História Política: problemas e estudos / Anos 90 / 2016

A história política, vinculada às relações de poder político-institucionais que permeiam as sociedades e o Estado em suas múltiplas dimensões, renovou-se muito nas últimas décadas, ganhando cada vez mais impulso e importância. Neste dossiê, a revista Anos 90 abriu-se para contribuições concernentes a recortes temáticos que pudessem se enquadrar nesta área de estudos históricos, tanto para os problemas teóricos e metodológicos enfrentados pelos pesquisadores quanto para os estudos de objetos característicos desse campo de análise. Recebemos diversas contribuições de várias partes do país e do exterior, pelas quais agradecemos aos pesquisadores que se dispuseram a apresentar seus originais a este dossiê. Depois das avaliações realizadas, restaram os nove artigos que se seguem.

Os artigos estão apresentados em uma ordem lógica e cronológica ao mesmo tempo. Assim, o dossiê inicia com a contribuição de Maria Helena Capelato. Em História do Brasil e revisões historiográficas, a autora busca refletir sobre questões teóricas e metodológicas a respeito da escrita da história de modo geral e, em particular, sobre os seus usos políticos. Desse modo, o trabalho toma uma dimensão ético-política que traz importantes contribuições para o debate tão atual acerca dos lugares de produção de história, seus usos sociopolíticos e o papel dos profissionais e não profissionais nestas tarefas científicas e / ou culturais.

O segundo texto, das professoras portuguesas Isabel Maria Freitas Valente e Maria João Guia, trata da premente e espinhosa questão das políticas de imigração na União Europeia, centrado no exame da legislação respectiva. Ao mesmo tempo em que procura historiar as contribuições legislativas mais gerais a respeito do tema, ao final, as historiadoras concentram-se na temática propriamente portuguesa.

Luiz Alberto Grijó, por sua vez, aborda as empresas de meios de comunicação brasileiras, traçando um panorama amplo, desde o período pré-64 até os dias atuais. O artigo explora a transformação paulatina dos meios. Desde a situação anterior, na qual eram espécies de apêndices da luta política mais ampla, até o momento atual, em qum sequestraram a democracia em nome de seus próprios valores apresentando-se como protagonistas centrais no jogo político-partidário, inclusive agindo para a deposição da presidenta eleita em 2014.

Esteban Javier Campos, em seu artigo, propõe uma história comparada sobre as práticas e concepções políticas da Ação Popular e dos Montoneros tomando suas semelhanças e suas diferenças. O autor parte da análise desses movimentos a partir de suas origens católicas, suas aproximações com o socialismo e seus redirecionamentos entre linhas maoísta e peronista, em meio a reflexões sobre processos políticos em escala nacional.

Por sua vez, Larissa Rosa Correa e Paulo Roberto Ribeiro Fontes dedicam-se, através da análise da produção historiográfica mais recente sobre os trabalhadores e os movimentos sindicais brasileiros na época da Ditadura Militar (1964-1985), a observar “um certo apagamento” da história e da presença desses extratos sociais e suas organizações de classe na referida literatura. Visam, com isso, a lançar luzes em aspectos e lacunas ainda existentes a propósito do regime instaurado em 1964.

Adriane Vidal Costa procura na “prática epistolar de Júlio Cortazár”, em seu período mais frutífero, os anos de 1960 e 1970, instrumentos de compreensão para a formação de redes de sociabilidades intelectuais; de suas ideias políticas como um escritor engajado, ao mesmo tempo em que visa a recuperar o ambiente cultural de discussão literária e as funções sociais do intelectual em meio à defesa que Cortazár promovia do socialismo e sua condenação das ditaduras militares latino-americanas do momento.

O partido do Rio Grande: redes de relações, mediação e revolução de 1930, de Cássia Daiane Macedo da Silveira, discute o papel e a participação dos chamados intelectuais nos acontecimentos que envolveram a Revolução de 1930, especialmente nas articulações que acabaram levando a ela. Cássia centra-se na questão fundamental destes homens de letras como mediadores culturais e sociais e nos efeitos políticos que isso possibilitava, abordando os casos de dois deles: o carioca Rodrigo Otávio Filho e o gaúcho Felipe d’Oliveira.

