticadas pelos movimentos de afro-americanos, mulheres, indígenas etc. da década de 1960.

A partir dessas análises, o autor critica o uso de diferentes teorias para explicar movimentos de esquerda e direita, uma das tendências entre os estudiosos dos movimentos sociais. Assim, Jasper enfatiza a necessidade de superarmos os relatos que apontam motivações psicológicas e patológicas para os movimentos de direita, sendo mais proveitoso buscar compreender as formas como esses atores significam suas ações.

A dinâmica de recrutamento de novos membros nos movimentos é discutida no quarto capítulo, que analisa o movimento LGBTQ. O autor destaca o relevante papel dos contatos pessoais, em redes formais e informais, como incentivos para o ingresso e permanência nas mobilizações. Assim, as relações de confiança pré-existentes, orientações afetivas e intuições morais são elementos fundamentais para a adesão aos movimentos. O desenvolvimento das mobilizações dos homossexuais nos EUA é um bom exemplo também para o que o autor denomina como “dilema da desobediência ou cordialidade”, no qual os atores se deparam com escolhas entre táticas aceitas, que geram simpatia de outros atores, ou ações temidas que podem alcançar maior orgulho pelo grupo e recuo dos adversários, porém com maior risco de repulsa e repressão. Quando surgiu a epidemia de AIDS no início dos anos de 1980, assim como sua conotação depreciativa pela direita cristã, a ascendente mobilização das comunidades gays se direcionou para cuidados com os moribundos e a busca por aparência de normalidade e amorosidade. No entanto, os crescentes avanços conservadores sobre as políticas públicas, ocasionaram duras formas de discriminação, causaram um “choque moral” e um crescente sentimento de indignação entre os gays a partir da segunda metade da década de 1980, atraindo milhares de militantes, muitos deles jovens.

O “choque moral” é uma reação emocional que gera sentido de urgência, ameaça, indignação e medo. Desencadeado por eventos dramáticos que quebram a rotina, ele abala o senso de realidade e normalidade, sendo forte motivador para a ação. Assim, houve uma guinada no sentido da desobediência, inconformidade, enfrentamento no movimento LGBTQ, que canalizou a culpa e a vergonha para o Estado, sistematicamente homofóbico, assim como para outras instituições conservadoras da sociedade.

A questão da manutenção dos membros em um movimento é discutida no quinto capítulo, que destaca as diversas satisfações e incentivos promovidos nos movimentos, como a identificação com o grupo, o sentimento de estar fazendo história, o senso de pertencimento etc. Jasper buscou demonstrar como as mobilizações dos dalits, na busca por direitos contra o hinduísmo bramânico dominante, caminharam no sentido da transformação da vergonha em orgulho para o grupo.

O sexto capítulo é voltado para a análise dos processos decisórios nos movimentos, tendo como base o movimento por justiça global. Mobilizando-se principalmente através de fóruns, entre os quais o Fórum Social Mundial tem maior expressão, esses atores têm formulado fortes críticas às políticas neoliberais de diversos países. Jasper analisa diversos mecanismos de tomada de decisão, como a formação de consensos, disputas pelo voto etc. O autor salienta as tensões entre as discussões horizontais, que demandam mais tempo, e as necessidades de tomada de decisão mais rápida e incisiva. Jasper demonstra como as rotinas organizacionais, ao cristalizarem certos procedimentos, diminuem a necessidade de muitas discussões, porém com prejuízo da criatividade e flexibilidade no processo decisório. O autor destaca também que as discordâncias entre facções, a respeito dos objetivos, estratégias etc., podem caminhar para a conciliação ou cismas nos grupos. Assim, mostra como as alianças são dinâmicas, influenciadas por uma multiplicidade de fatores, gerando grande incerteza nessas interações.

O sétimo capítulo trata da revolução egípcia, principalmente quanto às interações dos diversos grupos, entre os anos de 2011 e 2013. Jasper discute como outros atores se envolvem nas mobilizações, em complexas teias de alianças e disputas nas várias arenas. Assim, busca demonstrar como exército, governo norte-americano, grupos religiosos, partidos políticos etc. interagiram nesse processo, influenciando seus rumos. Dessa forma, o autor argumenta que os diversos grupos, cada qual com métodos e objetivos próprios, se envolvem numa mistura de cálculo e emoção, coerção e persuasão. A eficácia dos movimentos, em grande medida, depende de sua capacidade de envolver outros atores numa mesma causa.

No oitavo capítulo, Jasper discute as vitórias, derrotas e demais impactos dos movimentos sociais no mundo contemporâneo, tendo como referencial empírico central o movimento pelos direitos dos animais, principalmente na Grã-Bretanha e nos EUA. Esse movimento obteve várias conquistas, como leis que reduziram consideravelmente o sofrimento dos animas, mas enfrenta fortes obstáculos relacionados a hábitos arraigados, mercado, pesquisas científicas etc. Jasper argumenta que, além das conquistas concretas, vale atentar para os impactos nas visões de mundo, nas sensibilidades morais e interpretações históricas das sociedades. Os movimentos sociais transformam as maneiras de sentir e pensar, conduzindo, mesmo indiretamente, para novas práticas. Os integrantes dos movimentos sociais mudam também a si mesmos, desenvolvendo pensamento crítico, confiança e hábitos que os acompanham em suas trajetórias. Antigos movimentos inspiram os novos e também abrem espaços ao transformarem as regras das diversas arenas, potencializando as lutas futuras.

Jasper procura tecer algumas considerações sobre os movimentos no Brasil, principalmente no prefácio e posfácio à edição brasileira. O autor reflete sobre os protestos desencadeados a partir de 2013, enfatizando como as mobilizações contra o aumento das passagens, com proeminência do movimento Passe Livre, envolveram outros atores e catalisaram demandas mais amplas. Numa guinada para novos rumos, destoantes dos originais, esse processo culminou com a contundente queda presidencial, algo ainda efervescente em nossa sociedade. Retrocedendo um pouco mais em nossa história recente, Jasper também discute a importância do choque moral causado pelos massacres de Corumbiara e Eldorado dos Carajás que, ao gerarem indignação, impulsionaram o governo FHC no sentido das reivindicações do MST no final da década de 1990. Por fim, enfatiza como a tática das ocupações ajudou a inspirar outros movimentos pelo mundo, como se pode ver em vários movimentos da atualidade.

Apesar de parte significativa dos problemas tratados por Jasper nesse livro já terem sido discutidos por outros estudos1, sua abordagem traz contribuições relevantes, na medida em que enfatiza as dimensões mais subjetivas dos movimentos, como a produção de significados, estratégias, sentimentos, efeitos morais etc. Essa ênfase é concretizada principalmente na sua exposição de certas questões como “dilemas”2, delimitação original que direciona a atenção para a perspectiva dos atores em suas interações concretas e suas escolhas diante dos universos de possibilidades que vislumbram.

O livro apresenta tanto uma visão introdutória e abrangente quanto profundidade analítica sobre os movimentos sociais, o que o torna interessante para os estudos de iniciantes e especialistas no tema, assim como para que militantes possam revisitar e reinventar suas práticas. Também se trata de uma obra profundamente atual, dado o crescente impacto dos protestos na dinâmica política recente. Entender os movimentos sociais e os protestos é, cada vez mais, algo imprescindível e estimulante para aqueles que se dispõem a conhecer e buscar transformar o mundo de hoje. É sugestiva a aproximação entre o que Jasper denomina como “dilema de Jano” e a “lógica dual” retratada por Cohen & Arato (2000), assim como os dilemas da “mídia” e “da cordialidade e desobediência” encontram em Champagne (1996) questões comuns. Algumas discussões sobre as dinâmicas das organizações de movimentos sociais (Cefai, 2009. Neveu, 2005) também abordam problemas similares ao “dilema da organização” de Jasper que, no entanto, coloca essas questões noutras perspectivas. 2 Os principais dilemas analisados são: dilema de Jano, dilema das mãos sujas, dilema da caracterização dos personagens, dilema da inovação, dilema da mídia, dilema da organização, dilema da expansão, dilema da desobediência e cordialidade, dilema da identidade, dilema dos irmãos de sangue, dilema dos aliados poderosos, dilema da segregação do público e dilema da articulação.

Arnaldo José Zangelmi – Doutor em Ciências Sociais, Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Professor na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Mariana – MG – Brasil. E-mail: arnaldozan@yahoo.com.br.

Teoria social: um guia para entender a sociedade contemporânea / William Outhwaite

Willian Outwaite atuou, por 34 anos, como professor de sociologia, coordenador do Programa de Pensamento Político e diretor do Centro de Teoria e Crítica Social na Universidade de Sussex. Autor de extensa obra sobre teoria social, é professor emérito de sociologia na Universidade de Newcastle, desde 2015.

Com o intuito de apresentar uma síntese da teoria social e o quanto essa ciência pode contribuir para a compreensão das grandes questões do mundo contemporâneo, a obra resenhada divide-se em oito capítulos. No primeiro, intitulado Origens, o autor promove uma reflexão sobre as origens das desigualdades sociais e os ideais, tão presentes hoje, que levaram às revoluções. Em Capitalismo, retoma o pensamento de Marx e Engels para analisar essa controversa forma social e econômica que, na atualidade, molda a vida da maior parte dos seres humanos. Em Sociedade, Outhwaite, objetivando examinar o desenvolvimento das sociedades – das formas simples às modernas – recorre a Herbert Spencer e Émile Durkheim. No quarto capítulo, Origens do capitalismo e teorias da ação social, o autor focaliza as precondições e consequências culturais do capitalismo.

Para introduzir o quinto capítulo e responder à pergunta “Como a sociedade é possível?”, o autor recupera o pensamento de Georg Simmel, cujo interesse por fenômenos culturais inspirou e inspira trabalhos em sociologia sobre a teoria “pós-moderna”. Em A descoberta do inconsciente, Outhwaite discorre sobre como a análise da psique de Freud moldou a compreensão da realidade, delineando as implicações desses estudos na cultura contemporânea. No capítulo Teoria social e política, a maneira pela qual alguns teóricos sociais tentaram explicar a política moderna recebe destaque. Por fim, em Questão pendente, temas relevantes na contemporaneidade que, até pouco tempo, eram negligenciados na teoria social são abordados, tais como gênero, relações internacionais e guerra, raça, colonialismo e crise ambiental.

O primeiro capítulo, concentra-se nas questões propostas por Rousseau e Montesquieu, no século XVIII, sobre a origem das desigualdades nas sociedades e a distinção entre moral e crítica social. Recorrendo a exemplos, o autor ilustra como esses temas permearam debates posteriores. Estabelece, desse modo, um paralelo entre as relações de poder, a histórica e crescente desigualdade social e, em se tratando de desigualdade natural, como nas sociedades capitalistas os olhares se voltaram à equidade. Nesse sentido, ressalta-se como as críticas de Rousseau ao excesso e ao luxo ou, nas palavras desse filósofo do iluminismo, a distinção entre a vontade conectada ao bem público e a vontade relacionada aos interesses individuais é extremamente relevante para a compreensão da política moderna.

Ainda sobre a política moderna, o autor retoma o pensamento de Montesquieu que, em O espírito das leis (1748), enfatiza a necessidade de um legislador, tanto quanto um arquiteto, conhecer bem o terreno antes de elaborar projetos, visto que o terreno pode não suportar o peso do que foi planejado. Em outras palavras, regimes políticos encontrarão solo seguro quando adequados à sociedade, não impostos. A aguda percepção de Montesquieu acerca da interação entre eventos acidentais e causas estruturais de longo prazo é, portanto, um bom ponto de partida para estudos que tem por fim compreender a relação entre o papel dos indivíduos e as estruturas mais amplas da história.

O autor finaliza este capítulo retomando a ideia de Montesquieu acerca do “espírito geral” e sinalizando como a mesma, além de encontrar eco no que Durkheim chamou de “consciência coletiva”, se mostra nuclear nos dias atuais para analisar-se as desigualdades, a democracia e os perigos do conformismo ou, numa expressão de Tocqueville, da tirania de uma maioria.

No segundo capítulo, Outhwaite, promove uma incursão na obra de Marx e Engels. De acordo com esse professor de sociologia, as análises realizadas por esses dois teóricos germânicos sobre os antagonismos das classes e as formas de produção são, até hoje, a forma mais consiste para pensar-se a estrutura social e econômica vigente na maior parte do globo terrestre: o capitalismo.

Começando com conceitos presentes em O capital (1867), é-se apresentado ao que Marx chamou de “valor de uso”, valor de troca”, “fator sensação”, “equivalente universal” e “mais valia”. Outhwaite assinala que a exploração do trabalho assalariado é tão intrínseca ao processo capitalista quanto os conflitos entre os que detêm os meios de produção e os que dispõe da força de trabalho. Lembrando que o lucro decorre do fato dos trabalhadores receberem em seus salários um valor bem distante do equivalente à produção por eles realizada, e os conflitos, por sua vez, resultam desse valor recebido mal suprir as necessidades de sobrevivência de quem detém a força de trabalho.

Ainda na atualidade, a ideia de receber o “valor total de seu trabalho” permanece tão incompatível com a manutenção do sistema capitalista que, em 1995, Tony Blair retirou do verso das carteiras dos trabalhadores a famosa clausula quatro do estatuto do Partido Trabalhista, que reconhecia como justo “Assegurar aos trabalhadores braçais ou intelectuais os plenos frutos de sua indústria e a mais equitativa distribuição possível deles, com base na propriedade comum dos meios de produção, distribuição e troca” (OUTHWAITE, 2017, p. 31).

Outra questão que merece destaque é a crítica de Marx à religião, por promover reflexões sobre a estreita relação entre os antagonismos de classes nas sociedades modernas e as ideologias. Para Marx, a insatisfação com as condições políticas e sociais levava o povo a refugiar-se nas ilusões da religião. Sob esse prisma, ao puxar o fio da religião, desmancham-se as bases que legitimam ideologicamente as desigualdades e a exploração.

Antes de encerrar o segundo capítulo, a autor ressalta como pode-se observar, no pensamento de Marx e Engels, a importância de uma relação harmônica entre seres humanos e, indubitavelmente, como essa necessidade de harmonia deve ser estendida a toda a natureza. Esses elementos abrem espaço para argumentar-se que a obra desses dois teóricos da filosofia e da sociologia, implicitamente, oferece bases para reflexões sobre desenvolvimento sustentável nas sociedades humanas. Tanto que, perto do final do século XX, na esteira do pensamento desses revolucionários socialistas, emergem movimentos anticapitalistas combinados a novos movimentos sociais, abordando temas como a desigualdade de gênero, a exploração baseada na etnicidade e a crise ambiental.

Em Sociedade, ao analisar o pensamento de Herbert Spencer – pioneiro da teoria social evolucionista –, o autor ilustra a problemática presente na ideia de “sobrevivência dos mais aptos”. Desta forma, sugere que para realizar-se um exame, por exemplo, do esgotamento do comunismo, tem-se que considerar um feixe de elementos que perpassam por questões econômicas, ideológicas e culturais.

Ao avaliar o contraste entre o que os teóricos marxistas chamam de ideologia e o que Durkheim nomeia como sistemas de valores compartilhados, Outhwaite lembra que Durkheim, no final do século XIX, em sua obra O suicídio (1897), analisou as diferentes taxas de suicídio e promoveu reflexões sobre o valor das crenças compartilhadas, bem como sugeriu a importância dos laços sociais. Esses estudos instigam questionamentos sobre o modelo globalizado e fragmentado da sociedade em que vivemos.

No quarto capítulo, é apresentado o pensamento contido na obra de Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo (1904-05). Destaca-se a análise sobre o modelo da ética econômica protestante e os quatro tipos principais de ação identificadas por Weber: a ação tradicional, a ação guiada pela emoção, a ação irracional em relação aos fins e a ação racional em relação aos valores.

O autor finaliza o quarto capítulo focalizando no trabalho de Georg Lukács, Theodor Adorno e Habermas as conexões entre as formas de ação social, no nível mais básico, e os processos mais amplos de desenvolvimento social e histórico.

Em como a sociedade é possível, Outhwaite descreve ligações entre comportamentos cotidianos e processos estruturais mais amplos, tendo como base o pensamento de Georg Simmel, Erving Goffman, Harold Garfinkel, e a obra de Norbert Elias, O processo civilizador (1939). Nas palavras do autor, em razão do extenso exame que Simmel realiza das precondições e das consequências intelectuais, culturais e psicológicas da economia monetária em A filosofia do dinheiro (1900), essa obra poderia, sem dúvida, ter por título “sociologia do dinheiro”. Para esse sociólogo alemão, individualismo, nervosismo e economia monetária se relacionam estreitamente com a vida urbana, sendo o desgaste compensado pela atitude blasé.

A obra de Goffman, por sua vez, tem como foco a dimensão da representação no desempenho de papeis sociais, ou seja, de acordo com esse sociólogo norte americano, as pessoas se adequam aos papeis prescritos pela sociedade para não serem excluídas. O pensamento de Harold Garfinkel se aproxima da abordagem de Goffman, já que para o primeiro a manutenção da ordem é produto do trabalho interpretativo dos atores sociais.

Após destacar o paralelo estabelecido por Norbert Elias entre as transformações, nos primórdios da Europa moderna, das estruturas de personalidade e dos comportamentos individuais e a origem do Estado moderno, Outhwaite, recorre a Zygmunt Bauman e Luc Boltanski para expor a magnitude dos desafios da sociedade contemporânea.

Partindo da premissa de que a análise que Sigmund Freud fez da psique moldou totalmente a compreensão que tem-se da humanidade e, consequentemente, da cultura e da sociedade, Outhwaite inicia o sexto capítulo ponderando acerca do papel do recalcamento de pulsões conscientes e inconscientes na construção da cultura humana. Para defender sua tese, recorre às teorias de Freud, Erich Fromm, Herbert Marcuse, Theodor Adorno e Louis Althusser.

Ainda nesse capítulo, o autor estabelece associações entre e as ideias de Freud e as de Marx; entre o modelo de autoridade carismática de Weber e os sentimentos inconscientes – estudados por Freud – de quem segue essa espécie de liderança; e, por fim, entre a ênfase de Freud na regulação e o que Durkheim denominou ausência de normas na sociedade moderna. Destaca-se o impacto da psicanálise na interpretação de textos literários e na análise de produções cinematográficas, em especial, as análises de Hanns Sachs, Gilles Deleuze e Slavoj Žižek.

No capítulo intitulado Teoria social e política, Werner Sombart, Robert Michels e Norbert Elias são referências para o debate sobre o quanto uma concepção do social ou de sociedade pode ter potencial para promover a compreensão de problemas que a abordagem política não consegue alcançar. Outhwaite lembra que esses teóricos sociais propuseram análises significativas da política e, para ilustrar, retoma suas ideias sobre a permanente oposição entre a teoria das elites e a teoria da sociedade de massas; a exposição das massas urbanas às elites demagógicas; a abertura da teoria crítica às questões culturais e à teoria freudiana; a oposição entre as explicações centradas no Estado e centradas na sociedade; bem como sobre as teorias da globalização e suas dimensões econômica, social e cultural.

Sobre as teorias da globalização, finaliza esse capítulo lembrando que essas não podem se deter aos aspectos econômicos, pois envolvem dimensões sociais e culturais mais amplas. Nesse sentido, o autor propõe a reflexão sobre as formas atuais de política democrática em meio a relativa imobilidade das estruturas políticas e os avanços das técnicas de manipulação das massas, destacando o controle exercido pela televisão e ascensão de partidos populistas.

Outhwaite, em Questão pendente, avalia que, apesar da relevância da teoria social, algumas áreas foram tardiamente tratadas pela sociologia, como, por exemplo, as relações internacionais e a guerra. De acordo com pesquisas realizadas por esse autor, a palavra conflito – relacionada à conflito internacional e guerra – pouco aparece nas produções acadêmicas do final do século XX. Além disso, pouca atenção foi dada às noções grosseiras de competição evolutiva aplicadas ao social e aos movimentos “verdes” que, nas palavras do autor, não podem continuar sendo negligenciados pela sociologia.

A teoria pós-colonial tem se mostrado mais forte nos estudos literários que nas ciências sociais e, sobre essa sociologia que emergiu de uma cultura imperialista e desconsiderou o mundo colonizado, o autor afirma ser urgente sua revisão. Considera, também, que os debates em torno da modernidade e pós-modernidade não podem mais ignorar os modos como a democracia foi transformada em algo próximo a um teatro, no qual a política é protagonizada pelos que controlam as finanças e os meios de comunicação.

Para além de proporcionar uma viagem panorâmica pelos tópicos que interessam à teoria social e uma breve abordagem das análises realizadas pelos seus principais pensadores, nesse livro, pode-se avaliar o papel da teoria social e sua possibilidade de iluminar, em conjunto com as ciências sociais e a filosofia, questões latentes no século XXI.

Considera-se que, em um cenário contraditório, de aumento de pobreza, desemprego e exclusão, de violência urbana e de inquestionável expectativa de pertencimento ao mundo, tem-se como escolha a negação de acondicionamento ao existente. Nesse sentido, o conhecimento que advém desse livro pode ser uma excelente contribuição para instigar reflexões sobre e ações direcionadas às possibilidades de construção de, como coloca Gohn e Hamel (2003, p. 118), um “(…) novo modelo civilizatório, em que a cidadania, a ética, a justiça e a igualdade social sejam imperativos, prioritários e inegociáveis”.

Referências

GOHN, Maria da Glória; HAMEL, Pierre. Movimentos sociais e mudanças na democracia. In: ROMÃO, José Eustáquio; SANTOS, José Eduardo de O. Questões do Século XXI, tomo I. São Paulo: Cortez, 2003.

Régia Vidal Santos – Doutoranda em Educação na Universidade Nove de Julho (UNINOVE).


OUTHWAITE, William. Teoria social: um guia para entender a sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Zahar, 2017. 142p. Resenha de: SANTOS, Régia Vidal. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.32, p.126-131, jan./jul., 2018. Acessar publicação original. [IF].

Crer e destruir: os intelectuais na máquina de guerra da SS nazista – INGRÃO (RTA)

INGRAO, Christian. Crer e destruir: os intelectuais na máquina de guerra da SS nazista. Rio de Janeiro: Zahar, 2015. Resenha de: BECHER, Franciele. Por uma antropologia das emoções do nazismo. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.9, n.21, p.482‐487, maio/ago., 2017.

A proposta de fazer uma “história das emoções” do nazismo pode parecer, em um primeiro momento, desconfortável. E isso ocorre, sobretudo, porque a representação mais recorrente do nacional‐socialismo sempre liga os seus atores a ações brutais, cegas e fanáticas. A imagem cristalizada do nazismo enquanto um caso de violência definitiva muitas vezes leva os historiadores a definirem categorias conceituais imprecisas ou genéricas, já adaptadas ao discurso que normalmente é utilizado no estudo dos regimes autoritários.

