O Passado que não passa: a sombra das ditaduras na Europa do Sul e na América Latina – PINTO; MARTINHO (RBH)

PINTO, António Costa; MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes (Org.). O Passado que não passa: a sombra das ditaduras na Europa do Sul e na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. 336p. Resenha de: WASSERMAN, Claudia. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.34, n.67, jan./jun. 2014.

O passado ressurgirá mesmo quando existe um acordo inicial de esquecê-lo.

Alexandra Baharona de Brito e Mario Snajder

A historiografia sul-americana tem se dedicado ao tema das ditaduras de segurança nacional desde a sua implantação, em meados dos anos 1960, e o tema continua tendo desdobramentos importantes. A caracterização dos regimes – fascistas, burocrático-autoritários, civil-militares, ditatoriais, totalitários etc. –, a diferenciação com as ditaduras pregressas, o papel dos militares na política, os atores, o contexto nacional e internacional, a influência e participação dos Estados Unidos, o papel desempenhado pela Doutrina de Segurança Nacional (DSN), o esgotamento de um modelo de acumulação capitalista, o papel dos empresários nos golpes, o estudo sobre a resistência aos golpes, a guerrilha, as organizações de esquerda e as memórias de militantes foram objeto de pesquisa dos historiadores e mereceram atenção em livros e coletâneas. Nos primeiros anos do século XXI, o tema das ditaduras latino-americanas entrou definitivamente em outro campo referente ao debate sobre as políticas de memória instituídas ou não pelos governos pós-ditatoriais. Em 2014 o golpe de 1964 no Brasil completa 50 anos, data “redonda” consagrada para discussão e reflexão a respeito do legado autoritário, ou do quanto “restou” de resíduos na nossa sociedade brasileira do regime implantado a partir do golpe.

O livro organizado por Francisco Carlos Palomanes Martinho e António Costa Pinto, O passado que não passa: a sombra das ditaduras na Europa do Sul e na América Latina, está dedicado justamente a essa temática. Composto de dez capítulos que discutem temas fundamentais do legado autoritário em vários países na Europa e da América do Sul, o livro trata do ressurgimento e interpretação do passado autoritário durante as transições democráticas na Itália, Espanha, Portugal, Grécia e Brasil. Os casos são debatidos em um duplo sentido: as formas através das quais as elites políticas se apropriaram do acontecido e com ele lidaram, e a presença do passado no seio da sociedade.

O eixo que organiza a obra é a atitude perante o passado autoritário, notadamente as questões relacionadas à justiça de transição. Os capítulos estão embasados em forte teorização a respeito da transição democrática e de suas condicionalidades. O livro procura debater a hipótese de que a qualidade das democracias contemporâneas está fortemente influenciada pelo modo como as sociedades em transição lidaram com o seu passado autoritário. Punição das elites autoritárias, dissolução das instituições correspondentes, responsabilização dos indivíduos e do Estado pela violação dos direitos humanos são aspectos possíveis no cenário da justiça de transição ou do estabelecimento de uma “política do passado”.

Segundo a introdução de Costa Pinto, o volume está estruturado sobre três eixos, a saber: legados autoritários, justiça de transição e políticas do passado (p.19). No texto, um dos dois organizadores do volume procura esclarecer e estabelecer limites entre as definições de conceitos associados uns aos outros.

Por legado autoritário entendem-se “todos os padrões comportamentais, regras, relações, situações sociais e políticas, normas, procedimentos e instituições, quer introduzidos quer claramente reforçados pelo regime autoritário imediatamente anterior, que sobrevivem a mudança de regime…” (p.20). Os capítulos referem-se particularmente a dois legados: a permanência das elites políticas que apoiaram os regimes autoritários e a conservação de instituições repressivas.

Por justiça de transição entende-se toda “uma série de medidas tomadas durante o processo de democratização, as quais vão além da mera criminalização da elite autoritária e dos seus colaboradores e agentes repressivos e implicam igualmente uma grande diversidade de esforços extrajudiciais para erradicar o legado do anterior poder repressivo, tais como investigações históricas oficiais sobre a repressão dos regimes autoritários, saneamentos, reparações, dissolução de instituições, comissões da verdade e outras medidas que se tomam durante um processo de transição democrática” (apud Cesarini, p.22), ou “a justiça de transição é componente de um processo de mudança de regime, cujas diferentes facetas são uma parte integrante desse processo incerto e excepcional que tem lugar entre a dissolução do autoritarismo e a institucionalização da democracia” (p.23). Significa dizer que as decisões tomadas no âmbito da justiça de transição não são necessariamente punitivas. Podem ensejar a reconciliação ou combinar ambas as coisas. Ressaltam, pois, a forma como ocorrem as transições e a qualidade da democracia que está sendo proposta e instaurada.

