Circulação transnacional de livros de leitura e de manuais pedagógicos (entre fins do século XIX e início do século XX) | Cadernos de História da Educação | 2022

Os estudos relativos à transnacionalidade de artefatos e práticas pedagógicos, bem como o seu potencial de transnacionalização, têm se apresentado há um par de anos em periódicos de História da Educação de diversos países ocidentais. Com isso, o exame do tema avançou consideravelmente, mas está longe de ter se esgotado; há muito o que estudar sobre os livros escolares e sua circulação mundo afora. Por isso, esse dossiê investe no aprofundamento de um tópico relativo ao tema: circulação transnacional de materiais pedagógicos impressos, quer tenham nascido com destinação escolar quer tenham ganhado ulterior uso escolar. Tornou-se quase que sinônimo da modernidade a circulação de materiais impressos dados ao acesso pelas mais diferentes formas que vão do empréstimo à venda superfaturada; da impressão em folha solta a encadernados luxuosos; de versões vernaculares a traduções pouco ou nada amistosas, incluídas às muitas “apropriações” alimentadas por peculiares visões dos “gostos locais”.

Os livros de leitura, os livros didáticos, os compêndios ou manuais para formação do docente da escola primária, são documentos privilegiados neste dossiê, com vistas à análise da circulação transnacional desses fragmentos de cultura por meio dos quais se veiculam saberes e valores. O dossiê conjuga pesquisas que examinam livros, a partir de recortes temporais distintos, mas que privilegiam do século XIX às primeiras do século XX, de forma a compor um certo corpus analítico e de fontes. Assim, esta proposta objetiva discutir a produção e a circulação de livros produzidos em Portugal, na Itália, e no Brasil para pensar a história da educação a partir das diferentes projetos educacionais impressos nesses artefatos culturais. Aportes teóricos da História Cultural e História da Educação sustentam as análises que mobilizam, para além de livros, legislações, relatórios, jornais, correspondências, dentre outros materiais.

Justino P. De Magalhães abre o dossiê com o artigo Livro escolar – adaptação e tradução no Portugal de Oitocentos: do ‘aprender pelo livro’ ao ‘mestre-livro’, efetuando incursões em terras européias, a francesa em especial, na medida que recolhe elementos que lhe permitem explicar a criação do livro escolar moderno não só em terras portuguesas como brasileiras. Adentrando o século XIX, seu artigo acompanha os diversos momentos em que o livro vai se transformando em livro para uso escolar com distinção entre o livro para o aluno e o livro para o professor. Em fins do Oitocentos, o autor já tem em mãos uma diversidade de formatos de livros escolares, o que lhe permite afirmar que a proliferação do livro escolar, do pequeno livro e do periódico estão na origem da aculturação de massas. As transformações que registra no livro de uso escolar em relação aos demais livros e que lhe conferem especificidade permitem que conclua ser ela decorrente da regulação e do controle da produção e do acesso, bem como o fato de ser portador de orientações para a leitura.

O artigo de Samuel Castellanos, Livros de leituras ou manuais de civilidade como cultura material da escola maranhense para o ensino do ler e do vir-a-ser, como o próprio título indica, trabalha sobre livros/manuais que circularam no Maranhão do Oitocentos; são materiais que lhe permitem interrogar os pontos de contato entre “livros de leitura de autores maranhenses e manuais de civilidade não nacionais”, quais sejam: espanhóis, portugueses e franceses. É instigante como aí se enseja sua interlocução com o artigo de Justino Magalhães. Castellanos busca em R. Chartier e N. Elias referências conceituais para pensar os livros/manuais como suportes de regras que postas em circulação para a criação do sujeito civilizado. Posto face a face, os materiais maranhenses e europeus permitem que ele conclua que as variações percebidas naqueles são indicativas das novidades dos programas de ensino, nos métodos e nos usos prescritos daqueles materiais “como pretexto na formação do leitor em formação independentemente de seus níveis de leitura, da restrição de aprovação e indicação das obras que não cumprissem com as reformas da instrução, obrigando-as a uma reformulação e a um ajustamento segundo as prescrições nos dispositivos legais”.

O terceiro artigo desse dossiê é de Mirian J. Warde, Adaptações e traduções: cartilhas e livros de leitura “de americanos para filipinos” (início do século XX), opera um deslocamento, em relação aos anteriores, ao examinar livros escolares estadunidenses – cartilhas e livros de leituras – utilizados nas Filipinas pelos Estados Unidos durante os primeiros anos da ocupação, início do século XX, implicando operações, também essas, de deslocamento e imposição de uma cultura sobre a outra. O artigo foi provocado, originalmente, pela notícia de que a estadunidense The Arnold Primer, de Sarah Louise Arnold, indicada para adoção em São Paulo na versão traduzida e adaptada para escolares brasileiros (1907), teria sido também adaptada para escolares filipinos (1904), porém, não traduzida. O que seria “adaptação” em uma circunstância que sequer se pode chamar de transnacional? Uma condição na qual a confrontação entre culturas oblitera completamente os significados de civilização e barbárie, dissipam qualquer ilusão de que haja fronteiras entre esses dois modos de representação das culturas? Neste artigo são exploradas, especialmente séries documentais compostas por relatórios anualmente preparados pelo governo dos Estados Unidos nas Filipinas, acrescidas de um leque bastante diversificado de outras fontes.