O livro de Christian Ingrao, historiador francês ligado ao Centre national de la recherche scientifique (CNRS) e antigo diretor do Institut d’Histoire du Temps Présent (IHTP), procura traçar os itinerários profissionais e militantes de cerca de 80 intelectuais e acadêmicos que fizeram suas carreiras em órgãos de repressão ligados à Ordem Negra, a SS, ao Serviço de Segurança (SD), ou ao Gabinete Central de Segurança do Reich (RSHA).

Em comum, todos os sujeitos analisados têm a participação nas missões de repressão, combate e ocupação do Leste europeu, seja nas campanhas da Polônia ou da União Soviética, ao longo da Segunda Guerra Mundial. Muitos deles estiveram implicados diretamente nas matanças efetuadas pelas forças‐tarefa dos Einsatzgruppen, e nas medidas implantadas na organização do genocídio de milhões de judeus e outras vítimas eslavas.

Através dos pressupostos teóricos da antropologia social das emoções e da história cultural, e utilizando uma vasta gama de fontes e arquivos, que inclui narrativas de vida dos akademiker, suas trajetórias profissionais, documentações dos órgãos dos quais faziam parte e seus depoimentos nos julgamentos do pós‐guerra, o autor consegue traçar um panorama competente sobre as representações de mundo desses intelectuais.

Fugindo de uma análise funcionalista das instituições e de sua incidência sobre os comportamentos, Ingrao tece o esboço sobre a forma como esses sujeitos conseguiram aliar seu rigor científico às exigências da militância nazista, criando grades de leitura do mundo e discursos de legitimação que deram suporte aos massacres e ao genocídio.

Fruto da tese de doutorado do autor, escrita entre 1997 e 2001, na Universidade de Amiens (« Les intellectuels du service de renseignement de la S.S, 1900‐1945 »), o livro toma como ponto de partida a apreensão do nazismo enquanto um sistema de crenças que combina práticas e discursos frutos de políticas públicas e institucionais, mas que também são percorridos por uma gama de emoções que vão da angústia à utopia, passando pelo ódio, crueldade e desespero, e que não podem ser apreendidas dentro dos paradigmas clássicos da política e da sociologia. Ingrao procura compreender em que medida as experiências vividas por esses intelectuais foram capazes de modelar seu sistema de representações, criando eixos de consentimento que os levariam, no futuro, a legitimar a violência extrema.

Partindo da herança de historiadores da Primeira Guerra Mundial, sobretudo do seu orientador de tese, Stéphane Audoin‐Rouzeau, que trabalhou com as experiências infantis ligadas ao conflito, o autor procura apreender a militância nazista desses intelectuais como uma reação à experiência matricial de 1914‐1918, cuja coerência entre discursos e práticas se encarnou em suas trajetórias e carreiras. Em suma, procura compreender como esses homens fizeram para crer e, por consequência, destruir. Sujeito de pesquisa inquietante, sobretudo porque confronta o fato de que setores da alta excelência acadêmica alemã atuaram diretamente em um dos mais atrozes regimes autoritários, servindo‐se, inclusive, das Ciências Humanas e, em particular, da História, como legitimadoras desses processos.

O livro é organizado em três partes: na primeira delas, Ingrao traz três capítulos sobre a experiência matricial da Primeira Guerra Mundial, e de como toda a cultura do “mundo de inimigos” e da crença no papel defensivo da Alemanha no conflito, mesmo que silenciada pelos akademiker, influenciou suas trajetórias e seus imaginários. Além disso, estabelece um panorama das instituições e dos saberes acadêmicos e militantes construídos pelos futuros oficiais entre os anos 1920 e 1930, quando turbulentas disputas políticas influenciaram nos seus sentimentos de angústia, e interferiram em suas escolhas e ambições científicas e, claro, nos seus engajamentos políticos dos anos seguintes.

Formando‐se como advogados, economistas, geógrafos, historiadores ou linguistas no pós‐guerra, muitos deles com formações universitárias multidisciplinares com alto desempenho acadêmico, esses jovens, vindos em sua maior parte das classes médias alemãs, encontraram na SS um organismo elitista que se distanciava das “hordas” do partido de massa, ou da atuação pragmática das tropas de assalto (SA). Através de diversos ritmos e itinerários de militância, entraram no jogo dos mecanismos institucionais da burocracia nazista, contribuindo para sua justificação científica e ideológica e, ao mesmo tempo, reforçando suas próprias leituras de mundo, profundamente marcadas por suas experiências de vida.

A segunda parte do livro, consagrada à internalização das crenças, à adesão ao nazismo e ao engajamento intelectual e ideológico dos jovens acadêmicos, analisa as fundamentações do dogma nacional‐socialista em sua profunda inspiração de refundação da Alemanha no aspecto sociobiológico e racial. Estudando a grade da leitura sociológica dos discursos dos intelectuais SS, Ingrao demonstra como a ideologia racial incidiu na própria reformulação da história alemã, transformando‐a em uma série de lutas, confrontos e combates identitários, todos marcados pelo selo da etnicidade.

Problematiza como a História e outras disciplinas se tornaram ciências combatentes de legitimação das crenças nazistas, justificando a guerra que estava por vir como um último combate pela salvação providencial do Império Alemão.

Ingrao foge constantemente da armadilha fácil de usar conceitos genéricos e imprecisos como o do “oportunismo” da ascensão hierárquica dentro da estrutura do Reich. Demonstra, no caso dos intelectuais SS, que havia inclusive uma tentativa institucional de frear esses interesses para proteger o ativismo e a militância. O processo de politização dos saberes dos akademiker aconteceu paralelamente à sua própria construção, e foi fortalecido com a criação de instituições como o SD e o RSHA, quando puderam aliar seu rigor científico às exigências da militância, imprimindo suas marcas nos serviços em que atuaram e participando de forma determinante na organização da repressão.

Por fim, na terceira parte da obra, Ingrao volta seus olhos à experiência de guerra no Leste europeu, onde as crenças e o fervor nazista foram empregados na legitimação da violência extrema e do genocídio. Os últimos cinco capítulos dão conta do imaginário construído em torno do novo “mundo de inimigos” eslavos, analisando a ritualística da violência, e as estratégias empregadas para colocar em prática os massacres. Além disso, finaliza avaliando as posturas dos intelectuais SS frente à derrota iminente, assim como suas estratégias de negação e reelaboração da memória nos julgamentos do pós‐guerra.

Para os nazistas, o “Leste” simbolizava uma tábula rasa na qual a germanidade poderia se modelar, ocupando o espaço de povos vistos como bárbaros e inferiores.

Dentro da retórica do “sangue e solo”, a experiência de guerra inaugurada com a invasão da Polônia em 1939, e intensificada com o ataque à União Soviética em 1941, se transformou em uma luta total contra o inimigo “judeu‐bolchevique”. O “imaginário de cruzada”, uma mescla entre fervor, utopia e guerra, forneceu a moldura justificativa para a violência que os soldados deveriam empregar, dentro de um discurso ansiogênico que instilava os comportamentos coletivos à matança.

Nesse contexto, a prática genocida se tornou uma condição da germanização, o fim último da utopia milenarista do nazismo. Representado como uma ação defensiva (pois era legítimo se defender dos agentes de destruição da germanidade, argumento semelhante ao usado pelas elites alemãs para justificar o conflito de 1914.), e visto sob a ótica da deploração (matar é um trabalho asqueroso, mas necessário), o genocídio ocorreu em meio a um investimento afetivo real dos intelectuais SS. A leitura nazista dos acontecimentos, elaborada, interiorizada e difundida pelos akademiker, constituiu então o cerne do mecanismo de radicalização e de consentimento aos massacres.

Por trás dos imperativos de produtividade e exaustividade que foram usados para colocar em prática os assassinatos em massa, estavam preocupações com um imaginário asséptico que pouparia psicologicamente os atores do massacre, limitando o seu efeito desestruturante e traumático. O estabelecimento de hierarquias na matança, e o próprio gestual da violência, refletiam o sistema cultural em que essas práticas foram forjadas.

Angústia, deploração, repulsa, ódio e gozo se confundiram nos discursos e atitudes dos que atuaram no Leste, experiência que funcionava como um “rito iniciático” para que os oficiais provassem seu grau de interiorização da crença nazista. Porém, apesar da dimensão traumática exteriorizada nos comportamentos de vários oficiais, nunca houve ruptura com o consentimento à matança, e isso se deu em função do acompanhamento do discursivo legitimador, da sistematização dos gestos e dos processos de adaptação empregados.

Face à derrota iminente, os intelectuais SS apresentaram diversas estratégias de escape, em uma distorção crescente entre os comportamentos e a realidade do front, mesmo que possam ser detectados indícios da escalada de suas angústias. Após 1945, boa parte dos akademiker passou por tribunais e comissões de “desnazificação”, em que procuraram realizar uma gestão da memória de guerra e da sua militância, usando diferentes estratégias de negação dos seus crimes ao longo dos julgamentos. A própria tese da “obediência incondicional” dentro da hierarquia nazista, utilizada pelos historiadores durante muito tempo para analisar os comportamentos dos atores do genocídio, é decodificada enquanto um desses artifícios de despistamento utilizados intencionalmente pelos intelectuais julgados.

Publicado originalmente em 2010, pela Arthème Fayard, sob o título Croire et détruire. Les intellectuels dans la machine de guerre SS, a obra de Christian Ingrao demonstra que a interiorização do sistema de crenças nazista era muito mais um caso de fervor do que de cálculo político e militante. Mesmo que o livro não seja de fácil leitura (em função, sobretudo, da temática delicada, mas também em razão de certos aspectos da tradução brasileira), o autor guia habilmente o leitor pela intrincada burocracia dos órgãos nazistas, tecendo uma narrativa que foge de armadilhas conceituais psicologizantes ou abstratas. Apoiado por uma extensa bibliografia sobre o assunto em várias línguas, e por indicações de fontes impressas e de fundos arquivísticos, sua obra traz possibilidades teóricas de problematizar os diferentes níveis de instrumentalização dos saberes, o papel dos intelectuais, da educação e, particularmente, da ciência histórica na legitimação da violência e dos regimes políticos autoritários.

Franciele Becher – Mestra em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Brasil. Franciele.becher@gmail.com.

Acessar publicação original

[IF]

 

A estranha derrota – BLOCH (MB-P)

BLOCH, Marc. A estranha derrota. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. Resenha de: [Autoria não identificada]. O desmoronamento francês frente ao inimigo alemão no século XX. Marinha do Brasil/Proleitura, 2016/2017.

O autor desta obra, Marc Léopold Benjamin Bloch nasceu no dia 6 de julho de 1886 em Lyon, França. Estudou na Sorbonne, onde formou-se em História. Participou das duas grandes guerras do século XX. A frente dessas duas batalhas reuniu, com sua visão de historiador, memórias de guerra, transformadas em livro e publicadas após a sua morte. As obras de Marc Bloch desencadearam uma verdadeira “Revolução da historiografia francesa”, influenciando gerações de historiadores. Na obra em análise (A estranha derrota), mesmo em condições desfavoráveis, utilizou da experiência particular das duas guerras para observar e debruçar-se sobre a derrota francesa. Longe de abordar uma história política e nacionalista, Bloch analisa a história em sua totalidade, não permitindo que os males do momento contaminassem sua capacidade de reflexão.

Marc Bloch participou dos acontecimentos que culminaram na ocupação da França pela Alemanha de Hitler, em maio de 1940. Com olhar totalmente crítico e reflexivo, peculiar a todo historiador, este autor analisa os aspectos da derrota francesa e sua rendição. O principal argumento desenvolvido por Bloch para explicar a derrota é que as classes dirigentes, Estado- Maior do Exército, sociedade morosa e forças políticas, não se preparam adequadamente para fazer frente à Blitzkrieg (guerra relâmpago alemã). Os generais franceses ainda se pegavam a táticas e ao compasso de 1918, enquanto Hittler ao contrário, utilizava seus tanques Panzer como ponta de lança na guerra, além de intensa utilização do poderio aéreo. Os franceses negligenciarem, também, a tecnologia alemã e sua tática de guerra, depositaram confiança demais na linha Maginot, linha de fortificações e de defesa construída pela França.

Uma das principais teses desenvolvidas pelo autor é a critica à ortodoxia militar francesa, presente em 1940. A forma como as ações de guerra eram traçadas sofria de certa letargia intelectual na execução, não permitindo uma eficiente organização das forças em campo de batalha, sendo frequente às tropas serem surpreendidas pelos avanços das forças inimigas. Além disso, observava os estados-maiores mal organizados com seus serviços de informação, e constituído por militares longevos. Outro ponto de vista do autor para explicar a derrota encontrava-se na política econômica permeada pela burguesia que se via ameaçada pela ofensiva das novas camadas sociais que, de certa forma, ameaçava esse grupo político e econômico acostumado a comandar. Logo, Marc Bloch denuncia a derrota intelectual como um mal presente, não só no alto-comando militar, mas que permeou toda civilização francesa e que levou à derrota frente ao poder de Hitler. As ações dos chefes militares ou os que agiam sob seus nomes, não pensaram a guerra, em outros termos: o triunfo dos alemães foi, essencialmente, uma vitória intelectual e talvez este seja o motivo mais grave desta derrota.

2 Cumpre registrar como o autor fez valer sua experiência no campo de batalha para registrar os fatos, mostrando que a história é filha de seu tempo. Para ele, não haveria descontinuidade entre passado e presente, mas um tempo contínuo, em que o passado ajudava a compreender o presente e o presente, por sua vez, ajudava a compreender o passado. E aí está o ponto fulcral que deixou de ser observado pela sociedade francesa frente ao inimigo. Era preciso problematizar esta nova guerra e aprender com o passado, como por exemplo, concepções de novas estratégias militares para suplantar o inimigo alemão. Duas guerras jamais serão iguais! Faz-se apenas uma crítica a esta obra, no qual o historiador dá ênfase à morosidade militar, sendo, também, as estruturas políticas e econômicas responsáveis por regular o uso da força na defesa dos interesses de um país. A História e os fatos são múltiplos em suas estruturas, em suas causas e sem determinismos, ou seja, multifacetadas.

Portanto, o autor faz um apanhado de toda sua experiência militar e de maior historiador do século XX para analisar a capitulação francesa frente ao poderio de guerra alemão.

Testemunha ocular, tratou do caótico cotidiano do conflito e da responsabilidade da sociedade francesa na vitória do nazismo. Lições do passado coadunadas com ações contemporâneas poderiam ditar um destino diferente daquele que foi registrado durante a Segunda Guerra Mundial para o povo francês, comprovando a frase do filósofo grego Heráclito de Efeso: “Ninguém se banha duas vezes na água do mesmo rio.”

Autoria não identificada

Acessar publicação original

 

 

As Universidades e o Regime Militar: cultura política brasileira e modernização autoritária | Rodrigo de Patto Sá Motta

Rodrigo Patto Sá Motta, vinculado à Universidade Federal de Minas Gerais, é pesquisador da história política do Brasil contemporâneo. Sua escrita privilegia uma narrativa analítica, embasada em farto material empírico, resultado do domínio da bibliografia sobre a temática abordada, pesquisa em arquivos nacionais e nos EUA. Sua preocupação com a análise da “cultura política brasileira”, conceito esse que parece ainda não estar bem desenvolvido, também é preocupação de historiadores como Carlos Fico, Daniel Aarão Reis, Marcelo Ridenti e Marcos Napolitano. Embora não seja citado nas referências bibliográficas o nome de Sérgio Buarque de Holanda, essas reflexões parecem reabilitar o conceito de “homem cordial” por perseguirem os traços do personalismo na política, dentre outras características.

A obra As universidades e o regime militar faz parte de um conjunto de publicações realizadas no contexto dos 50 anos do Golpe Militar de 1964. Elas fazem uma espécie de “redescoberta” da ditadura brasileira, sobretudo ao analisar os aspectos autoritários de nossa cultura, manifestados nos ambientes institucionais. Algumas análises vão de encontro à memória coletiva de certos setores acadêmicos mais inclinados a ideologias esquerdistas, pois, se por um lado, confirma e aprofunda os aspectos ligados à repressão, por outro, expõe fatores que levaram à modernização das universidades, o que colaborou para a renovação da própria historiografia brasileira como, por exemplo, as mudanças trazidas pela Reforma Universitária e a sistematização e expansão da pós-graduação. Assim, o autor perpassa a transformação das universidades que antes da Reforma era uma federação de escolas e faculdades para se tornarem um sistema universitário articulado, que deslocou o poder anteriormente exercido pelos diretores de faculdades para as mãos dos reitores e modificou um “modelo” de universidade que havia perdurado por trinta anos. Leia Mais

Ditadura e Democracia no Brasil: do Golpe de 1964 à Constituição de 1988 | Daniel Aarão Reis Filho

RC Destaque post 2 11

Daniel Aarão Reis é professor titular de História Contemporânea na UFF. Suas principais pesquisas são sobre a ditadura no Brasil e as experiências das esquerdas no Brasil e no mundo [1]. Além disso, foi ativo na resistência à ditadura civil-militar brasileira, especificamente no Movimento Revolucionário 8 de Outubro, um dos grupos que organizou a captura do embaixador do EUA Charles Burke Elbrick em 1969.

Ditadura e Democracia no Brasil se insere em uma série de obras lançadas em 2014 que, no marco dos 50 anos do golpe de 1964 procuram apresentar novos olhares sobre o período. O livro em questão é constituído por sete capítulos e um posfácio.

O primeiro capítulo serve de introdução ao livro e são as páginas nas quais Reis apresenta alguns dos princípios através do quais ele pretende diferenciar sua obra da historiografia anterior sobre o tema, especialmente aquela produzida nos primeiros anos de redemocratização. Segundo o autor, construiu-se uma memória de que os valores democráticos sempre teriam feito parte da consciência nacional. Assim, o país teria sido

subjugado e reprimido por um regime ditatorial denunciado agora como uma espécie de força estranha e externa […] Assim, em vez de abrir amplo debate sobre as bases sociais da ditadura, escolheu-se um outro caminho, mais tranquilo e seguro, avaliado politicamente mais eficaz, o de valorizar versões memoriais apaziguadoras onde todos possam encontrar um lugar [2].

Essa visão procuraria uma conciliação nacional após a ditadura, como se esta não houvesse contado com apoio de setores civis da sociedade:

Entretanto, essas versões, saturadas de memória, não explicam nem conseguem compreender as raízes, as bases e os fundamentos históricos da ditadura, as complexas relações que se estabeleceram entre ela e a sociedade e, em contraponto, o papel desempenhado pelas esquerdas no período. Também não explicam, nem conseguem compreender, a ditadura no contexto das relações internacionais e na história mais ampla deste país – as tradições em que se apoiou e o legado de seus feitos e realizações que perdura até hoje [3].

Nesse sentido, Reis se insere numa perspectiva que vem ganhando espaço na produção historiográfica, de procurar compreender o regime autoritário observando também as bases sociais que o constituíam. A título de exemplo, a coletânea organizada por Denise Rollemberg e Samantha Quadrat, A construção social dos regimes autoritários [4], é outra obra que procura analisar os mecanismos de legitimação social desses regimes. É nessa direção que também argumenta a defesa de que se chame o período de ditadura civil-militar, e não somente militar.

Nos capítulos seguintes, Reis procura elucidar o desenrolar dos acontecimentos do período. Ele destaca que o período 1945-64 foi de democracia limitada. O autoritarismo se manifestava em muitos aspectos que remontam à primeira república e principalmente à ditadura varguista. É nesta que ele localiza um importante elemento para compreender a ditadura que se seguiu: o nacional-estatismo, caracterizado por um Estado forte tanto no que diz respeito ao desenvolvimento econômico (ainda que não necessariamente na distribuição de renda) como no controle social. Apesar de ter perdido fôlego na década de 1950 o nacional-estatismo ainda tinha adeptos tanto à esquerda como à direita.

Ao assumir o poder, João Goulart “poderia […] numa frente popular que se esboçara na resistência ao golpe [do parlamentarismo], dispor de condições para retomar o nacional-estatismo popular já entrevisto no último governo Vargas” [5]. As greves e movimentações populares que haviam crescido na campanha legalista (movimento para assegurar o direito de Goulart assumir a presidência) incorporavam ao nacional-estatismo uma até então inédita participação popular – o que também radicalizou o discurso, exigindo reformas mais profundas e deixando mais de lado o tom conciliatório varguista.

Reis descreve, contudo, que Jango estava nos primeiros meses de governo apegado à tradição conciliatória, mantendo a desconfiança da direita e ao mesmo tempo decepcionando a esquerda. “Depois de longos meses de hesitação, armadilhando no impasse de uma correlação de forças equilibrada, Jango [em março de 64] resolveu aceitar os conselhos de partir para a ofensiva” [6], em meio ao aumento da pressão pelas reformas de base. A resposta conservadora não tardou com as marchas da Família com Deus pela liberdade e finalmente com o golpe de Estado.

O autor então lança uma ideia polêmica, contestando a tese da inevitabilidade da resistência ao golpe. Segundo ele, Jango era bastante popular e as forças de que dispunham as esquerdas, nas instituições, sindicatos, movimentos populares e nas próprias Forças Armadas não eram desprezíveis. Para ele, a esquerda que apoiava Jango se rendeu por não saber o que fazer quando a tática conciliatória não funcionou mais. No capítulo seguinte, o autor inclusive aponta que essa paralisia poderia ser motivada por até parte das lideranças reformistas estarem contaminadas pelo medo de uma revolução. Por isso também que Reis observa que ainda que de fato tenha havido apoio dos EUA ao golpe, não se deve superestimar sua participação sob risco de minimizar a importância das forças golpistas internas. A influência externa se dava, de acordo com o autor, mais no sentido de um medo por parte das forças golpistas de que os recentes movimentos socialistas e nacionalistas na África, Ásia e principalmente em Cuba pudessem inspirar ações mais radicais dentro do Brasil.

Dando prosseguimento, Reis descreve como nos primeiros anos da ditadura procurou-se romper com o nacional-estatismo, estratégia que fracassou, indicando que este elemento da cultura política perpassava todo o espectro político.

No campo da oposição começaram a se formar três grandes correntes: a moderada, formada pelo MDB, apoiada pelo PCB clandestino e setores golpistas agora insatisfeitos, defendendo uma transição pacífica à democracia nos moldes pré-64; movimento estudantil, mais radical, queria o fim imediato da ditadura, mas sem maiores definições; organizações revolucionárias clandestinas, se entrelaçavam com os estudantes, viam a luta armada como a única saída e não queriam só a derrubada da ditadura, mas do capitalismo.

Porém, Reis destaca que se houve de fato resistência, também houve muita indiferença ou até apoio ao regime, de modo que a oposição não era, para ele, de fato tão poderosa. Ainda assim, para evitar que se organizassem, o governo emitiu em 1968 o AI-5.

