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WikiLeaks: a guerra de Julian Assange contra os Segredos de Estado – ASSANGE (CTP)
ASSANGE, Julian. WikiLeaks: a guerra de Julian Assange contra os Segredos de Estado. [?]:Editora Verus, 2011, 336 p. Resenha de: CRUZ, Carole Ferreira da. Ciberativismo planetário: Revelações Sobre a Parceria Entre o WikiLeaks e a Mídia Internacional. Cadernos do Tempo Presente, n. 07 – 07 de janeiro de 2012.
Mais de meio milhão de documentos confidenciais reunidos numa gigantesca base de dados que revelou ao mundo os bastidores da diplomacia mundial e os detalhes das obscuras guerras do Afeganistão e do Iraque, no maior vazamento de informações confidenciais da história da humanidade. Esse é o conteúdo central do livro WikiLeaks: a guerra de Julian Assange contra os Segredos de Estado (Editora Verus, 2011, 336 páginas), escrito pelos repórteres investigativos do jornal britânico The Guardian, David Leigh e Luke Harding.
A divulgação dos arquivos secretos produzidos pelo Departamento de Estado e o Exército norte-americanos é resultado de uma complexa parceria entre o WikiLeaks – organização que usa a Internet para denunciar práticas corruptas e abusivas de governos, empresas e instituições – e cinco veículos de credibilidade internacional: os jornais The Guardian, The New York Times, Le Monde, El País e a revista alemã Der Spiegel. Mais tarde, outros entraram no acordo para fazer uma cobertura localizada dos conteúdos dos telegramas diplomáticos, como a Folha de São Paulo e O Globo.
O livro é na verdade uma grande reportagem, embora levemente romanceada. Ancorado na linguagem jornalística clássica, se propõe a contar como os segredos governamentais envolvendo a maior superpotência do planeta tornaram-se públicos, mas sem deixar de contextualizar os fatos antecedentes e os desdobramentos de um dos maiores furos jornalísticos de todos os tempos. No decorrer da narrativa, ganham destaque duas figuras centrais: o criador do WikiLeaks, Julian Assange – um misto de hacker, jornalista e ciberativistaII – , e o soldado inconformista Bradlley Manning, suspeito de ter vazado os documentos.
Os primeiros vazamentos foram sobre os diários de guerra do Afeganistão e do Iraque, mas o melhor estaria por vir em novembro de 2010: a divulgação dos cerca de 250 mil telegramas diplomáticos, que se fossem impressos corresponderiam a uma biblioteca com 2 mil livros – algo impensável de analisar, contextualizar e editar sem os recursos da tecnologia digital. A correspondência oficial oferece um mosaico da política do início do século XXI e expõe, sob a ótica estadunidense, crimes, corrupção, pressões, conspirações, negociatas e toda sorte de situações nada éticas e muito constrangedoras envolvendo países dos cinco continentes.
No rol das revelações mais contundentes estão a ordem dos EUA para que seus funcionários espionassem a ONU e a definição da Rússia como um “estado mafioso”, vinculado a atividades como tráfico de armas, lavagem de dinheiro, enriquecimento pessoal, subornos e desvios de dinheiro, com conexões no governo do então presidente da Itália, Silvio Berlusconi. Foram citadas ainda estruturas corruptas no Sudão e atividades criminosas envolvendo grandes corporações, como a gigante do petróleo Shell, que teria infiltrados no governo nigeriano para coletar informações privilegiadas de atividades oficiais.
Como se não bastasse o fato de deixar os Estados Unidos em situação delicada perante a comunidade internacional, tais revelações provocaram a queda dos embaixadores na Líbia e no Turcomenistão e, segundo tese levantada pelos repórteres do The Guardian, teriam ajudado a insuflar os levantes populares que culminaram com a Primavera Árabe. A revolta popular que varreu parte do Oriente Médio e da África começou no final de 2010 na Tunísia – logo depois que o WikiLeaks vazou telegramas sobre a corrupção no regime -, e culminou com a queda do presidente Ben Ali.
Reação americana O site foi taxado de “organização terrorista estrangeira” e alguns segmentos da direita conservadora americana pediram a morte de Assange. Pressões externas levaram o WikiLeaks a sofrer um boicote de empresas como Bank of America, MasterCard e Amazon, com fechamento de contas e domínios, impedimento de movimentações financeiras e remoção de servidores. Numa das passagens de maior adrenalina, foram descritos sucessivos ataques de serviços de inteligência contra a organização – que resistiu devido à proliferação das redes espelho (cópias com outro endereço). A contraofensiva veio pelas mãos do Anonymous, uma popular rede hacktivistaIII que coordenou ataques contra quem aderiu ao boicote.