Finalmente, por política do passado entende-se “um processo em desenvolvimento, no âmbito do qual as elites e a sociedade reveem, negociam e por vezes se desentendem em relação ao significado do passado autoritário e das injustiças passadas, em termos daquilo que esperam alcançar na qualidade presente e futura das suas democracias” (p.24). A política do passado envolve a forma como o passado é trazido à tona nos novos regimes democráticos, e a qualidade da democracia vai depender dessas atitudes, condenatórias ou sutilmente críticas. Ao longo dos capítulos do livro percebe-se que com respeito à política do passado, a ruptura foi menos frequente do que a convivência com os resíduos do autoritarismo, e que o tempo transcorrido entre a redemocratização e o estabelecimento de uma política do passado também deve ser considerado para comparar os diversos casos. A existência de múltiplos passados confrontados em sociedades recém-democratizadas conduz a uma diversidade de formas de lidar com o passado autoritário que vão desde a conciliação (transição pactuada ou negociada), com o estabelecimento de medidas de reconciliação em relação aos crimes cometidos pelo Estado, até a instauração de uma justiça de saneamento (transição por ruptura) com medidas punitivas.

Ao longo dos capítulos instauraram-se, portanto, as seguintes questões: nos casos estudados tratou-se de “esquecer ou reavivar o passado?”, “ocultar ou trazer à tona a memória do autoritarismo e/ou da resistência?”, “enfrentar ou não o passado autoritário?” e, finalmente, “é possível optar entre confrontar o passado ou esquecê-lo?”. Costa Pinto observa que mesmo diante da consolidação da democracia “as velhas clivagens da transição não desaparecem como por milagre: podem reemergir em conjunturas específicas” (p.29), e é isso que nos leva a compreender a frase que serviu de epígrafe à resenha: “O passado ressurgirá mesmo quando existe um acordo inicial de esquecê-lo” (p.300), aplicada aqui à realidade espanhola.

A instauração de uma política do passado depende de circunstâncias relacionadas com a força dos partidos políticos; os agentes que conduzem a transição; os traços singulares de cada ditadura (relativos à memória coletiva e ao terror instaurado no seio da sociedade); ao tempo de duração de cada ditadura; à qualidade da democracia anterior (cultura política); à autocrítica dos atores (políticos e intelectuais); o rompimento súbito ou prolongado com o regime autoritário; a capacidade dos atores políticos, intelectuais e midiáticos em incluir ou retirar os temas “política de memória, justiça de transição e avaliação do legado autoritário” da agenda a ser debatida pela sociedade como um todo, entre outros fatores mencionados ao longo dos capítulos.

No capítulo introdutório, Costa Pinto compara os casos de Itália, Espanha, Portugal e Grécia, sendo os três primeiros exemplos de ditaduras duradouras, com lideranças personalizadas e alto grau de inovação institucional, enquanto a Grécia assemelhou-se a um regime de exceção. As definições conceituais e a tentativa de comparação entre as quatro transições que aparecem no capítulo compensam a ausência de profundidade de cada um dos casos.

Marco Tarchi se debruça sobre “O passado fascista e a democracia na Itália”. Trata da queda do regime autoritário, do regresso da classe dirigente anterior ao fascismo, das diferenças entre o Sul e o Norte do país, dos matizes ideológicos de cada partido antifascista (dos mais moderados aos mais radicais) e, por consequência, das diferentes visões sobre a justiça de transição ou dos métodos para “desfascistizar o país” (p.51). Ainda se refere aos detalhes que envolveram o “ajuste de contas” – os ataques aos símbolos do regime, a dissolução das instituições do regime – e à política de saneamentos que vigorou na administração pública. No caso italiano, também se observa a pressão exercida pelos Aliados no sentido de garantir o julgamento dos que haviam colaborado com os alemães. A condenação pública do regime de Mussolini e atos de extrema violência verificados no processo transicional podem ser explicados também com base nessas pressões.