Assim, chega-se ao quarto capítulo. Com a repressão a níveis extremos, a esquerda revolucionária considerou que se concretizava o que Reis denominou “utopia do impasse”, chegando a hora de radicalizar a luta. De acordo com essa lógica, o impasse se refere à uma situação na qual políticas conciliatórias não seriam mais uma opção viável, restando às esquerdas somente a revolução – por isso, segundo o autor, muitos desses grupos revolucionários viam até com certo otimismo a conjuntura, pois teria eliminado a via conciliatória. Reis, contudo, apesar de ter sido em sua juventude parte dessas organizações, as critica por estarem distantes da população e se mostrarem incapazes de fazer uma leitura mais precisa da sociedade. Esta “assistiu a todo esse processo como se fosse uma plateia de jogo de futebol” [7]. Podiam até torcer para um ou para outro lado, mas não eram participantes. Efetivamente, o crescimento econômico do que viria a ser o chamado “milagre econômico” aliado a propaganda, fazia do governo muito popular junto a população, especialmente no interior. Por isso ele destaca que, se de fato a primeira metade da década de 1970 pode ser descrita como os “anos de chumbo”, foi para muitos também os “anos de ouro” [8]. Ainda que o crescimento tenha sido desigual, ele agradava a setores médios influentes suficientes para amortecer uma possível insatisfação popular. A maioria da população parecia disposta a ignorar a tortura, desde que que ela atingisse somente àqueles que considerassem marginais e ocorresse longe da vista da sociedade.

Nem todos, certamente, apreciavam a ditadura e seus métodos truculentos, considerados “excessivos”, e muitos deles tomariam parte, em momentos seguintes, da onda oposicionista que varreria as metrópoles. Mas é provável que considerassem uma exigência alta demais arriscar suas posições num enfrentamento de vida ou morte com o regime, como queriam as esquerdas radicais [9].

O quinto capítulo do livro analisa o governo Geisel (1974-79). No plano econômico, apesar da crise do petróleo, não seria ainda o momento do abandono do nacional-estatismo. “Já no plano político, haveria afinidades com os propósitos do primeiro governo castelista, materializadas na perspectiva de restabelecer um estado de direito autoritário. Tratava-se de institucionalizar e superar o estado de exceção, o regime ditatorial vigente”[10], ação tomada também em função da pressão internacional, ainda que “no interior do bloco que sustentava a ditadura, forças conservadoras e sua expressão mais radical, os aparelhos de segurança, não viam com bons olhos a distensão e se prepararam para combatê-la”[11].

Como resultado, foi um período marcado por ambiguidades. A gradual abertura, (a qual culminaria na revogação do AI-5 na passagem de 1978 para 1979) conviveu com uma brutal repressão ao PCB e PC do B e o emblemático assassinato de Vladmir Herzog.

A segunda metade da década de 1970 também marcou o início da rearticulação dos movimentos sociais, ainda que de início tentassem passar a imagem de reivindicações apolíticas. Essa rearticulação também se deve ao fato da economia já não apresentar resultados tão satisfatórios, com inflação e desvalorização salarial.

Ao final deste capítulo, Reis indica outra ideia controversa. Para ele, com o fim do AI-5 estava revogado o estado de exceção, não constituindo-se mais uma ditadura; “conformara-se um estado de direito autoritário”[12]. Assim, para Reis a ditadura iniciada em 1964 termina em 1979, havendo então um período de transição para um regime democrático que se inaugura com a constituição de 1988. Ele explica melhor os motivos para essa escolha no capítulo seguinte, dedicado à essa transição:

formou-se ampla coligação de interesses e vontades a favor da ideia de que a ditadura teria se encerrado em 1985. Na base dessa verdadeira frente social, política e acadêmica, estava uma ideia – força de modo nenhum respaldada pelas evidências – a de que a ditadura fora obra apenas dos militares [13].

Esse marco, 1985, o momento em que um civil assume a presidência, esconderia, portanto, as bases sociais civis da ditadura. Para Reis, a construção dessa memória que procura esconder o caráter civil da ditadura se deu justamente nesse período.

Aparentemente, a transição lenta e sem rupturas levada pela própria ditadura surtiu o efeito por ela desejada. Nas primeiras eleições diretas para governadores, o PDS (originada da ARENA) venceu em mais estados e teve mais deputados eleitos também, seguido do PMDB, que era a oposição consentida pela ditadura. “Depois de longos anos de ditadura, o país tornara-se mais conservador ainda do que antes. Um banho da água fria na fervura dos que imaginavam possível a existência de hipóteses de ruptura revolucionária. Pelo menos a curto prazo elas não se realizariam”[14]. Talvez nada ilustre melhor o caráter conservador da transição e a construção de uma memória que isente as bases civis do que a chegada a presidência de José Sarney (até pouco antes importante quadro do PDS) concorrendo, ainda que como vice, como opositor ao antigo partido da ditadura.

No sétimo capítulo, Reis descreve sucintamente as discussões em torno da constituição de 1988, destacando como, apesar da pressão contrárias de forças liberais-conservadoras, mesmo nela persistiriam muitas características do nacional-estatismo.

Finalmente, no posfácio, Reis retoma uma de suas teses centrais já apresentadas no início do livro: sem minimizar as diferenças que houveram entre os regimes, há no nacional-estatismo, seja de tendência esquerdista ou direitista, um aspecto de continuidade.

Criaram-se na primeira [estado novo] e se consolidaram na segunda [civil-militar]: o Estado hipertrofiado, a cultura política nacional-estatista, o corporativismo estatal, as concepções produtivistas, a tortura como política de Estado. Quanto à tutela das Forças Armadas, vem de antes, desde a gênese da República, mas as ditaduras, sem dúvida, confirmaram e reforçaram.

O livro de Daniel Aarão Reis procura apresentar um novo olhar sobre a ditadura civil-militar brasileira. Cada capítulo da obra poderia ser expandido ele próprio em um livro. De fato, o livro não entra em muitos detalhes. Tampouco se utiliza de muitas fontes primárias como fundamentação, tratando-se mais de uma obra de síntese. Ainda assim, é de grande valia por apresentar ao menos duas ideias centrais que o diferenciam de ao menos parte da historiografia, e certamente da memória socialmente construída para fora da academia. A primeira, por apontar no nacional-estatismo um elemento de continuidade surgido antes do golpe de 1964 e perdurando durante e para além da ditadura. Isso não significa negar que tenha se tratado de um estado de exceção, mas apontar que a ditadura civil-militar infelizmente não foi um desvio num curso “natural” e “positivo” da história do Brasil, mas se insere perfeitamente em aspectos que transcendem esse período específico. A outra ideia é a de observar a importância das bases sociais civis da ditadura. Desde o golpe, o regime autoritário somente pôde sobreviver por que contou com apoio principalmente de setores empresariais, mas também suporte, consentimento ou no mínimo indiferença de amplos setores sociais. Enfrentar a memória construída da natureza democrática da sociedade brasileira é um desafio difícil e que pode soar inconveniente, mas é importantíssimo para poder lidar com as continuidades autoritárias que ainda persistem hoje.

Conforme já salientado, o livro aqui resenhado se trata de uma obra de síntese. Mas talvez justamente por isso tenha um duplo valor, podendo ser utilizado como material introdutório para historiadores ao mesmo tempo em que também se mostra acessível ao grande público.

Notas

1. Entre suas principais obras se encontram A revolução faltou ao encontro – Os comunistas no Brasil; A Aventura Socialista no Século XX; e Ditadura Militar, Esquerdas e Sociedade.

2. REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura e democracia no Brasil: do golpe de 1964 à Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Zahar, 2014, pp. 7-8.

3. Ibid., p. 14

4. ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samantha (orgs). A Construção Social dos Regimes autoritários: Brasil e América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

5. REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura e democracia no Brasil: do golpe de 1964 à Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Zahar, 2014, p. 32.

6. Ibid., p. 39.

7. Ibid., p.77.

8. Ibid., p.91.

9. Ibid., p.88.

10. Ibid., p.98.

11. Ibid., p.101.

12. Ibid., p.123.

13. Ibid., p.127.

14. Ibid., p.140.

Michel Ehrlich – Graduando em História pela UFPR, bolsista do PET-História. E-mail: michelehrlich@gmail.com


REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura e Democracia no Brasil: do Golpe de 1964 à Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Zahar, 2014. Resenha de: EHRLICH, Michel. Ditadura e democracia no Brasil. Cantareira. Niterói, n.25, p. 230 – 234, jul./dez., 2016. Acessar publicação original [DR]

A Cultura no Mundo Líquido Moderno – BAUMAN (PL)

O autor Zygmunt Bauman (1925-2017) foi um importante pensador das dinâmicas sociais contemporâneas a partir da sua formação em sociologia e filosofia. Considerando-se um sociólogo crítico, seus estudos acerca da modernidade estiveram pautados no conceito – por ele cunhado – de liquidez, compreendendo que todas as relações no mundo contemporâneo são marcadas pela fluidez em contraponto à solidez presente anteriormente ao período do capitalismo industrial. De origem polonesa, o autor foi professor das universidades de Leeds e Varsóvia, tendo diversos livros publicados que visam explicitar e criticar a era da (pós-) modernidade e da globalização, tempo sinalizado pelo individualismo, a cultura do consumo, as relações líquidas e fluídas, entre outros aspectos. Leia Mais

A ditadura que mudou o Brasil: 50 anos do golpe de 1964 | Daniel Aarão Reis, Marcelo Ridenti e Rodrigo Patto Sá Motta

RC Destaque post 2 11

A obra A ditadura que mudou o Brasil: 50 anos do golpe de 1964 traz uma compilação de artigos escritos por profissionais de diversas áreas do conhecimento, tais como História, Sociologia, Economia, Ciência Política e Relações Internacionais, a respeito da ditadura civil-militar (1964 a 1985). Seu lançamento ocorreu em 2014, há exatos cinquenta anos do golpe militar acorrido em 1964. O ano de 2014 foi marcado por inúmeros eventos organizados por universidades e outras instituições em que se buscou refletir sobre o período do regime militar no Brasil e seus impactos na formação da moderna sociedade brasileira, em termos políticos, culturais, econômicos e sociais2.

Em meio a todo esse contexto de debate e reflexão sobre a ditadura civil-militar foram publicados vários trabalhos sobre o tema, entre eles, a obra do jornalista Carlos Chagas, A ditadura militar e os golpes dentro do golpe: 1964-19693 e a coletânea de artigos Ditadura: o que resta da transição, organizada pelo sociólogo Milton Pinheiro4. Leia Mais

Ditadura e democracia no Brasil: do golpe de 1964 à Constituição de 1988 | Daniel Arão Reis

Daniel Aarão Reis, professor de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense em “Ditadura e democracia no Brasil”, faz um passeio pela História política do país, dialogando sobre a gênese da ditadura e o frágil processo de construção da democracia, como se fora uma fina camada de gelo, prestes a rachar diante de momentos de impacto ou pressão social.

Seu livro discute as periodizações e memórias utilizados pelo senso comum e por historiadores sobre o período governado por generais, tecendo comentários provocadores e de aguda análise, sobre os diferentes sujeitos relacionados aos processos políticos brasileiros e seu envolvimento em uma multiplicidade de questões, muitas das quais, controversas. Leia Mais

Zelota: a vida e a época de Jesus de Nazaré | Reza Aslan

Muito se fala sobre Jesus Cristo. Muito se escreve sobre ele. Mas Jesus de Nazaré, o Jesus histórico ainda é muito pouco conhecido. O livro de Reza Aslan procura apresentar não só o judeu da Galileia, executado pelos romanos durante a Páscoa judaica no começo do século I, como também a sociedade em que ele viveu.

Reza Aslan nasceu no Irã, mas sua formação acadêmica foi toda nos EUA. É interessante observar, que logo no início do livro o autor nos fala dessa experiência. Como ele relata nas Notas do Autor, na parte inicial do livro, Aslan nasceu em uma família de muçulmanos, que emigraram do Irã após a revolução sua família acabou por afastar-se do islamismo. Aslan deu mais um passo na integração ao novo país quando se converteu ao cristianismo aos quinze anos num acampamento evangélico para universitários. Parecia-lhe que agora ele estava mais de acordo com a América.

No entanto, com a continuidade de seus estudos acadêmicos, um fosso entre o Jesus que pregavam na Igreja e o Jesus histórico o levou a dar mais uma guinada em sua vida. Acabou rejeitando a sua fé. No entanto suas pesquisas lhe revelaram um Jesus mais real e digno de confiança do que aquele da igreja. Seu livro é uma tentativa de apresentar as demais pessoas esse Jesus de Nazaré.

O livro está dividido em três partes e concluído por um Epílogo. Na parte I (capítulos 1 ao 6), ele descreve a Palestina do tempo de Jesus, com suas tensões entre as classes sociais, entre os grupos religiosos e entre a população local e os invasores romanos. Na parte II (capítulos 7 ao 12), ele vai tratar da vida de Jesus, seus ensinamentos e alguns dos episódios que Aslan considera chaves para entender quem foi e o que pregava Jesus de Nazaré. A parte III (capítulos 13 ao 15) é dedicada a apresentar como a Igreja foi desconstruindo a imagem do Jesus histórico e a substituindo pela de Jesus Cristo, o filho de Deus, modificando sua mensagem estritamente judaica (apresentada na parte II) por uma mensagem mais universal, que transcendesse as fronteiras do judaísmo. Por fim o Epílogo, mostra o que ele considera o desfecho: a transformação do camponês galileu do século I em Deus, com o concílio de Nicéia codificando e tornando ortodoxa uma crença que já era bastante comum na Igreja da época.

O autor acrescentou a obra um mapa da Palestina do século I e uma ilustração descritiva do Templo de Jerusalém, construído durante o reinado de Herodes, o grande. Aslan também fornece dezenas de notas explicativas sobre cada capítulo do livro que valoriza a obra como um recurso para o pesquisador de religiões que desejar aprofundar-se mais sobre o tema do Jesus histórico e a Palestina do primeiro século.

Aslan explica que os evangelhos foram escritos décadas após a morte de Jesus, por volta do ano 70. Fora eles, os escritos mais antigos sobre Jesus são as cartas de Paulo, que também foram escritas algumas décadas depois de sua morte, por um homem que afirma expressamente não ter conhecido Jesus, nem buscado informações sobre ele com aqueles que foram seus discípulos diretos. Foi durante essa ausência de documentos escritos que ele acredita que a imagem que se tinha de Jesus foi radicalmente alterada.

Mas qual então era a imagem que os primeiros discípulos e seguidores tinham de Jesus? Para o autor, Jesus era sim mais um dos legítimos representantes do conturbada Palestina do século I. Uma terra na qual os invasores romanos impunham suas leis e seus impostos e onde era cada vez maior a crítica aos privilégios da rica classe sacerdotal, que em aliança com os invasores governava o país. Por todos os cantos daquela terra homens levantavam-se contra o estado das coisas, muitos deles acreditando serem enviados de Deus para expulsar os romanos e restaurar a pureza do culto a Deus no grande templo de Jerusalém.

Dessa forma, desde a conquista romana até a destruição de Jerusalém e do Templo, os judeus viram levantar-se messias e profetas, alguns mais bem-sucedidos que outros, conduzindo multidões a revolta contra o poder constituído. Mas Jesus ainda era uma figura controvertida. Sua pregação, registrada nos evangelhos muitas vezes se contradiz. Numa hora ele prega a paz e em outra diz ter vindo a terra para trazer a espada. Muito dessa contradição pode ser, segundo o autor, fruto dos evangelhos que mesclavam fatos históricos, com fábulas e mitos sobre Jesus, como se costumava fazer na escrita oriental da época, para dar autoridade e beleza ao texto. Aslan chama a atenção para o fato que os escritores dos evangelhos não teriam como estar familiarizados com a nossa noção de veracidade histórica, de se aterem aos fatos.

Para Aslan, Jesus seria uma adepto da chamada “Quarta filosofia”, assim chamada para diferenciar dos outros grupos: saduceus, fariseus e os essênios. Essa filosofia teria sido fundada por dois líderes rebeldes judeus que assumiram um fervoroso compromisso com a libertação de Israel e sua insistência a não servir a nenhum senhor a não ser Deus. Seriam zelotas, palavra derivada de zelo, que segundo Aslan (pag. 65)

…implicava uma adesão estrita a Torá e à Lei, uma recusa em servir a qualquer mestre estrangeiro – servir a qualquer mestre humano de maneira geral – e uma devoção à soberania de Deus. Ser zeloso ao Senhor era andar nas pegadas ardentes dos profetas e heróis do passado, homens e mulheres que não toleraram ninguém que quisesse se associar a Deus, que não se curvaram a nenhum rei exceto o Rei do Mundo e que lidaram cruelmente com a idolatria e com aqueles que transgrediram a lei de Deus.

Não eram um partido político ou uma associação, faz questão de esclarecer o autor, nem se pode confundir com o partido zelota surgido décadas depois em 66 dc. Era um desejo, uma ideia de piedade, ligado a uma expectativa apocalíptica. Uma crença que se difundia principalmente entre os camponeses e as camadas mais pobres da população de que o reino de Deus estava próximo.

E era este o cerne da pregação de Jesus e de sua atuação. Para exemplificar Aslan utiliza uma conhecida passagem do evangelho, quando em resposta a pergunta de que se era ou não lícito pagar impostos a César, Jesus responde, “devolvei a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.” O autor mostra que essa resposta é uma das principais evidencias de que Jesus era um zelota. Nesta afirmação Jesus reivindica a terra que os romanos tomaram porque seu legítimo proprietário é Deus. Seria o bastante para que ele fosse enquadrado como um bandido, o que seria confirmado depois, quando da prisão de Jesus, quando um grupo armado de espadas e clavas é enviado a seu encontro.

Mas o que faria de Jesus diferente de tantos candidatos a messias surgido durante aquela época conturbada. Aslan mostra que sua fama como curandeiro e exorcista o tornou uma figura diferente das demais. Diferente de nosso pensamento racional atual, no tempo de Jesus as pessoas estavam mais abertas ao sobrenatural, ao impacto do maravilhoso em suas vidas, e aquele pregador itinerante judeu respondia a suas expectativas com milagres, e, o que era mais espantoso para a época, nada cobrava por eles. Aqui, Aslan delimita a separação entre o acadêmico, o estudioso de Jesus e o seguidor: a crença nos milagres. Mas ele chama a atenção para o quão estéril é essa discussão, e argumenta que as pessoas que seguiam Jesus acreditavam nesses milagres e em nenhum momento foi posta em dúvida as qualidade de Jesus como milagreiro e exorcista sejam por fontes canônicas ou não. Mesmo os inimigos da Igreja, em suas lutas e debates contra ela colocaram em dúvida a capacidade de Jesus de realizar milagres, preferindo acusa-lo de fazê-lo por meio de magia, afirmando mesmo que ele não passava de um mágico.

Uma outra diferenciação entre Jesus e os demais milagreiros e exorcistas da época era a reivindicação messiânica que Jesus fazia para si mesmo. Seus prodígios, milagres e sinais eram a prova de que o Reino de Deus estava chegando.

Como o Reino de Deus estava próximo de ser estabelecido e ele escolheu 12 apóstolos (representando as 12 tribos de Israel), que estariam a frente de Israel. Nesse reino não haveria espaço para estrangeiros, ou para aqueles que não se submetessem ao Deus de Israel. O Deus sangrento que ordenou aos israelitas não pouparem nem mesmos os animais dos povos que habitavam Canãa, quando da conquista, o Deus coberto em sangue dos inimigos tão presente nas mensagens proféticas de Israel. Aslan acredita que não há evidencias que comprovem que seja outra concepção que Jesus tinha sobre Deus. Nos evangelhos ele se recusa abertamente a atender estrangeiros e quando ordena a seus discípulos para irem pregar sobre o advento do Reino de Deus, os adverte a não entrar em cidades estrangeiras.

Durante seu ministério Jesus prepara-se para a tomada do poder e no livro de Aslan pode-se acompanhar passo a passo essa preparação. No entanto no momento final, ele falha. Em Jerusalém, na Páscoa, a mais importante festa judaica, com a cidade lotada de peregrinos o drama de Jesus se desenrola. Jesus é preso e crucificado como sedicioso. Ele ousara assumir funções régias. Aslan acredita que diferentemente do que é apresentado no evangelho, não houve julgamento. Considerado criminoso político ele foi crucificado para que servisse de exemplo a todos os que também desejassem revoltar-se contra Roma. A história de Jesus poderia ter terminado ali, assim como a de vários aspirantes a messias que vieram antes ou depois dele.

No entanto, os seguidores de Jesus continuaram juntos e sua pregação consistia que ele fora ressuscitado dentre os mortos. Judeus que vivam fora da Palestina, helenizados e desejosos de praticar um judaísmo mais atenuado, começam a converter-se a esse ramo do judaísmo e começam a transformá-lo para que o cristianismo se tornasse mais aceitável fora dos círculos judaicos. Paulo, um judeu converso anos depois da morte de Jesus, foi um dos principais agentes dessa transformação do cristianismo. Eles se desvencilhavam das escrituras do judaísmo e faziam sua crença mais universal, mais cosmopolita.

Aqui entra o que Aslan considera um dos primeiros embates do cristianismo: a luta pela hegemonia entre a posição defendida por Paulo a posição do Conselho Apostólico, sediado em Jerusalém e liderado por Tiago, o irmão de Jesus. Para o autor as cartas de Paulo foram escritas como armas nessa luta que segundo Aslan, Paulo acabou perdendo, conforme descrito nos Atos dos Apóstolos, ao ter que submeter-se aos rituais de purificação que ele deplorava.

No entanto, a vitória de Tiago e do seu cristianismo primitivo e fechado, um ramo do judaísmo, foi provisória. Quando os romanos destroem Jerusalém, os cristãos decidem cortar os laços com o judaísmo e apresentar os judeus como culpados pela morte de Jesus. Buscam então inspiração em Paulo, para transformar o camponês zelota, cujos os seguidores acreditaram ter ressuscitado depois de sua execução em Deus.

Aslan percorre em seu livro boa parte da história da Palestina. Para entender Jesus como um homem de seu tempo, para mostrar que além da figura que é apresentada pela Igreja, há uma figura tão fascinante quanto, que foi esquecida sobre camadas de doutrina elaboradas depois de sua morte. Apresenta um Jesus histórico. Apresenta um Jesus revolucionário. Apresenta um Jesus humano.

Wagner Pires da Silva – Graduando em História pela Universidade Estadual do Ceará – UECE.


ASLAN, Reza. Zelota: a vida e a época de Jesus de Nazaré. Trad. Marlene Suano. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. Resenha de: SILVA, Wagner Pires da. Sobre Ontens. Apucarana, p.184-187, out. 2014.

Acessar publicação original [DR]

 

Por que os líderes mentem: toda a verdade sobre as mentiras na política internaciona | John Mearsheimer

O livro “Por que os lideres mentem: toda a verdade sobre as mentiras na política internacional” é uma contribuição do renomado professor e pesquisador em Relações Internacionais da Universidade de Chicago, Dr. John J. Mearsheimer, o qual constrói uma abordagem pragmática sobre a mentira como ferramenta de governo por meio da identificação de suas motivações.

