Kant et les sciences – GRAPOTTE et al (SS)

GRAPOTTE, S.; LEQUAN, M.; RUFFING, M. Kant et les sciences. Paris: Vrin, 2011. Resenha de: BARRA, Eduardo Salles de Oliveira. A ciência e o projeto crítico kantiano. Scientiæ Studia, São Paulo, v.11, n. 4, p. 947-57, 2013.

Permitam-me iniciar esta resenha com um relato autobiográfico. Em 2001, concluí a minha tese de doutorado em filosofia, cujo tema foi o envolvimento de alguns filósofos dos séculos XVII e XVIII com as questões científicas de seu tempo. Entre os filósofos focalizados, estava Immanuel Kant (1724-1804). Uma das grandes dificuldades que enfrentei para levar adiante essa investigação era a quase inexistência de comentários contemporâneos sobre os nexos entre a filosofia kantiana e a ciência do seu tempo. No início da década de 1990, quando iniciei meus estudos, podia-se contar apenas com os dois comentários clássicos sobre o assunto: os livros de Gerd Buchdahl (1988 [1969]) e de Jules Vuillemin (1955). Já naqueles anos, surgiram três novas publicações importantes, o novo livro de Buchdahl (1992), a coletânea de artigos organizada por Robert Butts (1986) e o magnífico trabalho de Michel Friedman (1992), que reputo ser o mais esclarecedor e estimulante estudo sobre o assunto até hoje publicado. Nos anos seguintes à finalização da minha tese, seguiu-se um movimento crescente de interesse pelo tema. Os livros mais recentes de Eric Watkins (2001, 2005) e de Michel Friedman (2013) são efeitos desse movimento.

Creio que o mesmo se possa dizer de Kant e as ciências (Kant et les sciences), publicação de 2011, organizada por Sophie Grapotte, Mai Lequan e Margit Ruffing. O livro reúne os trabalhos apresentados na nona edição do Congresso Internacional da Sociedade de Estudos Kantianos de Língua Francesa (SEKLF), ocorrido em setembro de 2009 na Universidade de Lyon III – Jean Moulin, cujo tema central foi o “estatuto da ciência e das ciências na filosofia de Kant” (p. 11). O primeiro aspecto que chama a atenção no projeto editorial de Kant e as ciências é aquele que não deve ter passado despercebido ao leitor atento no próprio enunciado do tema central do congresso, qual seja, a singularidade versus a pluralidade com respeito à ciência (ou seria “às ciências”?). Nisso consistirá grande parte do meu comentário a seguir. Mas, antes dele, devo prosseguir com mais alguns detalhes desse projeto editoral, entre cujas motivações certamente também encontraremos as incursões pioneiras de Buchdahl e Vuillemin e, ainda antes deles, Adickes (1924) nesse campo de estudo.

Para fins da publicação dos seus anais, o tema geral do congresso foi dividido em três eixos: (1) a teoria crítica e transcendental kantiana do conhecimento geral, (2) a articulação entre a primeira Crítica e os Prolegômenos com a pluralidade de ciências particulares e (3) “os saberes científicos que Kant mobiliza e para cujo progresso, eventualmente, contribui, ao realizar seja uma fundamentação seja uma crítica…” (p. 12) Os trabalhos relativos aos dois primeiros eixos foram, então, publicados no primeiro volume dos anais, volume esse intitulado Kant e a ciência (Kant et la science). O segundo volume, justamente este aqui resenhado, intitulado Kant e as ciências (Kant et les sciences), reúne os artigos incluídos no terceiro e último eixo temático.

Sobre os trabalhos reunidos nesse volume, os editores esclarecem que se trata de estudos consagrados às diversas ciências que Kant pretende considerar, [percorrendo esse conjunto] não à exaustão, mas na sua maior completude possível, incluindo metafísica, lógica, matemática, teologia, ciências da natureza (física, química, biologia, geografia física, história natural, cosmologia, astronomia) e ciências do homem e do espírito (antropologia, psicologia, moral, direito) (p. 12).

Um projeto que, em linhas gerais, verifica-se integralmente realizado à simples inspeção do índice dos capítulos e seções em que se dividem as 388 páginas da publicação. Há, ao menos, um capítulo destinado à análise do envolvimento de Kant com cada uma das ciências acima nomeadas. O espaço destinado a cada uma delas é, entretanto, desigual. Questões sobre a lógica e a matemática ocupam quase um terço do livro. As ciências da natureza ocupam outro um terço. O terço seguinte fica dividido entre dois blocos mais ou menos coesos, as ciências da vida (sciences du vivant) e a estética (enquanto se relaciona à teleologia da natureza), de um lado, as ciências do homem, de outro lado. As eventuais desigualdades de espaço destinadas a cada uma dessas grandes áreas são plenamente compreensíveis, na medida em que refletem os interesses desiguais do próprio Kant acerca de cada uma delas. Tomadas conjuntamente com as ciências da vida e teleologia natural, as ciências da natureza ocupam mais da metade da publicação, cerca de 190 páginas. Isso, naturalmente, reflete o estado de amadurecimento que essas disciplinas científicas encontravam-se à época de Kant e, assim, o quanto elas lhe chamaram a atenção em vista dos seus interesses específicos.

Mesmo admitindo que as desigualdades de tratamento reflitam as desigualdades de interesse do próprio filósofo, algo parece ainda desconcertante nessa desproporcionalidade, se a encaramos de um ponto de vista mais conceitual. O aspecto conceitual a que me refiro é relativo ao fato de o tratamento que Kant dispensou às várias ciências não se destinar apenas a reconhecê-las e explorá-las como um dedicado homem das Luzes o faria. Como os próprios autores lembram (p. 12), Kant reprova certas consequências que D’Alembert retira do “mapa mundi das ciências” construído na Encyclopédie em 1751. Longe de Kant, portanto, reduzir o seu interesse pelas ciências a um motivo meramente “enciclopédico”. Suas pretensões vão bem além disso. Ele parece querer mesmo regular o que pode haver de propriamente científico em seja lá qual for o tipo de crença pretensamente justificada e verdadeira. Aqui, as desigualdades deixam de ser de grau ou intensidade e passam a ser de gênero ou de natureza. Certas crenças ou saberes serão científicos não apenas de fato, mas também de direito. Outros talvez o sejam de fato, mas jamais o serão de direito. Essas desigualdades entre as ciências oferecerão à crítica uma oportunidade única para mostrar toda a sua força normativa e terapêutica, fazendo-nos ver, a uma só vez, por que certas crenças não são ciência e por que inevitavelmente nos iludimos a respeito do seu estatuto cognitivo. O caso mais exemplar dessa dupla aplicação da crítica é o da metafísica tradicional. Mas haverá outros. A psicologia e a química são outros dois exemplos que, de um certo modo, deveriam ser tão notórios quanto o da metafísica.

Mas, antes de explicar por que, a exemplo da metafísica, a psicologia e a química deveriam ser (parcialmente) excluídas do âmbito da ciência, vale a pena explorar mais o fato de a força terapêutica e normativa da crítica kantiana ser relegada a um segundo plano diante da expectativa de abertura para “as ciências” e o tratamento isonômico a elas dispensado. A “república das ciências” parece erguer-se à imagem e semelhança da “república das letras”, “que não teme a pluralidade de crenças” (Almeida, 2011, p. 120). O enciclopedismo incidental de Kant pode ter sido a fonte da generalização desse ponto de vista. Ocorre que, embora presente, não é o único ponto de vista sobre a ciência eleito por Kant. Ele pretende também apontar as distâncias que determinadas crenças estão de uma ciência digna desse nome. E seus argumentos não são baseados em contingências factuais. Há razões conceituais para que ele recuse o estatuto de ciência a determinados saberes, tais como a metafisica (da tradição), a psicologia e a química, para ficar apenas com os casos mais notórios. Para que as consequências desse fato possam adiante tornarem-se mais evidentes, façamos aqui uma breve divagação sobre esse último ponto.

Num artigo intitulado “A invenção da crise”, Ribeiro de Moura considera que “se Kant apresentava a razão como origem de ilusões, o que estava em questão ali era apenas o ‘uso especulativo’ da razão, e não a razão ela mesma, que se comportava muito bem no domínio da física e da matemática, ciências que por si sós nunca teriam suscitado o projeto crítico” (Moura, 2001, p. 185). Não é raro encontrar quem pense como Ribeiro de Moura. Não tenciono de modo algum contestar esse juízo sobre a maneira como a razão se comportara, segundo a ótica kantiana, na física e na matemática. Tomo-o pelo seu valor de face com o intuito de explorar a consequência tirada desse fato por Ribeiro de Moura e muitos outros comentadores. A consequência a que me refiro é a que a física e a matemática, por si sós, jamais teriam dado ensejo ao projeto crítico. Suspeito que essa seja a fonte mais imediata de uma visão distorcida sobre o significado do envolvimento de Kant com os temas e as questões colocadas pela ciência de seu tempo.

Tomemos o opúsculo Princípios metafísicos da ciência da natureza, que Kant preparou e publicou no intervalo entre as duas edições da primeira Crítica, mais precisamente em 1786. A título de um argumento inicial, vale dizer que o esquecimento a que essa obra foi submetida nos estudos kantianos – até ao menos meados das últimas décadas do século xx – é certamente um dos efeitos da visão de que as palavras de Ribeiro de Moura servem como uma expressão bem acabada. O esquecimento dos Princípios metafísicos decorre em grande parte da ampla aceitação da imagem de que Kant concebera a ciência e a metafísica como empreendimentos teóricos radicalmente distintos, a ponto de que a ciência por si só jamais teria suscitado o projeto crítico, cujo alvo exclusivo é apenas o “uso especulativo” da razão perpetrado pela malfadada metafísica dos modernos.

Creio que há, no mínimo, dois tipos de objeções que se podem levantar sobre tal enfoque interpretativo do projeto crítico kantiano. O primeiro é histórico-genético e consiste em investigar se, de fato, as questões colocadas pelas práticas científicas em curso à época de Kant não foram responsáveis pelo desencadeamento do projeto crítico. Não me servirei desse tipo de objeção. Minhas preocupações e meus motivos ficarão óbvios a seguir. Um segundo tipo de dúvidas, que eu chamaria aqui precariamente de analítico-conceitual, consiste em analisar os conceitos e os argumentos mobilizados por Kant para a consecução do seu projeto crítico e avaliar se, enfim, eles se destinam apenas a disciplinar o “uso especulativo” da razão ou se eles são, além disso, de alguma serventia para a ciência, sobretudo a física e a matemática.