Um novo deslocamento é operado com a inclusão dos três artigos a seguir que põem em cena dois países, Brasil e Itália, tanto mantendo as suas distâncias e diferenças quanto destacando suas interconexões.

Terciane Luchese com o artigo ‘Quando il mondo era Roma’: livros escolares para fascistizar os italianos no exterior, o caso brasileiro (1922-1938) contribui para que mantenhamos o exercício de abandono de qualquer laivo romântico que por ventura ainda guardávamos em relação aos livros escolares. Neste artigo, Luchese examina um livro – que dá título ao artigo – no contexto em que a Itália fascista, por meio de seus cônsules, enviava livros para as escolas italianas no Brasil, com o intuito de cativar os emigrados para os princípios e práticas daquele regime que ascendera ao poder em 1922, com Mussolini, e só foi encerrado com a derrota do Eixo na Segunda Guerra Mundial. Roger Chartier é também seu vetor conceitual para as análises construídas sobre uma extensa base documental e bibliográfica. Luchese se pôs como desafio “compreender as políticas educacionais e culturais da Itália e sua vinculação com o contexto brasileiro e gaúcho durante os anos 1920 e 1930, em especial atentando para políticas, produção, circulação e distribuição de livros escolares fabricados durante o fascismo para as ‘escolas italianas no exterior’” que ela enfrenta em dupla direção: de um lado, examinando as políticas italianas e “suas relações/ressonâncias em terras brasileiras” e, de outro, pelo exame de um livro específico destinado à “juventude no exterior”.

Por sua vez, artigo de Claudia Panizzolo, Livros escolares para a escola elementar italiana nos dois lados do Atlântico: o estudo do Libro d’appunti de Giovanni Soli (entre o final do século XIX e início do século XX) opera um deslocamento temporal, para fins do século XIX e início do XX, e geográfico. Apresenta como objetivo compreender as políticas educacionais, a produção, a circulação e a distribuição de livros escolares para a península e escolas italianas no exterior, especificamente em São Paulo- Brasil. Panizzolo examina uma rica variedade de fontes documentais como os relatórios de cônsules, ofícios, despachos, circulares ministeriais e anuário das escolas italianas, além do ‘livro de anotações’, objeto central de sua análise. Mobiliza o corpus conceitual em especial de Chartier e Choppin para definir os procedimentos e as direções de análise, e após detalhado estudo sobre os livros em circulação na Itália e no Brasil, discordando de análises menos aprofundadas, conclui que os livros que foram distribuídos pelo Consulado italiano eram recém-publicados, de expressiva circulação na Itália e muito contribuíram para inventar o italiano na Península e fora dela.

O último artigo do dossiê escrito por Michelina D’Alessio, intitulado Manuais e livros de texto para os professores italianos da emigração no início do novecentos, lança luzes sobre um fenômeno importante para a história da educação, brasileira e italiana, que é a preparação dos professores de emigração, ou seja, aqueles profissionais que pretendiam emigrar além-mar para diversos países, entre os quais o Brasil. A autora faz uso de um corpus documental diversificado que inclui manuais, livros de texto, os quais eram direcionados para esse público de professores emigrantes. A análise efetuada por D’Alessio coloca em cena uma perspectiva pouco explorada ainda dentro da temática da escolarização e/ou educação dos imigrantes italianos que é relativa ao percurso formativo dos professores que emigrariam. Ao longo do texto, na análise dos manuais e livros de texto, a autora observa, também, o papel do Estado italiano nos assuntos referentes a emigração para o exterior. Ainda, a partir do texto é possível compreender a emigração italiana a partir de um ponto de vista transnacional que a coloca dentro de um panorama internacional e interconectado.


Organizadores

Claudia Panizzolo – Universidade Federal de São Paulo (Brasil) https://orcid.org/0000-0003-3693-0165     http://lattes.cnpq.br/7842950333039932 E-mail: claudiapanizzolo@uol.com.br

Mirian Jorge Warde – Universidade Federal de São Paulo (Brasil) https://orcid.org/0000-0002-1119-6729  http://lattes.cnpq.br/2154986656715564 E-mail: mjwarde@uol.com.br


Referências desta apresentação

PANIZZOLO, Claudia; WARDE, Mirian Jorge. Apresentação. Cadernos de História da Educação, v.21, e115, 2022. Acessar publicação original

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Tópicos de História da Educação nos Estados Unidos (entre os séculos XIX e XX) / Cadernos de História da Educação / 2016

Embora a literatura educacional brasileira seja farta em referências à história da educação nos Estados Unidos, nos nossos meios acadêmicos circulam poucos estudos a respeito. Não que a história da educação norte-americana ganhe menos atenção dos estudiosos brasileiros do que a educação em outros países. A bem da verdade, não temos nos meios educacionais tradição de estudos internacionais.

Com algum conhecimento da historiografia da educação brasileira pode-se afirmar que as mais frequentes menções ao estrangeiro se reportam a algum item de filosofia ou pedagogia, de algum método ou currículo, de algum conceito ou obra, subtraídos dos contextos em que foram produzidos ou que funcionaram como base de lançamento para a circulação internacional que os teria trazido até o Brasil.