Entre a divulgação dos telegramas e a repercussão no mundo, o livro dá uma pausa para esclarecer os detalhes sobre uma controversa acusação de assédio sexual que Assange sofreu na Suécia – que o fez ficar desde então em prisão domiciliar na Inglaterra e travar uma luta nos tribunais para evitar sua extradição. Outro aspecto levantado diz respeito ao posicionamento contraditório americano sobre liberdade de informação na era da Internet. Em janeiro de 2010 a secretária de Estado Hillary Clinton fez um discurso ressaltando o potencial das publicações digitais para a transparência e a democracia mundial.
Onze meses depois, surpreendida pela divulgação dos documentos confidenciais, voltou atrás ao afirmar que aquilo era “não apenas um ataque aos interesses da política estrangeira dos Estados Unidos, mas um ataque à comunidade internacional”. E é justamente esse potencial libertador e democratizador da Internet que chama a atenção para um novo tipo de ativismo político, construído na apropriação de ferramentas com uma interface cada vez mais simples, acessível e de baixo custo.
A ascensão vertiginosa do WikiLeaks é mais um sintoma das profundas transformações na sociedade num mundo cada vez mais interconectado. Mais do que nunca, a tecnologia digital baliza as práticas sociopolíticas. “Os movimentos sociais do século XXI, ações coletivas que visam a transformação de valores e instituições da sociedade, manifestam-se na e pela Internet”. (CASTELLS, 2003, p. 115). As cidades e instituições ampliam-se para o ciberespaço, que surge como um “espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial dos computadores” e constitui “um objeto comum, dinâmico, construído, ou pelo menos alimentado, por todos que o utilizam” (LÉVY, 1996, p. 128).
Surge a possibilidade de quebrar o monopólio da grande mídia na divulgação da informação, fortalecer os veículos alternativos e ajudar a forjar uma opinião pública organizada em espaços virtuais “multi-mídias”. Nesses espaços, as “produções se dão de forma articulada e cooperativa, cujo produto final é exibido de forma pública e livre, para públicos específicos, que ao mesmo tempo são mídias para outros públicos”, onde “não só os usuários podem conectar qualquer informação antiga que esteja na rede com uma atual; como eles podem determinar o alcance de uma informação atual, replicando-a por diferentes interfaces (ANTOUN & MALINI, 2010, p. 7).
Diários de guerra O que mais impressiona nos diários de guerra é que esses relatos escritos no calor da batalha ajudam a contar a história oculta de um conflito obscurantista e polêmico. Embora os governos dos EUA e da Inglaterra tenham adotado a estratégia de não revelar o número de baixas e minimizar os incidentes envolvendo civis, os relatórios vazados serviram de base para o levantamento de organizações independentes, como a ONG Iraq Body Count.
Acredita-se que pelo menos 108.501 inocentes tenham sido mortos em solo iraquiano até 2010. As estatísticas oficiais dão conta de apenas 66.081, número considerado sub-dimensionado por várias razões, entre as quais o fato de vários mortos terem entrado para os registros como “combatentes inimigos”. O maior exemplo são os dois jornalistas da Reuters que aparecem num vídeo sendo atingidos pela artilharia do helicóptero Ah-64 Apache, culminando com a morte de 12 pessoas, sendo duas crianças – uma das primeiras revelações do WikiLeaks antes do grande vazamento.
A estrutura de funcionamento da organização é outro aspecto notável que faz dela praticamente indestrutível e completamente imune a ataques legais ou cibernéticos em qualquer jurisdição. De acordo com Leigh e Harding, os laptops do WikiLeaks têm criptografia em nível militar e são algemados em computadores remotos sobre seu controle.
Criou-se assim uma curiosa “organização móvel que podia ser empacotada e desempacotada em questão de horas”. No livro-reportagem, os diários de guerra do Iraque serviram ainda por mostrar ao mundo uma incômoda contradição: o aumento vertiginoso das torturas realizadas após a deposição de Saddam Hussein. Esse dado fez cair por terra o discurso de que as forças de coalizão iriam salvar o Iraque das atrocidades cometidas durante a sangrenta ditadura no país. A omissão das tropas americanas diante da barbárie conduzida pelas autoridades iraquianas durante a ocupação foi o estopim para encorajar o soldado e analista de inteligência Bradley Manning a vazar os documentos secretos.
Apresentado logo no segundo capítulo, o jovem servia no Iraque na época em que teve acesso aos arquivos confidenciais. Descrito como inteligente e politizado, influenciado pela cultura hacker de Boston, não tardou a passar por uma crescente desilusão com o Exército e a política externa americana. Seu inconformismo se exacerbou a medida que as contradições da guerra ficavam mais evidentes. Depois de oito meses preso na base de Quântico, na Virgínia, onde teria passado por tortura e maus tratos, foi transferido para o Kansas. Está sendo acusado por um tribunal militar de “conluio com o inimigo”, antes do julgamento no qual pode ser condenado à prisão perpétua.