Em princípio, ambos os tipos de objeções são complementares e mutuamente dependentes, nem que o sejam por razões heurísticas. A situação é semelhante àquela descrita pela famosa fórmula de Hanson – “a história da ciência sem a filosofia da ciência é cega… A filosofia da ciência sem a história da ciência é vazia” (Hanson, 1962, p. 580), que, conforme se sabe, é uma paráfrase de outra fórmula ainda mais famosa proferida pelo próprio Kant na primeira Crítica ao defender o uso solidário de conceitos e intuições. Talvez todas as minhas restrições ao projeto de Kant e as ciências possa ser resumido à sua “cegueira” no sentido de Hanson, justamente por privilegiar a abordagem genético-histórica em detrimento de um tratamento conceitual-analítico. Mas a cegueira em questão não decorre da ausência de uma filosofia da ciência qualquer. Decorre, sobretudo, da atitude de fechar os olhos para uma filosofia da ciência elaborada pelo próprio Kant, particularmente nos Princípios metafísicos de 1786. Afinal, não se pode dizer que a ausência dessa filosofia da ciência específica não seja ela própria o efeito de uma outra filosofia da ciência de uma matriz específica – de modo geral, daquela matriz que pulveriza a semântica do termo “ciência” em fragmentos tão atomizados que o único sentido possível do termo se refugia no seu uso plural, isto é, em “ciências”.

Para saber o que há de tão particularmente determinante em considerar a filosofia da ciência contida nos Princípios metafísicos, basta considerar que ali estão os critérios que Kant elegera para qualquer doutrina que se pretenda como “ciência”. Os critérios kantianos podem ser reduzidos a três: (i) seus conceitos devem ser suscetíveis de uma construção na intuição pura; (ii) seus princípios devem possuir o caráter de autênticas leis da natureza conhecidas a priori; (iii) seus diversos juízos, inclusive aqueles conhecidos apenas mediante a experiência, devem constituir um sistema e não uma mera rapsódia ou agregado doutrinário. O conjunto completo desses critérios está exemplarmente realizado em uma única doutrina, que é justamente aquela cujos conceitos, princípios e sistema teórico realizam mais precisamente a “metafísica especial da natureza material” a cuja exposição os Princípios metafísicos são destinados. Essa doutrina é a física newtoniana, com os seus conceitos de matéria, movimento e força, seus princípios de inércia e de ação e reação e, finalmente, seu “sistema de mundo” sustentado na ideia de uma gravitação universal.

Um dos pontos cegos no projeto de Kant e as ciências já salta aos olhos nessa altura. A obra praticamente ignora os Princípios metafísicos como um dos mais importantes e decisivos momentos do diálogo filosófico de Kant com “a pluralidade dos saberes”. Apenas um único e exíguo capítulo de Henry Blomme sobre a pretensão à cientificidade da química tem essa obra como seu assunto central, muito embora eles sejam mobilizados mais em virtude dos problemas da química do que propriamente daqueles da física. No prefácio aos Princípios metafísicos, Kant contesta a cientificidade da química por essa não cumprir as condições contidas nos critérios (i) e (ii) acima, ou seja, não possuir uma “parte pura”, requisito indispensável para que uma doutrina possa conter leis da natureza genuínas, isto é, “o conceito da necessidade de todas as determinações de uma coisa, inerentes à sua existência” (Kant, 1990 [1786], p. 6). Em uma palavra, a química não pode ser ciência, pois nela não se pode aplicar a matemática, tomada aqui como uma extensão das condições transcendentais da objetividade, “uma pura teoria da natureza acerca de coisas naturais determinadas (doutrina dos corpos e doutrina da alma) só é possível por meio da matemática; e visto que em toda a teoria da natureza se encontra apenas tanta ciência genuína quanto conhecimento a priori com que aí se depare, assim, a teoria da natureza conterá unicamente tanta ciência genuína quanta matemática que nela se pode aplicar” (Kant, 1990 [1786], p. 10). Sendo assim, nada mais coerente que a física newtoniana seja a única a cumprir regiamente esse desideratum. A química pré-lavoisieriana – isto é, a química do flogístico de Becher, Stahl e, finalmente, Priestley –, segundo Kant, estava fadada a permanecer como uma “arte sistemática ou uma teoria experimental”, em virtude de a inteligibilidade das ações químicas não se mostrar por meio de conceitos “que se possa construir”, limitando-se a conceitos que “não tornam minimamente inteligíveis os princípios dos fenômenos químicos segundo sua possibilidade, porque são incapazes da aplicação da matemática” (Kant, 1990 [1786], p. 10).

Tudo isso está muito bem discutido no capítulo de Kant e as ciências assinado por Henry Blomme. Ele não se limita a analisar as palavras acima de Kant retiradas do prefácio dos Princípios metafísicos, tal como se tornou lugar comum, estendendo suas análises às partes internas do livro e, assim, enfrentando o desafio de esclarecer o diagnóstico negativo com respeito à cientificidade da química em contraponto ao diagnóstico positivo para o caso da física. Blomme elege o princípio da “foronomia” como o mais decisivo para esse efeito. O princípio da foronomia estabelece o movimento como sendo o único conceito pelo qual se pode construir a determinação pura da matéria como algo que ocupa um espaço.

O artigo de Blomme ainda se estende ao capítulo seguinte, dos Princípios metafísicos, sobre a dinâmica, mas sua análise declina em vigor e profundidade, deixando inconcluso o modo como deve ser compreendido o veredicto negativo de Kant na transição de um tratamento meramente mecanicista – fundado no conceito de movimento – para um tratamento decididamente dinamista – fundado no conceito de “forças essenciais da matéria” ou as condições sob as quais a matéria não apenas ocupa um espaço, mas também o preenche. Para Blomme,

a química não poderá se tornar uma verdadeira ciência da natureza enquanto as reações químicas não puderem ser representadas a priori como movimentos: o modo exclusivo pelo qual as matemáticas podem ser a ela aplicadas e os seus princípios empíricos podem ser substituídos por uma parte pura na qual seria fundamentada a necessidade das verdadeiras leis químicas” (p. 167),

e termina de modo lacônico com a seguinte hipótese: “talvez se possa chegar assim a uma determinação da matéria apta a apreender a priori a necessidade das reações químicas” (p. 168).

As pequenas – mas marcantes – deficiências da análise de Blomme refletem a pouca atenção dispensada à realização exemplar do modelo de ciência sustentado pelos Princípios metafísicos. Uma cuidadosa consideração da física mostraria, entre outra coisas, que as condições transcendentais para os objetos da natureza material estabelecidas pela dinâmica tampouco se realizam plenamente nessa ciência. O problema, de maneira muito resumida, seria o fato de as “forças essenciais da matéria” serem refratárias a uma construção na intuição pura, comprometendo assim a incorporação do conceito dessas forças em uma autêntica metafísica da natureza e, consequentemente, em uma ciência genuína da natureza material. A simples consideração desse fato, no mínimo, conferiria um caráter contrafatual à hipótese final de Blomme.

Nem por isso, entretanto, Kant recua em sua escolha da física como sendo a ciência da natureza por excelência. É por essa decisão que se sabe, entre outras coisas, que a psicologia não pode ser uma ciência propriamente dita, tal como ocorre com a química. No caso da psicologia, o problema é a impossibilidade de uma “metafísica especial” que fizesse dos objetos do sentido interno, isto é, da psicologia, a contraparte dos objetos do sentido externo, isto é, da física, cuja possibilidade repousa justamente na certeza da necessidade de uma metafísica especial da natureza material ou dos objetos dos sentidos externos. Dito isso, Kant retira esta conclusão acerca da psicologia ou da “doutrina empírica da alma” cujos desdobramentos terão consequências ainda mais amplas:

[a psicologia] nunca pode ser outra coisa exceto uma teoria natural histórica do sentido interno, e, como tal, tão sistemática quanto possível, isto é, uma descrição natural da alma, mas não uma ciência da alma, nem sequer uma doutrina experimental psicológica; eis também a razão por que é que a esta obra (…) demos o título geral de ciência da natureza, porque tal designação convém-lhe em sentido próprio e, por conseguinte, nenhuma ambiguidade assim se origina (Kant, 1990 [1786], p. 17).

Em Kant et les sciencies, que reserva toda uma seção para o tema da antropologia e da psicologia, apenas uma única vez a restrição à cientificidade da psicologia é mencionada . No seu artigo, “L’antropologie du point de vue pragmatique est-elle une psychologie?”, Gilles Blanc-Brude refere-se às palavras de Kant no Prefácio dos Princípios metafísicos acerca da psicologia e delas conclui que “uma teoria natural histórica do sentido interno” aplicada à psicologia deve ser compreendida como uma afirmação do seu caráter sistemático. Vejam que a sistematicidade consta como o terceiro dos três critérios elencados acima para uma ciência genuína da natureza. Por isso, talvez BlancBrude seja tão enfático ao afirmar que

essa questão do lugar sistemático compromete o destino da psicologia como ciência. Situá-la no interior do sistema crítico significa mantê-la sob a dependência de uma metafísica e de um saber. Situá-la no exterior significa justificar de antemão o desenvolvimento de uma disciplina positiva, mas indiferente aos fins (p. 323).

As palavras de Blanc-Brude, nessa altura, assumem um caráter muito enigmático. Mas é possível que o comentador queira nos fazer crer que a sistematicidade – à qual o destino da cientificidade da psicologia parece estar tão estreitamente ligado – significa tão somente a sua inserção no interior do sistema da filosofia crítica kantiano. Nesse caso, a psicologia aproximar-se-ia da metafísica e afastar-se-ia das demais “disciplinas positivas”. Ora, se for isso, nada mais contrário às intenções de Kant. Para ele, o movimento de aproximação e afastamento seria justamente o inverso, quanto mais sistemático, tanto mais científico.