Com vistas a contribuir para os estudos internacionais, especialmente sobre os lugares ocupados pelos Estados Unidos nos processos de constituição e internacionalização do campo, organizei dois dossiês: o primeiro já publicado pela revista de História da Educação (ASPHE), com o tema geral A educação nos Estados Unidos: do século XIX ao século XX, que reúne artigos sobre dimensões abrangentes da educação norte-americana no período; quatro autoras brasileiras e um autor norte-americano compõem o conjunto.

Neste segundo dossiê, os artigos reunidos abordam temas mais específicos – ainda que de largo impacto – da educação nos Estados Unidos na passagem do século XIX para o século XX. O dossiê é composto de seis artigos, sendo que quatro são de autores norte-americanos e dois de autoras brasileiras. Muitos aspectos os interligam, embora os autores tenham sido convidados a explorar temas que lhe são caros desde as visões que lhe são próprias. Nem poderia ser de outro modo.

Ao esclarecer os leitores que as convergências entre os autores não incluem suas perspectivas teóricas ou de método, aproveito o ensejo para lhes informar que não concordo necessariamente com as análises que desenvolvem sobre um e outro tema. Falarei sobre isso mais adiante.

Os autores foram reunidos aqui em torno de um período da educação norte-americana de intensas reformas; um momento consagrado como era progressista no qual estão ocorrendo as transformações que gestaram os EUA moderno, hegemônico. Foram convidados a falar de tópicos que indicam a profundida e o alcance das mudanças em curso. São artigos sobre a educação norte-americana com ênfase no ambiente de fins do século XIX e começos do século XX; momento de ebulição da cultura norte-americana na qual se incluem reformas de largo alcance impactadas pelas transformações industriais e urbanas, pela imigração em massa, pelo envolvimento na Primeira Guerra Mundial, bem como pela confrontação de movimentos civis, políticos e sindicais de diferentes matizes.

Exatamente porque estão reunidos em torno de um momento decisivo da vida e particularmente da educação norte-americana, não poderiam deixar de abordar as mesmas reformas, as mesmas iniciativas e os mesmos nomes. Não há surpresa, portanto, que itens como Relatório do Comitê dos Dez e Associação Nacional da Educação sejam muito referidos; assim como nomes como os de John Dewey e Edward l. Thorndike não poderiam ser elididos em se tratando de dois próceres das reformas educacionais do período, opositores inscritos no mesmo terreno acadêmico.

Barry Flanklin, um dos importantes nomes da geração dos anos oitenta que provocou um turn point na área do currículo, trata das relevantes questões curriculares que emergem no período em tela e coloca os discursos de Dewey e Thorndike, além de Ross L. Finney, face a face na disputa pela concepção de comunidade – portanto, na disputa pela direção a ser estabelecida para o currículo. O campo da disputa é o currículo da escola secundária. Thorndike e Finney são, para o autor, expressão de um discurso de comunidade excludente, homogênea, temerosa do estranho / estrangeiro (o imigrante daquele momento); Dewey seria a melhor expressão do discurso liberal da inclusão, da diversidade, do entendimento das transformações que a indústria e a vida urbana produziram sobre os antigos agrupamentos rurais, assim da necessidade de recriação do coletivo e da unidade social. Franklin dedica um item para tratar dos problemas que contemporaneamente repõem a disputa em torno da comunidade. Com isso, é levado a concluir que a direção que o uso do discurso sobre o currículo irá tomar teria permanecido sem solução; e se pergunta: “irá nos conduzir ao estilo liberal de comunidade, tal como popularizada por Dewey ou nos levará à variação reacionária proposta por Thorndike e Finney? ”.

A polarização Dewey-Thorndike, que de fato foi alimentada para além dos muros do Teachers College de Columbia, não reaparece nos artigos de Monaghan / Saul nem de Santos que, aliás, tem Thorndike no centro das suas análises sobre o ensino da Matemática. Não estou certa que se deva alimentá-la mesmo. Também não estou certa que a perspectiva de Franklin possa ser mantida por quem não é herdeiro (romântico) do liberalismo deweyano. Do lugar que venho examinando a contenda nem Dewey se sustenta no lugar avançado que se colocava e que Franklin reafirma, e nem Thorndike se justifica no lugar do regresso que não postulava para si, mas é onde Franklin, como outros, o inscreve.

Spencer Clark foi chamado a tratar de assunto relevante ao qual tem se dedicado, complementar ao tema abordado por Franklin: a educação cívica nos EUA na Era Progressista. Em um momento de grande ardor cívico-patriótico, a educação para o civismo ganhou lugar proeminente no currículo escolar norte-americano, como resposta às grandes levas de imigrantes que tomaram de assalto os EUA entre fins do séc. XIX e começos do seguinte. Clark examina o assunto reportando-o com clareza ao movimento do americanismo e de americanização da escola norte-americana. Para tanto, repassa as tendências que mais diretamente teriam marcado o currículo – as assimilacionistas e as culturalmente pluralistas –, e centra a atenção em dois educadores representantes de cada visão, Arthur W. Dunn e, especialmente, Laura Donnan. O artigo de Clark oferece uma boa análise do tema, e por isso mesmo, exemplifica bem os limites e, portanto, o alcance, de uma visão crítica liberal sobre a americanização e o americanismo. Embora cruzem os caminhos de Franklin e Clark, os artigos de Monaghan / Saul e Santos conferem um tratamento bastante distinto às questões disciplinares e curriculares abordadas.