O capítulo sobre a justiça de transição em Portugal, escrito por Filipa Raimundo, trata da criminalização dos antigos membros da polícia política do Estado Novo. Aborda especialmente o papel dos partidos políticos no processo procurando elucidar como se constituiu o sistema partidário, quando a questão da justiça de transição entrou na agenda dos políticos e como os partidos se posicionaram a respeito das medidas punitivas. Através de quadros sintéticos, a autora verifica avanços e retrocessos nas medidas punitivas e, simultaneamente, aborda os reflexos na legislação que regulou o processo. Apresenta uma análise da imprensa diária e semanal, dos programas eleitorais e da imprensa partidária para avaliar a importância do tema.

Francisco Carlos Palomanes Martinho aborda “As elites políticas do Estado Novo e o 25 de abril”, através da memória construída em torno do último presidente do Conselho dos Ministros do Estado Novo, Marcello Caetano, em dois períodos: 1980, o ano de sua morte, e 2006, no ano do centenário de nascimento. Os dois períodos são contextualizados e ajudam a explicar a “batalha de memórias” (apud Pollak, p.128). O texto está apoiado em ampla bibliografia a respeito do político e verifica a ambivalência de sua trajetória, bem como questiona sobre o possível “encapsulamento” da memória no final do seu governo, o que reduziria, segundo Martinho, injustamente o papel dessa personagem. O capítulo não reabilita Caetano ou o Estado Novo, mas contribui para entender os objetivos do regime e as “artimanhas da memória” (p.155).

O caso da Espanha é abordado pelo capítulo de Carsten Humlebaek como um caso de transição negociada, em que a forte polarização da sociedade no período da ditadura resultou na necessidade de reconciliação na época da queda do franquismo. Segundo o autor: “A combinação da necessidade de reconciliar a nação com o medo de conflito traduziu-se numa procura obsessiva de consenso como um princípio indispensável para a mudança política depois de Franco, mas também fez os principais atores absterem-se de qualquer tipo de mudança abrupta que pudesse ser interpretada como revolucionária” (p.161). Humlebaek contextualiza o reaparecimento do tema na virada do século XXI, sobretudo na esfera pública, e descreve as organizações que surgiram em torno do tema.

Dimitri Sotiropoulos trata do caso grego e compara-o às transições na Espanha e em Portugal. O capítulo aborda o regime dos coronéis, a sua derrocada e a aplicação muito severa da justiça de transição que promoveu saneamento das instituições, inclusive das Forças Armadas. Revela igualmente, mediante pesquisa de opinião pública, que a sociedade grega não tem uma memória precisa de rejeição ao regime ditatorial. Segundo sua visão, o modelo grego de justiça de transição teve caráter “rápido e comedido” (p.212), o que ajuda a explicar o apagamento ou atenuação da memória a respeito do regime.

O capítulo dedicado ao Brasil, escrito por Daniel Aarão Reis Filho, debate a lei da anistia, aprovada no país em 1979, no que se refere aos “silêncios” que a legislação ajudou a produzir (p.217), quais sejam, dos torturados e torturadores, das propostas revolucionárias de esquerda e do apoio da sociedade à ditadura. Em seguida, o autor considera a possibilidade de revisão da Lei da Anistia e observa que a chegada de antigos militantes de esquerda ao poder impulsionou “questionamento aos silêncios pactados em 1979” (p.224). Finalmente, Reis Filho se pergunta se é positivo ou não para a sociedade brasileira discutir esses silêncios. Segundo sua visão, debater o passado é a “melhor forma de pensar o presente e preparar o futuro” (p.225).

Alexandra Barahona de Brito também aborda o caso brasileiro, considerando-o como uma das transições mais longas da América Latina, onde supostamente “a duração e o ritmo da transição se deram mais pela ação dos militares do que pela pressão da sociedade civil” (p.236). Ao descrever a forma como os militares tutelaram o processo e menosprezar a resistência e a pressão da sociedade no final dos anos 1970, Brito contribui para mais um silêncio, dos tantos referidos por Reis Filho. O capítulo, ao contrário dos demais, expressou opiniões sem a devida comprovação, bem como procedeu à caracterização de processos com utilização de adjetivos não muito esclarecedores, como aquele que qualifica a política de Lula e Fernando Henrique Cardoso em relação ao passado de “esquizofrênica” (p.244 e 246). Ainda assim, o capítulo mostra os avanços na direção do estabelecimento de uma política de memória. Finalmente, as explicações sobre os motivos que tornaram tão lento, no Brasil, o ritmo da “justiça de transição”, enunciadas na página 253, parecem mais uma vez fruto de opinião e não de um estudo de fontes históricas e da cultura política do país.