Se essa inversão da equação de Blanc-Brude estiver correta, mesmo contrariando a passagem acima dos Princípios metafísicos, é inegável que destacar o seu caráter sistemático representa um ganho expressivo para o enquadramento da psicologia no conjunto das ciências. Sendo assim, não seria de todo equívoco reunir tanto a psicologia quanto a química sob o título de “ciências”, mesmo reconhecendo que esse título tem aplicação inequívoca apenas a um único caso, a física, por ser a única a cumprir (quase) integralmente as três condições para uma ciência da natureza. Isso também significa admitir um cumprimento parcial das três condições ou, dito de outro modo, que a sistematicidade possa ser suficiente para, ao menos, colocar um tipo de doutrina no “caminho das ciências”. Mas, conforme é amplamente conhecido, os pensamentos de Kant sofreram grandes alterações ao término da segunda edição da primeira Crítica em 1787, sobretudo quando ele passou a cogitar que as determinações do entendimento não deveriam esgotar os componentes constitutivos apriorísticos do nosso conhecimento empírico. Os resultados dessa mudança aparecem na terceira Crítica em 1790, na qual Kant introduz a faculdade do juízo teleológico como responsável pelo fechamento das determinações do entendimento e, assim, pela promoção da máxima unidade sistemática da experiência. A sistematicidade ganha, então, um lugar de destaque no pensamento kantiano, com reflexos na sua concepção da ciência da natureza.

O mais bem estruturado e orientado capítulo de Kant e as ciências trata justamente de uma ciência que ganha lugar de destaque com os novos interesses de Kant nas condições da promoção da máxima unidade sistemática da experiência. Esse capítulo, cujo título é “La place de l’analytique de la biologie dans la philosophie transcendentale”, é de autoria de Philippe Huneman. O autor havia publicado em 2008 um estudo rigoroso sobre as fontes biológicas mobilizadas pela terceira Crítica, com ênfase no conceito de organismo (cf. Huneman, 2008). No seu artigo, Huneman situa o conceito de organismo no centro do esclarecimento do nosso padrão de cientificidade que emerge em torno da exigência de sistematicidade. Mas não é apenas a originalidade da análise de Huneman que merece destaque. Também o merece o cuidado com o qual ele articula suas análises a parcelas mais amplas do corpus kantiano. Para introduzir o novo significado que a sistematicidade adquire para Kant, ele observa que esse conceito tem sua origem na diferença entre

a natureza – isto é, o conjunto de coisas subsumidas a leis, segundo os Princípios metafísicos da ciência da natureza, os quais remetem precisamente aos princípios transcendentais da experiência possível – e a ordem da natureza, segundo a qual as diferentes leis empíricas se combinam em um todo coerente, isto é, a sistematicidade. A própria natureza ergue-se do entendimento (via os princípios do juízo sintético a priori); ela não implica qualquer finalidade e pode-se ter uma natureza sem ordem da natureza. Entretanto, o interesse da razão é precisamente a sistematicidade, sem a qual nenhuma metodologia seria possível (…). Em outros termos, as diferentes exigências de sistematicidade não definem os métodos, mas são o transcendental de toda metodologia. O outro nome da sistematicidade é a finalidade, pois ela significa que a natureza aparece como se estivesse à mercê da nossa faculdade de conhecer. Nesse sentido, essa finalidade é estritamente sinônimo da exigência de sistematicidade da ciência (p. 255-6).

A distinção entre natureza e ordem da natureza vem justamente nos lembrar o quanto as determinações da primeira – basicamente, aquelas decorrentes da aplicações dos critérios (i) e (ii) acima – são insuficientes para uma analítica completa da natureza – sobretudo, daquela que inclui os seres vivos entre os seus objetos potenciais. Isso assegura que pode – e deve – haver uma sistematicidade irredutível à natureza, ela mesma. Para essa sistematicidade de segunda ordem – aquela que conferirá uma unidade orgânica às leis retiradas da experiência –, será preciso mobilizar outras fontes que não apenas a razão pura e os seus princípios a priori. Requer-se para isso a finalidade ou o interesse da razão. O conceito de organismo é, por exemplo, irredutível apenas às determinações do entendimento e não poderia ser, então, construído em uma intuição pura. Para a sua experiência completa, os organismos requerem outras fontes para a sistematicidade, uma vez que não se podem compreendê-los manipulando apenas categorias do entendimento, entre as quais se destaca a causalidade mecânica. Em outras palavras, requer-se uma causalidade teleológica, de tal modo que “mecanismo e teleologia são, então, articulados no juízo biológico completo” (p. 262).

O artigo de Huneman é um exemplo bem acabado do quanto se ganha na compreensão do envolvimento de Kant com a “pluralidade de saberes” encarando-o também do ponto de vista da filosofia da ciência kantiana. Todavia, dado o escopo do seu artigo, ele não pôde prolongar a explicação do que seria a ciência assentada sobre um conceito robusto de natureza – a física. A lamentar, então, que o livro não ofereça em nenhum de seus outros artigos considerações mais detalhadas sobre a física. Sem essas considerações, o leitor menos informado sobre o assunto permanecerá ignorante do único modelo de ciência que oferece um esquema completo para o princípio do mecanicismo. Conforme tentei mostrar acima, não se trata de uma simples omissão de um entre tantos outros possíveis candidatos à “pluralidade dos saberes” aos quais Kant dedicou sua atenção. A omissão da física significa a omissão dos próprios critérios de cientificidade, sem os quais toda “pluralidade de saberes” degenera-se em pura rapsódia sem nenhuma unidade possível – sobretudo sem a unidade sistemática que é uma exigência para toda e qualquer ciência em particular, mas também para todas elas tomadas como uma totalidade. Sem a ideia dessa unidade, a ciência torna-se uma atividade irremediavelmente cega, senão gratuita e destituída de qualquer interesse para o projeto crítico kantiano.

Mas resta saber por que os organizadores de Kant e as ciências não teriam se dado conta dessa desastrosa omissão. Arrisco dizer que, retomando a divisão que sugeri acima, eles produziram um projeto editorial baseado num enfoque histórico-genético e descuidaram acintosamente da sua contraparte analítico-conceitual. Essa escolha, apesar de seus objetivos declarados, é fortemente inspirada pela concepção de que a física e a matemática são “ciências que por si sós nunca teriam suscitado o projeto crítico” (Moura, 2001, p. 185). Paradoxalmente, isso explica por que nenhuma atenção se dá à física (e, em parte, à própria matemática) em Kant e as ciências. Um livro inteiramente dedicado ao diálogo de Kant com as ciências, mas que omite justamente aquela parte do diálogo que poderia nos conduzir ao âmago do projeto crítico e, assim, interferir decisivamente no modo de compreender esse projeto e suas relações de dependência mútua com a “pluralidade de saberes”. Submeter o diálogo a uma reconstrução meramente histórico-genética pode ser ilustrativo, mas não será nada esclarecedor, se não for também reconstruído de modo analítico-conceitual. Valem aqui as palavras do próprio Kant após considerar o projeto enciclopedista de D’Alembert, na seção 4 da Introdução da Lógica: “há de se tornar merecedor da História como um gênio quem a compreender sob ideias capazes de permanecerem para sempre” (Kant, 1992 [1800], p. 61).

Nesse aspecto particular, Kant e as ciências diverge acentuadamente de outras publicações sobre o mesmo tema surgidas nos últimos anos. No prefácio da sua obra mais recente, Friedman, por exemplo, defende que seja atribuído um papel central aos Princípios metafísicos dentro do período crítico da filosofia kantiana. “Estou convencido, em particular, de que não é possível compreender adequadamente esse período crítico sem dedicar uma atenção detalhada e intensiva ao comprometimento de Kant com a ciência newtoniana” (Friedman, 2013, p. xi). Enunciando de modo afirmativo a relação defendida por Friedman, podemos dizer que uma análise do comprometimento de Kant com a ciência newtoniana permite uma melhor compreensão da filosofia crítica kantiana. E isso, pelo que defendi até aqui, justifica-se não apenas pelo que a ciência newtoniana tem em comum com as demais ciências inclusas na pluralidade dos saberes que despertaram o interesse de Kant. Mas, ao contrário, pelo que ela tem de particular, que são, em última análise, os nexos que prendem o interesse de Kant pelas ciências ao restante do edifício crítico.

Referências

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ALMEIDA, M. C. O elogio da tolerância em Pierre Bayle. Cadernos Espinosanos, 24, p. 115-39, 2011.

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_____. Kant and the dynamics of reason. Oxford: Blackwell, 1992.

BUTTS, R. E. (Ed.). Kant’s philosophy of physical science. Dordrecht: D. Reidel, 1986.

FRIEDMAN, M. Kant and the exact sciences. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1992.

_____. Kant’s construction of nature: a reading of the metaphysical foundations of natural science. Cambridge: Cambridge University Press, 2013.

HANSON, N. R. The irrelevance of history of science to philosophy of science. The Journal of Philosophy, 59, p. 574-86, 1962.

HUNEMAN, P. Métaphysique et biologie: Kant et la constitution du concept d’organisme. Paris: Kimé, 2008.

KANT, I. Princípios metafísicos da ciência da natureza. Tradução A. Morão. Lisboa: Edições 70, 1990 [1786].

_____. Lógica. Tradução G. A. de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992 [1800].

MOURA, C. A. R. de. A invenção da crise. In:_____. Racionalidade e crise. São Paulo/Curitiba: Discurso Editorial/Editora UFPR, 2001. p. 185-205.

VUILLEMIN, J. Physique et métaphysique kantiennes. Paris: PUF, 1955.

WATKINS, E. Kant and the sciences. Oxford: Oxford University Press, 2001.

_____. Kant and the metaphysics of causality. Cambridge: Cambridge University Press, 2005.

Eduardo Salles de Oliveira Barra – Departamento de Filosofia. Universidade Federal do Paraná, Brasil. E-mail: eduardosobarra@gmail.com

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Oeuvres Complètes – TRACY (C-FA)

TRACY, Destutt de. Oeuvres Complètes. Ed. Claude Jolly. Volume I Premiers écrits. Sur l’éducation publique. Paris: Vrin, 2011. Volume III Élements d’idéologie, 1L’idéologie proprement dite. Paris: Vrin, 2012. Resenha de: PIMENTA, Pedro Paulo. Os antípodas franceses de Kant. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, n.19 Jan./Jun., 2012.