O artigo O leitor, o escriba, o pensador: um olhar crítico sobre a história da instrução da leitura e da escrita nos Estados Unidos, de E. J. Monaghan e E. W. Saul, publicado pela primeira vez há quase 30 anos, por sua impressionante atualidade está sendo aqui reproduzido [2] . O problema central é a prevalência por muito tempo da leitura sobre a escrita. Para abordá-lo, as autoras repassam a história do ensino da leitura desde o século XIX, destacando os movimentos que disputaram o controle dessa área, as tendências dos teóricos e dos docentes, bem como do mercado editorial. Para os leitores brasileiros que trabalham com o assunto é de grande importância se aperceber que não há direta correspondência entre os movimentos, as tendências, no ensino da leitura registrados nos EUA com os que aqui se formaram, por exemplo, as nossas querelas em torno do analítico e do sintético; do método da palavra, da sentença e da estória. Por outro lado, aqui não teria ocorrido tanto clamor em torno da leitura silenciosa como o registrado por Monaghan e Saul; assim como, o movimento científico e o progressismo educacional não teriam aqui ocorrido; ainda que se possa estabelecer algum (cauteloso) paralelismo entre o último e o escolanovismo brasileiro, este não se posicionou com a veemência e clareza em torno do ensino da leitura na mesma direção que a verificada pelo progressismo em sua luta contra o livro didático (cartilha, livros de leitura etc.) em favor da estória “escrita” pelo próprio aluno.

Ivanete Batista dos Santos examina os confrontos em torno do ensino da Matemática nas primeiras décadas do século XX. Rastreando os periódicos educacionais que circulavam à época nos EUA e parte dos livros de Thorndike, Santos constata a existência de duas propostas, uma que versava sobre uma organização de conteúdos baseada na teoria da disciplina mental e uma alicerçada em princípios da psicologia conexionista de Thorndike. A perspectiva da disciplina mental se fez presente no Committee of Ten Report e ainda se revelava em torno dos anos de 1910; a proposta de rompimento teria ocorrido a partir da publicação do manual The Thorndike Arithmetics, em 1917, como a evidência de que Edward Lee Thorndike conformou, nas primeiras décadas do século XX, um padrão peculiar para o ensino de Matemática. E que foi reapresentado em The Thorndike Algebra, em 1927. Esse artigo de Ivanete Santos, seguindo os parâmetros da sua tese de doutorado, traz à cena a figura de um Thorndike condizente com a imagem sobre ele produzida por seu maior biógrafo, a historiadora da educação Geraldine M Joncich: a de um “positivista são” (The Sane Positivist é o título principal de sua biografia a respeito de Edward L. Thorndike), cuja produção científica e escolar alterou profundamente os padrões de ensino da escola norteamericana, não só da Matemática, mas do ensino da leitura também, como apontam Monaghan e Saul, para não falar de outras disciplinas não incluídas neste dossiê

Seguem dois artigos mais independentes quanto aos assuntos focalizados. Noah Sobe centra-se na fabricação da atenção da criança em uma sala de demonstração montessoriana montada na Feira Mundial de São Francisco, em 1915. Ele quer “repensar a forma como poder e subjetividade agem na formação de atrações humanas”. Conduzindo suas análises com as categorias foucaultianas tais como a de poder, governamentalidade, analítica do poder, Sobe sugere que a atenção a partir de Montessori nos remete à química envolvida no poder, mais do que à física, uma vez que “em vez de forças e corpos que causam movimentos e distribuições, o poder aqui poderia ser pensado operando anexações e desanexações que montam e desmontam entidades”. Dessa perspectiva, Sobe propõe uma nova perspectiva para os estudos da atenção em “relação à produção de desejo e com uma analítica do poder” e não como um estado que se instaura ou não no corpo da criança.

Por fim, o artigo que escrevi para esse dossiê que desloca a… atenção para o campo acadêmico, mais especificamente para o Teachers College da Columbia University quando da criação do seu International Institute, em 1923, e o lançamento do periódico Educational Yearbook, em 1924. A minha pretensão é trazer para primeiro plano aquele College na função de epicentro da internacionalização do campo educacional. As iniciativas dos responsáveis pelo Instituto no âmbito do ensino e da pesquisa são as evidências que trago para sustentar a tese em torno daquela função central do TC, mas o periódico anual é a fonte original deste artigo, uma vez que ainda não explorado como um compêndio, uma enciclopédia, onde se reúnem as mais atualizadas e completas informações e dados sobre os sistemas educacionais de praticamente todos os países, colônias e protetorados existentes à época da sua circulação (1924-1944).