A obra é fruto das repercussões positivas de algumas palestras proferidas pelo renomado professor sobre o uso da mentira na política internacional e do amplo interesse observado na decisão do presidente George W. Bush em invadir o Iraque no ano de 2003, em função de suposta posse do governo de Saddam Hussein de armas de destruição em massa, que muito rapidamente, foi revelada como uma fática mentira para justificar as ações estadunidenses. Leia Mais

A sombra do ditador: memórias políticas do Chile sob Pinochet – MUÑOZ (CTP)

MUÑOZ, Heraldo. A sombra do ditador: memórias políticas do Chile sob Pinochet. Tradução: Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. Resenha de: MOURA, Lyyse Moraes. A sombra do ditador: memórias políticas do chile sob Pinochet. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 14, p. 85-88, out./dez. 2013.

Augusto Pinochet é um dos políticos sul-americanos mais conhecidos no mundo. Durante 17 anos, o general chileno governou uma ditadura sangrenta, responsável por cerca de 40 mil vítimas de prisão, tortura, assassinato ou desaparecimento. Esse personagem, contudo, também é reconhecido como aquele que impôs o neoliberalismo ao Chile, elevandoo a uma das nações mais desenvolvidas da América Latina.

Embora ele seja considerado por muitos um símbolo de tirania e crueldade, devido aos resultados econômicos que obteve, alguns o veem como o líder que, apesar do governo tirânico, recuperou a economia chilena e lançou as bases do crescimento e da modernização.

Diante disso, cabe a seguinte pergunta: Pinochet foi realmente necessário ao desenvolvimento do Chile? O livro A sombra do ditador, de Heraldo Muñoz, se propôs a responder esse questionamento e investigar o impacto de Pinochet na história contemporânea, analisando os vários significados que a figura desse ditador evoca. Muñoz vivenciou o processo que levou Pinochet ao poder e participou da resistência à ditadura, sendo um dos fundadores do movimento que reestabeleceu a democracia no Chile em 1990. Por essa razão, a obra entrelaça as memórias políticas do autor a um amplo material de pesquisa, como documentos secretos americanos e chilenos, e entrevistas com as principais figuras envolvidas na história do Chile nas últimas décadas.

O livro inicia narrando os acontecimentos de 11 de setembro de 1973, dia do golpe de Estado que derrubou o presidente Salvador Allende, e vai até a eleição de Michelle Bachalet em 2006. Muñoz aborda episódios marcantes da época, como o atentado à vida de Pinochet, a criação da Dina (Directión de Inteligencia Nacional), a Operação Condor, e os assassinatos do general Carlos Prats em Buenos Aires e de Orlando Letelier em Washington.

O autor relata como Pinochet aderiu ao golpe “no último minuto” e rapidamente ascendeu ao poder supremo, criando uma ditadura pessoal e transformando a polícia secreta em um aparato repressor e violento que perseguia os oponentes políticos do ditador. Ele também descreve os processos que resultaram na implementação de um novo modelo econômico no Chile, desenvolvido pelos chamados “Chicago Boys” – economistas neoliberais chilenos que tinham estudado com o economista norte-americano Milton Friedman, na Universidade de Chicago. Segundo Muñoz, sem esse modelo econômico inovador, Pinochet seria “um capítulo menor na história dos ditadores militares latinoamericanos”.

II Além de narrar acontecimentos que marcaram a época, Muñoz analisa o papel dos Estados Unidos no golpe e na manutenção da ditadura Pinochet. De acordo o autor, Richard Nixon e Henry Kinssinger tornaram-se figuras extremamente vinculadas a Pinochet e ao Chile. Ambos dedicaram tempo e recursos à erradicação do que percebiam como “ameaças comunistas” nas Américas e apoiaram o ditador chileno em sua gestão. As relações entre Estados Unidos e Chile abalaram-se quando a polícia secreta chilena assassinou o antigo ministro de Salvador Allende, Orlando Letelier, nas ruas de Washington. Além desse fato, com o enfraquecimento da União Soviética, o ditador chileno tornou-se cada vez menos necessário aos interesses do governo norte-americano.

Ainda nesse contexto, o autor destaca que o regime Pinochet reflete a história das relações entre os Estados Unidos e a América Latina, e com o que outrora foi denominado Terceiro Mundo. Ferdinando Marcos nas Filipinas, Manuel Noriega no Panamá, Anastácio Somoza na Nicarágua, foram todos – assim como Pinochet – em algum momento apoiados pelos Estados Unidos, mas depois abandonados ou combatidos pelo governo norteamericano.

III Após analisar o desenvolvimento alcançando pelo Chile, através do plano econômico dos “Chicago Boys”, Eraldo Muñoz descrever as execuções, torturas e desaparecimentos que se tornaram a marca registrada do regime Pinochet: Havia, por exemplo “o submarino”, em que o prisioneiro era afundado num tanque de água cheio de excrementos e amônia até começar a afogar-se; a parrilha (grelha elétrica), na qual uma vítima nua e ensopada era amarrada à estrutura metálica de um colchão de molas enquanto lhe davam choques na boca, nos ouvidos e nos órgãos sexuais (…) Dedos e unhas foram extraídos com alicates; ratos foram introduzidos nas vaginas de mulheres. Muitas mulheres foram brutalmente estupradas; mulheres grávidas eram torturadas e mortas; outros prisioneiros eram obrigados a jogar roleta russa, sofrer privação de sono e de comida, passar por execuções simuladas e muito mais.IV Centenas morreram, em particular durante as primeiras semanas e meses após o golpe. Campos de concentração foram abertos em todo o Chile: Chacabuco, Pisagua, Quiriquinas, ilha Dawson, Ritoque, Tejas Verdes, Londres 38, Villa Grimaldi, José Domingos Cañas, Academia de Guerra Aérea e Escuela de Caballería de Quillota são somente alguns dos lugares onde os chilenos foram presos, torturados e assassinados.V Além dos atos violentos cometidos durante a ditadura, os partidos políticos foram totalmente banidos, e todos os demais partidos foram postos “em recesso”. O congresso nacional foi fechado, as eleições suspensas indefinidamente e os registros eleitorais destruídos. No início de 1974, cerca de 50% dos jornalistas chilenos estavam desempregados.

Dos 11 jornais que existiam no período do golpe, apenas 4 permaneceram. As estações de rádio esquerdistas foram bombardeadas ou fechadas pelos militares.VI Nos anos 1980, os movimentos de resistência contra a ditadura começaram a sair da clandestinidade e a desenvolver atividades abertas. Participante da luta pela democracia, Muñoz aponta que houve divergências sobre a melhor estratégia para derrubar o regime Pinochet. O Partido Comunista optou pela luta armada – alguns integrantes do partido até tentaram matar o ditador –, enquanto os demais grupos adotaram como estratégia a participação no plebiscito de 1988, em que Pinochet foi candidato único numa votação decisiva entre “sim” – confirmando a permanência do general por mais 8 anos no poder – e “não” – defendendo o fim de sua gestão. A surpreendente vitória do “não” anunciou o encerramento do domínio do ditador.

Em 1990, a democracia foi reestabelecida no Chile. Pinochet, entretanto, permaneceu na direção do exército e, em seguida, tornou-se senador vitalício no Congresso Nacional. Em outubro de 1998, o ditador foi preso em Londres, em decorrência de um mandado expedido por um juiz espanhol. Por motivos de saúde, as autoridades britânicas permitiram que ele retornasse ao Chile em 2000. Nesse mesmo ano, o general foi acusado pela lei chilena e posto em prisão domiciliar.

Pinochet faleceu em dezembro de 2006. Embora fosse processado sob diversas acusações e estivesse sob prisão domiciliar quando morreu, jamais foi declarado culpado e sentenciado por seus crimes. Nas palavras de Muñoz, o ditador “tirou pela vantagem dos direitos a ele garantidos pelo processo legal – direitos que foram negados às suas vítimas – e adiou indefinidamente o dia do ajuste de contas”.VII Muñoz encerra sua obra respondendo ao questionamento inicial: Pinochet foi realmente necessário? Para o autor, não. A repressão e a violência sistemática contra oponentes políticos não era inevitável. Em um contexto democrático, as reformas econômicas de Pinochet certamente sofreriam a oposição de sindicatos trabalhistas, partidos políticos e membros do congresso. Entretanto, sua implementação – mesmo sob regime autoritário – não exigia o assassinato de milhares de dissidentes, tortura e desaparecimento de prisioneiros políticos. O regime de Pinochet não foi um mal necessário.

O autor nega a premissa de que o desempenho econômico do general compensa seus “excessos”. Ele defende, ainda, que o Chile não precisaria passar por uma ditadura para ter alcançado o seu atual nível de prosperidade e, nesse sentido, cita o exemplo de países latinoamericanos que passaram por crises econômicas nos anos 1980 e decidiram estabelecer reformas econômicas radicais, num contexto razoavelmente democrático.

A sombra do ditador expõe as diversas faces da ditadura Pinochet, e permite ao público conhecer as entranhas do regime militar chileno. Ao articular a trajetória política do autor à documentação sobre a época, a obra contribui para o conhecimento do processo de transição da ditadura à democracia no Chile. O livro é recomendado a todo aquele que se interesse em conhecer a complexidade desse período.

Notas

2 MUÑOZ, Heraldo. A sombra do ditador: memórias políticas do Chile sob Pinochet. Tradução: Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2010, p. 09.

3 MUÑOZ, Heraldo. Op. cit., p. 359.

4 MUÑOZ, Heraldo. Op. cit., p. 65.

5 MUÑOZ, Heraldo. Op. cit., p. 65.

6 MUÑOZ, Heraldo. Op. cit., p. 71.

7 MUÑOZ, Heraldo. Op. cit., p. 348.

Referências

MUÑOZ, Heraldo. A sombra do ditador: memórias políticas do Chile sob Pinochet. Tradução: Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

Luyse Moraes Moura – Bolsista PIBIC/CNPq. Graduanda em História/UFS. Integrante do Grupo de Estudos do Tempo Presente. E-mail: luyse@getempo.org. Orientador: Prof. Dr. Dilton Cândido Santos Maynard (DHI/UFS).

Acesso à publicação original

Trecos, Troços e Coisas: Estudos antropológicos sobre a Cultura Material. | Daniel Miller

Nascido no ano de 1954, Daniel Miller é um notável antropólogo e arqueólogo britânico dedicado ao estudo dos vários gêneros de “trecos” que integram o cotidiano sócio- cultural dos indivíduos. Formado pela Universidade de Cambridge, Miller passou grande parte de sua vida profissional no departamento de Antropologia da University College London, onde é professor atualmente. Esta instituição é centro de destaque no que se refere à pesquisa e ao estudo da Cultura Material.

Grande nome da pesquisa deste campo, Miller mostra em suas obras uma constante preocupação em transcender a habitual opinião acerca da interação entre sujeito e objeto, dando atenção ao processo de construção das relações sociais por meio do exercício do consumo e às conseqüências que consumir pode trazer para as sociedades. Leia Mais

Educação e Psicanálise | Rinaldo Voltolini

São inúmeras as tentativas de conexões e de diálogos entre os campos da psicanálise e da educação. Desde Freud, a psicanálise busca evidenciar uma nova face da educação, propondo uma outra relação entre os dois campos. Sabemos que se a versão profilática da interação já foi, há muito tempo superada, ainda restam interpretações funcionalistas que, em tempos de pedagogias tecnicistas, tornam cada vez mais necessária a discussão sobre as condições e as possibilidades das interfaces deste litoral.

Pois esta é a proposta do livro Educação e Psicanálise, do psicanalista e professor da Faculdade de Educação da USP, Rinaldo Voltolini. Atualizando reflexões de Freud e de Lacan para os dias de hoje, Rinaldo começa propondo uma profícua reflexão acerca dos termos educação e educar, demonstrando na argumentação que é: “[…] como posição discursiva e não mais como um campo outro de conhecimento sobre o qual se deveria aplicar a psicanálise que a educação encontra sua elaboração maior na teoria analítica” (Voltolini, 2011, p. 12-13).

O livro articula uma bela discussão acerca do propalado caráter impossível da arte de educar. Ora, educar, da mesma forma que governar e psicanalisar, é considerado um ofício impossível exatamente pelo paradoxo que se instala na posição daquele que se incumbe dessa tarefa. A discutida relação transferencial com o aluno, com os governados e com os analisantes, exige que o saber apostado na relação seja sempre suposto, pois quando a condição da falta se ausenta na mediação destas relações, ocorrem as fissuras transferenciais. A noção da impossibilidade, portanto, fica evidenciada na paradoxal posição de estar no lugar de suposto saber, porém, sem a apropriação imaginária desta condição, a fim de não impedir a presença da dimensão da falta e da castração.

A impossibilidade também está presente em outro tema caro à educação e à psicanálise, o mal-estar na cultura. A incompletude da satisfação pulsional e os avatares da civilização levam os sujeitos, não raras vezes, a depararem-se com a impossibilidade da civilidade absoluta. Neste sentido, a busca da potência e da não castração são as outras faces desse mal-estar constitutivo do humano.

O autor, imbuído de vasta experiência no trato com educadores e com instituições, filia-se ao pensamento freudiano, deixando decantar, em sua produção, a valiosa química que articula o indissolúvel par: prática e teoria. Ao referir-se ao mal-estar na educação, filho direto do mal-estar na cultura, Voltolini assevera que algo “cai” no percurso da construção da civilidade do sujeito a bem de poder viver em comunidade. Ele pontua aquilo que, tantas vezes, evoca questões nas instituições educacionais, ou seja, “sempre resta um resto” que resiste à dominação e à tipificação. Nos ímpetos selvagens, há alguma coisa que permanece, apesar da moral civilizada à qual somos submetidos, sendo justamente aí que esbarram as tentativas educativas que visam ao sucesso, pois tal resto resulta inalcançável do ponto de vista estrutural.

O interessante dessas articulações de Voltolini é que ele não se furta em explicar que não se trata de repensar a educação, a fim de mudar de estratégia pedagógica, não há em seu pensamento nenhuma ingenuidade posta a serviço de uma certa higienia na direção do mal-estar na educação. Isso porque, em suas ponderações, fica evidente que não há qualquer intenção em propor modos de esgotar o mal-estar na educação. Pelo contrário, o autor compartilha da noção freudiana de que o mal-estar é a condição de criarmos cultura e civilização. Quesito no qual o autor é categórico: caso o projeto pedagógico ambicione algum modo de esgotar a tensão entre o sujeito e cultura fatalmente irá fracassar. Sem a cultura nos restaria somente a barbárie, o gozo absoluto e destruidor, mas é justamente esse resquício que escapa aos movimentos civilizatórios e que norteia as possibilidades de gozo no âmbito da cultura.

Neste mesmo diapasão, reside a noção de que a educação é um campo cheio de paradoxos, cuja insatisfação constante deve ser tomada, como efeito da impossibilidade enquanto condição permanente do ato de educar. Kupfer (2007, p. 14) aponta que,
O sonho de uma educação psicanaliticamente orientada e por isso capaz de contribuir para o progresso da humanidade deixa de fazer sentido. Somos perversos de nascimento; o máximo que a educação pode fazer é esforçar-se para transformar o ‘humus de nossas piores disposições’ em algo que preste, e isso os educadores já fazem há séculos.

Aproveitemos para esta discussão, o fato de que as boas produções da cultura estão sempre a nos brindar com problematizações prenhes de questões caras às nossas inquietações. Exemplo disso é o clássico Laranja Mecânica de Stanley Kubrick (1971) – filme que narra a história de Alex, um jovem líder de uma gangue que comete uma série de atos de violência gratuita. Durante um dos episódios de vandalismo que sua gangue protagoniza, Alex é preso, porém recebe a opção de participar de um programa que pode reduzir o seu tempo na cadeia – um programa experimental para recuperar criminosos. O rapaz vira cobaia de experimentos para refrear os impulsos destrutivos do ser humano, que acabam levando-o à extinção do livre-arbítrio, desumanizando-o.

Kubrick (1971) explorou, na narrativa, a crítica que desenvolveu acerca do uso da terapia comportamental como um modo de acabar com o problema da delinquência, uma forma de reprimir totalmente os impulsos agressivos. Problematizou esse caminho, abrindo uma série de reflexões sobre os paradoxos contidos na tentativa de erradicar a dimensão pulsional do humano. Ao trazer à tona o assunto da delinquência, o diretor acabou por discutir, em diversas cenas, o contraponto civilização/barbárie. Através de inúmeros elementos estéticos que produzem, no espectador, um curto-circuito visual e que fazem alusão à condição estrutural de tensão entre o sujeito e a civilização, Kubrick revisita de diferentes formas o tema do mal-estar. Na exploração fílmica que faz, ecoam questões sobre o que pensar do humano quando as conquistas civilizatórias não garantem nada com relação à felicidade, tampouco com relação às interações com outros.

Podemos dizer que, em direção semelhante, o livro de Rinaldo Voltolini problematiza a tensão entre o sujeito e a cultura, atualizando-a através da discussão sobre o mal estar na educação atual. Conforme Voltolini, “A educação mais bem-sucedida é a que fracassa, permitindo que a nova geração introduza o novo” (Voltolini, 2010, p. 56).

O autor lembra que é em um certo fracasso da tradição, que se forja o novo da geração que chega. Para problematizar essa provocação, trazemos algumas filigranas de Hannah Arendt (2001) no livro Entre o Passado e o Futuro. Lá, a filósofa diz que a crise da educação revela, sobretudo, uma crise na relação do sujeito moderno com o passado e com a história. O problema, segundo ela, é que toda a educação necessita de uma dose de tradição. Isto é, será somente no encontro com o velho que a geração que chega poderá construir o novo, em termos de ação. Ao falarmos do novo, evocamos necessariamente os temas da herança e da transmissão, ou seja, tradição e inovação são invocados para pensar os laços na e da educação (Gurski, 2012).

Ora, uma das principais ideias que, há muito tempo, acompanha o conceito de educação vem ancorada na noção de liame entre os diferentes tempos, ou seja, na noção de continuidade da produção humana. A transmissão é o fino fio que liga, interliga e possibilita que passado, presente e futuro possam estar aninhados, dando-nos, a noção tão cara de que algo de nossos feitos continua na geração que chega. Neste sentido, gostaríamos de associar a fala do autor também a alguns fragmentos do desconstrucionismo [1] de Jacques Derrida.

O filósofo francês estabeleceu um genuíno diálogo com a psicanalista e historiadora francesa Elizabeth Roudinesco (Derrida; Roudinesco, 2004, p. 9), através do qual apresentou o âmago de suas teorizações acerca do tema da herança: “Trata-se de escolher sua herança, segundo seus próprios termos: nem aceitar tudo, nem fazer tábula-rasa”. Ou seja, a melhor maneira de ser fiel a uma herança é ser-lhe infiel, isto é, “[…] não recebê-la à letra, como uma totalidade, mas antes surpreender suas falhas” (Derrida; Roudinesco, 2004, p. 11).

Talvez possamos pensar que é deste modo que a psicanálise pode ser potente quando se encontra com a educação. Ao referir-se à impossibilidade estrutural da educação, a psicanálise aponta para algo maior que a figura do professor, por exemplo. O que implica perceber que a relação aluno-professor, longe de ficar restrita às questões relativas ao conteúdo ministrado e às boas intenções do docente, passa necessariamente por inúmeras questões inconscientes relativas ao sintoma e à posição na relação com o Outro [2] de cada um, no caso do professor e do aluno.

O autor mostra, na delicada trama que estabelece entre sua experiência enquanto psicanalista e educador e a tradição da letra freudiana, a facilidade com que esse impossível é tomado no registro da impotência pelos educadores; em geral mesmo como uma “[…] confirmação das dificuldades de uma educação específica qualquer” (Voltolini, 2011, p. 25). Nesse sentido, é muito recorrente que os professores paralisem-se narcisicamente frente às dificuldades dos alunos. Ao se deixarem levar pela simplificação da noção de educação e, muitas vezes, confundirem o ato de ensinar e o ato de educar, acabam por se sentirem meros instrumentos da absorção de conhecimentos. Tal processo os coloca em posição de não implicação com as dificuldades escolares do aluno.

Lajonquière (2010) sugere que talvez seja possível esperarmos outra coisa da pedagogia com relação à educação se apostarmos “[…] em gente comum disposta a falar com as crianças – ao invés de falar sobre elas de forma pedagógica – e convicta de que a educação está atrelada às mesmíssimas condições de possibilidade para vivermos na polis sem nos comermos uns aos outros” (Lajonquière, 2010, p. 123-124). Posição que infelizmente, sabemos que não é a tônica das instituições educacionais.

Nosso grupo de pesquisa [3] tem experienciado uma atividade de extensão com os adolescentes de uma escola pública no arquipélago da cidade, onde trabalhamos com cinema e psicanálise. Lá, nos deparamos com muitas das questões evocadas pelas letras de Voltolini, uma das mais impactantes foi justamente a facilidade com que o impossível estrutural inerente à tarefa de educar acaba submetido ao registro da impotência pelos professores e funcionários da escola. Era recorrente, no discurso dos professores, a queixa acerca das vicissitudes dos adolescentes. Dentre as questões trazidas, encontrava-se a falta de interesse ou ainda as dificuldades que apresentavam no aprender, sem que em nenhum momento, lhes ocorresse evocar qualquer questão acerca das possíveis implicações com tais fraturas e falências no que avaliam como os processos de ensino-aprendizagem.

Os domesticáveis eram logo tratados como alunos-problema e, uma vez com tal rótulo, toda a aposta do professor com relação a esse aluno, necessária a qualquer educação, desaparecia numa proporção inversa à construção de sua má fama, como se dele já não fosse possível esperar nada. Associava-se à constituição dos ditos alunos-problema a situação social e econômica desfavorecida das famílias da região.
Estes fatos, entre outros, revelam que precisamos constituir outros analisadores a fim de pensar as variáveis da educação, um acento que possa colocar em questão essas relações de modo a repensar condições que estão sendo percebidas como dadas no ambiente educacional. Entendemos que uma outra concepção de educação passa necessariamente pela possibilidade de resignificar condições atuais que estão postas na ordem do dia nas Instituição Educacionais.

Parece que é justamente acerca de um “outro” olhar que Voltolini argumenta, quando convoca a noção da falta e da castração, advindas da psicanálise, como operadores educativos. Ele adverte que, quando se trata de ensinar, existe uma limitação que não é uma limitação do professor, é uma limitação dada pela própria condição da falta.

Ainda que sejam indiscutíveis os caminhos que traçam a conexão entre a educação e a psicanálise, talvez caiba falar que em alguns momentos tal diálogo pode passar por fraturas. A proposta mais comum de debate entre ambas é atravessada por uma noção de ideais educativos que atropela e desvirtua as contribuições da psicanálise.

Kupfer, no livro Educação Para o Futuro: psicanálise e educação reitera a posição do autor de Educação e Psicanálise quando fala que discurso é o que faz laço social: “Desta perspectiva, educar torna-se a prática social discursiva responsável pela imersão da criança na linguagem, tornando-a capaz por sua vez de produzir discurso, ou seja, de dirigir-se ao outro fazendo laço social” (Kupfer, 2007, p. 35).
Parece-nos que Voltolini ressalta a potência das conexões da Educação e Psicanálise especialmente quando propõe que a psicanálise, ao produzir uma ressignificação do campo da educação está propiciando a quem se aventura em tal empreitada, uma circulação pelas diversas possibilidades que o encontro com o outro pode produzir. Dentre tais potências, sublinhamos o quanto a permeabilidade ao outro pode fazer com que da chamada experiência impossível do educar decante efeitos de sujeito.