Carla Brandalise, em seu artigo, remete-se às políticas internacionais da Itália sob o fascismo voltadas para a América Latina na década de 1920. Com efeito, assiste-se nesses anos a um recrudescimento dos interesses italianos sobre essa região, a partir do que se estabelece estratégias, pacíficas, de maior inserção econômicas e político-culturais. Para tanto, joga-se com a questão da latinidade intrínseca ao continente e com a perspectiva de que a Itália constitui a verdadeira líder dos povos latinos, dado que se outorga como lócus original e atemporal da romanidade. Suas ambições, portanto, vão para além da maior interação com sua comunidade emigrada.

Rodrigo da Rosa Bordignon, que encerra o dossiê por ser o que aborda o momento cronologicamente mais recuado, analisa as narrativas dos homens de letras, de comentadores, políticos e pensadores do Brasil na virada do século XIX para o XX. Enfoca especificamente a clivagem entre as posições “monarquistas” e “republicanas” a partir da perspectiva não de reificá-las, mas de desvendar os mecanismos que levaram a estas tomadas de posição, os quais ajudam a revelar qual ou quais concepções de política estavam em jogo e sua relação com os critérios de classificação e ordenação sociais e ideológicos e seus modos de legitimação.

Carla Brandalise.

Luiz Alberto Grijó.


BRANDALISE, Carla; GRIJÓ, Luiz Alberto. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 23, n. 43, dez., 2016. Acessar publicação original [DR]

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História e Memória / Anos 90 / 2007

São incontáveis os títulos de livros ou periódicos temáticos com o enunciado História e Memória. Se apresentamos ao leitor mais um conjunto de textos sobre o assunto é porque, mais que um tema que continua importante, o assunto parece ter se tornado emblemático da atividade do historiador. Se, como afirma Le Goff, (1992, p. 426), tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas, não seria uma tarefa dos historiadores elucidar, nos mais diferentes contextos, quem são os senhores da memória e desvendar o que foi relegado ao esquecimento? Tendo acompanhado os desenvolvimentos da memória em diferentes épocas históricas e sua ampliação e diversificação na sociedade contemporânea, sua provável resposta a uma questão semelhante não deixaria dúvidas: Cabe, com efeito, aos profissionais científicos da memória, antropólogos, historiadores, jornalistas, sociólogos, fazer da luta pela democratização da memória social um dos imperativos prioritários da sua objetividade científica (LE GOFF, 1992, p. 477). Em Pierre Nora encontramos uma contraposição semelhante, explicitada no artigo de Benito Schmidt: enquanto a memória teria um caráter afetivo e sacralizante, a história supõe um enfoque racional e laicizante. Portanto, podemos tratar de questões de memória e história separadamente, mas se, freqüentemente, os termos formam uma dupla é porque, quando operando em um mesmo campo, há uma grande probabilidade que atuem na contramão um do outro. E as particularidades de um são relativas às do outro. Porque a memória é dominadora, a história deve ser democrática; porque a memória é afetiva, a história deve ser científica, objetiva e racional; se a memória tende para o sacro, a história deve apontar sua base humana.

Há um campo da história que precisou enfrentar essas questões de maneira mais aguda que outros, o da História Oral. A idéia de que a história oral fosse mais democrática norteou a visão daqueles que impulsionaram internacionalmente a moderna história oral (THOMPSON, 1987, p. 10). Mas logo tal concepção foi criticada (PORTELLI, 1981, p. 104). Com o refinamento dos debates podemos dizer, então, que a história oral contribui para a democratização da memória, de uma forma certamente muito importante e diferenciada da história baseada em documentos escritos, mas, como qualquer outra, a história oral não é essencialmente democrática. Contudo, o entusiasmo inicial dos historiadores orais por estarem contribuindo para versões mais matizadas da história, por trazerem à cena o relato dos que vivenciaram os acontecimentos e processos, cedeu espaço a uma reflexão que surgiu com o progresso das discussões metodológicas: a visão dos entrevistados não é diferente apenas de outras memórias construídas, ela também costuma ser diferente da interpretação do historiador, aquele mesmo que depende da boa-vontade do entrevistado. Em suma, o historiador oral, ao se pretender científico, estará desconstruindo não apenas memórias sistematizadas, produzidas a alguma distância, mas memórias que ele demandou e que ele obteve por métodos dos quais não está ausente uma certa dose de sedução. Os debates, portanto, são complexos e exigiram um aperfeiçoamento dos conceitos e das interpretações. Para tal refinamento da discussão no campo da história oral no Brasil, tem sido fundamental a reflexão de Verena Alberti, conhecida também por alguns dos melhores textos de sistematização dos procedimentos da história oral (ALBERTI, 1990; ALBERTI, 2005). Neste número de Anos 90 contamos com artigo de sua autoria, enfocando um campo muito próximo ao da história oral, o da tradição oral, em um texto que nos traz um exemplo contundente de luta pela democratização da memória, ou, mais especificamente, a luta pelo reconhecimento de direitos dos maoris da Nova Zelândia dos dias de hoje, que se legitima pela afirmação de uma determinada memória.