Para encerrar esta apresentação, uma palavra de agradecimento aos autores que se dispuseram a escrever ou ceder trabalhos para este dossiê e aos tradutores dos artigos, e uma palavra de lamento. Enquanto organizava esta coletânea Profa. Jennifer Monaghan faleceu e Prof. Barry Franklin adoeceu. Lamentei profundamente não ter podido conhecer a Profa. Monaghan; tenho lido seus trabalhos e usufruído do elegante, minucioso e fundamentado conhecimento que ela deixou sobre a história da leitura e da escrita nos Estados Unidos. Prof. Flanklin eu conheço pessoalmente; pessoa meiga e atenciosa e, ao mesmo tempo, um acadêmico sério e cuidadoso; desejo que as amizades e as leituras estejam lhe preenchendo os dias de afeto e distração.

Nota

2. Por razões de espaço, mas também de foco, a última parte do texto de Monaghan e Saul não foi mantido nesta versão em Português. Na parte suprimida, as autoras examinam o período Lyndon B. Johnson e o processo de valorização crescente da escrita. Os dados da primeira versão em Inglês desse texto são: MONAGHAN, E. J.; SAUL, W. The reader, the scribe, the thinker: a critical look at reading and writing instruction. POPKEWITZ, T.S. (ed). The Formation of the School Subjects. New York, London: The Falmer, Press, 1987, p. 85-122.

Mirian Jorge Warde – Doutora em Filosofia da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora Titular da PUC-SP. Professora Visitante Sênior do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de São Paulo, no campus Guarulhos. Pesquisador Sênior do CNPq. E-mail: mjwarde@uol.com.br


WARDE, Mirian Jorge. Apresentação. Cadernos de História da Educação. Uberlândia, v. 15, n.1, jan. / abr., 2016. Acessar publicação original [DR]

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A educação nos Estados Unidos: do século 19 ao século 20 / Revista História da Educação / 2016

Este dossiê abrange uma coletânea de textos acerca da educação escolar nos Estados Unidos, com destaque à passagem do século 19 ao século 20. Os autores e os temas foram pensados a partir de dois objetivos principais: primeiro, informar o leitor brasileiro a respeito da educação norte-americana a partir de perspectivas históricas valorosas; segundo, focalizar educação escolar norte-americana em um período e nas dimensões que têm sido de especial interesse aos historiadores brasileiros da educação.

Embora a literatura acadêmica repita qual um mantra que a educação em nossas plagas seja produto da influência de modelos estrangeiros, destacadamente franceses e norte-americanos, o leitor brasileiro não conta com bibliografia consistente que ofereça informações e análises para confirmar, refutar ou, ainda, lapidar aquele postulado. É também crítica a ausência de títulos equivalentes em um momento em que os educadores e pesquisadores da educação não podem mais ignorar a inserção do Brasil na cena internacional.

O leitor não encontrará aqui intenções ou procedimentos comparativos a conduzir as análises. Pelo contrário; o que se pretende com este dossiê é o exercício de análise do outro com o máximo de respeito possível – no sentido cognitivo – à alteridade. Não se trata de proposta original no que intenta; afinal, é só isso que os historiadores da cultura vêm recomendando há décadas: estranhar, desfamiliarizar. Admitir, mesmo que por hipótese, que a juntada da farinha com o fermento nem sempre prenuncia o nosso pão francês de cada dia.

Aos autores foram estabelecidas regras singelas, truísmos para quem está familiarizado com as lidas historiográficas: apoiar os artigos em fontes originais e explorar a bibliografia disponível no que ela apresenta de mais consistente e relevante, não descurando de oferecer ao leitor indicações dos textos brasileiros que tratam do tema ou do seu em torno.

A escolha de mais autores brasileiros do que norte-americanos decorreu não só da intenção de quebrar a timidez ainda vigente nos nossos meios acadêmicos de estudar e pesquisar sobre o que se passa em outros países em matéria de educação; deriva também do interesse de reunir autores que têm acumulado conhecimento sobre a educação escolar nos Estados Unidos e, o que é especialmente interessante, autores que têm se utilizado de ferramentas conceituais e de método mais acuradas do que as verificadas em muitos títulos da historiografia educacional norte-americana.

Carla Simone Chamon apresenta o Paraíso das crianças: o kindergarten nos Estados Unidos entre meados do século 19 e início do 20. Nesse estudo, o que interessa em especial é a americanização do kindergarten alemão froebeliano. A autora informa que as primeiras instituições desse tipo apareceram nos Estados Unidos dos anos de 1850, por iniciativa de imigrantes alemães, uma vez que a presença desses imigrantes impactou estruturalmente a educação e as instituições de cultura norte-americanas; não casualmente, esse assunto reaparecerá em outro artigo do dossiê. Assim como veremos figuras como Pestalozzi, Stanley Hall, Dewey e outros que, sendo mobilizados por Chamon para compor a cena do início da educação infantil nos Estados Unidos, reaparecerão em outras cenas compostas pelos demais autores desse dossiê. Este trabalho explora de maneira competente os muitos conflitos envolvidos na implantação dos kindergartens nos Estados Unidos e as disputas no processo de incorporação dessa modalidade de instituição ao sistema público escolar norte-americano.