O capítulo 9, de Leonardo Morlino, propõe uma análise comparada dos “Legados autoritários, das políticas do passado e da qualidade da democracia na Europa do Sul”. Retoma conceitos e teorias formulados e apresentados ao longo de todo o volume e sugere uma relação entre “inovação dos regimes, duração e tipo de transição” (p.271). Seu texto apresenta dados de pesquisas de opinião pública nos países da Europa do Sul a respeito das atitudes da sociedade em relação ao passado autoritário e reflete sobre a qualidade da democracia em cada país.

Finalmente, no último capítulo Alexandra Baharona de Brito e Mario Sznajder refletem sobre a “Política do passado na América Latina e Europa do Sul em perspectiva comparada”. Completam assim um volume que pretendeu a cada passo comparar os casos e tirar experiências comuns e singulares para explicar as transições democráticas no final do século XX. Grécia, Portugal e Espanha, além de Argentina, Uruguai e Chile, são examinados no capítulo. A abordagem central é a respeito da transição e da instauração de mecanismos de acionamento do passado. Reflete igualmente sobre os legados da ditadura em cada país e como esse legado interfere na implementação da justiça de transição.

Diante de um “passado que não passa” e de resíduos autoritários que permanecem latentes em todas as sociedades estudadas, a leitura do livro nos faz pensar muito sobre as políticas de passado instauradas pelos Estados democráticos e sobre o papel do historiador de ofício nesse processo. Visto que as políticas de memória instauradas pelos Estados vão se modificando com o tempo porque respondem às preocupações do presente e são emolduradas pelo contexto histórico-social concreto, o livro nos induz a refletir sobre o ofício e a responsabilidade do historiador diante dessas políticas de memória instauradas pelos Estados e acerca dos processos traumáticos vividos pelas sociedades. As dimensões problemáticas do passado são a matéria-prima do historiador. Por isso, consolidada a democracia, cada nova geração de historiadores vai debruçar-se sobre o tema do autoritarismo e da ditadura e procurar incrementar o acervo de informações sobre o período. Com base nesse acervo de informações, caberá aos historiadores refletir a respeito das políticas de memória e estabelecer com a maior precisão possível a diferença entre o passado que emana dos interesses rememorativos dos Estados e os prováveis esquecimentos, omissões e artimanhas da memória que possam se contrapor às informações levantadas pelo historiador a partir das fontes e da pesquisa científica.

Claudia Wasserman – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pesquisadora do CNPq. E-mail: claudia.wasserman@ufrgs.br.

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João Goulart. Uma biografia – FERREIRA (AN)

FERREIRA, Jorge. João Goulart. Uma biografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. 713p. Resenha de: WASSERMAN, Cláudia. Anos 90, Porto Alegre, v. 18, n. 33, p. 281-285, jul. 2011.

“Jango era um conciliador porque buscava o entendimento entre as partes. Seu objetivo era alcançar acordos e compromissos políticos.” Jorge Ferreira

Para que serve a biografia de um ex-presidente do Brasil? Para esquadrinhar a história de vida de um personagem importante do século XX brasileiro, conhecer suas motivações, sua vida pessoal, suas dúvidas ocultas e suas realizações palpáveis. Neste trabalho, Jorge Ferreira gastou dez anos de sua vida profissional, pesquisando, explorando e indagando sobre João Goulart. Os outros tantos anos que Ferreira tem de estrada no ofício de historiador serviram como bagagem cognitiva para que a biografia de Jango não fosse apenas o retrato do personagem, mas também se configurasse como uma análise aguçada sobre nossa história contemporânea.

O livro desenrola-se em ordem cronológica, desde antes do nascimento de Janguinho, em 1919, até sua morte, em 1976, sem deixar de examinar os desdobramentos decorrentes das investigações sobre a hipótese de assassinato, concluídas com o arquivamento do processo de averiguação em 2010.