Os diferentes modos de construção da memória são um dos temas que têm se desenvolvido com ampliação dos estudos sobre memória nas últimas décadas. Se Capistrano de Abreu passou a ser reconhecido por muitos como o mais importante historiador brasileiro das décadas iniciais do século XX, e se foi transformado em modelo de intelectual e símbolo da nacionalidade, algum trabalho de construção de memória operou-se sobre sua figura. De uma vasta memorialística construída em torno do autor (necrológios, artigos, resenhas, biografias, sonetos, retratos, charges, fotografias, dissertações e teses, além de cartas do próprio Capistrano que contêm reflexões sobre si) Rebeca Gontijo busca nos textos biográficos sobre o estudioso os elementos para compreender como a identidade de um indivíduo pode ser apresentada como símbolo da nacionalidade. Retomando Le Goff (1992, p. 476): A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia. Também sobre a relação entre memória e construção de representações identitárias trata o texto de Ernesto Seidl, sendo os construtores, neste caso, agentes vinculados à Igreja católica do Rio Grande do Sul, que atuam em diferentes esferas sociais (religiosa, científico-acadêmica, intelectual, artística), e os grupos étnicos oriundos da imigração alemã e italiana, aqueles sobre quem se escreve uma história, dos quais a memória que se busca divulgar não sem disputas é a memória do êxito.

Entretanto, não poderia um texto memorialístico ser apropriado pelo historiador, não ou não apenas para sofrer uma desconstrução, para este apontar-lhe as elaborações afetivas, mas como aquilo que é básico do trabalho científico do historiador, como fonte histórica? Analisando a autobiografia póstuma do jornalista Samuel Wainer, Minha razão de viver, Luís Carlos Martins propõe que ela possa ser vista como um documento importante para compreendermos a criação do jornal Última Hora e muitos acontecimentos fundamentais do Segundo Governo Vargas. Memórias escritas serão sempre um documento importante, mesmo que seu autor não tenha sido alguém importante ou não tenha convivido com personagens históricos. Infelizmente, no Brasil, não dispomos de autobiografias ou diários de pessoas do povo, como os escritos por artesãos calvinistas ou líderes religiosos ingleses no século XVIII, estimulados a registrar os sinais de sua fé pessoal ou da de sua comunidade, munindo os historiadores dos séculos seguintes de uma preciosa fonte de pesquisa sobre os trabalhadores (ver THOMPSON, 1987).

O período da ditadura militar brasileira, por sua vez como em outros regimes em que o arbítrio leva ao encarceramento, à perda de direitos, ao exílio e à morte , ocasionou, passados quarenta anos, candentes batalhas da memória, que extrapolam os diretamente envolvidos, as vítimas e os agentes do regime repressivo, dizendo respeito a toda sociedade. Para o campo histórico, como mostra o artigo de Benito Schmidt, a presença de historiadores que foram também testemunhas cobra aos estudos de memória reflexões que dêem conta de tais imbricações.

Nos artigos diversos, dois assuntos que abordam fenômenos do processo de urbanização de um país ainda predominantemente rural. No primeiro caso, em uma das capitais Porto Alegre de um Brasil que organizava sua novel vida republicana, tornava-se necessário, em função de projetos de saneamento, regular o comércio e a prestação de serviços ambulantes. Regulamentar significa restringir, e as populações atingidas por tais medidas não deixaram de reagir. No outro caso, na região de colonização alemã, o prefeito de uma cidade recém-emancipada Novo Hamburgo narra, em 1931, através das páginas do jornal que representava a municipalidade, uma história segundo a qual os primeiros colonos da região teriam enfrentado, cem anos antes, um grupo de índios comandados por um escravo fugido. As velhas representações da superioridade branca européia, associadas a uma pitada de nacionalismo romântico (contaram com a ajuda de um cacique amigo) são utilizadas para a afirmação regional de descendentes de imigrantes.