Como o próprio título indica, em As disputas pelo currículo e a renovação da escola primária nos Estados Unidos na transição do século 19 para o século 20, Rosa Fátima de Souza reconstitui os embates travados entre o fim do século 19 e o começo do século 20 em torno do currículo da escola elementar. Para a primeira cena, Souza traz os herbartianos, com destaque inovador aos irmãos McMurry, Francis Parker, John Dewey e Stanley Hall, envolvidos em contendas cuja relevância nacional indicia o lugar que estava sendo reservado à educação no projeto norte-americano rumo à hegemonia. Nesse artigo, o leitor ganha mais uma vez a oportunidade de desfazer a ideia de que teria havido uma “escola nova” onde estariam congraçados renovadores ou inovadores da educação norte-americana.

No seu artigo, Vera Teresa Valdemarin Modelos para a formação de professores nas páginas do Teachers College Record (1900-1921), percorre um caminho inédito para tratar com singularidade o muito visitado e ainda não devidamente equacionado tema da formação docente. Pelas páginas do periódico, Valdemarin dá a saber as posições em torno do assunto; aqui também, como há de se supor dado o caráter secularmente controvertido da matéria, a não homogeneidade de perspectivas sequer dentre o corpo docente do Teachers College. Apesar das divergências, ou em razão delas, o TCR mantém uma estratégia editorial que põe em circulação o intento comum de fazer do Teachers College da Columbia o centro de referência no campo da formação docente. As figuras destacadas neste trabalho reaparecerão neste dossiê inscritos em outras cenas.

Com o trabalho de Maria das Graças M. Ribeiro, A educação superior norteamericana: gênese de um modelo, o leitor é chamado a conhecer o processo de hegemonização de um modelo de ensino superior como elemento chave do processo de construção da hegemonia norte-americana. Além de documentos oficiais, como o Morril Act de 1862, Ribeiro atenta para posições críticas de grande relevo teórico e histórico, como a de Thorstein Veblen, por meio de quem é dado a compreender como se amalgamaram, nos Estados Unidos, as esferas pública e privada no campo do ensino superior. Vale destacar, ainda, o que a autora apresenta sobre os land-grant colleges que marcam o início da presença do Estado na educação superior, assunto que já vem estudando há um tempo.

Mirian Jorge Warde, em Periodismo educacional: Estados Unidos, do século 19 às primeiras décadas do século 20, apresenta uma visão abrangente dos periódicos lançados desde o século 19 até os anos de 1920 no âmbito da educação. São destacadas as tendências prevalecentes em aspectos tais como editores, locais de produção e destinatários potenciais. O artigo procura evidenciar a passagem da destinação predominantemente escolar para uma destinação mais diversificada na qual a especialização em subáreas do conhecimento, a expertise em pesquisa, a gramática acadêmica não são as únicas propensões, mas passam a estabelecer padrões de qualidade. Este artigo dialoga com os demais não tanto pela temática abarcada como também pelas pessoas, instituições e associações referidas.

Waye Urban, professor da renomada Universidade de Wisconsin, aqui apresenta um estudo sobre o tema de seu interesse: A Associação Nacional de Educação dos Estados Unidos da América. Urban oferece um entendimento sólido do que teria sido a trajetória da mais poderosa associação de educação nos Estados Unidos, em pleno funcionamento desde meados do século 19. Com este artigo, mais uma vez os dissensos, as polêmicas, os debates ocupam a cena ajudando, também, a desfazer as leituras esquematizadoras. Merecem destaques tensões que atravessam a NEA e que aparecem como motores de importantes confrontações: as de gênero e as étnico-raciais.

Mirian Jorge Warde – Professora visitante no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de São Paulo – campus de Guarulhos. Pesquisador sênior do CNPq. E-mail: mjwarde@uol.com.br


WARDE, Mirian Jorge. Apresentação. Revista História da Educação. Porto Alegre, v. 20, n. 48, Jan. / abr., 2016. Acessar publicação original [DR]

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Imagens da Infância / Revista Brasileira de História da Educação / 2014

Os autores foram convidados a colaborar com um dossiê em torno de imagens da infância. Traçamos alguns parâmetros comuns, mas longe de definições sobre um único conceito de imagem ou de infância.

Compartilhamos avaliações sobre o andamento dos estudos sociais e históricos da infância; a originalidade das produções recentes em relação às produções vindas dos anos 1980 e 1990, marcadas pelas referências a Ariès e a Foucault; os impasses ou os dilemas da produção dos últimos dez anos no âmbito da Sociologia e da História da infância.

Duas vertentes, ao menos, vêm interpondo dificuldades para o aprofundamento das pesquisas sobre a infância produzidas no Brasil dos últimos anos, no âmbito dos estudos sociológicos e históricos. De um lado, os trabalhos que se autoproclamando pós-coloniais pretendem projetar a criança para além das fronteiras nacionais, a favor do seu cosmopolitismo. É nesses trabalhos que se encontram as teses defensoras tanto da existência de ‘culturas infantis’ autônomas a serem estudadas e protegidas da intervenção e da apropriação adulta como do ‘protagonismo infantil’ que, realizado entre as crianças, protege-as da ‘cultura adulta’, social e historicamente hegemônica.