A publicação na França pela editora Vrin dos primeiros volumes de uma edição das obras completas de Destutt de Tracy 1, promete preencher uma lacuna importante nos estudos de história da filosofia moderna, ao tornar acessível a obra do principal representante da corrente filosófica autodenominada “Ideologia”, que vicejou durante os turbulentos anos da Revolução Francesa e prosperou sob a égide das instituições republicanas – primeiro a Escola Normal, posterior mente o Instituto – que substituíram as antigas academias e escolas reais. Entre 1794 e 1815 a Ideologia (“ciência das ideias”, ou da “análise das ideias”) dominou inconteste a paisagem intelectual francesa, que logo a seguir seria conquistada por outra espécie de ideologia – a dos alemães. A hostilidade do Idealismo (e do Materialismo) frente à escola francesa pode ser medida pela condenação da Ideologia por Engels: a exemplo do Iluminismo, a nova filosofia burguesa apenas reifica, ao querer criticá-la, a realidade 2. Em que medida uma afirmação como essa se aplicaria, por exemplo, a uma obra como o monumental Tratado de economia política (1804), de Jean-Baptiste Say, ligado à Ideologia, responsável pela libertação do pensamento econômico francês em relação aos dogmas dos fisiocratas, não nos cabe aqui examinar 3. Certo é que o ataque de Engels passa ao largo do mais importante, pois o grande legado na Ideologia não é teórico, mas institucional. Graças ao empenho dos idéologistes (que Napoleão jocosamente apelidará de idéologues ), o projeto de uma educação nacional pública e universal, formulado pelos deputados da Convenção (divisado por Condorcet), começa a se tornar realidade na época do Diretório (sob os auspícios de Garat e Lakanal); e sem o empenho dos Ideólogos não teríamos visto a “reorganização institucional da medicina” 4 que marca a França do período revolucionário e define as feições modernas da clínica.

O projeto de uma ciência analítica das ideias não chega a ser original. Como reconhecem os seus principais adeptos (Tracy, Cabanis), a nova filosofia é inaugurada por Condillac, que, a partir de 1746, com a publicação do Ensaio sobre as origens do conhecimento humano, se projetara, nas palavras de Voltaire, como “o grande metafísico” da França do século XVIII. A essa obra inicial, Condillac acrescentaria, notadamente, o Tratado das sensações (1754), a Lógica (1780) e, por fim, A língua dos cálculos, que, publicada postumamente em 1798, representa a suma dos esforços do filósofo para forjar uma liga entre a ciência dos signos (gramática geral) e a ciência das ideias (lógica geral). A enorme influência de Condillac se faz sentir já nos artigos sobre linguagem e gramática que Dumarsais, e, posteriormente, Beauzée, redigem para a Encyclopédie, e torna-se decisiva quando, em 1794, após o golpe do Termidor, a Convenção institui em Paris a École Normale, academia de ensino destinada à formação de professores para os liceus nas províncias. Os pilares da educação pública são o ensino da língua francesa (em detrimento dos dialetos locais) e o da matemática (geometria, álgebra). Programa perfeitamente conveniente à filosofia de Condillac, que concebe a análise e a invenção como os métodos (complementares) de todo pensamento como forma, que se constitui, articula-se e se expande por meio do recurso a signos – sejam eles verbais, sejam algébricos. Na base dessa ciência dos signos encontra-se uma crítica da metafísica e do conhecimento em geral, que, como mostra Condillac ( Tratado dos sistemas, 1742), muitas vezes não passa de uma deturpação metódica, mas falsa, dessa espécie de instinto natural dos homens que os leva, no conhecimento das coisas, do mais simples ao mais complexo. Educar nada mais é do que reconstituir os passos que os homens dão quando seguem a natureza – o que está ao alcance de todos, desde que devidamente orientados pelo filósofo (que conhece os caminhos que conduzem, no interior da cultura, ao encontro da natureza).

No curtíssimo período de sua existência (janeiro a maio de 1795), a Escola Normal, situada em Paris, mais exatamente no Jardin des plantes (no prédio que atualmente abriga a Galeria da Evolução), ofereceu cursos de matemática, física, química, história natural, geografia, história, moral, economia política, literatura, arte de falar e análise do entendimento, alguns deles ministrados por grandes nomes, como Laplace, Monge ou Daubenton. Transcritos por inspetores nomeados pela Convenção, tais cursos foram parcialmente publicados no século XIX, e, a partir desse material, encontram-se atualmente disponíveis em cuidadosas edições críticas 5. A partir deles, podemos ter uma ideia da efervescência intelectual da França revolucionária. Embora a presença da filosofia de Condillac se encontre inequivocamente em outros cursos, em especial nos de geometria (Laplace), história (Volney) e economia política (Vandermonde), é nas classes de arte da fala (Sicard) e de análise do entendimento (Garat) que o seu legado é mais presente.

O paralelismo entre arte da fala e gramática, de um lado, análise do entendimento e lógica, de outro, simplifica um arranjo na verdade mais interessante. Como explica Garat em sua segunda lição, “à teoria das ideias está unida, de maneira imediata e íntima, a teoria da linguagem ou das línguas”, que examina “os meios de exprimir as nossas ideias”, ou seja, que determina o modo como o pensamento se articula, adquire precisão e acabamento 6. Já Sicard, desde a primeira lição de seu curso, adverte que

Falar é uma arte, mas nem todos os povos, mesmo os civilizados, falam com a mesma pureza, com a mesma exatidão, com a mesma riqueza de expressões e de formas de frases. Os que mais avançaram nas artes são também os mais ricos em nomenclatura; os que desenvolveram mais o entendimento e tiveram oportunidade de receber mais impressões, e têm, por conseguinte, mais ideias, têm também mais signos para exprimi-las e mais variedade na maneira de expô-las e de comunicá-las 7.

O repertório de ideias enriquece a língua, que, por meio de analogias, forma termos e aumenta o vocabulário e as maneiras de expressão, tornando-se apta para abarcar cada vez mais fenômenos. Sem os signos, como advertira Condillac, não há progresso do conhecimento.

O curso de Sicard tem, porém, uma peculiaridade, que o destaca daquele de Garat, que é bastante convencional quanto à abordagem da questão. Para ensinar a arte da fala, ele ministra aulas dedicadas à formação de uma língua dos surdos-mudos. Maneira engenhosa de ensinar uma ciência que, por definição, parece estar ligada ao signo verbal, emitido pela voz (assim compreendem a gramática os grandes acadêmicos dos séculos XVII e XVIII). Para Sicard, na esteira de Condillac e dos gramáticos da Encyclopédie, o essencial da arte de falar não é a voz, mas os signos e o modo como eles ordenam e exprimem o pensamento 8. Constitui-se, ao longo de suas lições (preservadas quase que integralmente), uma doutrina original, de caráter pragmático e finalidade republicana, cujo intuito é a educação dos surdos-mudos, visando a inclusão destes na esfera política ou na vida pública nacional francesa. Ao mesmo tempo, Sicard toma posição num debate que agita os estudiosos da linguagem na virada do século. Trata-se de saber se uma possível língua dos surdos-mudos seria feita a partir das línguas faladas ou se teria uma gramática própria 9. Ora, para Condillac e os seus, uma língua nada mais é que um sistema de signos; que ela seja falada ou não, é uma contingência, que não tem força suficiente para alterar o encadeamento necessário dos signos, encontre-se ele nas línguas verbais ou na língua dos cálculos.

O ambicioso projeto a que tais doutrinas estavam vinculadas foi abortado com o fechamento da Escola Normal após poucos meses de atividade. Com a criação do Instituto Nacional, que funciona entre 1796 e 1803 (quando é dissolvido pelo Consulado), a tarefa da filosofia é outra, menos pragmática, trata-se agora de produzir “trabalhos científicos e literários que tenham por objetivo a utilidade geral e a glória da república” 10. Apesar da mudança, permanece a marca da nova filosofia, que reclama para si a herança de Condillac ao mesmo tempo em que se vincula a instituições republicanas. No Instituto, encontraremos em atividade Sicard, Garat e Volney, ao lado de Destutt de Tracy e Cabanis, que se conheceram no salão de madame Helvétius (que atravessa incólume a Revolução), e aos quais caberá renovar o pensamento de Condillac e reinventar a ciência dos signos como “Ideologia propriamente dita”. A denominação – ausente em Garat ou em Sicard – representa uma virada importante, como explica Laurent Clauzade em seu estudo magistral, L’idéologie ou la révolution de l’analyse :

A palavra Ideologia, por implicar uma oposição à metafísica e postular uma identidade entre pensamento e percepção, inscreve diretamente a ciência que ela designa no paradigma inaugurado por Condillac. No entanto, contrariamente ao que acontece com Garat, esse enquadramento não representa uma restrição. Além das modificações significativas que Tracy introduzirá na concepção de análise de Condillac, a Ideologia dará a essa doutrina um sentido radicalmente diferente, ao abrir um horizonte de pesquisa que não se limita à análise racional. (…) A Ideologia pretende realizar a doutrina de Condillac. Isso significa que ela não é mais, como em Garat, uma ciência cujo único fim é estabelecer um método universal (a análise), mas deve também se inscrever, segundo as palavras de Cabanis, numa “ciência do homem”, numa “antropologia” 11. O que se entende em Paris, no ano IV da República, por “antropologia” ou “ciência do homem” é algo bem diferente do que Hume chamara de “ciência da natureza humana” e não tem nada a ver com o que Kant chama de “antropologia”. Para Cabanis como para Tracy, o homem é, antes de tudo, um ser natural, que age por instinto antes de ter o conhecimento de regras. Condillac, Garat e Sicard haviam dito o mesmo, sem, contudo, dar o passo seguinte. Mantendo-se prudentemente dentro das fronteiras da filosofia como discurso que versa a condição de possibilidade do conhecimento, Condillac jamais ousara afirmar a pertença integral do homem ao mundo natural a ponto de considerar, como faz Cabanis, que o estudo do homem é um ramo da filosofia experimental (ligado ao tronco da fisiologia), ou, como Tracy, de concluir que a Ideologia é “uma parte da zoologia”. Essa última afirmação, feita no “Extrato ponderado dos Elementos de ideologia ” (1804), prenuncia a Philosophie zoologique de Lamarck (1809)