A entrevista de Hugo Bauzá, professor titular de Literatura Latina e Artes na Universidade de Buenos Aires, com Jean Jacques Wunenburger, da Faculdade de Filosofia da Universidade de Lyon, inaugura a abertura de Anos 90 à publicação de artigos em espanhol, com alteração de nossas normas editorais. Tal procedimento apenas consolida o intercâmbio já existente entre nosso programa de Pós-Graduação e os pesquisadores da América espanhola. Em breves palavras, Francisco Marshall apresenta ao leitor o campo de discussão que aproximou Bauzá de Wunenburger.

Por fim, contamos com duas resenhas, uma de Diogo da Silva Roiz sobre a coletânea Fontes Históricas, e outra de Carla Rodeghero sobre a biografia de Jango, escrita por Jorge Ferreira e Ângela de Castro Gomes.

A elaboração deste número contou com a colaboração de mais de vinte pareceristas, cujo trabalho anônimo e generoso nós agradecemos.

Referências

ALBERTI, Verena. História Oral: a experiência do CPDOC. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1990.

______. Histórias dentro da História. In: PINSKI, Carla Bassanezi (org.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2005. p. 155-202.

LE GOFF, Jacques. História e Memória, 2. ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1992.

PORTELLI, Alessandro. The Peculiarities of Oral History. History Workshop, n. 12, p. 96-107, 1981.

THOMPSON, Edward P. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. v. 1.

Regina Weber – Professora do Departamento e do PPG em História da UFRGS. Editora de Anos 90.

WEBER, Regina. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 14, n. 26, dez., 2007. Acessar publicação original [DR]

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África-Brasil / Anos 90 / 2008


Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 15, n. 27, jul., 2008. Acesso apenas pelo link original [DR]

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História e Gênero / Anos 90 / 2007

Faz pouco menos de vinte anos que Joan Scott publicou seu artigo célebre mostrando a utilidade da categoria gênero para a análise histórica (Scott, 1995). De lá para cá, afloraram muitas polêmicas e abriram-se diversos caminhos nas pesquisas a respeito das relações de gênero realizadas por historiadores (as). No que tange às polêmicas, destacam-se os debates entre pesquisadores(as) alinhados(as) com a história social, que enfatizam o papel da experiência e do sujeito na construção cultural da diferença sexual, e aqueles(as) que partem de posições genericamente definidas como pós-estruturalistas, as quais procuram mostrar o próprio sujeito e suas experiências como produtos de práticas discursivas e não-discursivas.1 Em relação aos caminhos abertos, é possível dizer que, depois de uma quase exclusividade das investigações voltadas ao gênero feminino, os(as) historiadores(as) passaram a se preocupar também com as masculinidades e com os chamados “transgêneros”, além de voltarem seu olhar para processos históricos não tão obviamente generificados como, por exemplo, a construção das nações e suas metáforas femininas (a “mãe gentil”) e masculinas (o “herói guerreiro”).

Apesar deste campo de estudos ter se consolidado e institucionalizado – o que pode ser demonstrado pelas inúmeras revistas dedicadas ao tema, pelo surgimento de diversos núcleos de pesquisa, pela realização de numerosas dissertações de mestrado e teses de doutorado que, direta ou indiretamente, lidam com gênero, entre outros indicadores – cabe voltar à pergunta instigante proposta por Scott: será que esse enfoque modificou a nossa forma de encarar a História, de hierarquizar nossos temas e temporalidades, de (re)pensar referenciais teóricos e procedimentos metodológicos? Ou será que gênero continua a ser visto como “mais um tema”, um enfoque “moderno” que pode ser incluído nas coletâneas (de preferência ao final), mas que não modifica a arquitetura das nossas publicações e o nosso entendimento do passado?