Personagem enigmático O enigmático Julian Assange é definido como o pioneiro no uso da tecnologia digital para desafiar estados autoritários e corruptos. Suas habilidades como hacker e criptógrafo, desenvolvidas ainda na adolescência, o possibilitaram criar métodos para publicar segredos mundiais sem correr o risco de ataques legais ou tecnológicos. A infância errante na Austrália, motivada por uma mãe rebelde, o obrigou a mudar de escola 37 vezes e a aprender a ser seu próprio professor. A educação familiar incomum talvez explique alguns traços da sua personalidade, apontada como imprevisível e intempestiva.
O livro joga um turbilhão de informações para que o próprio leitor descubra quem é o criador do WikiLeaks – justaposição do termo wiki, em referência à idéia de colaboração digital da Wikipédia, e leak, que significa vazar, em inglês. Messias das novas mídias ou ciberterrorista? Idealista da informação e dos vazamentos em massa ou vaidoso enrustido e anarquista digital em busca de popularidade? Cada um terá um painel completo desde a criação da organização, em 2006, até os surpreendentes acontecimentos que se seguiram para tentar tirar suas próprias conclusões.
Os autores fazem valiosas reflexões sobre os impactos da Internet no jornalismo. Algumas tendências sobre o futuro da profissão foram apresentadas em diversos capítulos, como o desenvolvimento de suportes para pesquisar e apresentar uma base de dados com um volume gigantesco de arquivos. Nas páginas finais, são analisadas a repercussão das matérias e o enfoque de cada veículo sobre o vazamento – algo só comparável aos Papéis do Pentágono: documentos sigilosos sobre a Guerra do Vietnã revelados em 1971. Ao final, há um apêndice de quase 100 páginas com os telegramas diplomáticos mais importantes, devidamente comentados.
Após a passagem do furacão WikiLeaks, as autoridades dos EUA começaram dedicar mais atenção ao ciberespaço. Políticos americanos propõem uma reengenharia da Internet para interferir na estrutura não-hierárquica da rede, de modo a promover a ascensão de um pólo centralizador do fluxo informacional. “Com o vazamento dos telegramas, a exibição de vídeos comprometedores, os uploads de dossiês sobre os rumos supostamente secretos das relações internacionais, a sensação de espanto é quase inevitável. Porém, há também uma histeria, existe uma interpretação belicista perigosamente alimentada. Há um medo politicamente proveitoso”. (MAYNARD, 2011, p. 141).
No mundo digital globalizado, estão postas novas condições de sustentação de uma sociedade com sede de transparência, em que a informação nunca foi tão valiosa e acessível ao cidadão comum. O ciberativismo está aos poucos redefinindo a forma de fazer política, as relações internacionais, o jornalismo e o exercício da cidadania. A cooperação digital e os vazamentos em massa parecem apontar para um modelo inédito de mobilização que encontra eco entre todos aqueles que buscam uma causa para apoiar. Os ativistas da informação chegaram e nada será com antes.
Notas
2 Ativista cuja ação política se utiliza da apropriação das novas tecnologias na intenção de propor formas de protesto a partir do ciberespaço (GONÇALVES, 2008), não restringindo, no entanto, as ações a essa esfera de atividade.
3 Hackers que exercem o ativismo político na internet ao usar suas habilidades de programação em ações eletrônicas diretas para promover a mudança social.
Referências
ANTOUN, H.; MALINI, F., Ontologia da liberdade na rede: as multi-mídias e os dilemas da narrativa coletiva dos acontecimentos, In: XIX Encontro da Compôs, Rio de Janeiro. Anais. Rio de Janeiro, 2010.
CASTELLS, Manuel. A galáxia da internet: reflexões sobre a internet, os negócios e a sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
CASTELLS, Manuel. A ciberguerra do WikiLeaks. Disponível em:http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/a_ciberguerra_do_wikileaks
GONÇALVES, F.; BARRETO, C.; PASSOS, K., Media activism networking in Brazil: the emergence of new sociabilities and forms of resistance in the internet, In: Internet Research 9.0: Rethinking community, rethinking place, University of Copenhagen, 2008.
LÉVY, Pierre. O que é o virtual. São Paulo: Ed. 34, 1996b.
LEIGH, David; HARDING, Luke. WikiLeaks: a guerra de Julian Assange contra os Segredos de Estado.Campinhas (SP): Verus, 2011.
MAYNARD, D. C. S.. Quem tem medo do WikiLeaks. In: Escritos sobre História e Internet. Rio de Janeiro: Fapitec/Multifoco, 2011.
Carole Ferreira da Cruz – Mestranda em Comunicação pela Universidade Federal de Sergipe, com formação em jornalismo e pósgraduação em História Contemporânea e em Jornalismo e Crítica Cultural pela Universidade Federal de Pernambuco. Editora dos Cadernos do Tempo Presente,(CTP/UFS) e integrante do Grupo de Estudos do Tempo Presente (GET/CNPq/UFS).