Notas

1. Segundo nota de Roudinesco (Derrida; Roudinesco, 2004, p. 9), o termo desconstrucionismo foi utilizado pela primeira vez por Jacques Derrida, em 1967, no texto Gramatologia; é um termo retirado da arquitetura que significa a decomposição de uma estrutura. Consiste basicamente em desfazer um sistema de pensamento hegemônico ou dominante sem nunca aniquilá-lo, destruí-lo: “Desconstruir é de certo modo resistir à tirania do UM […]”.

2. Para tratar da constituição psíquica, Lacan diferencia duas instâncias: o chamado “pequeno outro”, que seria o semelhante, o parceiro imaginário, e o “Outro” (grande Outro), que ele conceitua como a instância simbólica e, portanto, da linguagem, que determina o sujeito, sendo de natureza anterior e exterior a ele; lugar da palavra, do tesouro dos significantes (Lacan, 1985 [1954/55], p. 297).

3. Referimo-nos aqui às pesquisas que acontecem no âmbito do NUPPEC/UFRGS – Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e Cultura que congrega professores e pesquisadores vinculados ao Instituto de Psicologia (UFRGS) e PPGEDU/UFRGS.

Referências

ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Perspectiva, 2001. [ Links ]

DERRIDA, Jacques; ROUDINESCO, Elizabeth. De que Amanhã: diálogo. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. [ Links ]

GURSKI, Rose. Três Ensaios sobre Juventude e Violência. São Paulo: Escuta, 2012. [ Links ]

GURSKI, Rose. Meio Século de Mal-Estar. Zero Hora, Porto Alegre, 30 nov. 2012. (Caderno de Cultura) [ Links ]

KUPFER, Maria Cristina Machado. Educação Para o Futuro: psicanálise e educação. São Paulo: Escuta, 2007. [ Links ]

LACAN, Jacques [1954/1955]. Seminário 2: O Eu na Teoria de Freud e na Técnica da Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. [ Links ]

LAJONQUIÈRE, Leandro de. Figuras do Infantil: a psicanálise na vida cotidiana com as crianças. Petrópolis: Vozes, 2010. [ Links ]

LARANJA Mecânica. Direção: Stanley Kubrick. Reino Unido, 1971. 1 DVD (138 min. [ Links ]).

VOLTOLINI, Rinaldo. Educação e Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. [ Links ]

Rose Gurski – Psicanalista, membro da APPOA, Professora do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia UFRGS, Porto Alegre/Rio Grande do Sul; coautora dos livros Educação e Função Paterna (Ed. UFRGS, 2008); Debates Sobre Adolescência Contemporânea e o Laço Social (Juruá, 2012); autora do livro Três Ensaios sobre Juventude e Violência (Escuta, 2012).
E-mail: roselenegurski@terra.com.br

Alice Umpierre – Estudante de graduação em Psicologia (UFRGS), Porto Alegre/Rio Grande do Sul; bolsista IC/PROBIC-FAPERGS; pesquisadora do NUPPEC/UFRGS.E-mail: alice.umpierre@gmail.com


VOLTOLINI, Rinaldo. Educação e Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. Resenha de: GURSKI, Rose; UMPIERRE, Alice. Educação & Realidade, Porto Alegre, v.38, n.2 abr./jun., 2013. Acessar publicação original

Eleições no Brasil: do Império aos dias atuais | Jairo Nicolau

A trajetória dos direitos no Brasil, desde a independência até a atualidade, tem sido abordada de diferentes maneiras por historiadores e cientistas políticos e sociais. No entanto, a maioria desses estudos dedica-se a analisar determinadas épocas históricas ou temas específicos, que se relacionam às mais variadas etapas concernentes ao desenvolvimento da cidadania na sociedade brasileira. De modo geral, no tocante ao Império, tem-se estudado a relação entre direito e escravidão, a atuação da imprensa, como espaço de crítica e manifestação da opinião pública, o acesso à justiça por parte dos imigrantes, as diferenças entre cidadania ativa e passiva, o antilusitanismo, os conflitos entre o Estado, grandes proprietários e indígenas, entre outros assuntos que tocam direta ou indiretamente na questão dos direitos individuais e coletivos. Já sobre a República, encontramos trabalhos que tratam do coronelismo, da abstenção e das fraudes eleitorais, da conquista dos direitos sociais, do trabalhismo, da cidadania regulada pelo Estado, da inserção da mulher no mercado de trabalho, da luta pela reforma agrária, da cidadania limitada dos governos militares, e mais recentemente, do movimento das chamadas minorias e dos excluídos da história. Após 1980, com a redemocratização, a luta pelos direitos dos cidadãos passou a ser um dos temas mais visitados pelos intelectuais brasileiros. São os homens do presente, cobrando contas dos homens do passado, visando construir um novo futuro. Leia Mais

A estranha derrota – BLOCH (RTA)

BLOCH, Marc Leopold Benjamim. A estranha derrota. Tradução: Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. Resenha de: OLIVEIRA, Marlíbia Raquel. Vencidos pelo mofo: Marc Bloch e a França derrotada. Revista Tempo Amazônico, Macapá, v.1, n.1, p.98-100, jan./jun., 2013.

Um dos acontecimentos mais extraordinários durante a Segunda Guerra (1939-1945) foi a derrota da França frente ao exército de Hitler em 1940. Sem duvida, a rápida capitulação daquele país foi por muito tempo alvo de críticas e espantos e, ainda hoje, é vista por muitos franceses como algo insuportável, vergonhoso.

Por que a França, detentora de um respeitado corpo militar, que havia saído vitorioso da Primeira Grande Guerra (1914-1918) sofreu tão duro e humilhante golpe? Quem nos responde a este e a outros questionamentos é Marc Bloch em sua obra A Estranha Derrota. Contemporâneo ao fato, o autor reunia as características e motivos necessários para redigir a história que se desenrolava diante dos seus olhos. Bloch escreveu baseando-se na sua experiência como historiador, militar e, acima de tudo, como um “bom e autêntico cidadão francês”.

Como historiador profissional era consciente de seu ofício e, portanto, da importância de registrar tal fato histórico. Neste sentido, preocupou-se severamente em não impregnar sua análise por um subjetivismo nacionalista. Como militar, mostrou-se comprometido com os deveres para com a sua pátria. Seu discurso era sustentado pela realidade vivida nas duas guerras, pois ele havia atuado no conflito desencadeado em 1914 e a partir de 1939 voluntariou-se para servir nas tropas francesas mesmo possuindo argumentos suficientes que poderiam livrá-lo das obrigações para com o exército nacional. Sendo um cidadão francês, fato do qual muito se orgulhava, Bloch demonstrou a tristeza de um povo vencido que, absurdamente, parecia conformado com a ocupação do seu território e submissão ao regime nazista.

A Estranha Derrota trata-se de um testemunho escrito entre julho e setembro de 1940 por Bloch em uma casa de campo depois da rendição francesa à Alemanha. Os manuscritos que dariam origem ao livro ficaram cuidadosamente escondidos até o final da guerra. A obra foi publicada pela primeira vez em 1946, mas só veio a alcançar sucesso editorial na década de 1990. Nela, o autor fez uma pertinente análise sobre os motivos que fizeram os franceses perderem a guerra. Ele, que junto com Lucien Febvre, fundou a Revista Annales, ousou historiograficamente ao escrever quase em tempo real uma história dos seus próprios dias cujo final ainda era desconhecido. Marc Bloch nasceu em 1886 e morreu fuzilado pela Gestapo em 1944. Nessa época ele estava vinculado ao movimento clandestino que visava libertar a França.

A versão brasileira publicada em 2009 está dividida em três partes somadas a quatro outros documentos relevantes. A primeira parte traz a “Apresentação do Testemunho”, onde o autor justifica o seu relato sobre a derrota. Na segunda, apreciamos “O depoimento de um vencido” em que é descrito o difícil dia-a-dia na guerra e, por último, temos o “Exame de consciência de um francês” onde são apontas as falhas conjuntas cometidos pela população da França. É interessante resaltar que em nenhum momento Bloch eximiu os vários setores da sociedade francesa da responsabilidade que culminou na derrota do seu país. Segundo ele, o povo francês de modo geral, ou seja, civis e militares, possuíam sua parcela de culpa na tragédia e ele, humildemente assume que também não era uma exceção diante de tal regra.

Bloch apresenta ao leitor uma serie de fatores que levaram ao colapso da França. Entre eles podemos destacar, o excesso de burocracia exigido pelo exército francês, a precariedade dos serviços de inteligência e informação que prejudicavam significativamente o contato entre as várias divisões militares bem como a tomada de decisões a tempo suficiente de serem executadas e, a apatia da população francesa frente a guerra. O país não estava preparado nem de forma bélica tão pouco psicologicamente. Os franceses não desejavam a guerra e diante dela faltou heroísmo, compromisso com a nação que de forma pouco honrosa assistiu a rápida desistência no campo de batalha e a traição de muitos dos seus filhos. Os franceses pareciam terem sido atacados de surpresa quando na verdade não foram.

Outro fator apontado como contribuinte para a derrota foi a falta de “camaradagem” entre o exército francês e inglês. Sobre isto, o autor de certa maneira defende os ingleses, afinal, como eles poderiam confiar na França tendo ela um exército tal mal organizado?

Essa realidade seria para Bloch, aquela que mais afetou negativamente a França durante toda a guerra. A desorganização do exército, percebida desde os mais altos comandos e que se estendeu até entre os soldados mais rasos, o indignava.

Em seu texto, ele enfatizou as falhas nas ações tomadas pelo alto comando. Este era formado por militares com idade avançada, veteranos da Primeira Guerra Mundial advindos da Escola de Guerra francesa, ainda arraigados às antigas doutrinas militares das primeiras décadas do século XX. No dito grupo, em menor número, podíamos encontrar jovens comandantes que por terem sido formados na mesma academia militar, infelizmente também carregavam consigo um pensamento estratégico-militar atrasado, “cheio de mofo”.

O exército francês demorou a entender que as armas e medidas adotadas em 1914 já não seriam suficientes para garantir uma vitória em 1940, afinal, lutavam contra as inovações tecnológicas já adotadas pelo exército do Terceiro Reich. Os tempos eram outros, as noções de tempo, espaço e as armas de guerra haviam mudado. Enquanto a França fazia uma guerra “velha” os alemães utilizavam a mais recente tecnologia bélica desenvolvida. Sendo assim, fica claro para nós que faltou inovação por parte dos franceses.

A estranha derrota, escrita em primeira pessoa por um dos maiores historiadores franceses, possui uma narrativa por vezes comovente de alguém que participou de forma ativa da guerra. O fato de Marc Bloch estar refugiado sem poder ter acesso a fontes documentais não desmerece a grande relevância dessa obra. Tampouco um certo sentimentalismo em sua análise não fez com que ele deixasse de lado o trabalho crítico do historiador.

Bloch deixou registrado o seu desejo e esperança de ver a França libertada. Infelizmente ele não sobreviveu para assistir a esse acontecimento, mas lutou até a morte acreditando nisso. Sem dúvida, trata-se de um incrível testemunho desse francês que nas entrelinhas do seu tempo deixou evidente uma personalidade forte e admirável caráter.

Referências

BLOCH, Marc Leopold Benjamim. A estranha derrota. Tradução: Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

Marlíbia Raquel de Oliveira Graduanda em História pela UFS. Bolsista do Programa de Educação Tutorial – PET/História/UFS. Integrante do Grupo de Estudo do Tempo Presente – GET/CNPq/UFS. Email: marlibia@getempo.org. Colabora no Projeto “Memórias da Segunda Guerra em Sergipe” coordenado pelo Prof.Dr. Dilton Maynard (PROHIS/PPGHC).

Acessar publicação original

[IF]

Filosofia da ciência – OLIVA (C)

OLIVA, Alberto. Filosofia da ciência. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2003 1. Resenha de: CAMPOS, Paulo Tiago Cardoso. Conjectura, Caxias do Sul, v. 16, n. 3, Set/dez, 2011.

A obra Filosofia da ciência, de Oliva, procura mostrar um panorama geral sobre ciência, o que a distingue em termos de conhecimento e de fundamentação, dentre outros temas, conforme se explana nos parágrafos a seguir sobre o conteúdo das suas nove seções. Essas são seguidas de referências e fontes comentadas (a maior parte em inglês) e de uma bibliografia complementar para leitura. É um livro adequado para dar apoio às disciplinas “Epistemologia” e “Seminário de Pesquisa”, por ter linguagem acessível sem, no entanto, se afastar do rigor acadêmico e da riqueza das análises. Apresenta várias teses a respeito dos temas e subtemas que discute no livro, ao mesmo tempo que exibe a própria posição quanto a alguns deles. Isso é muito importante ao leitor, especialmente para os alunos de graduação das disciplinas acima apontadas, uma vez que lhes permite distinguir as várias correntes e teses, seus pontos fortes e fracos, além de seus seguidores e contendores e, com isso, elaborar uma síntese pessoal.

Na primeira seção de Filosofia da ciência, intitulada “Primeiro motor do conhecimento”, o autor esclarece que a busca de conhecimento por parte do homem reflete uma resposta desse aos perigos e problemas que o mundo lhe oferece. Saberes aplicados, no pós-pensamento mágico, elaborados a partir da apreensão da racionalidade dos fenômenos, permitiram exercer controle e poder sobre eles. Isso é deliberadamente o que apregou Francis Bacon no início da modernidade. Oliva afirma que as explicações científicas permitem transformar o mundo, mais do que compreendê-lo, e que elas diferem da filosofia e da arte. Enquanto o “valor” de uma obra de arte é aferido pela sua capacidade de se perpetuar no tempo, o do produto da atividade científica (teorias) é diferente. Ao fim dessa seção, o autor examina, de forma introdutória no texto, os critérios epistemológicos de cientificidade (no caso, numa explicação da linha popperiana, declara ao leitor que uma teoria científica só é aceita quando não há evidência empírica capaz de solapá-la) e aprofunda esse exame na sexta seção. Leia Mais

Invenções da Idade Média: óculos, livros, bancos, botões e outras inovações geniais – FRUGONI (HH)

FRUGONI, Chiara. Invenções da Idade Média: óculos, livros, bancos, botões e outras inovações geniais. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007, 184 p. Resenha de: CAVALCANTE, Felipe Cabral. História como entretenimento: o prazer que pode ser proporcionado por uma obra do conhecimento histórico. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 6, p.218-220, março 2011.

O livro resenhado não é uma obra que contenha, como o título atesta, todas as invenções da Idade Média e, portanto, venha a servir como manual para a busca de aparatos criados naquele período histórico; no entanto, é inegável sua utilidade como fonte introdutória sobre o tema.

A confusão foi causada pela tradutora que, ao transpor o título da obra para o português, promoveu uma pequena alteração. O título original, em italiano é: “Medioevo sul naso: occhiali, bottoni e altre invenzioni medievali”, que em português traduz-se por “A Idade Média sobre o nariz: óculos, botões e outras invenções medievais” ao invés de, como optou a tradutora Eliana Aguiar, “Invenções da Idade Média: óculos, livros, bancos, botões e outras inovações geniais”.

O livro tem o objetivo de, como a metáfora1 do título original subentende, mostrar “invenções” da Idade Média que utilizamos até hoje sem que percebamos, mas que estão “bem debaixo de nossos narizes”. Além disso, através desses inventos, pretende mostrar o cotidiano da Baixa Idade Média, especificamente, do período que se convencionou chamar de Renascimento, por meio das mudanças que esses novos aparatos provocaram nos hábitos cotidianos das pessoas.

A escritora do livro, a historiadora Chiara Frugoni, filha do grande medievalista Arsenio Frugoni, nascida em Pisa, concentra seu recorte geográfico de estudo na Itália,2 e, ao escrever sobre as invenções, utiliza obras já publicadas sobre o assunto, mesclando suas informações em uma só, na tentativa da construção de uma genealogia o mais exata possível sobre a invenção de determinado aparato.

Dentre as obras utilizadas há um destaque para Decameron, de Giovanni Boccaccio e Il Trecentonovelle, de Sacchetti, além da utilização da análise semiótica de diversas imagens, constando na obra uma média de 100 ilustrações, todas previamente interpretadas pela autora.

Sobre o método de escrita da autora, observa-se que ela utiliza em seu discurso a primeira pessoa, ao fazer comparações entre nossos dias e a Idade Média; fora isto, o discurso, em geral, é feito em terceira pessoa.

Como já mencionado, cada capítulo do livro constitui-se em um resumo de obras já publicadas sobre o assunto, mas, o que realmente merece destaque no livro, além das diversas ilustrações analisadas no decorrer da obra, são as notas de rodapé, por constituírem uma fonte “riquíssima” para um aprofundamento maior de cada questão introduzida pelo livro, pois possuem indicações de leituras auxiliares, além de exporem as citações diretas, ou seja, os trechos tirados das fontes primárias em sua língua original, para que possa ser feita a comparação entre o original e a tradução.

Sobre a exposição factual cronológica, percebe-se não se tratar, necessariamente, de algo feito de maneira diacrônica, considerando a existência de certos momentos sincrônicos, nos quais são feitas comparações para, em seguida, ser possível retornar ao diacronismo, sempre tentando unir um fato ao outro, para demonstrar que as mudanças, ocorridas na Idade Média, não ocorreram de forma isolada, mas sim, juntas, sendo que algumas, como demonstra a autora, foram consequência de outras.

Invenções da Idade Média – um livro que foi escrito em 2001, mas que só recebeu tradução para o português em 2007 – desmistifica o falso modelo convencionado de que a Idade Média teria sido a Idade das Trevas.

Não se trata de um manual prescritivo, mas sim, de uma leitura sugestiva aos interessados em aprofundar conhecimentos sobre o assunto, tanto pela sua abrangência sobre diversos temas, quanto pela diversa bibliografia indicada pelas notas de rodapé. Além disso, não se constitui apenas em uma obra para estudo, mas também para entretenimento, devido ao emprego de uma linguagem simples, a qual foi transposta também pela tradutora, tornando a leitura bastante agradável.

Notas

1 “Sobre o nariz”.

2 Provavelmente por ela ser italiana.

Felipe Cabral Cavalcante – Graduando Universidade Federal do Amazonas. E-mail: f.cabral27071991@hotmail.com Rua Monte Castelo, 16, conjunto Coophasa – Nova Esperança 69037-430 – Manaus – AM Brasil.

Deleuze, a arte e a filosofia – MACHADO (AF)

MACHADO, Roberto. Deleuze,  a arte e a filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. Resenha de: PACHECO, Fernando Tôrres. Artefilosofia, Ouro Preto, n.8, abr., 2010.

Lançado no segundo semestre de 2009, Deleuze, a arte e a filosofia consiste em uma revisão ampliada do livro Deleuze e a filosofia (Graal, 1990). No mais recente, Roberto Machado procura explicitar os ca- minhos percorridos pelo filósofo Gilles Deleuze no seu esforço para afirmar o pensamento da diferença contra o pensamento representativo. Para tanto, fez-se necessário demonstrar como essa afirmação perpassa por agenciamentos com interlocutores tanto da própria filosofia quanto de outras maneiras de pensar, como as artes. Deleuze, ao travar acordos e distanciamentos com esses interlocutores, revolve seus conceitos e/ou sensações buscando elevar as suas relações em prol do exercício construtivista característico de seu pensamento. A via proposta pelo autor centra-se principalmente sobre as leituras das obras da década de 60 – em especial Diferença e Repetição – partindo para Foucault e terminando sua análise nos livros e escritos sobre literatura, pintura e cinema. Roberto Machado investiga como o tema da diferença é suscitado tomando como ponto de partida o texto “Platão e o simulacro”, em que Deleuze discorre sobre o método de divisão platônico. Tal texto pretende demonstrar como Platão privilegia a representação em detrimento da diferença ao adotar um método de divisão na sua teoria das idéias, em que há uma eliminação sistemática das cópias que não possuem os seus respectivos correspondentes no mundo ide- al. Dessa maneira, Platão elimina da perspectiva filosófica o simulacro, prevalecendo somente as cópias que mantêm correlação intrínseca com a idéia originária. Contra essa perspectiva excludente das diferenças e contra o ponto de vista ascensional platônico, Deleuze alia- se à perspectiva nietzscheana, esta que se posiciona de maneira cética ao pensamento identitário e universalista. Deleuze revisita o filósofo alemão e adota as noções de eterno retorno e vontade de potência como orientações do pensamento que, em relação, são capazes de afirmar a diferença sem subordiná-la à identidade. O ponto determinante do livro está na leitura deleuziana de Kant, em que podemos perceber que a relação do filósofo francês com o criador da filosofia crítica não se configura por tanta animosidade como é comum ser dito. Dentre as inovações conceituais kantianas, Deleuze aponta como fator positivo a inserção da forma do tempo no cogito, gerando uma cisão no sujeito, o je transcendental e o moi empírico. Deleuze é instigado pela caracterização temporal atribuída por Kant em sua filosofia, a qual possibilita a forma diferencial cingida do sujeito, ainda que este mesmo sujeito seja reconciliado posteriormente pela identidade sintética e pela moralidade da razão prática. Em contrapartida, o filósofo francês vai questionar o acordo das faculdades kantianas inserindo a idéia de “gênese” no senso comum. Para Deleuze, Kant não abre mão da noção do comum acordo entre as faculdades, que configuraria um dos postulados da filosofia da representação. Ao contrário, Kant multiplicaria tal noção. Dessa maneira, o filósofo francês demonstrará que existe um “acordo discordante” entre as faculdades encontradas na Crítica do Juízo, em que “no caso do sublime, o desacordo entre imaginação e a razão é o princípio genético do acordo das faculdades”. Ao contrário da idéia da filosofia da representação em que as faculdades convergem para a recognição do objeto, Deleuze propõe três faculdades (sensibilidade, memória e pensamento) autônomas: a cada uma delas um objeto próprio é apresentado, “só apreende o que a concerne exclusivamente, diferencialmente”.