Visando contribuir para tal discussão, a revista Anos 90 apresenta um dossiê sobre relações de gênero, no qual é possível vislumbrar essa pluralidade de caminhos e enfoques. O primeiro artigo, de Gil Mihaely, examina, a partir da perspectiva das masculinidades, a noção de domesticidade e seu impacto no mundo do trabalho francês de 1870 a 1910. Eni de Samara Mesquita, André Félix Marques da Silva, Breno Henrique Selmine Matrangolo, Nadia Beyeler e Patrícia Garcia Ernando da Silva, tendo por base um banco de dados construído com informações retiradas de testamentos manuscritos de São Paulo no período de 1840 a 1870, analisam as relações entre senhoras e escravos na era do café. Já Marlene de Fáveri e Anamaria Marcon Venson tratam de práticas culturais e representações construídas por mulheres de diferentes gerações, no sul do estado de Santa Catarina, relativas ao ritual de passagem ligado ao aparecimento da menarca. Por fim, fechando o dossiê, Paulo Pezat aborda a maneira pela qual o positivista religioso gaúcho Carlos Torres Gonçalves procurou aplicar, nas esferas pública e privada de sua vida, os ensinamentos de Comte a respeito do gênero feminino, o “sexo altruísta”.

Na parte geral da Revista, temos os artigos de José D’Assunção Barros sobre a “história da história comparada”; de Bruno Flávio Lontra Rodrigues, a respeito das relações entre História e Literatura, abordando especificamente a obra de Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas; e de Márcia Janete Espig, relativa à presença, nas fontes e na historiografia militar do movimento do Contestado, de ex-operários da construção da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande. Seguem ainda as resenhas de Teresa Malatian do livro de Justo Serna e Anaclet Pons, La historia cultural, e de Diogo da Silva Roiz, do livro de Décio Gatti Júnior, A escrita escolar da História: livro didático e ensino no Brasil (1970-1990).

A partir deste número, retomamos a publicação das edições semestrais e esperamos poder regularizar a periodicidade da Revista. Continuamos os esforços de editores anteriores para adaptar a revista a padrões técnicos solicitados pelos órgãos financiadores e indexadores, sem prejuízo da qualidade intelectual que a tem caracterizado desde sua criação. Nesse momento, a presença do Programa de Apoio à Edição de Periódicos da Pró-Reitoria de Pesquisa da UFRGS tem sido muito importante, não apenas pelo apoio financeiro, mas pelas orientações em questões técnicas, nem sempre previamente conhecidas por nós, docentes. O Portal de Periódicos Científicos da UFRGS2 é tanto um instrumento de divulgação dos periódicos da Universidade, no qual Anos 90 se faz presente, como um canal de assessoria aos editores.

Nosso Conselho Editorial foi ampliado, acompanhando a diversificação das pesquisas desenvolvidas em nosso Programa, o que é um reflexo tanto do aumento do corpo docente, pelo ingresso de novos doutores, quanto da ampliação do número de alunos em nossos cursos de mestrado e doutorado. Agradecemos a todos aqueles pesquisadores que aceitaram nosso convite.

A versão digital da revista, para o que estamos trabalhando, permitirá uma relação mais orgânica com os conselheiros, os articulistas e com os leitores da revista. O portal da Anos 90, 3 vinculado à página do Programa, já está em operação e estamos conjugando esforços para torná-lo mais operacional.

Notas

1. Um resumo desta polêmica encontra-se em Cadernos Pagu, 1994.

2. Portal de periódicos científicos – UFRGS. Disponível em

3. Disponível em

Referências

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & realidade. 20(2): 71-99, julho / dezembro 1995 (original de 1988). Porto Alegre: FACED / UFRGS.

CADERNOS PAGU. Campinas: PAGU – Núcleo de Estudos de Gênero / UNICAMP, n. 3, 1994.

Benito Bisso Schmidt – Professor do Departamento e do PPG em História da UFRGS. Organizador deste número.

Regina Weber – Professora do Departamento e do PPG em História da UFRGS. Editora da revista Anos 90.