O engate da Ideologia na zoologia nos põe bem distantes da semiótica projetada por Condillac a partir das indicações de Locke na conclusão do Ensaio sobre o entendimento humano. Com efeito, em Tracy a ciência dos signos é subordinada a uma teoria da sensação, em que o pensamento, que Condillac deduzira da sensação mesma, desponta agora como potencialidade independente da afecção sensível, e que se exerce, portanto, em algum grau, anteriormente à aquisição de signos (dado que esta resulta da interação entre imaginação e sensação) 12. Uma tese similar a essa fora sugerida por Condillac no Tratado das sensações, mas não fora desenvolvida nas obras que se seguiram. Na versão proposta por Tracy, encontra-se o germe de certo dualismo, que o filósofo se empenhará em resolver nos Elementos e que está na origem do espiritualismo de antigos adeptos da Ideologia, em especial Degérando e Maine de Biran. Ora, como mostra Élisabeth Schwarz em estudo definitivo a respeito 13, esse aparente retrocesso no campo da teoria dos signos consagra, ao mesmo tempo, o fim da gramática geral, de que Condillac fora o derradeiro representante, e anuncia uma ruptura com o saber clássico, ou mais precisamente com uma de suas vertentes, o empirismo, que, desde Locke, andava de mãos dadas com uma ciência dos signos. A elaborada reflexão de Tracy, nos Elementos de ideologia, sobre a natureza dos signos e da linguagem, está ancorada não numa teoria da sensação, mas sim no postulado – esboçado por Condillac – de que toda atividade humana se explica, em última instância, pelo “feitio” ( organisation ) natural do homem. A afecção de objetos exteriores não incita a utilização de signos; esta decorre de capacidades fisiológicas, de uma configuração natural que o homem amplia e desenvolve, num movimento do qual nasce o mundo da cultura.

A tese de que haveria uma ruptura entre Ideologia e saber clássico não é, porém, consensual entre os estudiosos. Foucault, numa das poucas passagens de As palavras e as coisas que está ao abrigo da pecha de imprecisão histórica, traçou um vivo painel do contraste entre “a última das filosofias clássicas” e a filosofia que inaugura a modernidade:

A coexistência, no final do século XVIII, da Ideologia e da Filosofia Crítica – de Destutt de Tracy e de Kant – partilha, sob a forma de dois pensamentos exteriores um ao outro mas simultâneos, o que as reflexões científicas mantêm numa unidade destinada a dissociar-se dentro em breve. Em Tracy ou Degérando, a Ideologia se apresenta ao mesmo tempo como a única forma racional e científica que a filosofia possa revestir e como o único fundamento filosófico que possa ser proposto às ciências em geral e a cada domínio singular do conhecimento. Ciência das ideias, a Ideologia deve ser um conhecimento do mesmo tipo que aqueles que se dão por objeto os seres da natureza, ou as palavras da linguagem, ou as leis da sociedade. Mas, na medida mesma em que tem por objeto as ideias, a maneira de exprimi-las em palavras e de ligá-las em raciocínios, ela vale como gramática e lógica de toda ciência possível. A Ideologia não interroga o fundamento, os limites ou a raiz da representação; percorre o domínio das representações em geral; fixa as sucessões necessárias que aí aparecem; define os liames que aí se travam; manifesta as leis de composição e decomposição que aí podem reinar. Aloja todo o saber no espaço das representações e, percorrendo esse espaço, formula o saber das leis que o organizam. É, em certo sentido, o saber de todos os saberes. (…) A análise da representação, no momento em que atinge sua maior extensão, toca, em sua orla mais exterior, um domínio que seria mais ou menos – ou antes, que será, pois não existe ainda – o de uma ciência natural do homem. Por diferentes que sejam pela forma, pelo estilo e pelo intento, a questão kantiana e a dos ideólogos têm o mesmo ponto de aplicação: a relação das representações entre si. Mas essa relação – o que a funda e a justifica –, Kant não a requer ao nível da representação, interroga-a na direção do que a torna possível em geral.

Ao invés de fundar o liame entre as representações por uma escavação interna que o esvaziasse pouco a pouco até a pura impressão, estabelece-o sobre as condições que definem a sua forma universalmente válida. Dirigindo assim sua questão, Kant contorna a representação e o que nela é dado, para endereçar-se àquilo mesmo a partir do qual toda representação, seja qual for, pode ser dada 14.

Concorde-se ou não com a tese geral defendida por Foucault nessa passagem, permanece válido o contraste proposto entre Ideologia e Crítica. Além de instrutivo, o quadro desenhado fornece o programa de uma investigação, de cunho histórico-filosófico, sobre eventuais documentos que pudessem atestar, de fato, a rivalidade entre os dois projetos filosóficos que rivalizam no ocaso do Século das Luzes. Pois, em certa medida, é da herança das Luzes que se trata em ambos. Infelizmente, Kant nunca disse palavra acerca dos idéologues, nem mesmo de Condillac (muito lido na Alemanha de seu tempo).

Em compensação, a crescente reputação do filósofo alemão não tardou a chegar a Paris, onde a Crítica foi examinada justamente por aqueles que mais razão tinham de recear a sua influência.

O fato de a Alemanha ser um país periférico no mapa das Luzes talvez explique porque os franceses não tenham se dado ao trabalho de ler Kant no original. Com pouquíssimas exceções, contentaram-se com exposições de segunda mão. Será preciso esperar por Madame de Stäel para advertir os franceses de que Kant, por ser um grande estilista da língua alemã, só pode ser compreendido adequadamente pelos conhecedores desse idioma 15. Para os idéologues, porém, o ato da leitura não deixa de ser um embaraço. Como diz Tracy, “os signos, por mais vantajosos que sejam, têm inconvenientes”, o principal deles sendo a opacidade desses meios de representação, que não têm nada em comum com as ideias 16. Mais vale, portanto, na leitura de uma obra de filosofia, guiar-se por certo tino conceitual do que se deter na forma da exposição. Um abregée competente da Crítica da razão pura pode valer mais do que a obra mesma, principalmente se o objetivo de quem o lê for não refutar uma doutrina e sim marcar posição em relação a ela. Por isso, Tracy, autor de um “Extrait raisonée” dos Elementos de ideologia (a título de “tableau analytique” da obra) não hesita em recorrer, em sua comunicação “De la métaphysique de Kant” (1802), ao livro de J. Kinker, “Essai d’une exposition succinte de la Critique de la raison pure ” (Amsterdam, 1801) 17, em busca de um tableau analytique que Kant não ofereceu (os Prolegômenos são outro livro, não um apanhado da Crítica da razão pura ).

Tracy, endereçando-se aos “cidadãos da república” (estamos no sétimo floreal do ano 10 da Revolução), começa elogiando as virtudes de Kant, que além de “célebre por um grande número de obras, justamente estimadas, de muitos gêneros”, contribuiu “para o progresso das luzes e para a propagação de ideias saudáveis e liberais”. Os alemães, contudo, parecem não ter compreendido esse espírito, pois “professam a doutrina de Kant como se estivessem professando a doutrina teoló gica de Jesus, de Maomé ou de Brama”. Confundem assim a qualidade do pensamento com a “autoridade do homem”, e na virada do século estão na mesma situação que os franceses de outrora, embasbacados com o pensamento de Descartes, cegos para a ciência de Newton 18.

Por essa mesma razão, os alemães condenam em bloco os franceses como “discípulos de Condillac”, ignorando, todavia, que “não são as decisões de Condillac que nós respeitamos, é o seu método que mais nos importa (…), por mostrar, melhor que qualquer outro, no que consistem a clareza das ideias e a justeza do raciocínio”. Essas considerações justificam que se submeta, como fará Tracy ao longo de sua conferência, “o sistema alemão” ao crivo do “método francês” 19.

O exame da filosofia de Kant empreendido por Tracy é marcado por numerosas imprecisões e erros, que poderiam ter sido facilmente evitados com a leitura, mesmo que superficial, da Crítica da razão pura (que Tracy alega ter consultado, na versão em latim). O mais flagrante é a declaração de que Kant nada diz acerca da faculdade que Tracy considera a mais importante na formação dos conhecimentos: o juízo 20.

Mesmo supondo que Tracy tivesse lido a “Analítica dos princípios”, não encontraria ali motivos para rever substancialmente essa posição, dado que aquilo que Kant chama de juízo não é bem “a faculdade elementar e radical (…) de sentir a conveniência ou inconveniência ou, numa palavra, as relações entre uma representação e outra” 21. Em vista de um “erro” tão acertado como esse, não surpreende encontrar, no cerne da conferência de Tracy, uma afirmação que mostra, de maneira incontestável, que o filósofo francês estava perfeitamente ciente do que opõe a Ideologia à Crítica. Foucault está certo: a rivalidade entre esses dois projetos filosóficos é explicada pela aspiração, compartilhada por ambos, de se elevar à condição de árbitro supremo nas decisões referentes à natureza, à origem e aos limites do conhecimento humano. Tracy reconhece que Kant faz contribuições valiosas para a filosofia. Não é o conteúdo da Crítica que o incomoda; é a pretensão de examinar o conhecimento a partir de uma instância exterior à experiência.

O que se entende por esse conhecimento puro que possuímos em nós mesmos antes que a experiência tenha ativado a nossa faculdade de conhecer ? Seria o conhecimento dessa faculdade em si mesma, tomada no exame de seus próprios atos? Mas então seria o resultado da ação de nossas faculdades intelectuais, empregadas na descoberta de seus procedimentos, de suas leis, de seus limites, por meio do estudo de seus efeitos. Esse conhecimento pretensamente puro constituiria, e na verdade constitui, a ciência ideológica. Pode-se, se assim se preferir, classificar sob o nome de conhecimentos de experiência todas as outras partes da física, vale dizer, o conhecimento de todos os seres que afetam a nossa inteligência. Mas o primeiro desses conhecimentos é um conhecimento experimental, uma ciência de fatos, assim como o segundo: e, portanto, a crítica (ou exame) da razão pura é um tratado de ideologia, e isso, efetivamente, é o que ela deve ser 22.