A tendência de construir uma ilusão biográfica, identificada pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu (A Ilusão Biográfica, 1996), não se confirma para a biografia construída por Jorge Ferreira, ainda que o autor de Jango: uma biografia tenha recorrido à “sucessão cronológica, às sequências ordenadas e às relações inteligíveis” (BOURDIEU, 1996, p. 75). Essas, no entanto, não cedem à “ilusão retórica” (p.76), porque foram desenhadas a partir de pesquisa minuciosa, que deixa entrever “a estrutura da rede” (p. 81).

Mesmo fiel à diacronia, Ferreira rejeita os conceitos de unidade e coerência do sujeito, fornecendo ao leitor suficientes elementos para compreender que João Goulart teve uma sinuosa trajetória, perpassada pelo mutável panorama da sociedade brasileira: “[…] não procurei montar um quebra-cabeças para, ao final, encontrar um quadro de coerências. Também evitei, o equívoco, tão comum ao relatar a vida de um personagem, de apontar suas diversas incoerências.” (p. 18). Em outras palavras, Jorge Ferreira conseguiu driblar a “ilusão biográfica”. Para tanto, valeu-se de infl uências teóricas consistentes – entre as quais ele menciona Jean-René Pendaries, Phillipe Levillain, Giovanni Levi, Chrisopher Lloyd, Vavy Pacheco Borges – e do quase infalível procedimento de “[…] recorrer a uma multiplicidade de fontes” (p. 16-17).

O controle da técnica, a consistência teórica e a profusão de fontes não fazem do volume um compêndio enfadonho com centenas de citações. O livro tem uma linguagem propositadamente fl uida, mas não peca pelo excesso de empiria. Ao contrário, seu primeiro mérito é realçar duas polêmicas, presentes, nem sempre tão evidenciadas, na historiografia brasileira. Em primeiro lugar, a respeito da ausência/quase-supressão de João Goulart dos estudos históricos do nosso país e, em segundo lugar, sobre a personalidade dessa personagem e sua suposta vacilação diante do golpe de 1964.

Ao realçar esses dois pontos, Ferreira evidencia sua admiração pela personagem. Mas o que poderia parecer falta de objetividade, merece ser investigado. Ferreira consegue, com habilidade indisfarçável, compreender a origem dessas características da historiografia brasileira em relação a Jango. Explica – a partir da noção de “[…] usos políticos do passado” – porque e por quais grupos sociais Jango foi acusado de covarde, bem como que setores da sociedade se interessaram, ao longo da história recente, por esquecer/eclipsar a sua passagem pela presidência da república. Com isso, apesar da aparente admiração pelo biografado, o que Ferreira procura é despersonalizar a história, evitando recair sobre o indivíduo todo o peso do passado.

Ao longo do livro, Jorge Ferreira vai mostrando que a construção da personalidade de Jango não estava definida a priori, mas que foi sendo moldada a partir de infl uências, de lealdades e até mesmo, fruto da ingenuidade e da inconsistência política que caracterizaram seus primeiros passos na vida pública. A profusão de outras personagens da história do Brasil, algumas altamente estudadas pela historiografia e outras desconhecidas, obscurecidas pelo tempo e pelas omissões propositais, é um mérito adicional do livro. Nesse aspecto, o livro também aborda instituições – algumas delas igualmente pouco estudadas pela historiografia brasileira – como a trajetória do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), lugar privilegiado de militância ao qual Jango dedicou sua vida inteira; o sindicalismo brasileiro, que cresceu enormemente na década de 1950, acompanhado de perto pelo percurso do político João Goulart. A imprensa, as forças armadas, o parlamento são algumas outras instituições brasileiras abordadas no livro. Foram evidenciados também processos, tais como a industrialização e o capitalismo brasileiros, oscilantes entre os ideólogos do nacional-desenvolvimentismo e do desenvolvimento integrado ao capital monopólico.

Os capítulos oito e nove, respectivamente, De março a março: rumo à radicalização e Rumo ao desastre, são eletrizantes. Ferreira utiliza grande parte da bibliografia disponível a respeito do golpe civilmilitar e narra o desenrolar daquele processo através da figura presidencial, de seu apreço pela democracia e pela conciliação. O título do capítulo dez, Dois dias finais sugere o início de uma narrativa linear dos fatos que se sucederam entre os dias trinta de março e primeiro de abril de 1964, mas o capítulo surpreende com um intenso debate historiográfico, motivação principal do livro e de toda a pesquisa.