Não é difícil vislumbrar nessa vertente a tendência regressiva de recuperar um passado idílico no qual a criança, livre da intervenção punitiva do adulto e das suas instituições castradoras, teria vivido a sua plena essência. No limite, portanto, essa vertente vem inviabilizando abordagens sociológicas e históricas da infância.

De outro lado, soma, a favor dessa vertente, a tendência de demonizar toda e qualquer abordagem que esteja inscrita nos campos médico, biológico e, especialmente, no campo psicológico, responsabilizados pelas visões distorcidas que teriam sido produzidas sobre a infância desde fins do século XIX. A visão médica e biológica, que pasteuriza, esteriliza, mede, esquadrinha, normatiza e normaliza a criança e prescreve uma infância. A psicológica, que mede a inteligência, prescreve o desenvolvimento, divide as crianças por idades, por capacidade mental, elabora standards para observar, etapa por etapa, da infância até a adolescência.

Embora essa vertente admita que aqueles discursos científicos e suas derivações tecnológicas, clínicas e pedagógicas tenham produzido as imagens de infância do último século, aqueles discursos são desqualificados e descartados em bloco, sem que sejam diferenciados entre si, examinados e criticados em seus fundamentos, em sua lógica interna e em seu poder de se fazerem hegemônicos.

Com esses parâmetros em mente, compusemos este dossiê, visando contribuir para os estudos sociológicos e históricos da infância, considerando, de um lado, que não basta anunciar a crítica às perspectivas que historicamente vêm naturalizando a infância, assim como não basta imputar responsabilidades, pois é indispensável realizar, de modo competente, a crítica interna para desmontar aquelas perspectivas; de outro lado, não basta anunciar a superioridade das perspectivas sociais ou históricas sem atestá-las como tal.

Trabalham nessa direção os dois artigos de autores estrangeiros e três artigos de autores nacionais. Os dois primeiros artigos operam em sentidos que podem ser considerados como ‘história do presente’ ou como ‘desmontagem de representações históricas’. Nos dois casos, são perspectivas sedimentadas ao longo do tempo que estão sendo abaladas por novas perspectivas – teóricas ou práticas – em crescente expansão em tempos atuais.

O artigo de Nancy Lesko e Stephanie D. McCall, Cérebros cor-derosa e educação: uma análise pós-feminista da neurociência e do neurossexismo, traz à cena um problema de longa tradição no campo da Educação: a apropriação cientificamente descompromissada de resultados de pesquisas desenvolvidas em outros campos científicos, a partir de perspectivas ideológicas ou politicamente comprometidas; no caso por elas examinado, apropriação de resultados da neurociência. Lesko e McCall descrevem algumas imagens de meninas veiculadas na literatura recente que pretendem com elas fundamentar diferenças inatas entre meninas e meninos, mulheres e homens, e assim sustentar a heterossexualidade como natural. As derivações políticas dessas pressuposições são espantosas: alertam-nos, de modo contundente, que nenhuma das conquistas da educação norte-americana progressivista ou da aqui chamada ‘escola nova’ é irreversível. Da mesma forma, cresce nos Estados Unidos a defesa da escolarização doméstica. Ao longo da exposição, as autoras sustentam críticas às teses defensoras do uso seletivo de dados neurocientíficos, mostrando que as pesquisas do cérebro que estabelecem sua distinção por gênero é ‘pseudociência’.

O artigo de Mariano Narodowski examina as transformações ocorridas nos processos de transmissão intergeracional e os impactos que elas produzem na construção das narrativas sobre a infância. No primeiro movimento do artigo, o autor chama Margaret Mead para apoiá-lo na relativização da tese durkheimiana de que a educação é o processo de transmissão cultural da geração mais velha à geração mais nova. Essa relação que vai dos mais velhos aos mais jovens só se daria em algumas circunstâncias históricas. Nas atuais circunstâncias, em que aquela relação vai deixando de ser assimétrica, em que a cultura vai sendo ‘desierarquizada’, jovens e crianças vão ganhando equivalência com os adultos. No segundo movimento do texto, Narodowski trabalha os efeitos da nostalgia produzida pela perda das relações assimétricas adultos-jovens / crianças. O nivelamento dos sujeitos sociais, a perda de hierarquia entre os mais velhos e os mais jovens estaria na base dos clamores nostálgicos pela velha infância (a ‘nostalgia reflexiva’ de Boym). No terceiro e último movimento, com o objetivo de ilustrar a busca simbólica da assimetria perdida, Narodowski traz à cena um capítulo da 23ª temporada da série Os Simpsons. Com essa ilustração, ele dá a ver que, na ‘nostalgia reflexiva’, não se trata da busca de um momento mágico ou mítico da infância nem da restauração de um passado melhor; o que está em jogo, apenas, ‘é a aproximação às vivências infantis que ordenavam a vida de uma maneira estável e previsível’, e que estão agora transformadas.

Em dois artigos, o foco recai sobre a Psicologia e os ramos que têm a criança e a infância como objetos; no conjunto, esses artigos efetuam a crítica tanto do processo de produção como dos processos de difusão e apropriação dos saberes gerados pelo campo psicológico ou pelos seus derivados diretos. A História da educação no Brasil muito se beneficiará desses estudos que fazem a análise interna de ramos psicológicos que moldaram o campo e as imagens de infância com as quais ele opera.