SCHMIDT, Benito Bisso; WEBER, Regina. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 14, n. 25, jul., 2007. Acessar publicação original [DR]

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Etnicidade / Anos 90 / 2005

Pode-se dizer que atualmente existe um certo consenso que etnicidade é um tema forçosamente interdisciplinar. No conjunto das ciências humanas, os historiadores chegaram à temática depois de antropólogos e sociólogos e, por isso mesmo, não há como não lançar mão daquilo já desenvolvido, em termos teóricos e metodológicos, nas ciências vizinhas. Numa esquematização bastante simplificada, podemos situar a primazia dos antropólogos e seus estudos, que remontam ao século XIX, de culturas tribais, a etnologia, seguidos pelos sociólogos, particularmente os da Escola de Chicago, que, desde o início do século XX, analisaram contextos urbanos nos quais grupos sociais de origem diversa – diversidade sempre associada a fenômenos de imigração – passaram a dividir o mesmo espaço. Aquelas que podem ser denominadas modernas teorias da etnicidade têm sido desenvolvidas a partir da segunda metade do século XX, impulsionadas por diferentes fenômenos sociais das sociedades contemporâneas: 1) o surgimento do black power, que pôs em cheque as teorias de assimilação desenvolvidas pela Escola de Chicago; 2) o processo de descolonização da África, que deixou aos africanos a tarefa de dividir o poder político em contextos urbanos e aos antropólogos o estudo dos conflitos interétnicos; 3) mais para o fim do século, dois fenômenos, o da globalização, que maximizou as sempre existentes migrações transcontinentais, e o dos novos nacionalismos, muitos deles com base étnica, incentivou a divulgação de teorias já existentes sobre o fenômeno da etnicidade e o surgimento de novas interpretações. É nesses estudos mais recentes que vemos a atuação conjunta de antropólogos, sociólogos e historiadores.

As discussões sobre etnicidade às quais os historiadores engajam-se estão distantes de um gênero de etno-história que estuda grupos tribais e próximas de estudos que se referem a temáticas recorrentes na historiografia, como imigração, nacionalismo e colonização. Mesmo que acontecimentos da Europa contemporânea não tenham expressão na América, como o separatismo étnico-nacionalista, muitos estudos recentes de fenômenos decorrentes do processo imigratório iluminam acontecimentos de outros tempos dos países americanos, para os quais tal processo está presente em vários momentos de sua história: no povoamento das colônias pelos europeus nos séculos XVI-XVIII, na imigração forçada dos africanos, nos que vieram “fazer a América” no século XIX e nas migrações contemporâneas. É por esta razão que as teorizações mais ou menos recentes da identidade étnica têm permitido uma revitalização dos estudos da problemática da imigração e da nação entre os historiadores. Na historiografia brasileira, sem dúvida, isso é visível.

Mas os historiadores não estão num papel passivo de receptores de teorias e formuladores de casos mais antigos. Na verdade, considerando a importância da trajetória histórica e da representação do passado para a formulação identitária, tanto para os grupos étnicos quanto para as nações, antropólogos já estavam fazendo às vezes de historiadores ou lançando mão destes em seus estudos. Pode-se dizer, então, que a temática de estudos étnicos constitui-se atualmente de um campo de investigações que tem acumulado formulações teóricas, conhecimentos e análises com a contribuição de diferentes disciplinas das ciências humanas.

Desse campo de investigações, que tem, de um lado, o dinamismo daquilo que está em gestação, de outro, a ausência de um campo conceitual mais definido – ou mais difundido –, o dossiê preparado para este número de Anos 90 visa ser uma expressão. Pretende-se também, justamente, contribuir para a sistematização de interpretações, noções, temáticas, conceitos, que permitam estabelecer um patamar de comunicação que indispensável para a promoção das discussões.

O texto de Karl Monsma, sociólogo por formação e historiador por ofício, é assaz representativo de como a temática da etnicidade abre novos objetos de estudo para os historiadores. Abolida a escravidão, permanecerá a luta simbólica contra a mesma. A insistência dos negros em serem tratados com respeito mostrará o grau de internalização do sentimento de superioridade dos proprietários brancos. As fazendas de café do oeste paulista, no fim do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, fornecem uma espécie de “laboratório” para o estudo de relações interétnicas. A presença de imigrantes, principalmente italianos, como administradores de fazendas permite outro ponto de observação das representações étnicas presentes no mundo do trabalho e além dele. Como outras pesquisas que buscam retratar o cotidiano de épocas passadas, a fonte principal de Desrespeito e violência: fazendeiros de café e trabalhadores negros no oeste paulista, 1887- 1914 são autos penais.