De um lado, Ferreira não aceita que políticos, cientistas sociais e historiadores tenham responsabilizado Jango pelo golpe, ou que tenham atribuído o desfecho trágico daqueles dias à clara indisposição do presidente em resistir ao golpe. Para corroborar sua perspectiva e explicar os motivos desse uso abusivo do passado, o autor da biografia de Jango ressalta a personalidade conciliadora do presidente, ressaltando que “Conciliação, aliás, era o termo mais insultoso entre as esquerdas naquele momento. Em uma conjuntura política de crescente radicalização, aquele que não fosse radical era considerado conservador ou, mesmo, reacionário” (FERREIRA, 2011, p. 292).

Acompanhando o raciocínio de Ferreira: o Brasil vivia um dos períodos mais democráticos de toda a sua história. A participação e as reivindicações das classes subalternas, antes ignoradas e/ou mantidas sob rígido controle coercitivo, somente aumentavam em ritmo alucinante. Um dos horizontes desses grupos sociais era o socialismo que, segundo eles próprios, e a partir do exemplo cubano, deveria ser desencadeado a partir de uma revolução.

Neste contexto, as propostas de conciliação só poderiam soar como um obstáculo concreto ao seu projeto e, portanto, como adesão velada ao projeto antagonista. Sendo que os antagonistas da transição ao socialismo e da revolução brasileira também não confiavam que a postura conciliadora de Jango pudesse garantir a continuidade do sistema econômico, político e social por eles defendido.

Por isso, a postura conciliadora do presidente João Goulart foi tão veementemente contestada. Porque ser conciliador, em meio ao contexto de polarização, não significava ficar em cima do muro, mas adquiria sentido de um firme posicionamento político, nesse caso, contrário às transformações sistêmicas.

Restaria discutir criticamente esse termo tão difuso para nosso campo da história e tão caro aos cientistas políticos: o conceito de conciliação. Buscar o entendimento entre as partes, procurar fazer acordos e compromissos políticos é um comportamento louvável nos homens públicos, que pode impedir graves crises políticas.

Mas, até onde pode ir o acordo, o entendimento e a conciliação? Até onde se pode abrir mão das próprias convicções? Diante de projetos antagônicos de sociedade e de nação, as convicções devem ser abandonadas pelos homens públicos em nome da conciliação?

Por outro lado, Ferreira tem razão, não foi efetivamente essa personalidade conciliadora de Jango que provocou o golpe nem uma atitude mais consistente poderia ter impedido o desfecho, mas isso também não vem ao caso. A história não é mestra da vida, certamente não teremos uma repetição desses episódios que possam desmentir uma ou outra interpretação.

Fato emblemático e, ao mesmo tempo, curioso, no entanto, é que o apelo à conciliação e à boa acolhida a essa postura de negociação pacífica dos confl itos sociais, harmonização das relações etc.

esteve presente nos dois momentos mais polarizados da nossa história contemporânea: o período pré-64 e a luta pela redemocratizado por volta dos anos 80. No primeiro período, a posição conciliatória não impediu o golpe de morte à democracia e, no segundo, essa harmonização impediu que a sociedade brasileira soubesse de verdade quem foram os responsáveis por esse atentado.

A pesquisa sobre o exílio do presidente Goulart foi primorosa, ajuda a compreender as relações entre exilados, os ambientes dos países de acolhida, as relações entre os militares dos países assolados por ditaduras e as tentativas de articulação política para o retorno ao país. Jango voltou morto ao Brasil em 1976, para ser enterrado em São Borja, segundo Ferreira, uma concessão do governo militar; não sabemos como ele agiria politicamente caso tivesse sido anistiado em 1979. Mas sabemos o que disse Leonel Brizola ao chegar ao país, o mesmo Brizola impaciente que tanto criticou a “falta de atitude” do cunhado presidente. Entrou no Brasil por Foz do Iguaçu no dia 06 de setembro de 1979 e falou pouco, deixando claro que aqueles que o seguissem no retorno ao Brasil deveriam ter “cautela, paciência e prudência”. Um indício de que a ideia da conciliação voltaria a assombrar a história recente do país.

Claudia Wasserman – Professora do PPG-História da UFRGS. E-mail: claudia.wasserman@ufrgs.br.