A intensidade é aquilo que força a ser sentido, é a razão suficiente do fenômeno, dá o limite daquilo que é sentido. O objeto da memória (memória transcendental) é a forma pura do tempo, a coisa esquecida, o ser em si do passado que força a lembrança. Já o pensamento opera sobre um impensável que força o pensamento a pensar. Assim, Deleuze aponta que a relação entre as faculdades é do tipo de uma violência discordante que força o pensamento e que as idéias são uma multiplicidade. O capítulo sobre Foucault é apresentado pelo autor como referência a uma continuidade temática de Deleuze em relação aos escritos da década de 60, o que o faz afirmar não haver uma ruptura a partir do “Anti-Édipo”. Nesse capítulo, ao demonstrar o procedi- mento deleuziano de repetir o pensamento de outrem com o intuito de criar torções, o autor adota também a perspectiva de colagem, contrapondo a própria leitura à de Deleuze e demonstrando o funcionamento de conceitos como poder e saber segundo a perspectiva de cada um. Na parte do livro reservada ao pensamento deleuziano em conexão com interlocutores não-filosóficos, Roberto Machado demonstrará como o filósofo francês capta potências de conceitos oriundos de sensações literárias, pictóricas e cinematográficas. Com Proust, Deleuze irá demonstrar o papel da boa interpretação como forma de alcançar a essência: perfeita unidade entre signo e sentido. Continuando entre os literatos, o filósofo demonstrará a importância da linguagem e do estilo e apontará para o papel da sintaxe como constructo da diferença. Para Deleuze, a sintaxe estabelece o que ele chamará de uma “língua estrangeira” dentro da própria língua, o desvario da língua materna. Alguns autores como Melville conseguem, através do uso sintático da linguagem, proporcionar uma desterritorialização da língua, produzindo um devir-outro da língua que fuja dos padrões gramaticais, do establishment canonizado. Esse procedimento de criação de uma nova linguagem procura estabelecer uma conexão com o de-fora “(…) que consiste em visões e audições capazes de revelar o que há de vida nas coisas ao capturar as forças e a intensidade”. Com Francis Bacon, Deleuze demonstrará como o pintor, ao adotar procedimentos de desfiguração e isolamento da Figura, se caracteriza como sendo o artista a expressar as forças, a prevalência das forças sobre as formas.

Para introduzir “Imagem-movimento” (cinema clássico), Machado demonstra a distinção feita por Deleuze entre movimento reproduzido e movimento apresentado para localizar a leitura de Bergson sobre o cinema e, ao invés de situá-lo como algoz da sétima arte, insere sua filosofia mais ainda no audiovisual. “Imagem-tempo” (cinema moderno) caracteriza-se para Roberto Machado como o livro de cinema em que Deleuze pôde estabelecer a sua filosofia da diferença. Com o advento do neo-realismo, o filósofo francês enxerga a tomada do pensamento pelo cinema: ele sai do cinema de ação e passa a ser um cinema visionário, “um exercício transcendental da faculdade de sentir que suspende o reconhecimento sensório-motor da coisa, ou a percepção de clichês, como é a percepção comum, proporcionando um conhecimento e uma ação revolucionários” (p.273).

Deleuze, a arte e a filosofia reforça a hipótese do autor de que a filosofia de Deleuze é uma filosofia sistemática, mas uma sistematização que se dá por articulações e agenciamentos de multiplicidades conceituais. Como bem lembrou Machado ao comparar a filosofia deleuziana ao “Samba de uma nota só” de Tom Jobim: “outras notas vão entrar, mas a base é uma só.”

Fernando Tôrres Pacheco-Mestrando em Estética e Filosofia da Arte/ IFAC/ UFOP.

Acessar publicação original

Dialética negativa – ADORNO (NE-C)

ADORNO, W. Dialética negativa. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. Resenha de: GATTI, Luciano. Exercícios do pensamento. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.85, 2009.

A fama de certos livros costuma induzir o leitor a enganos. A Dialética negativa, publicada originalmente em 1966, poderia ser muito bem recebida no Brasil como a consumação da obra filosófica de Theodor W. Adorno. A aura de obra difícil, reforçada por décadas de inacessibilidade em língua portuguesa, seria uma preparação condizente com o posto de obra-prima. Tal fetiche poderia naturalmente justificar-se em diversos elementos que, de fato, se encontram no livro. Os leitores familiarizados com outros textos do autor não terão dificuldade em encontrá-los, embora alguma suspeita não faça mal a quem folheia o livro pela primeira vez. Os interessados, por exemplo, na gênese das idéias de Adorno saberão rastrear temas que remontam àquelas primeiras conferências do início da década de 1930, sobre “A atualidade da filosofia” e sobre a “Idéia de história natural”. Nestes trabalhos programáticos, com as quais um jovem e pretensioso filósofo estreava na cena universitária alemã, delineava-se o confronto do panorama da filosofia contemporânea, herdeira, segundo Adorno, do idealismo alemão, com uma noção ainda bastante vaga de filosofia materialista, inspirada nos escritos de juventude de Walter Benjamin. Essa intenção de realizar uma crítica imanente da filosofia idealista alemã, avaliando-a pelas suas próprias pretensões, de modo a extrair, nesta crítica, uma concepção bastante singular de materialismo, certamente pode ser reencontrada na Dialética negativa.

Os leitores da Dialética do esclarecimento, por sua vez, reconhecerão elementos da caracterização do estágio mais avançado do capitalismo como um sistema de dominação social que teria colocado fora de campo as esperanças marxistas de realização da filosofia numa sociedade justa. A Dialética negativa poderia ser considerada, então, um aproveitamento desse diagnóstico de época para um minucioso acerto de contas com a tradição filosófica. Um rápido percurso pelo sumário do livro indica ao leitor o confronto de Adorno com disciplinas da tradição – filosofia prática, filosofia da história e metafísica – e com a ontologia heideggeriana. Do ponto de vista da impossibilidade de uma sociedade justa, as ambiciosas construções do pensamento idealista são desmascaradas como falsas. Segundo esse diagnóstico emprestado da Dialética do esclarecimento, a história da filosofia se reverteria, por fim, em uma história de ideologias.

Os interessados nos trabalhos materiais de Adorno, ou seja, naqueles inúmeros ensaios em que trabalhou a especificidade dos objetos mais diversos, da crítica musical à sociologia empírica, talvez busquem na Dialética negativa uma espécie de fundamentação filosófica do ensaísmo adorniano, fazendo eco à idéia corrente de que a filosofia teria alguma prioridade epistemológica perante a crítica de arte ou as ciências humanas. No Prefácio ao livro, Adorno, contudo, adverte contra este posicionamento da Dialética negativa em relação a seus trabalhos materiais. Nada seria mais estranho a uma filosofia materialista do que tal hierarquia entre pensamento e material histórico ou empírico.

As circunstâncias de elaboração do livro fornecem outros indícios contra supostas continuidades entre este livro e o restante da produção intelectual de seu autor. Escrito a partir de conferências apresentadas no Collège de France no início da década de 1960, cada uma das partes do livro foi apresentada e discutida em cursos ministrados por Adorno na Universidade de Frankfurt, ao longo dos anos de 1960, em auditórios ocupados por centenas de pessoas. Seu autor não era apenas um professor universitário, mas também uma personalidade pública no cenário da reconstrução alemã do pós-guerra. A expressiva audiência de seus cursos não era indício apenas da penetração da teoria crítica entre os estudantes, em particular no movimento estudantil alemão, mas também da permeabilidade do pensamento de Adorno à discussão pública das questões que estavam na ordem do dia. A Dialética negativa surge então como documento de um exercício intelectual único, construído no confronto reiterado com as exigências do tempo presente. Lê-lo a partir de teses formuladas em circunstâncias históricas diversas trairia o esforço da teoria crítica em compreender seu próprio tempo. O confronto com a tradição filosófica levado a cabo por Adorno, ausente em sua obra de juventude, também não pode estar vinculado de antemão às teses sombrias da Dialética do esclarecimento, mas deve abrir-se à experiência intelectual a qual ele convida.

O livro que finalmente chega às mãos do leitor brasileiro no aniversário de quarenta anos da morte de seu autor, com tradução cuidadosa de Marco Antônio Casanova e revisão técnica de Eduardo Soares Neves Silva, possui uma posição própria, sem prejuízo da reelaboração de questões que percorrem uma vida de trabalho intelectual. A ocasião deve ser saudada como a possibilidade de transformação da recepção de Adorno no Brasil, ainda fortemente marcada pela Dialética do esclarecimento. Muitos dos ensaios traduzidos por aqui costumam ser lidos e interpretados na chave deste livro. Esta tradução da Dialética negativa, por sua vez, tem o potencial de alterar tal situação, ensejando uma redescoberta de seu autor. Em relação ao livro de 1947, escrito em parceria com Max Horkheimer durante os anos de exílio nos Estados Unidos, o título da Dialética negativa, já indica algo novo. O “negativo” da dialética é inseparável da questão da sobrevivência da filosofia, com a qual Adorno abre a introdução: “A filosofia, que um dia pareceu ultrapassada, mantém-se viva porque se perdeu seu instante de realização” (p. 11). Esta tese deve ser entendida como a formulação de um diagnóstico de época que não apenas possibilita, mas também exige este exercício do pensamento configurado historicamente no embate da Dialética negativa com a tradição filosófica.

A diferença em relação à Dialética do esclarecimento é grande. Neste livro, a tese da autodestruição do esclarecimento, levada a cabo por um desenvolvimento histórico que conduzira a humanidade a um estado de barbárie, colocava o pensamento crítico diante de uma aporia, pois o conluio de pensamento e dominação social minava a possibilidade da crítica, a qual, contudo, era exercida conscientemente por seus autores. O Prefácio de 1969 para a reedição do livro adverte para a suspensão (mas não interrupção) daquele diagnóstico de época, segundo o qual o capitalismo tardio caminhava para um sistema integrado de dominação. A compreensão do mundo atual nos países avançados como uma trama de dominação formada por mercado, Estado, burocracia e meios de comunicação de massa, que impede o colapso do sistema e sua superação em uma sociedade justa, mantém-se atual no pós-guerra. A guerra do Vietnã, o macarthismo e a corrida armamentista comprovariam essa atualidade. A diferença em relação ao livro da década de 1940 está em que tal diagnóstico não implica a desconsideração da possibilidade de consciência crítica, nem de participação política no contexto das democracias do pós-guerra, como evidencia o posicionamento ativo de Adorno em diversos debates na esfera pública alemã. A questão da possibilidade da emancipação não poderia ser colocada sem esses novos desdobramentos históricos. Em relação à Dialética do esclarecimento, a diferença do diagnóstico de época subjacente à Dialética negativa está em conseguir detectar na história recente elementos singulares de experiência crítica não subsumida à totalidade social. Por este motivo, a possibilidade mesma de composição da experiência torna-se a questão-chave de uma dialética negativa, configurando-a como um exercício de crítica da história do pensamento à luz de um diagnóstico de época. A idéia de experiência como um exercício do pensamento circunscreve o esforço de negação empreendido pela teoria crítica adorniana em função da convergência histórica entre a tradição filosófica e a lógica da dominação social. O esforço de escapar dessa aporia no capitalismo tardio é o que teria exigido esta forma de crítica da filosofia caracterizada por seu autor com a expressão “dialética negativa”.

O recurso do pensamento à tradição filosófica, indicado em tal expressão, exige, portanto, a subversão dessa mesma tradição. Em sua reconstituição por Adorno, o pensamento da negação sempre procurou estabelecer algo positivo. A dialética negativa volta-se contra essa positividade e suas inúmeras formas, particularmente contra a pretensão da dialética idealista de esquadrinhar a totalidade da experiência a partir de princípios subjetivos. Mas não só: ela também se contrapõe à pretensão malograda da dialética materialista de realizar na história a identidade entre sujeito e objeto. Diante do fracasso da emancipação como revolução social, a sobrevivência do pensamento dependeria do esforço de alcançar seus objetos em sua singularidade por meio da auto-reflexão crítica dessa pretensão. Com isso, a idéia de sobrevivência da filosofia só é possível como uma crítica do idealismo que leva em consideração a esperança não realizada de sua realização na história.

Nesta constelação histórico-filosófica desenhada pela Dialética negativa, Adorno busca conferir uma tarefa para a filosofia no presente a partir do destino de um projeto específico: a realização da filosofia por Marx e pelo hegelianismo de esquerda. Como evidencia a caracterização do capitalismo tardio, a pergunta pela possibilidade da emancipação não passa apenas pela consideração do fracasso das esperanças depositadas numa revolução social ou da reversão do caráter autoritário do socialismo real, mas exige também questionar a perpetuação de um estado de não-emancipação no capitalismo mais avançado. Ainda assim, é o fracasso de tal projeto filosófico que constitui a perspectiva para o exame da possibilidade da filosofia contemporânea, a qual é examinada do ponto de vista da “crise do idealismo”. Adorno sabia muito bem que nem todas as filosofias do presente-as quais, segundo ele, disputam um lugar no mercado da teoria – têm esse projeto como referência primordial. Por que então submeter todas a esse crivo? Sua justificativa não passa apenas pela conclusão de que o vínculo entre pensamento e emancipação tem sua referência maior nas pretensões emancipatórias desse projeto, mas também pela convicção de que a história da filosofia foi marcada pela pretensão de conferir um sentido à totalidade da experiência por meio de sua apreensão conceitual. Diante disso, o sistema hegeliano marcaria o apogeu dessa história, assim como o maior fracasso da pretensão de submeter a realidade ao movimento do conceito. E mais: a história recente, bem distante da força emancipatória que o idealismo representou na consolidação da sociedade burguesa, também poderia ser interpretada como a realização nefasta do idealismo. O capitalismo contemporâneo seria a realização perversa do sistema hegeliano, na medida em que todo singular é subsumido à sua lógica de funcionamento. Com isso, na Dialética negativa, a crítica da filosofia é indissociável da crítica social.

O diagnóstico adorniano da filosofia contemporânea – Bergson, Husserl, Sartre, Heidegger – evidencia esta pretensão de conferir sentido à realidade por meio de sua antecipação em categorias subjetivas. Em outras palavras, a filosofia contemporânea resolve a dialética de sujeito e objeto no sujeito. Um diagnóstico análogo conduz também a uma interpretação singular do idealismo alemão, segundo a qual a força da mediação subjetiva da objetividade teria impedido a formulação de qualquer ontologia neste período da história da filosofia. Na filosofia moderna, a ontologia seria índice da impotência do sujeito em satisfazer a pretensão de conferir sentido à objetividade. O projeto da Dialética negativa não é, contudo, negar legitimidade a tal pretensão, descartando-a como mera ideologia, para então instaurar uma nova maneira de pensar para além das aporias da tradição. Tal pretensão constituiu o pensamento na sua história e permanece constituindo-o no presente, na medida em que tal pensamento representa também a história da sociedade atual. Mas retomá-la simplesmente seria ideologia; negá-la, por outro lado, seria ignorar a própria historicidade do pensamento como algo formado nessa tradição. A auto-reflexão do pensamento proposta pela Dialética negativa se traduz então no confronto dessa pretensão com a impossibilidade atual de sua realização.

A organização do livro é um registro de tal confronto. Ele ocorre, primeiramente, na crítica à ontologia heideggeriana, como o projeto de satisfazer uma carência ontológica que, em princípio, é uma manifestação legítima da fraqueza do sujeito contemporâneo em realizar o que ainda parecia possível na época do idealismo alemão. Na seqüência, por meio do confronto reiterado com Kant e Hegel, Adorno apresenta os três modelos de pensamento nos quais a Dialética negativa enfrenta as pretensões de verdade da filosofia prática, da filosofia da história e da metafísica. Como Adorno expõe neste último modelo, teses metafísicas segundo as quais o verdadeiro é o eterno e a realidade é dotada de sentido são desmentidas por catástrofes como Auschwitz e a perpetuação do sofrimento físico. A própria idéia de verdade não é pensável, contudo, caso esvaziada de toda pretensão metafísica. Um momento especulativoéimprescindível ao pensamento insatisfeito com a ordem vigente das coisas. Embora Adorno se recuse a legitimar a metafísica como um modo de apresentar questões últimas como as de verdade e sentido, ele também não nega sua imprescindibilidade ao pensamento por meio da inauguração de um pensamento pretensamente pós-metafísico. No interior da Dialética negativa, ambas as alternativas recairiam em idealismo, pois passariam ao largo da própria configuração histórica do pensamento como algo que veio a ser sob certas circunstâncias. A dialética só poderia ser considerada materialista caso fosse capaz de, paradoxalmente, salvar a pretensão de verdade da metafísica ao confrontá-la com sua caducidade. Somente ao pensamento que reflete criticamente sobre esta pretensão, avaliando-a tanto pela sua imprescindibilidade como pela sua insuficiência, seria reservada a possibilidade de expor o que escapa à identidade do conceito.

Com isto, chega-se ao cerne da crítica de Adorno à filosofia idealista: a caracterização do conceito como produção de identidade. Pensar é identificar, diz Adorno, referindo-se à tendência do pensamento a ser um com o pensado. Esta identidade é uma posição de princípio para a dialética idealista. Para que a negação da negação produza uma posição ela já tem que pressupor essa posição desde o início. Em outras palavras, para que o pensamento possa organizar-se na forma da contradição, ele precisa pressupor a verdade de uma totalidade subjetivamente instaurada, a qual subsume todo particular, falso em sua limitação e imediatidade. Desta descrição da dialética idealista, Adorno apresenta uma tarefa para a dialética negativa. Ela se volta contra a identidade entre o pensamento e o pensado. Ela não visa à identidade, pressuposta desde o início na totalidade, mas à não-identidade entre coisa e pensamento. Dialética significa, antes de tudo, que a coisa não é idêntica ao seu conceito. A inscrição histórica do potencial crítico desta concepção de dialética está na configuração da identidade como a forma atual da ideologia, exigindo uma transformação da noção mesma de crítica da ideologia: não mais apontar a diferença entre realidade e conceito em vista da realização futura deste, mas expor a diferença entre coisa e conceito diante de sua identidade social aparente. A dialética torna-se materialista quando adquire consciência desta não-identidade entre coisa e pensamento. Sua tarefa seria assim alcançar o não-idêntico por meio da lógica da identidade do pensamento ou, na formulação famosa, ir além do conceito por meio do conceito.

Esse lema da Dialética negativa indica que o esforço em expor o não-idêntico não se efetiva na elaboração de um conceito de não-identidade. Na medida em que o que importa a Adorno é evidenciar o laço entre conceito e identidade, alcançar o não-idêntico pela formulação de um conceito de não-idêntico seria absorvê-lo no pensamento da identidade, liquidando a dialética entre identidade e não-identidade. Pelo mesmo motivo, o não-idêntico não é apreensível por meio da intuição ou de alguma outra forma de intelecção não-conceitual, pois isto conduziria a dialética negativa às fronteiras de uma mística negativa. Não é nem pelo pensamento não-conceitual, nem por um conceito de não-identidade, que o pensamento alcança o não-conceitual, mas por uma auto-reflexão do procedimento conceitual a respeito dos elementos não-conceituais necessários à configuração do pensamento como linguagem. Segundo Adorno, os conceitos já estão implicitamente concretizados pela linguagem em que se encontram. A Dialética negativa toma essas significações como ponto de partida para a auto-reflexão do conceito. Tal questão não se traduz, contudo, na elaboração de uma filosofia da linguagem, mas na atenção às convenções e aos elementos retóricos, literários e estilísticos necessários à escrita filosófica. Não se trata aqui, porém, de reverter uma oposição entre lógica e retórica que caracterizaria a história da filosofia, mas de permanecer no médium conceitual, reconhecendo que o pensamento só se configura quando apresentado na materialidade da linguagem escrita.

É possível dizer então que a relação entre exposição e conceito torna possível a Dialética negativa. Conseqüentemente, a exposição adorniana é necessariamente muito distinta da forma de exposição das dialéticas idealista e materialista. Ela não é o encadeamento da figuras do desdobramento imanente da consciência, nem o encadeamento lógico das categorias que organizam o material histórico. Em ambas, haveria a precedência da totalidade guiando a explicitação dos elementos constituintes de um ponto de partida sistemático. A forma de exposição da Dialética negativa, ao contrário, prescinde da idéia de totalidade. Nesse sentido, ela poderia ser caracterizada, antes de tudo, como uma justaposição de elementos materiais e conceituais na composição do texto filosófico. A linguagem não é um instrumento neutro ou transparente para a organização e para a expressão do pensamento, mas o próprio meio no qual a filosofia se configurou historicamente em uma tradição fundada na elaboração e no comentário de textos. Exercitar-se no pensamento implica entrar em contato com os textos legados pela tradição, não só procurando refazer suas operações lógicas e argumentativas, mas também notando a dimensão histórica e estilística de sua configuração literária.

Esse relevo dado à relação do pensamento com a linguagem, com a qual Adorno encaminha a dialética entre conceito e exposição, possui tanto um nome como uma forma literária: constelação e ensaio. Adorno considerou sua reflexão sobre esta forma –O ensaio como forma –uma espécie de programa para sua filosofia tardia, formulada a partir da história sedimentada nessa forma de exposição. O ensaio, diz ele, não constrói seus conceitos a partir de um princípio primeiro, nem reenvia seus objetos, por mediações sistemáticas, a uma totalidade anterior, mas os aborda em seu aqui e agora, como algo culturalmente pré-formado. Tomando de empréstimo um termo de Benjamin, o ensaio é a forma que apresenta a constelação em que o objeto se encontra. “Perceber a constelação na qual a coisa se encontra significa o mesmo que decifrar aquilo que ele [o objeto] porta em si enquanto algo que veio a ser”, diz Adorno na Dialética negativa (p. 141). O termo “constelação” indica, em primeiro lugar, essa inscrição histórica do objeto. Cada objeto traz em si, tal como uma mônada, sua história sedimentada como a cifra do processo pelo qual ele veio a ser. O ensaio é uma exposição dessa constelação histórica. Mas “constelação” caracteriza também esta forma de exposição. Não se trata simplesmente de uma cadeia argumentativa ou da dedução conceitual do objeto, nem de proposição e comprovação de teses, mas de uma disposição de conceitos no texto com o intuito de iluminar a especificidade do objeto. Daí a dificuldade em tratar a idéia mesma de constelação como uma nova categoria filosófica, pois ela desapareceria caso abstraída dos elementos organizados por ela. Pela maneira como dispõem conceitos em torno de um objeto, a constelação mostra como eles são imprescindíveis ao pensamento, mas também como são insuficientes para iluminar um objeto em sua singularidade. Ela apresenta a tendência do conceito a identificar-se com seu objeto e, nesta apresentação, mostra sua insuficiência para alcançar a especificidade do objeto em causa. A constelação se vale assim dos conceitos tanto para denunciar sua lógica de identidade como para iluminar o que escapa a esta lógica. Com isso, ela também busca atender à intenção dos conceitos, mas não pelo processo de identificação, segundo o qual o conceito se sobrepõe a seu outro, e sim pela maneira como os justapõem a fim de iluminar a coisa.