Temática consagrada pela historiografia, a escravidão também pode ser revisitada pelo enfoque da etnicidade. Utilizando-se da principal proposição de F. Barth, identidade como “categoria de atribuição”, Regiane Mattos busca observar, em São Paulo, no século XIX, como as classificações externas operadas pela Igreja e pelos proprietários de escravos acabam sendo internalizadas pelos africanos. A constatação da autora de que, no Novo Mundo, diferentes grupos descobrem afinidades que “não imaginavam existir quando estavam no continente africano” lembra processo semelhante dos imigrantes que passaram a ser reconhecidos e a se reconhecerem como “teutos” ou “ítalos” e demonstra o constante processo de reelaboração identitária.

As antropólogas Denise Jardim e Roberta Peters propõem uma aproximação com a história por meio da idéia de “tradição”, analisando rituais de casamento de imigrantes palestinos. Num período em que o fenômeno da persistência das identidades étnicas nos quadros dos estados-nação é assunto para o qual historiadores também se voltam, entender como rituais de casamento contribuem para a “fabricação” da coesão social, calcada na noção de uma coletividade dotada de uma origem comum, possibilita dimensionar o grau de enraizamento da identidade étnica nos membros de um grupo que serve de base para tal identificação. A identidade étnica, pode-se dizer, mais do que a identidade nacional, está ancorada na família. Em um dos casamentos acompanhados pela pesquisa etnográfica, a noiva é brasileira e, ao passar pelo ritual do casamento muçulmano com um filho de palestino, ela se torna árabe, mesmo não tendo saído do Estado brasileiro. Para o campo historiográfico que ainda hoje tem, freqüentemente, tratado as formulações identitárias dos diferentes grupos étnicos como previamente estabelecidas – isto é, como “essenciais” –, bastando ao pesquisador recolher números e formas dessa expressão, a sutileza da análise antropológica tem um valor didático.

Os artigos seguintes lidam com uma produção textual que, em maior ou menor grau, é representativa de formas de pensar de épocas e grupos sociais. A própria existência desta produção já indica a possibilidade de indivíduos e grupos sociais refletirem sobre a realidade, expressarem representações ou elaborarem-nas, tentando interferir na sociedade. O conjunto de textos comentado por Sílvio Correa difere da produção examinada nos outros artigos, pois tratam-se de obras publicadas no país de origem dos imigrantes, no caso, a Alemanha, que ora alertam sobre os riscos de perda da cultura alemã, ora registram sua manutenção; dito de outra forma, os emigrados permitem ao conterrâneo viajante a reflexão sobre uma identidade que é também uma alteridade. A condição de viajantes de seus autores não os obrigava a definirem uma identidade de emigrados e, talvez por esta razão, seus relatos não têm o idealismo que encontramos nos discursos dos líderes de comunidades étnicas. Os relatos de viagem registram a existência de dialetos regionais dos lugares de origem (o que aponta uma falta de unidade de imigrantes que posteriormente representaram-se de forma unificada); a vida do colono é retratada mais pela monotonia e privações e do que pelo heroísmo (tal como a saga da imigração desenharia mais tarde). Quando o autor afirma que “não houve uma integração institucionalizada dos imigrantes e seus descendentes durante as primeiras décadas da imigração”, estando o construto da identidade étnica baseado em elementos distintivos como a língua e aparência física, é como se se referisse a uma identidade que era objeto de reflexão dos narradores, mas que estava ainda em estado embrionário para os imigrantes.

Os dois próximos textos, além de analisarem representações, indicam o grau de institucionalização dos grupos étnicos. Por “institucionalização” está se referindo ao fato dos grupos terem adquirido um grau de organização social que lhes permite formar sociedades, publicar periódicos ou editar obras comemorativas, instituir datas comemorativas e, num grau mais elaborado, ter seus próprios intelectuais, cuja produção textual não se destina apenas à comunidade, mas também para a sociedade envolvente. Ancorada em um grupo, a memória coletiva torna-se memória social (Halbwachs, 1990).