O artigo de Regina Campos, Maria Cristina Gouvea e Paula Cristina Guimarães busca analisar a recepção da obra de Binet e o uso dos testes no Brasil, nas primeiras décadas do século XX. Foram focalizados os autores que, em períodos históricos distintos, produziram críticas ao uso indiscriminado dos testes, ou enfrentaram resistências por parte de autoridades educacionais ao seu uso nas escolas. São eles: Manoel Bomfim, Maria Lacerda de Moura e Helena Antipoff. O objetivo das autoras não é fazer a crítica da obra de Binet, mas, sim, analisar o que denominam ‘as contrafaces da História da Psicometria no Brasil’, conferindo visibilidade às tensões e aos embates no uso dos testes na educação brasileira. Nos resultados apresentados, o artigo evidencia que o fato de a recepção de Binet e dos testes psicométricos no âmbito da educação ter sido crescente e vitoriosa não teria ocorrido sem resistências e reticências, tais como as interpostas pelos três autores destacados. Exame, aliás, destacado pelas autoras como fundamental para que se possa proceder criticamente em face da psicologização do campo pedagógico.

O texto de Mirian J. Warde trata da formação do campo dos estudos da criança nos Estados Unidos – o child study – sob a égide de G. Stanley Hall, nos anos em torno de 1880 a 1910. O artigo centra-se na luta dos discursos que disputavam a legitimidade para falar da criança, dos ‘seus’ adultos e das ‘suas’ instituições, para, assim, falar em seu nome. Aborda um momento importante, no qual a Psicologia está se afirmando como nova ciência e está construindo a sua hegemonia em assuntos pertinentes à criança e suas circunstâncias.

A importância de Stanley Hall na história dos estudos sobre a criança e o adolescente é confirmada pela literatura especializada. Do ponto de vista aqui adotado, o destaque a Hall deve-se, especialmente, ao fato de ter deslocado os parâmetros dos estudos e dos debates sobre a criança, suas relações com a Pedagogia e as reformas escolares, com os professores primários e pais; Hall polemizou em todas as frentes e formou um número vultoso e relevante de acadêmicos e líderes educacionais.

O artigo examina também o fato de Stanley Hall estar à testa de muitas frentes do movimento de institucionalização da Psicologia e da sua afirmação como campo autônomo de estudo; sua relação com a Psicologia não o teria impedido de entender o child study como um campo para o qual confluíam muitas disciplinas centradas em um único tema – a criança – cujos resultados deveriam ser revertidos em favor da Educação. No entanto, ainda que pregasse a favor da conjugação de vários pontos de vista no estudo da criança, Hall contribuiu decisivamente para produzir a hegemonia da Psicologia sobre as demais disciplinas, no que tange aos estudos da criança. O exame de suas iniciativas, portanto, dá a ver as complexas e tortuosas trajetórias percorridas pelo child study das quais resultam hegemonias e subordinações originalmente não planejadas.

Embora não seja seu foco, o artigo de Warde aponta para o peso da religiosidade na trajetória intelectual de Hall enquanto pugnava ferozmente pela subordinação dos estudos da criança, do adolescente e da Educação aos ditames da ciência. O tema, que aqui é apenas tangenciado, é o centro das atenções do artigo de Claudia Panizzolo.

O artigo de Panizzolo examina uma dimensão do projeto civilizatório dos metodistas no Brasil especificamente destinado à conquista, melhor seria dizer, ao amoldamento da alma infantil. Os missionários e educadores norte-americanos que fundaram igrejas e escolas metodistas no Brasil, entre a segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do século XX, criaram a Revista Bem-te-vi, destinada às crianças. No artigo, Panizzolo examina a construção e a difusão da imagem de criança impressa nas páginas da Revista e oferece evidências de que o projeto civilizatório dos metodistas, em termos gerais, não colidia com as proposições das lideranças que comandaram a implantação e a consolidação da República no Brasil. No que tange à Educação, a autora aponta que a Revista Bem-te-vi veicula mais um, entre tantos projetos em circulação e em disputa que pretendem civilizar as crianças, e que apresentam em comum a necessidade de moldar a infância para a modernidade. O caminho adotado foi o da centralidade da criança, do respeito às normas higiênicas, da disciplinarização do corpo e da mente das crianças (por meio da civilização de hábitos e condutas), e da valorização do ato de observar na construção do conhecimento das crianças.

Nesse sentido, constata certas convergências entre as idealizações da infância dispostas pelos metodistas e as idealizações liberais e republicanas postas em circulação no mesmo momento histórico.

Que os cinco artigos aqui reunidos contribuam não só para a ampliação das pesquisas sociais e históricas sobre a infância, mas, principalmente, para problematizar perspectivas e fertilizar novos programas investigatórios.

São Paulo, outono de 2013


WARDE, Mirian Jorge; PANIZZOLO, Claudia. Apresentação. Revista Brasileira de História da Educação, Paraná, v.14, n.2, maio / ago., 2014. Acessar publicação original [DR]

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