Tal como um ensaio, a Dialética negativa investiga a constelação em que se encontra seu objeto por excelência-o pensamento conceitual cristalizado nos textos da tradição -, o qual ela apresenta por meio da dialética de identidade e não-identidade. Essa peculiar forma de exposição é uma das responsáveis pela dificuldade imposta à leitura do livro. A dialética não se expõe sistematicamente, mas por meio de tópicos curtos, organizados sem continuidade em torno de um problema maior, iluminado e retomado de diferentes ângulos. Talvez a única falha séria da edição brasileira (da Jorge Zahar) seja a supressão dos títulos desses tópicos na parte superior das páginas ímpares. Na edição alemã (da Surhkamp), tais títulos realçam a semelhança de cada trecho a um microensaio, iluminando o caráter descontínuo da exposição, próxima, em sua forma de organização, à justaposição das peças de um mosaico. Longe de ser um elemento preciosístico e sem importância, este cuidado na justaposição de parágrafos e títulos salienta a disposição gráfica do pensamento no formato de livro e, conseqüentemente, seu caráter de objeto cristalizado em texto. Tal materialidade da exposição evidencia que o pensamento não é apenas sujeito em busca de um sentido para a experiência, mas também objeto constituído na densidade material da escrita. A tese do primado do objeto, que marca, para Adorno, a distinção entre filosofia idealista e filosofia materialista, mostra-se nesta auto-reflexão do pensamento como objeto culturalmente pré-formado, cujo sentido se constitui no instante em que é decifrado pelo momento histórico atual. Nesta dialética de sujeito e objeto, a filosofia se assemelha a uma arte de interpretação de textos, ainda que crítica dos pressupostos metafísicos da hermenêutica. Não há nenhum sentido prévio a ser encontrado pela interpretação, mas somente um sentido reelaborado em cada leitura da tradição à luz de um diagnóstico do tempo presente. Como diz Adorno, a dialética busca o que poderia ser verdadeiro ali onde pensamento crítico seculariza um modelo originário irrecuperável de comentário aos textos sagrados.

Esta relação entre sujeito e objeto caracteriza a concepção de experiência própria à Dialética negativa. O romance de Marcel Proust, Em busca do tempo perdido, cuja noção de experiência é retomada por Adorno, pode ser entendido como um modelo dessa relação. A reconstituição da biografia de um indivíduo pela atividade rememorativa não se reduz à expressão subjetiva de uma vivência de mundo. Na medida em que o trabalho de recordação só é levado a termo pela mediação daescrita, opassado individualseobjetiva num processo de apropriação da linguagem e de convenções literárias historicamente configuradas. Quando as leis da memória se entrelaçam com as da escrita na composição da experiência literária, os anos vividos escapam ao domínio exclusivo daquele que os viveu e transformam-se em material infiel às intenções de um autor. No texto, a recordação segue caminhos próprios, os quais, entretanto, são também os caminhos daquele que os recorda. O resultado da recordação não é a vida tal como foi uma vez vivida, mas o passado reconstituído à luz do esforço atual de recordá-lo. Neste entrelaçamento de recordação e escrita, a experiência individual conquista a atualidade objetiva que, segundo Adorno, é o índice de sua verdade.

Tal afinidade da Dialética negativa com a experiência proustiana não é sinal de dissolução de fronteiras entre arte e filosofia, muito menos de projeção na arte de esperanças formuladas no âmbito da filosofia. Ela é mais um índice de que a verdade e a objetividade da experiência não estão em sua ordenação segundo a totalidade que lhe confere sentido, mas no respeito à lógica própria de composição do singular. Num momento histórico de constante ameaça de integração do indivíduo ao sistema social, a não-reconciliação entre indivíduo e totalidade e a irredutibilidade de um singular a universalidades heterônomas são vistas por Adorno como exercícios de negação e resistência articulados em processos de composição da experiência humana individual. Esta referência à experiência literária permite delinear não exatamente um conceito de experiência na Dialética negativa, mas o percurso de uma experiência efetivamente realizada como exercício singular de leitura da tradição filosófica à luz de um diagnóstico de época. Os diversos desenvolvimentos apresentados até aqui poderiam ser reunidos nesta concepção de experiência como exercício do pensamento. A Dialética negativa, contudo, não pretende estabelecer as condições de realização de tal forma de experiência no presente. Sua inscrição histórica, ou ainda, a objetividade de sua pretensão de verdade, não se origina de um ponto de vista universal ou universalizante da teoria que fala do mundo – ela reconhece a fraqueza da teoria em desvendar o funcionamento real da sociedade -, mas do entrelaçamento de condições materiais e históricas na composição da experiência individual de um intelectual do pós-guerra alemão.

Uma vez que esta dialética entre individual e universal deve apresentar-se somente num processo histórico em aberto de constituição da experiência individual, não há propriamente uma fundamentação prévia para a idéia de crítica praticada pela Dialética negativa. Do mesmo modo, também não se extrai daqui nenhuma receita política, como exigiu o movimento estudantil alemão no final dos anos de 1960. Avessa à formação de escolas ou seguidores, tal experiência fornece, contudo, material para se pensar uma noção radical de autonomia individual que poderia ser rica em conseqüências para a participação política. O que a Dialética negativa apresenta é o esforço de constituição da experiência individual diante de forças que buscam identificá-la a falsos universais. Contra toda fundamentação prévia, tal experiência é um exercício do pensamento que testa sua possibilidade à medida que é realizado. Foi durante este exercício que Adorno chegou à formulação de que o pensamento também é uma forma de práxis. Como um esforço sujeito ao fracasso, a Dialética negativa não é uma fundamentação filosófica da teoria crítica adorniana, nem uma teoria geral do funcionamento da sociedade no capitalismo tardio, mas o documento exemplar de um exercício de experiência intelectual.

Luciano Gatti – Doutor em filosofia pela Unicamp. Realiza pesquisa de pós-doutorado em filosofia na PUC/SP com bolsa da Fapesp.

Acessar publicação original

Dialética Negativa – ADORNO (NE-C)

ADORNO, W. Dialética Negativa. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. Resenha de: GATTI, Luciano. Exercícios do pensamento. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.85, 2009

A fama de certos livros costuma induzir o leitor a enganos. A Dialética negativa, publicada originalmente em 1966, poderia ser muito bem recebida no Brasil como a consumação da obra filosófica de Theodor W. Adorno. A aura de obra difícil, reforçada por décadas de inacessibilidade em língua portuguesa, seria uma preparação condizente com o posto de obra-prima. Tal fetiche poderia naturalmente justificar-se em diversos elementos que, de fato, se encontram no livro. Os leitores familiarizados com outros textos do autor não terão dificuldade em encontrá-los, embora alguma suspeita não faça mal a quem folheia o livro pela primeira vez. Os interessados, por exemplo, na gênese das idéias de Adorno saberão rastrear temas que remontam àquelas primeiras conferências do início da década de 1930, sobre “A atualidade da filosofia” e sobre a “Idéia de história natural”. Nestes trabalhos programáticos, com as quais um jovem e pretensioso filósofo estreava na cena universitária alemã, delineava-se o confronto do panorama da filosofia contemporânea, herdeira, segundo Adorno, do idealismo alemão, com uma noção ainda bastante vaga de filosofia materialista, inspirada nos escritos de juventude de Walter Benjamin. Essa intenção de realizar uma crítica imanente da filosofia idealista alemã, avaliando-a pelas suas próprias pretensões, de modo a extrair, nesta crítica, uma concepção bastante singular de materialismo, certamente pode ser reencontrada na Dialética negativa.

Os leitores da Dialética do esclarecimento, por sua vez, reconhecerão elementos da caracterização do estágio mais avançado do capitalismo como um sistema de dominação social que teria colocado fora de campo as esperanças marxistas de realização da filosofia numa sociedade justa. A Dialética negativa poderia ser considerada, então, um aproveitamento desse diagnóstico de época para um minucioso acerto de contas com a tradição filosófica. Um rápido percurso pelo sumário do livro indica ao leitor o confronto de Adorno com disciplinas da tradição – filosofia prática, filosofia da história e metafísica – e com a ontologia heideggeriana. Do ponto de vista da impossibilidade de uma sociedade justa, as ambiciosas construções do pensamento idealista são desmascaradas como falsas. Segundo esse diagnóstico emprestado da Dialética do esclarecimento, a história da filosofia se reverteria, por fim, em uma história de ideologias.

Os interessados nos trabalhos materiais de Adorno, ou seja, naqueles inúmeros ensaios em que trabalhou a especificidade dos objetos mais diversos, da crítica musical à sociologia empírica, talvez busquem na Dialética negativa uma espécie de fundamentação filosófica do ensaísmo adorniano, fazendo eco à idéia corrente de que a filosofia teria alguma prioridade epistemológica perante a crítica de arte ou as ciências humanas. No Prefácio ao livro, Adorno, contudo, adverte contra este posicionamento da Dialética negativa em relação a seus trabalhos materiais. Nada seria mais estranho a uma filosofia materialista do que tal hierarquia entre pensamento e material histórico ou empírico.

As circunstâncias de elaboração do livro fornecem outros indícios contra supostas continuidades entre este livro e o restante da produção intelectual de seu autor. Escrito a partir de conferências apresentadas no Collège de France no início da década de 1960, cada uma das partes do livro foi apresentada e discutida em cursos ministrados por Adorno na Universidade de Frankfurt, ao longo dos anos de 1960, em auditórios ocupados por centenas de pessoas. Seu autor não era apenas um professor universitário, mas também uma personalidade pública no cenário da reconstrução alemã do pós-guerra. A expressiva audiência de seus cursos não era indício apenas da penetração da teoria crítica entre os estudantes, em particular no movimento estudantil alemão, mas também da permeabilidade do pensamento de Adorno à discussão pública das questões que estavam na ordem do dia. A Dialética negativa surge então como documento de um exercício intelectual único, construído no confronto reiterado com as exigências do tempo presente. Lê-lo a partir de teses formuladas em circunstâncias históricas diversas trairia o esforço da teoria crítica em compreender seu próprio tempo. O confronto com a tradição filosófica levado a cabo por Adorno, ausente em sua obra de juventude, também não pode estar vinculado de antemão às teses sombrias da Dialética do esclarecimento, mas deve abrir-se à experiência intelectual a qual ele convida.

O livro que finalmente chega às mãos do leitor brasileiro no aniversário de quarenta anos da morte de seu autor, com tradução cuidadosa de Marco Antônio Casanova e revisão técnica de Eduardo Soares Neves Silva, possui uma posição própria, sem prejuízo da reelaboração de questões que percorrem uma vida de trabalho intelectual. A ocasião deve ser saudada como a possibilidade de transformação da recepção de Adorno no Brasil, ainda fortemente marcada pela Dialética do esclarecimento. Muitos dos ensaios traduzidos por aqui costumam ser lidos e interpretados na chave deste livro. Esta tradução da Dialética negativa, por sua vez, tem o potencial de alterar tal situação, ensejando uma redescoberta de seu autor. Em relação ao livro de 1947, escrito em parceria com Max Horkheimer durante os anos de exílio nos Estados Unidos, o título da Dialética negativa, já indica algo novo. O “negativo” da dialética é inseparável da questão da sobrevivência da filosofia, com a qual Adorno abre a introdução: “A filosofia, que um dia pareceu ultrapassada, mantém-se viva porque se perdeu seu instante de realização” (p. 11). Esta tese deve ser entendida como a formulação de um diagnóstico de época que não apenas possibilita, mas também exige este exercício do pensamento configurado historicamente no embate da Dialética negativa com a tradição filosófica.

A diferença em relação à Dialética do esclarecimento é grande. Neste livro, a tese da autodestruição do esclarecimento, levada a cabo por um desenvolvimento histórico que conduzira a humanidade a um estado de barbárie, colocava o pensamento crítico diante de uma aporia, pois o conluio de pensamento e dominação social minava a possibilidade da crítica, a qual, contudo, era exercida conscientemente por seus autores. O Prefácio de 1969 para a reedição do livro adverte para a suspensão (mas não interrupção) daquele diagnóstico de época, segundo o qual o capitalismo tardio caminhava para um sistema integrado de dominação. A compreensão do mundo atual nos países avançados como uma trama de dominação formada por mercado, Estado, burocracia e meios de comunicação de massa, que impede o colapso do sistema e sua superação em uma sociedade justa, mantém-se atual no pós-guerra. A guerra do Vietnã, o macarthismo e a corrida armamentista comprovariam essa atualidade. A diferença em relação ao livro da década de 1940 está em que tal diagnóstico não implica a desconsideração da possibilidade de consciência crítica, nem de participação política no contexto das democracias do pós-guerra, como evidencia o posicionamento ativo de Adorno em diversos debates na esfera pública alemã. A questão da possibilidade da emancipação não poderia ser colocada sem esses novos desdobramentos históricos. Em relação à Dialética do esclarecimento, a diferença do diagnóstico de época subjacente à Dialética negativa está em conseguir detectar na história recente elementos singulares de experiência crítica não subsumida à totalidade social. Por este motivo, a possibilidade mesma de composição da experiência torna-se a questão-chave de uma dialética negativa, configurando-a como um exercício de crítica da história do pensamento à luz de um diagnóstico de época. A idéia de experiência como um exercício do pensamento circunscreve o esforço de negação empreendido pela teoria crítica adorniana em função da convergência histórica entre a tradição filosófica e a lógica da dominação social. O esforço de escapar dessa aporia no capitalismo tardio é o que teria exigido esta forma de crítica da filosofia caracterizada por seu autor com a expressão “dialética negativa”.

O recurso do pensamento à tradição filosófica, indicado em tal expressão, exige, portanto, a subversão dessa mesma tradição. Em sua reconstituição por Adorno, o pensamento da negação sempre procurou estabelecer algo positivo. A dialética negativa volta-se contra essa positividade e suas inúmeras formas, particularmente contra a pretensão da dialética idealista de esquadrinhar a totalidade da experiência a partir de princípios subjetivos. Mas não só: ela também se contrapõe à pretensão malograda da dialética materialista de realizar na história a identidade entre sujeito e objeto. Diante do fracasso da emancipação como revolução social, a sobrevivência do pensamento dependeria do esforço de alcançar seus objetos em sua singularidade por meio da auto-reflexão crítica dessa pretensão. Com isso, a idéia de sobrevivência da filosofia só é possível como uma crítica do idealismo que leva em consideração a esperança não realizada de sua realização na história.

Nesta constelação histórico-filosófica desenhada pela Dialética negativa, Adorno busca conferir uma tarefa para a filosofia no presente a partir do destino de um projeto específico: a realização da filosofia por Marx e pelo hegelianismo de esquerda. Como evidencia a caracterização do capitalismo tardio, a pergunta pela possibilidade da emancipação não passa apenas pela consideração do fracasso das esperanças depositadas numa revolução social ou da reversão do caráter autoritário do socialismo real, mas exige também questionar a perpetuação de um estado de não-emancipação no capitalismo mais avançado. Ainda assim, é o fracasso de tal projeto filosófico que constitui a perspectiva para o exame da possibilidade da filosofia contemporânea, a qual é examinada do ponto de vista da “crise do idealismo”. Adorno sabia muito bem que nem todas as filosofias do presente-as quais, segundo ele, disputam um lugar no mercado da teoria – têm esse projeto como referência primordial. Por que então submeter todas a esse crivo? Sua justificativa não passa apenas pela conclusão de que o vínculo entre pensamento e emancipação tem sua referência maior nas pretensões emancipatórias desse projeto, mas também pela convicção de que a história da filosofia foi marcada pela pretensão de conferir um sentido à totalidade da experiência por meio de sua apreensão conceitual. Diante disso, o sistema hegeliano marcaria o apogeu dessa história, assim como o maior fracasso da pretensão de submeter a realidade ao movimento do conceito. E mais: a história recente, bem distante da força emancipatória que o idealismo representou na consolidação da sociedade burguesa, também poderia ser interpretada como a realização nefasta do idealismo. O capitalismo contemporâneo seria a realização perversa do sistema hegeliano, na medida em que todo singular é subsumido à sua lógica de funcionamento. Com isso, na Dialética negativa, a crítica da filosofia é indissociável da crítica social.

O diagnóstico adorniano da filosofia contemporânea – Bergson, Husserl, Sartre, Heidegger – evidencia esta pretensão de conferir sentido à realidade por meio de sua antecipação em categorias subjetivas. Em outras palavras, a filosofia contemporânea resolve a dialética de sujeito e objeto no sujeito. Um diagnóstico análogo conduz também a uma interpretação singular do idealismo alemão, segundo a qual a força da mediação subjetiva da objetividade teria impedido a formulação de qualquer ontologia neste período da história da filosofia. Na filosofia moderna, a ontologia seria índice da impotência do sujeito em satisfazer a pretensão de conferir sentido à objetividade. O projeto da Dialética negativa não é, contudo, negar legitimidade a tal pretensão, descartando-a como mera ideologia, para então instaurar uma nova maneira de pensar para além das aporias da tradição. Tal pretensão constituiu o pensamento na sua história e permanece constituindo-o no presente, na medida em que tal pensamento representa também a história da sociedade atual. Mas retomá-la simplesmente seria ideologia; negá-la, por outro lado, seria ignorar a própria historicidade do pensamento como algo formado nessa tradição. A auto-reflexão do pensamento proposta pela Dialética negativa se traduz então no confronto dessa pretensão com a impossibilidade atual de sua realização.

A organização do livro é um registro de tal confronto. Ele ocorre, primeiramente, na crítica à ontologia heideggeriana, como o projeto de satisfazer uma carência ontológica que, em princípio, é uma manifestação legítima da fraqueza do sujeito contemporâneo em realizar o que ainda parecia possível na época do idealismo alemão. Na seqüência, por meio do confronto reiterado com Kant e Hegel, Adorno apresenta os três modelos de pensamento nos quais a Dialética negativa enfrenta as pretensões de verdade da filosofia prática, da filosofia da história e da metafísica. Como Adorno expõe neste último modelo, teses metafísicas segundo as quais o verdadeiro é o eterno e a realidade é dotada de sentido são desmentidas por catástrofes como Auschwitz e a perpetuação do sofrimento físico. A própria idéia de verdade não é pensável, contudo, caso esvaziada de toda pretensão metafísica. Um momento especulativoéimprescindível ao pensamento insatisfeito com a ordem vigente das coisas. Embora Adorno se recuse a legitimar a metafísica como um modo de apresentar questões últimas como as de verdade e sentido, ele também não nega sua imprescindibilidade ao pensamento por meio da inauguração de um pensamento pretensamente pós-metafísico. No interior da Dialética negativa, ambas as alternativas recairiam em idealismo, pois passariam ao largo da própria configuração histórica do pensamento como algo que veio a ser sob certas circunstâncias. A dialética só poderia ser considerada materialista caso fosse capaz de, paradoxalmente, salvar a pretensão de verdade da metafísica ao confrontá-la com sua caducidade. Somente ao pensamento que reflete criticamente sobre esta pretensão, avaliando-a tanto pela sua imprescindibilidade como pela sua insuficiência, seria reservada a possibilidade de expor o que escapa à identidade do conceito.

Com isto, chega-se ao cerne da crítica de Adorno à filosofia idealista: a caracterização do conceito como produção de identidade. Pensar é identificar, diz Adorno, referindo-se à tendência do pensamento a ser um com o pensado. Esta identidade é uma posição de princípio para a dialética idealista. Para que a negação da negação produza uma posição ela já tem que pressupor essa posição desde o início. Em outras palavras, para que o pensamento possa organizar-se na forma da contradição, ele precisa pressupor a verdade de uma totalidade subjetivamente instaurada, a qual subsume todo particular, falso em sua limitação e imediatidade. Desta descrição da dialética idealista, Adorno apresenta uma tarefa para a dialética negativa. Ela se volta contra a identidade entre o pensamento e o pensado. Ela não visa à identidade, pressuposta desde o início na totalidade, mas à não-identidade entre coisa e pensamento. Dialética significa, antes de tudo, que a coisa não é idêntica ao seu conceito. A inscrição histórica do potencial crítico desta concepção de dialética está na configuração da identidade como a forma atual da ideologia, exigindo uma transformação da noção mesma de crítica da ideologia: não mais apontar a diferença entre realidade e conceito em vista da realização futura deste, mas expor a diferença entre coisa e conceito diante de sua identidade social aparente. A dialética torna-se materialista quando adquire consciência desta não-identidade entre coisa e pensamento. Sua tarefa seria assim alcançar o não-idêntico por meio da lógica da identidade do pensamento ou, na formulação famosa, ir além do conceito por meio do conceito.

Esse lema da Dialética negativa indica que o esforço em expor o não-idêntico não se efetiva na elaboração de um conceito de não-identidade. Na medida em que o que importa a Adorno é evidenciar o laço entre conceito e identidade, alcançar o não-idêntico pela formulação de um conceito de não-idêntico seria absorvê-lo no pensamento da identidade, liquidando a dialética entre identidade e não-identidade. Pelo mesmo motivo, o não-idêntico não é apreensível por meio da intuição ou de alguma outra forma de intelecção não-conceitual, pois isto conduziria a dialética negativa às fronteiras de uma mística negativa. Não é nem pelo pensamento não-conceitual, nem por um conceito de não-identidade, que o pensamento alcança o não-conceitual, mas por uma auto-reflexão do procedimento conceitual a respeito dos elementos não-conceituais necessários à configuração do pensamento como linguagem. Segundo Adorno, os conceitos já estão implicitamente concretizados pela linguagem em que se encontram. A Dialética negativa toma essas significações como ponto de partida para a auto-reflexão do conceito. Tal questão não se traduz, contudo, na elaboração de uma filosofia da linguagem, mas na atenção às convenções e aos elementos retóricos, literários e estilísticos necessários à escrita filosófica. Não se trata aqui, porém, de reverter uma oposição entre lógica e retórica que caracterizaria a história da filosofia, mas de permanecer no médium conceitual, reconhecendo que o pensamento só se configura quando apresentado na materialidade da linguagem escrita.

É possível dizer então que a relação entre exposição e conceito torna possível a Dialética negativa. Conseqüentemente, a exposição adorniana é necessariamente muito distinta da forma de exposição das dialéticas idealista e materialista. Ela não é o encadeamento da figuras do desdobramento imanente da consciência, nem o encadeamento lógico das categorias que organizam o material histórico. Em ambas, haveria a precedência da totalidade guiando a explicitação dos elementos constituintes de um ponto de partida sistemático. A forma de exposição da Dialética negativa, ao contrário, prescinde da idéia de totalidade. Nesse sentido, ela poderia ser caracterizada, antes de tudo, como uma justaposição de elementos materiais e conceituais na composição do texto filosófico. A linguagem não é um instrumento neutro ou transparente para a organização e para a expressão do pensamento, mas o próprio meio no qual a filosofia se configurou historicamente em uma tradição fundada na elaboração e no comentário de textos. Exercitar-se no pensamento implica entrar em contato com os textos legados pela tradição, não só procurando refazer suas operações lógicas e argumentativas, mas também notando a dimensão histórica e estilística de sua configuração literária.