Examinando a produção literária da zona colonial italiana do Rio Grande do Sul, Luís Fernando Beneduzi opera com um tipo de interpretação característico dos novos estudos da imigração, qual seja, o de que as representações étnicas são reelaboradas conforme a situação vivenciada pelo grupo “do outro lado do Atlântico”.1 Lembrando Hobsbawm, podemos dizer que todas as tradições, quando examinadas com atenção são, na verdade, muito recentes. Por exemplo, para o autor, a canção Mérica Mérica, que pertence ao folclore da imigração italiana, “não deixa de ser fruto de um processo de revisão da trajetória da imigração, enfatizando o ponto de chegada, ou seja, a vitória”. O cinqüentenário da imigração italiana, em 1925, celebra não apenas a positividade desta imigração, representada, obviamente, pelos seus expoentes mais bem sucedidos, mas a própria lembrança negativa da terra de partida é refeita, afirmando agora a imagem “de uma Itália colonizadora e civilizadora”. A vitória, como sabemos, é o engajamento nos parâmetros econômicos do sistema capitalista, visível apenas no século XX, mas, como o efeito de uma representação é tanto maior quanto mais se oculta sua base real, ela fica ancorada num ethos, cujo origem é tão longínqua no tempo que se tornou imemorial, em outras palavras, passou a constituir uma característica “primordial”.2

Se Haike K. da Silva pode analisar textos que buscam refletir sobre a identidade étnica teuto-brasileira no Rio Grande do Sul já no século XIX, isso não se deve apenas à anterioridade desta imigração no conjunto do que ficou caracterizado como “colonos imigrantes”, mas ao fato de que existiu uma parcela significativa de imigrantes urbanos que ou estabeleceram-se na capital da província ou instalaram-se na área colonial em atividades não rurais (professores, párocos, artesãos). Os que “pensaram a identidade”, como diz a autora, e o fizeram por escrito para serem lidos por seus contemporâneos estavam, invariavelmente, ligados a uma instituição ou entidade: igreja, escola, editora ou jornal, sendo que as últimas entidades podiam ser derivadas de uma do primeiro grupo. A formulação intelectual escrita de uma identidade étnica depende da existência tanto de “mentores” quanto de um público receptor de tais elaborações e de canais já criados de divulgação destas publicações. A liderança étnica que Haike Kleber da Silva examina com mais detalhe, J. Aloys Friederichs, condensa várias facetas da trajetória do grupo étnico “alemão”. Trata-se de um empresário bem-sucedido, isto é, seu sucesso econômico habilita-o a ser representante do conjunto dos imigrantes. Foi o presidente, por muitos anos, da mais expressiva entidade associativa recreativa do Sul do País, o Turnerbund (Sociedade de Ginástica), e, como imigrante alemão que se instalava no Brasil, refletiu sobre sua própria condição e sobre a do grupo ao qual estava vinculado. Enquanto os viajantes refletiam sobre uma situação com a qual tinham contato que eles sabiam não ser permanente os intelectuais teuto-brasileiros vivenciavam uma condição da qual suas leituras eram também formas de ação. Portanto, as construções identitárias estão em permanente reelaboração, variando conforme o contexto.

Notas

1. A expressão é tomada de Ellen Woortmann (2000), que fez uma análise exemplar do processo de reelaboração identitária de imigrantes, estudando o caso dos alemães no Rio Grande do Sul.

2. O termo “primordial” é um dos que se tornou indispensável ao linguajar daqueles que estudam etnicidade. Referindo-se ao que é da “essência” dos indivíduos e grupos, primordial opõe-se ao que é “circunstancial” ou balizado apenas pelo interesse. Sobre o assunto, ver Glazer e Moynihan (1975).

Referências

BECKER, Howard. Conferência: a Escola de Chicago. Mana, Rio de Janeiro. v. 2, n. 2, p. 177-188, 1996.

GLAZER, Nathan; MOYNIHAN, Daniel P. Introduction. In: ______ (Ed.). Ethnicity, theory and experience. Cambridge: Harvard University Press, 1975. p. 1- 26.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice; Editora Revista dos Tribunais, 1990.

HOBSBAWM, Eric. Introdução: a invenção das tradições. In: HOBSBAWM, Eric, RANGER, Terence (Org.). A Invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. p. 9-23.

POUTIGNAT, P.; STREIFF-FENART, J. Teorias da etnicidade. São Paulo: Editora da UNESP, 1998.

WOORTMANN, Ellen Fensterseifer. Identidades e memória entre teuto-brasileiros: os dois lados do atlântico. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 6, n. 14, p. 205-238, nov. 2000.

Regina Weber – Professora do Departamento e do PPG em História da UFRGS.


WEBER, Regina. Introdução. Anos 90, Porto Alegre, v.12, n.21 / 22, jan. / dez., 2005. Acessar publicação original [DR]

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