É óbvio que Tracy reduz assim a Crítica da razão pura a um livro de epistemologia, ou melhor, a uma lógica dos princípios do conhecimento, ignorando por completo a importância da Dialética transcendental na arquitetura da obra. Sem mencionar a banalização do significado do termo crítica, que Tracy emprega em acepção cartesiana de exame, que não é senão uma das significações inscritas no uso de Kant, muito mais sofisticado. Não se deve esquecer, porém, que Tracy, além de escrever no calor da hora, utiliza uma fonte de segunda mão – atenuantes que não podem ser alegados em defesa dos inúmeros comentadores de Kant que, muitos anos depois, e até os dias de hoje, cometeram equívocos muito similares, sem, no entanto, apresentar, como contraparte, um sistema filosófico coerente e original. Em todo caso, a redução da Crítica da razão pura a um “tratado de ideologia” é muito astuciosa: esvazia a obra de suas pretensões hegemônicas, ao desautorizar a instauração da instância transcendental.

A perspicácia de Tracy se mostra ainda na compreensão – que escapa a muitos comentadores de Kant – da importância da “Estética transcendental” para a constituição de uma “teoria da experiência” (e, consequentemente, para uma crítica da metafísica clássica). É aqui, no plano de uma investigação sobre a natureza da afecção sensível, que deve se decidir o embate entre Ideologia e Crítica. Não por acaso, nesse mesmo ano de 1802, Degérando, ainda perfilado à Ideologia, dedica um capítulo inteiro de seu tratado De la génération des connaissances humaines a uma crítica da doutrina exposta por Kant na “Estética transcendental”, intitulado “Exame do sistema de Kant sobre a geração das ideias” (e não da intuição sensível, como prefere Kant) 23. Para Tracy e Degérando, o equívoco de Kant e dos seus discípulos é ignorar “a maneira como formamos as ideias de extensão e de duração, e por conseguinte, também aquelas, mais compostas, de espaço e de tempo, que se formam a partir delas”. Bastaria, para “desfazer esse embaraço, decompor essas ideias gerais, examinar as ideias elementares de que elas são extraídas, e chegar aos primeiros fatos, às percepções simples, às sensações de que elas emanam”, ou então, na falta disso, “suspender o juízo e renunciar à explicação de algo que não se pode conhecer claramente” 24. Para Tracy, termos como “forma”, “puro” e “transcendental” não significam nada, são “abstrações”, ou puro jargão, que os alemães utilizam movidos por um preconceito contra “o método simples” da análise. A acusação não é nova. Fora feita por Condillac, em 1746, contra Wolff. Embora compartilhe com este a concepção de que os signos são essenciais ao pensamento, Condillac o censura pelo método sintético com que demonstrar essa doutrina, que exigiria, ao contrário, para ser confirmada, uma paciente gênese das faculdades do pensamento a partir da sensação 25. Vem de longe, portanto, a incompatibilidade entre os dois grandes projetos filosóficos que aspiram à hegemonia no ocaso do Século das Luzes.

No mesmo ano em que Tracy pronuncia a sua conferência e Degérando publica o seu tratado, Charles de Villiers se apresenta como adepto da filosofia kantiana, em La philosophie de Kant. Resenhando esse compêndio poucos meses após a sua aparição, Friedrich Schlegel dirá – não sem alguma ironia – que A oposição [entre Crítica e Ideologia] não existe (…). É óbvio que na Ideologia francesa dificilmente se encontra algo que o idealismo não possa aceitar, especialmente quando é tratado com a precisão e o espírito verdadeiramente científico que se observam no Projeto de Elementos de ideologia, de Destutt de Tracy (…) A Ideologia seria, na verdade, uma excelente introdução aos princípios da filosofia transcendental, tarefa que os autores alemães negligenciaram 26.

A ideia um pouco inusitada de que um sistema de filosofia pudesse ser introdução a outro vai muito além do ecletismo (a Ideologia prepararia o leitor para a Crítica). Schlegel se refere, entretanto, ao projeto de Tracy, não ao livro mesmo, Elementos de ideologia, obra volumosa que, na concepção do autor, teria nove ou dez partes (cinco foram escritas, e publicadas entre 1801 e 1815).

No judicioso plano das obras completas de Tracy, organizadas e editadas por Claude Jolly, os Elementos ocupam os volumes 03 (“A ideologia propriamente dita”), 04 (“Gramática”), 05 (“Lógica”) e 06 (“Economia”, “Moral”). O volume 01 contém os primeiros escritos (incluindo uma resposta a Burke) e o relatório sobre a educação e a instrução pública, o volume 02 reunirá os ensaios (dentre eles o discurso sobre a metafísica de Kant), o volume 07 trará o comentário sobre o Espírito das leis de Montesquieu, e o volume 08 será dedicado à correspondência. Como não há, no primeiro volume, uma exposição do plano geral da edição, ficamos sem saber se terão ou não lugar, nessa edição que se autodenomina “completa”, importantes documen

Notas

1.DESTUTT de TRACY.Oeuvres complètes. Ed. Claude Jolly. Volume I: Premiers écrits; Sur l’éducation publique. Paris: Vrin, 2011; Volume III: Élements d’idéologie,.L’idéologie proprement dite. Paris: Vrin, 2012.

2.Ver EAGLETON, T. Ideologia. Trad. Luis Carlos Borges e Silvana Vieira. São Paulo: Boitempo/Unesp, 1997, pp. 66 – 69. Desnecessário acrescentar que Eagleton toma o partido de Engels

3.O leitor pode decidir por si mesmo, consultando a impecável tradução do tratado realizada por Balthazar Barbosa Filho em SAY, J.-B.Tratado de economia política, São Paulo: Abril Cultural, 1983.

4.As palavras são de FOUCAULT, M. Naissance de la clinique, cap. 04. Paris: PUF, 1963

5.Publicadas a partir da década de 1990, em quatro grossos volumes, pelas edições Rue d’Ulm, ligadas à atual École Normale Supérieure.

6.GARAT, D. J. Leçons de l’analyse de l’entendement, 2ª lição, ed. Gérard Gengembre: L’école normale de l’an III. Leçons d’analyse de l’entendement, art de la parole, littérature, morale. Paris: Éditions rue d’Ulm, 1999, p. 86

7.SICARD, R.-A. C. “Leçons d’art de la parole”, 1ª. lição. In: DHOMBRES, J.et DIDIER, B. Leçons d’art de la parole, 1ª lição, ed. Élisabeth Schwarz. L’école normale de l’an III. Leçons d’analyse de l’entendement, art de la parole, littérature, morale.Paris: Éditions rue d’Ulm, 1999, p. 235.

8.Ver a respeito AUROUX, S.La sémiotique des encyclopédistes. Paris: Payot, 1979.

  1. Para os desdobramentos da discussão na Alemanha, ver o estudo de FORMIGARI, L. La sémiotique empiriste face au kantisme. Liège: Mardaga, 1994
  2. Ver JOLLY, C. Introdução a Destutt de Tracy, “Élements d’idéologie”. In: Oeuvres complètes III, p. 09
  3. CLAUZADE, L. L’idéologie ou la révolution de l’analyse. Paris: Gallimard, 1998, pp. 28 – 29.
  4. Ver CLAUZADE, L. L’idéologie ou la révolution de l’analyse, pp. 143 ss

13 SCHWARZ, E. Les Idéologues et la fin de la grammaire générale. Lille: Service de réproduction de thèses, 1978

14.FOUCAULT, M. As palavras e as coisas, “Os limites da representação”. Trad.

Salma Tanus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1990, pp. 256 – 57.

15.STÄEL, M. de. De l’allemagne, cap. XIX: “Kant”. Paris: Gallimard Poche, 1990.

16.DESTUTT de TRACY, “Elementos de ideologia”, I. In: Oeuvres completes, III, p. 260

17.Kinker é um dentre os muitos estudiosos da filosofia de Kant na Holanda à época; ver a respeito Le ROY, A.Jean Kinker. Sa vie et ses travaux. Paris: 1867.

  1. DESTUTT de TRACY. Mémoire sur la faculte de penser/De la métaphysique de Kant, ed. Anne e Henry Deneys. Paris: Fayard, 1978, pp. 244-45; 247-48.

19.Idem, pp. 246-47.

20.Idem, pp. 257-58.

21.Idem, p. 257.

22.Idem, p. 263.

23.Ver a respeito AZOUVI, F. e BOUREL, D. De Königsberg a Paris. La réception de Kant en France. Paris: Vrin, 1991.

24.DESTUTT de TRACY. Mémoire sur la faculté de penser/De la métaphysique de Kant, pp. 270 – 71.

25.CONDILLAC, E. B. Condillac, Essai sur l’origine des connaissances humaines, I, 04, 02, parágrafo 27. Paris: Galilée, 1973.

26.Citado por AARSLEFF, H.From Locke to Saussure. Essays on the study of language and intellectual history. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1971, p.351

Pedro Paulo Pimenta – Professor de Filosofia Moderna na USP.

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Oeuvres complètes tome I – Écrits philosophiques et politiques 1926-1939 – CANGUILHEM (Ph)

CANGUILHEM, Georges. Oeuvres complètes tome I – Écrits philosophiques et politiques 1926-1939. Paris: Vrin, 2011. Resenha de: ALMEIDA, Fábio Ferreira de. Philósophos, Goiânia, v.17, n. 1, p.237-248 jan./jun., 2012.

Com o subtítulo “Escritos filosóficos e políticos – 1926- 1939”, acaba de ser publicado, sob a direção de dois reconhecidos especialistas (Jean-François Braunstein e Yves Schwartz), o primeiro volume das obras completas de Georges Canguilhem. Estamos, de fato, diante de escritos filosóficos e políticos, como anuncia o título deste volume, mas também estamos diante, seguindo uma classificação costumeira que encontra bem seu emprego aqui, dos escritos de juventude de Canguilhem, cuja obra, a parte Le normal et le pathologique (1966) e, talvez, La connaissance de la vie (1965) e os Etudes d’histoire et philosophie des sciences (1968), ainda é bem pouco conhecida1. Os textos deste período, aos quais agora passamos a ter acesso, nos mostram um Canguilhem anterior ao Canguilhem cujas ideias, a pesar da discrição, não cessam de repercutir e de se renovar entre pensadores e estudiosos mundo a fora; um Canguilhem de antes do Canguilhem (Canguilhem avant Canguilhem), como diz o feliz título do artigo em que Jean-François Braunstein afirma com razão: “Está claro que não se trata aqui de trabalhos de epistemologia, nem mesmo de história das ciências em sentido corrente, mas alguns dos primeiros combates de Georges Canguilhem orientarão a visada epistemológica das obras ulteriores” (BRAUNSTEIN 2000, 11).