Esse relevo dado à relação do pensamento com a linguagem, com a qual Adorno encaminha a dialética entre conceito e exposição, possui tanto um nome como uma forma literária: constelação e ensaio. Adorno considerou sua reflexão sobre esta forma –O ensaio como forma –uma espécie de programa para sua filosofia tardia, formulada a partir da história sedimentada nessa forma de exposição. O ensaio, diz ele, não constrói seus conceitos a partir de um princípio primeiro, nem reenvia seus objetos, por mediações sistemáticas, a uma totalidade anterior, mas os aborda em seu aqui e agora, como algo culturalmente pré-formado. Tomando de empréstimo um termo de Benjamin, o ensaio é a forma que apresenta a constelação em que o objeto se encontra. “Perceber a constelação na qual a coisa se encontra significa o mesmo que decifrar aquilo que ele [o objeto] porta em si enquanto algo que veio a ser”, diz Adorno na Dialética negativa (p. 141). O termo “constelação” indica, em primeiro lugar, essa inscrição histórica do objeto. Cada objeto traz em si, tal como uma mônada, sua história sedimentada como a cifra do processo pelo qual ele veio a ser. O ensaio é uma exposição dessa constelação histórica. Mas “constelação” caracteriza também esta forma de exposição. Não se trata simplesmente de uma cadeia argumentativa ou da dedução conceitual do objeto, nem de proposição e comprovação de teses, mas de uma disposição de conceitos no texto com o intuito de iluminar a especificidade do objeto. Daí a dificuldade em tratar a idéia mesma de constelação como uma nova categoria filosófica, pois ela desapareceria caso abstraída dos elementos organizados por ela. Pela maneira como dispõem conceitos em torno de um objeto, a constelação mostra como eles são imprescindíveis ao pensamento, mas também como são insuficientes para iluminar um objeto em sua singularidade. Ela apresenta a tendência do conceito a identificar-se com seu objeto e, nesta apresentação, mostra sua insuficiência para alcançar a especificidade do objeto em causa. A constelação se vale assim dos conceitos tanto para denunciar sua lógica de identidade como para iluminar o que escapa a esta lógica. Com isso, ela também busca atender à intenção dos conceitos, mas não pelo processo de identificação, segundo o qual o conceito se sobrepõe a seu outro, e sim pela maneira como os justapõem a fim de iluminar a coisa.

Tal como um ensaio, a Dialética negativa investiga a constelação em que se encontra seu objeto por excelência-o pensamento conceitual cristalizado nos textos da tradição -, o qual ela apresenta por meio da dialética de identidade e não-identidade. Essa peculiar forma de exposição é uma das responsáveis pela dificuldade imposta à leitura do livro. A dialética não se expõe sistematicamente, mas por meio de tópicos curtos, organizados sem continuidade em torno de um problema maior, iluminado e retomado de diferentes ângulos. Talvez a única falha séria da edição brasileira (da Jorge Zahar) seja a supressão dos títulos desses tópicos na parte superior das páginas ímpares. Na edição alemã (da Surhkamp), tais títulos realçam a semelhança de cada trecho a um microensaio, iluminando o caráter descontínuo da exposição, próxima, em sua forma de organização, à justaposição das peças de um mosaico. Longe de ser um elemento preciosístico e sem importância, este cuidado na justaposição de parágrafos e títulos salienta a disposição gráfica do pensamento no formato de livro e, conseqüentemente, seu caráter de objeto cristalizado em texto. Tal materialidade da exposição evidencia que o pensamento não é apenas sujeito em busca de um sentido para a experiência, mas também objeto constituído na densidade material da escrita. A tese do primado do objeto, que marca, para Adorno, a distinção entre filosofia idealista e filosofia materialista, mostra-se nesta auto-reflexão do pensamento como objeto culturalmente pré-formado, cujo sentido se constitui no instante em que é decifrado pelo momento histórico atual. Nesta dialética de sujeito e objeto, a filosofia se assemelha a uma arte de interpretação de textos, ainda que crítica dos pressupostos metafísicos da hermenêutica. Não há nenhum sentido prévio a ser encontrado pela interpretação, mas somente um sentido reelaborado em cada leitura da tradição à luz de um diagnóstico do tempo presente. Como diz Adorno, a dialética busca o que poderia ser verdadeiro ali onde pensamento crítico seculariza um modelo originário irrecuperável de comentário aos textos sagrados.

Esta relação entre sujeito e objeto caracteriza a concepção de experiência própria à Dialética negativa. O romance de Marcel Proust, Em busca do tempo perdido, cuja noção de experiência é retomada por Adorno, pode ser entendido como um modelo dessa relação. A reconstituição da biografia de um indivíduo pela atividade rememorativa não se reduz à expressão subjetiva de uma vivência de mundo. Na medida em que o trabalho de recordação só é levado a termo pela mediação daescrita, opassado individualseobjetiva num processo de apropriação da linguagem e de convenções literárias historicamente configuradas. Quando as leis da memória se entrelaçam com as da escrita na composição da experiência literária, os anos vividos escapam ao domínio exclusivo daquele que os viveu e transformam-se em material infiel às intenções de um autor. No texto, a recordação segue caminhos próprios, os quais, entretanto, são também os caminhos daquele que os recorda. O resultado da recordação não é a vida tal como foi uma vez vivida, mas o passado reconstituído à luz do esforço atual de recordá-lo. Neste entrelaçamento de recordação e escrita, a experiência individual conquista a atualidade objetiva que, segundo Adorno, é o índice de sua verdade.

Tal afinidade da Dialética negativa com a experiência proustiana não é sinal de dissolução de fronteiras entre arte e filosofia, muito menos de projeção na arte de esperanças formuladas no âmbito da filosofia. Ela é mais um índice de que a verdade e a objetividade da experiência não estão em sua ordenação segundo a totalidade que lhe confere sentido, mas no respeito à lógica própria de composição do singular. Num momento histórico de constante ameaça de integração do indivíduo ao sistema social, a não-reconciliação entre indivíduo e totalidade e a irredutibilidade de um singular a universalidades heterônomas são vistas por Adorno como exercícios de negação e resistência articulados em processos de composição da experiência humana individual. Esta referência à experiência literária permite delinear não exatamente um conceito de experiência na Dialética negativa, mas o percurso de uma experiência efetivamente realizada como exercício singular de leitura da tradição filosófica à luz de um diagnóstico de época. Os diversos desenvolvimentos apresentados até aqui poderiam ser reunidos nesta concepção de experiência como exercício do pensamento. A Dialética negativa, contudo, não pretende estabelecer as condições de realização de tal forma de experiência no presente. Sua inscrição histórica, ou ainda, a objetividade de sua pretensão de verdade, não se origina de um ponto de vista universal ou universalizante da teoria que fala do mundo – ela reconhece a fraqueza da teoria em desvendar o funcionamento real da sociedade -, mas do entrelaçamento de condições materiais e históricas na composição da experiência individual de um intelectual do pós-guerra alemão.

Uma vez que esta dialética entre individual e universal deve apresentar-se somente num processo histórico em aberto de constituição da experiência individual, não há propriamente uma fundamentação prévia para a idéia de crítica praticada pela Dialética negativa. Do mesmo modo, também não se extrai daqui nenhuma receita política, como exigiu o movimento estudantil alemão no final dos anos de 1960. Avessa à formação de escolas ou seguidores, tal experiência fornece, contudo, material para se pensar uma noção radical de autonomia individual que poderia ser rica em conseqüências para a participação política. O que a Dialética negativa apresenta é o esforço de constituição da experiência individual diante de forças que buscam identificá-la a falsos universais. Contra toda fundamentação prévia, tal experiência é um exercício do pensamento que testa sua possibilidade à medida que é realizado. Foi durante este exercício que Adorno chegou à formulação de que o pensamento também é uma forma de práxis. Como um esforço sujeito ao fracasso, a Dialética negativa não é uma fundamentação filosófica da teoria crítica adorniana, nem uma teoria geral do funcionamento da sociedade no capitalismo tardio, mas o documento exemplar de um exercício de experiência intelectual.

Luciano Gatti – Doutor em filosofia pela Unicamp. Realiza pesquisa de pós-doutorado em filosofia na PUC/SP com bolsa da Fapesp.

Acessar publicação original

O que é história Cultural? | Peter Burke

O historiador Peter Burke é uma daquelas “figurinhas carimbadas” nas reflexões teóricas e historiográficas contemporâneas. Sua presença na academia brasileira é marcante e pode ser lembrada pela importância de sua produção intelectual quanto por sua freqüência em eventos acadêmicos no Brasil.

Interessa aqui recordar que os diversos trabalhos de Burke traduzidos para a língua portuguesa brasileira se constituem, via de regra, em sucessos editoriais. Neste “O que é História Cultural?”, aparecido na Inglaterra em 2004, Peter Burke trabalha para elaborar um texto de natureza introdutória a discussões já bem postas na historiografia brasileira: a história cultural, suas características e práticas. Leia Mais

O Mistério do Samba – VIANNA

VIANNA, Hermano. O Mistério do Samba. [Zahar, 1995. 193p.]. Resenha de: GOMES, Tiago de Melo. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.21, n.42, 2001.

À medida que a década de 1990 se encaminha para o final, torna-se evidente por si só a importância deste trabalho de Hermano Vianna a respeito das relações entre samba e identidade nacional. Possivelmente em nenhum momento estas duas temáticas tenham sido debatidas com a amplitude que vem ocorrendo ultimamente, e uma parte do crédito deve ser dado a este livro. Os motivos para o seu sucesso e influência são facilmente reconhecíveis mesmo em uma leitura menos atenta. O autor inicia o texto expressando sua estranheza em relação à narrativa mais tradicional da história do samba, que aponta dois momentos na trajetória deste que é tido como o ritmo nacional por excelência. Em um primeiro momento, o samba teria sido perseguido pelas elites como bárbaro e incivilizado, para em seguida transformar-se no símbolo nacional que conhecemos hoje. Esta narrativa, como Hermano Vianna aponta com acerto, tem sido há muito tempo partilhada por pesquisadores não acadêmicos, cientistas sociais, jornalistas e historiadores, em um arranjo multidisciplinar que tem mostrado grande vitalidade e que busca explicar a formação de símbolos nacionais a partir da resistência popular à opressão das elites, até o momento da vitória final, com a transformação de uma “cultura popular” em “cultura nacional”. A partir deste estranhamento, Hermano Vianna coloca o problema que ocupará seu livro: como se deu a passagem entre estes dois momentos na história do samba?

O autor identifica, com indiscutível acerto, esta questão como potencialmente de grande interesse para se compreender o processo de construção de uma identidade nacional, dentro da qual o samba foi um fator de grande destaque na identificação de “o que é ser brasileiro”. Para Hermano Vianna, o samba teria sido elevado ao status de símbolo nacional favorecido por um contexto cultural (não situado temporalmente de forma clara, mas aparentemente delimitado entre as décadas de 1910 e 1930) em que ganhava força o interesse por “coisas nacionais”. Beneficiando-se deste interesse, o samba teria chegado à sua condição atual, o que teria sido possibilitado na prática pela ação de “mediadores culturais”, que levariam fragmentos da “cultura popular” a uma “cultura de elite” que desconheceria em boa parte os elementos desta “cultura popular”. Neste sentido, o livro é organizado em torno de uma noitada que reuniu intelectuais interessados na construção de um projeto de identidade nacional (incluindo Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda), com alguns “portadores” desta “cultura popular” prestes a ser alçada ao status de símbolo nacional (entre eles, Pixinguinha e Donga). Por suas características (intelectuais em busca de “coisas brasileiras” reunidos com sambistas, sendo esta ligação feita pelo poeta modernista europeu Blaise Céndrars), este encontro é visto pelo autor como um símbolo do processo que pretende retratar em seu livro.

A riqueza da temática proposta por Hermano Vianna garantiu, com justiça, o sucesso de seu livro. Escapando da armadilha de tratar a cultura como decorrência do contexto socioeconômico, o autor propõe uma articulação entre música popular e identidade nacional visando a compreender a permanência da utilização do samba como elemento aglutinador da nacionalidade. Neste sentido, uma breve discussão sobre os limites da abordagem deste livro revela-se de grande interesse para historiadores e cientistas sociais que se preocupam com questões por ele tratadas. A principal questão que se pode apontar como limitadora do enfoque de Hermano Vianna é a problemática das fontes utilizadas, ou, no caso deste livro, da ausência das mesmas. O autor pretende renovar o debate sobre o tema sem levar a cabo novas pesquisas, buscando meramente reinterpretar elementos levantados por outros pesquisadores dentro dos parâmetros teóricos que adota. Ou seja: o autor se apropria de dados utilizados pela bibliografia existente (que os utilizou para demonstrar a opressão sofrida pelo samba), pensando-os como demonstradores de uma permanente interação cultural entre diversos segmentos sociais, interação esta fundada na ação dos “mediadores culturais”. Isto acaba por levar O Mistério do Samba a algumas limitações. Em primeiro lugar, torna o autor um prisioneiro da mesma bibliografia que pretende criticar, posto que é exatamente esta bibliografia que vai fornecer-lhe as situações em que sua análise é baseada. Com isto, Hermano Vianna acaba sendo levado a debates antigos e pouco produtivos, como a busca por demonstrar que o violão nunca foi um instrumento totalmente desprestigiado, um debate recorrente na tradicional bibliografia sobre música popular do início do século, e que lida com os dados desta mesma bibliografia, em uma discussão de pouco relevo para a análise desenvolvida. Com este debate, o autor pretende demonstrar que o fosso entre “cultura de elite” e “cultura popular” nunca foi tão grande quanto a bibliografia aponta. Mas fazer isto sem acrescentar novos dados à discussão é irrelevante, apenas poupando o leitor de fazer por si só a reinterpretação de algo que já está disponível em uma série de outros livros.

Além disto, ao organizar o livro em torno dos elementos que julga importantes para a ascensão do samba, Hermano Vianna produz capítulos como “A Unidade da Pátria”, “O Mestiço” e “Gilberto Freyre”, compostos de breves e superficiais resumos de argumentos alheios a respeito de temas de ampla importância. No mesmo sentido, o autor acaba, na necessidade de se basear em dados levantados por outros pesquisadores, por vezes se afastando perigosamente do contexto estudado. Como a bibliografia sobre o contexto cultural carioca dos anos 20 não é das mais extensas, o autor acaba sendo obrigado a ir buscar no modernismo paulistano muitos exemplos de um “interesse por coisas nacionais” que não necessariamente seria igual nas duas cidades. Flagrante neste sentido é o caso, destacado pelo autor, da encenação em São Paulo, no ano de 1919, de uma peça de conteúdo nativista em que os membros das mais tradicionais famílias paulistanas se vestem de sertanejos. Este evento, estudado por Nicolau Sevcenko1, é bastante ilustrativo de um processo da construção de uma identidade paulista, mas pouco ou nada diz a respeito da elevação do samba ao status de símbolo nacional. Porém, na falta de exemplos do mesmo porte disponíveis na bibliografia sobre o Rio de Janeiro no mesmo período, o autor foi levado a buscar, em função de sua opção de não realizar sua própria pesquisa, exemplos que dizem respeito a um outro contexto, ainda que no mesmo período.

Sendo levado a um contexto diferente do que aquele que deveria lhe interessar, Hermano Vianna deixa de atentar para múltiplas experiências da cidade do Rio de Janeiro, que tiveram seu papel na difusão do samba e de sua concretização como elemento aglutinador da identidade nacional. Uma delas, a ligação entre modernistas cariocas e a “cultura popular”, balizada por outras questões relativas ao contexto da Capital Federal2. Outro lado desta moeda é a flagrante ausência da cultura de massas — central na veiculação dos símbolos nacionais — em O Mistério do Samba. A relativa escassez de bibliografia a respeito da massificação cultural no Rio de Janeiro na primeira metade do século impediu o autor de ver a importância deste fenômeno, expresso de modo evidente no caso do teatro de revista, que debatia diariamente a questão da identidade nacional para um público o mais amplo possível em meio à execução de música de todos os tipos, inclusive o samba Aparentemente Hermano Vianna concebe o debate sobre a identidade nacional como um privilégio de poucos intelectuais, sem atentar para o fato de que, para estar envolvido neste debate, bastava viver no Rio de Janeiro entre as décadas de 20 e 30. Este debate estava na imprensa, no teatro de revista, nos circos e em uma série de veículos que atingiam todos os segmentos da população, ao contrário do que sugere o termo “pré-cultura de massas”, com o qual o autor conceitua a difusão cultural no período (p. 22). Em resposta ao pouco papel dado pelo autor à cultura de massas, pode-se lembrar o fato de que no mesmo momento em que o samba explodia como ritmo de grande sucesso, outros ritmos sincopados, bastante apropriados para a dança, também chegavam ao sucesso pela via da cultura de massas, como é o caso flagrante do jazz e de outros ritmos americanos, que corriam o mundo, incluindo o Brasil, naquele momento. As exigências da cultura de massas por ritmos “dançáveis” é um elemento que não deve ser subestimado ao se estudar o sucesso do samba.

Talvez em função de desconhecer a profundidade da importância deste processo de massificação cultural no debate sobre os símbolos nacionais, o autor tenha atribuído um papel tão grande ao pensamento de Gilberto Freyre em um livro sobre o samba. É certo que, como Hermano Vianna observa, Gilberto Freyre teve um papel central no processo de criação de uma unidade nacional “mestiça” (p. 14). Contudo, associar tão fortemente a ascensão do samba a Freyre acaba por refletir uma idéia muito genérica de “busca por coisas nacionais”, que acaba por englobar o regionalismo de Freyre, o nativismo sertanejo que se destaca em São Paulo, e a glorificação do samba como símbolo nacional no Rio de Janeiro, três movimentos ocorridos em um mesmo período centrados na valorização do que seria “tipicamente brasileiro”, mas que não necessariamente refletem projetos que mantenham uma concordância de princípios entre si. Assim, esta genérica “busca por coisas nacionais”, com que Hermano Vianna busca explicar todo o debate sobre o “nacional” e o “popular” nas décadas de 10, 20 e 30, acaba por explicar pouco ou nada. Haja vista que se o nativismo paulista também é parte de um contexto de valorização do “nacional”, serviu também como origem de duras críticas a uma “cultura carioca”, na qual o samba estaria incluído por parte de setores do modernismo paulistano3.

Outra opção teórico-metodológica do autor, que acabou por limitar o alcance de seu livro, é a pouca atenção dedicada ao samba, que acaba funcionando como mero representante de um contexto cultural mais amplo de “busca por coisas nacionais”, contexto este que determina totalmente os sentidos do samba como símbolo nacional nos anos 20 e 30. Aqui não se nega a possibilidade de realizar um estudo que utilize o samba como “campo privilegiado onde é possível perceber determinados aspectos do debate sobre a definição da identidade brasileira” (p. 33). Contudo, é necessário sublinhar o fato de que nenhuma especificidade é conferida à música popular no amplo contexto cultural que Hermano Vianna desenha, acabando por dissolver esta importante manifestação artística em um processo mais amplo que lhe determina totalmente o sentido. Com isto, o autor acaba transformando seu objeto em um mero representante de um contexto mais amplo, transformando o tradicional determinismo socioeconômico — com que a bibliografia tende a retratar a identidade nacional e a música popular — em um determinismo sociocultural, menos distante do objeto, mas que igualmente lhe retira qualquer grau de autonomia.

A rigor, é possível mesmo notar que o autor se interessou muito pouco em conhecer a fundo os processos específicos da música popular que estuda. Talvez isto possa ser considerado secundário, mas não é difícil identificar que o autor em diversas passagens torna-se presa de seu diminuto conhecimento dos matizes do universo musical da capital federal, ao diluir toda a música feita por negros na categoria “samba”. É muito fácil notar que este termo estava longe de ter um sentido claro nos anos 20, e ainda era aplicado a ritmos rurais ou utilizado no sentido mais amplo de festa ou dança. Uma conseqüência disto é o grande destaque dado a Pixinguinha, Donga e os Oito Batutas, compositores e executores de uma infinidade de ritmos rurais, urbanos e estrangeiros, que nunca tiveram ênfase no samba em suas carreiras. Porém, sendo negros e cariocas, o autor apressadamente os enquadrou como “sambistas”, apontando Pixinguinha, Donga e Patrício Teixeira como definidores da música que seria considerada “a partir dos anos 30, como o que o Brasil tinha de mais brasileiro” (p. 20). Infelizmente o autor não poderia listar 3 ou 4 sucessos destes três músicos cariocas que pudessem ser tidos como sambas, em especial no período apontado, a década de 30. Com isto, valoriza como decisiva na consolidação do samba a atuação de compositores de choros e valsas, como Pixinguinha. Aqui tem-se a prova do risco indiscutível da ausência de reconhecimento de fatores que são específicos ao objeto estudado. Com tudo isto, é bastante possível que ao fim do livro, o leitor de O Mistério do Samba se sinta plenamente convencido de que havia, no período estudado, uma demanda por um ritmo que pudesse ser enquadrado como “tipicamente nacional”. O que fica no ar é a pergunta: E por que o samba veio ocupar este espaço, em vez de qualquer outro ritmo urbano ou rural existente na mesma época? Havia no período uma enorme diversidade de ritmos “populares”, e o fato de a primazia de “ritmo nacional por excelência” ter sido dada ao samba não é algo que se explica por si só. Aparentemente tal idéia não ocorreu ao autor, que unifica toda esta diversidade musical popular do período sob o rótulo “samba”.

Um último elemento a ser ressaltado é a ausência de um sentido mais acurado de contexto histórico ou espacial da parte do autor. Buscando demonstrar a plausibilidade da presença de membros da elite na produção do samba como símbolo nacional, Hermano Vianna nos leva a uma descrição de uma festa em Salvador no ano de 1802 (p. 37), no intuito de mostrar uma “tradição” de contatos entre elite e música popular. Contudo, é possível notar que o autor opera com um conceito restrito de “tradição”, pois a existência de interação cultural na Bahia Colonial em nada garante a existência do mesmo fenômeno em tempos e espaços inteiramente diversos. Não é necessário aqui argumentar longamente a favor da idéia de que qualquer tradição é dinâmica e pode ser alterada por conjunturas específicas. Na verdade, um mérito do autor é demonstrar o tipo de espaço em que se deram estas interações ao longo do tempo. Mas não reconhece que isto pouco nos informa sobre o Rio de Janeiro nos anos 1920 e 1930.

Ausência de pesquisa em fontes originais, pouco interesse pelas especificidades do objeto estudado (como a massificação cultural, no caso do samba), contextualização histórica insuficiente. Estes são alguns problemas da abordagem realizada por Hermano Vianna. Porém, estes problemas, que devem estar na mente de qualquer pesquisador interessado em qualquer pesquisa na área de história ou ciências sociais, materializaram-se concretamente apenas quando este autor finalmente livrou-se da aplicação dos velhos esquemas economicistas na música popular. Por muito tempo acreditou-se que o abandono de determinismos no estudo da música popular e a adoção de novos pressupostos seria o caminho para o avanço na pesquisa sobre identidades sociais e música popular. Ao trilhar este caminho, Hermano Vianna resolveu de vez este problema. Entretanto, acabou revelando novos problemas em sua abordagem, e o desafio que se impõe é o da superação dos problemas aqui apontados na constituição futura de uma nova bibliografia a respeito deste assunto importante e intensamente discutido em tempos recentes.

Notas

1 SEVCENKO, Nicolau. Orfeu Extático na Metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, pp. 240-244.

2 Ver o caso de Manuel Bandeira em GARDEL, André. O Encontro Entre Bandeira e Sinhô. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1996.

3 Ver o exemplo de VELLOSO, Mônica. “A ‘cidade-voyeur’: o Rio de Janeiro visto pelos paulistas”. In Revista Rio de Janeiro. Niterói, 1986, nº 4, pp. 55-65.

Tiago de Melo Gomes – Doutorando Unicamp/Fapesp.

Acessar publicação original

[IF]