A obra é composta basicamente de artigos filosóficos, resenhas, conferências e alguns textos polêmicos publicados em diferentes jornais e revistas, mas, principalmente, no Libre propos, o jornal de Alain, cujo pacifismo antimilitarista, determinado fundamentalmente pelas atrocidades da Primeira Guerra Mundial, marcou profundamente o pensamento de Canguilhem, sobretudo, em sua primeira juventude; e na revista Europe, da qual foi um dos fundadores.

Além destes textos mais curtos, vale mencionar três trabalhos particularmente significativos, até então quase, se não totalmente desconhecidos: a brochura Le fascisme et les paysans, o Traité de logique et de morale e a tradução da tese da tese latina de Émile Boutroux, Des vérités éternélles chez Descartes. Como destaca J.-Fr. Braunstein no artigo citado há pouco, antes da edição de sua tese de medicina, Essai sur quelques problèmes concernant le normal et le pathologique, em 1943, Canguilhem já havia, portanto, publicado muito, até mesmo um livro, e este primeiro volume de suas Obras Completas permite, com efeito, “retificar a imagem corrente que faz de Canguilhem um puro historiador das ciências ou um simples continuador da obra de Gaston Bachelard” (BRAUNSTEIN 2000, 10).

Escritos filosóficos e políticos: o período que completa o título deste primeiro volume, “1926-1939”, não é trivial; não é um mero recorte didático. O texto que abre o livro é uma resposta do então jovem estudante da Escola Normal Superior, à questão proposta pela seção “La chronique internationale” da Revue de Genève, mesma questão à qual já haviam respondido Raymond Aron e Daniel Lagache, sobre “o que pensa a juventude universitária francesa”. Neste artigo já se podem identificar certos traços da personalidade de Canguilhem, sempre lembrada por seus comentadores, como o estilo provocador, incisivo e de uma petulância “rústica” e mordaz, o que, diríamos nós, o filósofo fez questão de cultivar como demonstração de sua forte ligação com suas origens campesinas. O modo como assina este artigo costuma ser mencionado sempre como exemplo disso: “Georges Canguilhem, languedociano, aluno da Escola Normal Superior onde se prepara para o concurso de agregação de filosofia.

No tempo que sobra, no labor do campo” (p. 152).2Este traço, que também evidencia a influência de Alain, se refletirá mais tarde na brochura de 1935, Le fascisme et les paysans, publicada clandestinamente pelo CVIA (Comité de vigilance des intellectuels antifascistes), na qual analisa a questão agrária na França frente ao desenvolvimento dos regimes fascistas que, na Itália e na Alemanha, buscavam valerse da crise agrária que, devido a suas especificidades, na década de 1930 atingiu particularmente os produtores rurais franceses, forjando uma ideologia de retomada de valores – diríamos nós: campestres – usurpados pelo rápido desenvolvimento das técnicas de agricultura e pelos grandes produtores, a fim de atrair essa força importante e, a esta altura, bastante organizada. Percebe-se, então, que neste momento, 1935, Canguilhem já enxergava os traços particulares do fascismo que é o que determinará sua ruptura com as posições pacifistas. Mas foi sob a influência de Silvio Trentin que Canguilhem pode perceber o quanto o cenário político internacional repudiava que se continuasse professando “A paz sem reservas” (este é o título do artigo que Canguilhem publica em 1932 tomando posição na polêmica entre Félicien Challaye e Théodor Ruyssen a propósito da questão do “pacifismo integral”), pois estava em curso um fenômeno que não tinha paralelo, nem com os acontecimentos da Primeira Guerra, nem com nenhum outro acontecimento anterior. A seguinte passagem deste artigo permite perceber, ao mesmo tempo, o teor do pacifismo que Canguilhem ainda professava em 1932, e a necessidade de uma ruptura total com ele, ruptura esta determinada pelos acontecimentos, ou melhor, pelos fatos:

Ora, a guerra, que cada vez mais se tornou um extermínio radical de tudo o que é jovem e generoso e, por isso, capaz de criação, – se for verdade que a criação é a mesma coisa que o porvir –, suprime aquilo pelo que a vida do homem ganha uma significação. […] Para que seja dado algum valor à vida e à justiça, é preciso que primeiro a vida seja. E para que eu possa mudar esse mundo, eu quero primeiramente – o que não quer dizer nem unicamente nem principalmente – viver nele. Sem dúvida, a morte é sempre possível. E a morte, pois que vem aniquilar o esforço do dever, é o mal absoluto. Mas esta morte que nos chega sempre do fundo de um acidente que vai de par com o de nossa existência, este próprio acidente abranda para nós o gosto amargo que ela tem. O que é horrível, não é a morte pelas coisas e pelo mecanismo, é a morte dada por um homem. O que é horrível, não é a morte, é a matança. Ora, a guerra é o assassinato e a morte preparados, paramentados, honrados. É a consciência tornada instrumento de sua negação, o aniquilamento de consciências por suas decisões recíprocas. Eis por que, como Challaye, eu digo: a guerra é o mal absoluto, sendo a morte tomada pela vontade como a saída a ser buscada e não como acidente possível. (p. 404)

O mal absoluto e a morte degradante, o esfarrapamento de toda humanidade pelo absurdo de uma vontade doentia, enfim, a aniquilação de toda possibilidade de criação da novidade, como se vê, na verdade, ainda estava por vir. E é a Trentin, em Toulouse, que Canguilhem deve a tomada de consciência que o levou romper com o pacifismo, poupando- o de seguir a deriva de outros que, fiéis à distinção defendida por Alain entre política interna e política externa, acreditavam, por exemplo, poder negociar com a Alemanha hitlerista.

Durante este período, e face a estes acontecimentos [afirma Canguilhem numa entrevista de 1991], muitas atitudes e convicções políticas que convinha chamar ‘de esquerda’ deram ensejo a confusões, a amálgamas, a mal-entendidos cuja interpretação e apreciação ainda alimentam querelas ideológicas. Viram-se socialistas tomarem distância em relação ao antifascismo. Viram-se pacifistas compreensivos com o hitlerismo. Viram-se intelectuais marxistas aprovarem o pacto germano-soviético. No entanto, aqueles que tiveram a sorte – e eu acrescentaria: a honra – de ouvir Trentin em suas analises, de seguilo em suas iniciativas, por vezes de acompanha-lo em suas investidas, devem agradecê-lo por terem podido, graças a ele, evitar as armadilhas de que comumente são vítimas os de boa vontade sem experiência política crítica.3

A partir de daí, é a volta ao concreto, à experiência concreta, o que se dá pela resistência e pela medicina. Neste sentido é que devemos reconhecer que, apesar da dificuldade em determinar quando ocorre efetivamente esta transição, o ano de 1939, com o Traité de logique et de morale, escrito em parceria com Camille Planet, marca, com ressalta Xavier Roth em sua Introdução ao texto, o fim do período de juventude, pois representa um ponto de inflexão no itinerário filosófico de Canguilhem “que testemunha menos uma doutrina definitivamente estabilizada, que uma filosofia do julgamento se orientando paulatinamente para um encontro decisivo – o encontro com a vida – que fornecerá a esta filosofia em devir, a um só tempo, uma base e uma ocasião de deslocamento” (p. 615). Neste sentido é que, ao final do Tratado, temos a constatação de que “para construir relações internacionais outras que as que existiram até o momento, é necessário primeiro determinar as condições do conflito. A ideia de Paz de nada serve a esta determinação”.

E logo em seguida:

Em resumo, dada a aspiração humana a uma sociedade verdadeiramente pacífica, dado o fato das soberanias nacionais e dos imperialismos concorrentes, recusando antecipadamente toda limitação do direito às suas pretensões e a sua autonomia, como subordinar o fato à aspiração? Haveremos de convir que os meios ficam por serem definidos e que, nestas circunstâncias, os fatos pesam mais que a aspiração. O realismo condicional é, neste caso, mais urgente que nunca (p. 921).

Este realismo condicional é o que determina a escolha, que é um aspecto decisivo desta “filosofia axiológica” para a qual, como afirmam os autores do Tratado de lógica de moral, o Valor prima em relação ao Ser (Cf. p. 793).

O período de juventude, portanto, entre os anos de 1926 e 1939, é um período marcado pela reflexão filosófica e política e, ao mesmo tempo, é um período de formação que resultará nos trabalhos mais conhecidos do filósofo, sobretudo, naturalmente, a tese Ensaio sobre alguns problemas concernentes ao normal e ao patológico, republicada mais tarde com o título reduzido, O normal e o patológico, acrescido de “novas reflexões” sobre o tema. Neste período está manifesto o grande interesse de Canguilhem, por exemplo, pela filosofia de Kant e, sobretudo, Descartes (além da tradução da tese de E. Boutroux, são deste período os dois importantes artigos “Descartes et la technique” e “Activité technique et création”). Como afirma Braunstein, alguns combates deste período de juventude continuarão, de fato, a orientar o pensamento maduro de Canguilhem, e não apenas as posições filosóficas defendidas no Tratado de 1939.

Neste sentido, destacaria a resenha do livro de Alain, Onze chapitres sur Platon, intitulada “O sorriso de Platão”, que, em 1929, Canguilhem publica na revista Europe. Este artigo, como outros reunidos neste volume, mereceria um estudo completo. Para o que nos interessa destacar aqui, no entanto, bastará a seguinte passagem:

Platão, tendo feito da metafísica o tecido das coisas positivas, levou, sem dúvida e de um só golpe, a irreligião ao seu estágio máximo, recusando- se desatar o drama humano através de um Deus que surgisse da transcendência como se de um céu de teatro. O deus ex machina da comédia antiga é um símbolo tão profundo quanto se queira e sem qualquer erro, pois falar de transcendência é falar do espírito em termos de carne e num lugar. Mas em Platão, e talvez apenas nele, nenhuma comédia. Compreendemos nós este sorriso e que não estamos, de modo algum, diante do espetáculo de nossa vida? A metafísica nas coisas positivas, eis novamente Platão”. (p. 236)

Para Platão, assim como para Canguilhem, o idealismo é um racionalismo; idealismo altamente irreligioso, na medida em que, nele, os dramas humanos se desatam numa busca do espiritual nas coisas, no mundo da vida, se for possível dar um sentido não fenomenológico a este termo.

Para Canguilhem, assim como para Platão e para Spinoza, o racionalismo deve ser, portanto, engajado; contra o deus ex maquina que acorre quando o drama da existência é transformado em espetáculo, o Deus sive natura insere e a metafísica nas coisas positivas e obriga o pensamento a “falar de espírito em termos de carne e de lugar”. Esse racionalismo, que será mais elaborado mais tarde através dos estudos de filosofia das ciências e que se recrudescerá pela influência cada vez mais marcante de Gaston Bachelard, enfim, este idealismo em sentido altamente platônico, caminha lado a lado com aquele “realismo condicional” de que nos fala o Tratado de 1939. E não é precisamente isso que se reflete na conhecida passagem da Introdução a Le normal et le pathologique, quando Canguilhem afirma que “a filosofia é uma reflexão para a qual toda matéria estranha serve e, diríamos até, é uma reflexão para a qual só serve a matéria que for estranha”? Na continuação deste parágrafo inicial da obra, a coerência entre a resistência na qual ingressou e os estudos de medicina que abraçou na mesma época fica ainda mais evidente: “Não é necessariamente para melhor conhecer as doenças mentais que um professor de filosofia pode se interessar pela medicina. Tampouco é para necessariamente se dedicar a uma disciplina científica. O que esperávamos precisamente da medicina é uma introdução a problemas humanos concretos” (CANGUILHEM 2009, 7).

É este idealismo platônico, que nos permitiremos identificar em Canguilhem como um racionalismo engajado, que configura aquele realismo condicional e seu enorme interesse pelos problemas humanos concretos. Esta conjunção, como se vê, profundamente filosófica, se realizará, enfim, nos maquis de Auvergne e pela medicina, a cujos estudos se consagra a partir de 1940, quando solicita afastamento de seu cargo de professor de liceu em Toulouse, cargo que, afirma ele, demorou muito a conseguir e que o único que realmente almejou em sua vida4, “a fim de não ter de ensinar o que parecia se preparar, isto é, a moral do marechal Pétain” (BING; BRAUNSTEIN 1998, 122). A respeito deste duplo engajamento, Elizabeth Roudinesco tem uma observação precisa no artigo Georges Canguilhem, de la médecine à la résistence: destin du concept de normalité, referindo- se à tese de 1943:

Nada deixava supor, à leitura deste texto magistral, que Canguilhem e Lafont [codinome de resistente] pudessem ser uma única e mesma pessoa. A clivagem entre as brilhantes hipóteses do filósofo e o contexto exterior, totalmente ausente de seu raciocínio, era tamanha que temos dificuldade em acreditar, ainda hoje, que uma tese dessa natureza tenha sido defendida em plena guerra, num momento em que, com a derrocada das potências do Eixo na África e o desembarque aliado na Itália, já se esboçava a derrota do fascismo na Europa.

E, entretanto, a reflexão empreendida pelo filósofo não era estranha às atividades do maquisard. […] No maquis, ele se encarregou essencialmente de atividades humanitárias, exercendo a medicina sob risco de morte. E este foi o único momento de sua vida em que praticou a medicina. Em outras palavras, foi médico apenas na guerra e pela guerra: um médico de urgência e do trauma. (BING; BRAUNSTEIN 1998, 25-26)

Estas circunstâncias da volta para o concreto, nos ajuda ainda a entender a reabilitação de uma referência filosófica importante para o Canguilhem da maturidade: Henri Bergson.

Depois de uma elogiosa resenha, publicada em 1929, do panfleto antibergsoniano de Georges Politzer, La fin d’une parade philosophique: le bergsonisme, no qual se leem afirmações rudes, como a seguinte: “À parte a mentira, somente a mediocridade poder erigir o bergsonismo em grade filosofia” (POLITZER 1967, 149), Canguilhem afirma a Fr.Bing e J.Fr. Braunstein, quando perguntado sobre o papel de Bergson em sua filosofia: “Eu o li melhor depois de meus estudos de medicina”. E logo em seguida: “Quando éramos alainistas, finalmente (risos), tínhamos poucos relacionamentos, éramos muito exigentes. Isso ficou pra trás, e o que me fez deixar isso para trás foi precisamente a ocupação, a resistência e o que se seguiu… a medicina” (BING; BRAUNSTEIN 1998, 129).5 Como se vê, de fato, o ano de 1939, com a ocupação, a resistência e os estudos de medicina, marca, ainda que de maneira imprecisa, o fim destes anos de formação. A partir daí, é uma obra, nos dizeres de Michel Foucault, “austera, voluntária e cuidadosamente limitada a um domínio particular de uma história das ciências que, em todo caso, não se coaduna com uma disciplina de grande espetáculo” (FOUCAULT 2008, 1582).

O que nos prometem os próximos cinco volumes das obras completas de Georges Canguilhem é precisamente a reunião dos trabalhos em que o rigor desta obra reflete, antes de tudo, a ação do pensamento. Maduro o pensamento, ele não se deixará levar pelas modas, nem seduzir por uma filosofia da ação, nem por uma filosofia do engajamento. A volta para o concreto oferece isso que aqueles que Canguilhem gostava de chamar “terroristas literários”, não puderam perceber, pois, quando uma tarefa essencial se apresenta ao espírito, é muito confortável separar da palavra e da escrita a mão e o gesto. Se Canguilhem sempre foi, ao longo da vida, discreto a respeito de sua atividade como resistente, seus escritos sobre o amigo e companheiro de maquis, Jean Cavaillès não cessarão de lembrar aos incautos que “a luta contra o inaceitável [é] inelutável” (CANGUILHEM 2004, 34). Neste sentido, a ação não é uma escolha, mas uma necessidade lógica, pois, como afirma em sua conclusão a conferência intitulada Vie et mort de Jean Cavaillès, “antes de ser irmã do sonho, ação deve ser filha do rigor” (Idem, 30) – o que, bem entendido, não vai sem poesia. Canguilhem nos ensina, seguindo Cavaillès, mas também Bachelard (não por acaso, é Canguilhem quem organiza a publicação, em 1972, da coletânea de artigos de Bachelard à qual intitula L’engagement rationaliste), que, se há ainda um problema filosófico importante em nossos dias, este problema é o do engajamento! * Por fim, é preciso assinalar o aspecto didático dado a este primeiro volume. Cada seção é precedida por uma longa e erudita Introdução e os textos são rica e cuidadosamente anotados. Abrem o volume um prefácio, quase que exclusivamente autobiográfico, de Jacques Bouveresse e uma Apresentação geral que destaca os aspectos centrais deste período, intitulada “Jeunesse d’un philosophe”, por Yves Schwartz. Nos anexos, nos são dados o texto de Félicien Challaye, ao qual Canguilhem reagiu com o artigo “La paix sans reserve? Oui”, bem como as respostas de Théodor Ruyssen, e ainda o artigo “Réflexions sur le pacifisme intégral”, publicado em 1933 no Libres propos, no qual Raymond Aron se manifesta a respeito deste debate.

Assim, este primeiro volume, sem dúvida, deixa-nos na expectativa dos próximo cinco que completarão a edição definitiva das Obras Completas de Georges Canguilhem (que inclui uma “Bibliografia crítica”, a cargo de Camille Limoges, como VI volume). Através delas se poderá finalmente perceber a dimensão da obra deste filósofo que, conhecido mais pelas referências feitas por aqueles a quem ele influenciou que pelos seus próprios trabalhos, tem a atualidade perene de todo grande pensamento.

Notas

1  No Brasil, data do final dos anos 1970 a tradução de O normal e o patológico, que é, com efeito, sua obra mais significativa. Publicou-se, tempos mais tarde, o pequeno Escritos sobre a medicina (2005) e, recentemente, os Estudos de história e filosofia das ciências e O conhecimento da vida, ambos em 2012.

2 Vale a pena aqui remeter o leitor à bela fotografia que abre a seção de “Artigos, discursos e conferências (1926-1938)”, primeira do livro, na qual Canguilhem aparece precisamente neste labor, empurrando o arado puxado por duas reses.

3 CANGUILHEM, G. citado por Jean-François Braunstein na Introdução à Obras completas intitulada “À la découverte d’un ‘Canguilhem perdu’”, p.112.

4 Canguilhem o reconhece na entrevista a François Bing e a Jean-François Braunstein, em 1991, publicada em Actualité de Georges Canguilhem, p.121.

5 Já em Le normal et le pathologique podemos ler, por exemplo: “Pelo menos potencialmente, as normas são relativas umas às outras num sistema. Sua correlatividade num sistema social tende a fazer desse sistema uma organização, isto é, uma unidade em si, senão por si e para si. Pelo menos um filósofo percebeu e trouxe à luz o caráter orgânico das normas morais na medida em que elas são, em primeiro lugar, normas sociais. Foi Bergson, analisando em Les deux sources de la morale et de la réligion, o que chama de ‘o todo da obrigação’.” (CANGUILHEN 2009, 185)

Referências

BRAUNSTEIN, Jean-François. Canguilhem avant Canguilhem. In: Revue d’histoire des sciences, 2000, tome 53, n°1, pp. 9-26.

BRAUNSTEIN, J.-Fr.; BING, Fr.; et alii. Actualité de Georges Canguilhem. Le Plessis-Robinson: Les Empêcheurs de Penser en Rond, 1998.

CANGUILHEM, Georges. Le normal et le pathologique. Paris: PUF, 2009.

CANGUILHEM, Georges. Vie et mort de Jean Cavaillès. Paris: Allia, 2004.

FOUCAULT, Michel. La vie: l’expérience et la science. In:___. Dits et écrits II, Paris: Gallimard, 2008, pp. 1582-1595 (texte361).

POLITZER, Georges. La fin d’une parade philosophique: le bergsonisme. S.l.: J. J. Pauvert Éditeurs, 1967.

Fábio Ferreira de Almeida – Professor adjunto da Universidade Federal de Goiás (UFG), Goiânia, Goiás, Brasil.

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