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Vozes de Tchernóbil – ALEKSIÉVITCH (RTA)
ALEKSIÉVITCH, Svetlana. Vozes de Tchernóbil. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. 383p. Resenha de: LOPES, Alfredo Ricardo Silva. As Batalhas Perdidas. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.10, n.24, p.611-615, abr./jun., 2018.
O livro da escritora e jornalista bielorrussa Svetlana Aleksiévitch ficou quase dois anos na estante esperando para ser lido. Comprei logo que foi lançado no Brasil, em 2016, mas ele esperou algum tempo para ser lido porque eu imaginava que sabia do que travava a jornalista e precisava me preparar. Não foram os prazos acadêmicos ou a preparação de aulas que me mantiveram longe da obra, sentia apenas que não estava pronto para lê-la.
O problema das narrativas quantitativas sobre desastres está na impessoalidade da leitura. Parece que os números não traduzem pessoas ou acontecimentos. Isentos de empatia ou sentimento, vamos passando os olhos por números astronômicos que oferecem pouco significado. Sabia que não encontraria isso no livro de Aleksiévitch, que reuniu uma série de entrevistas com sobreviventes e vítimas do Desastre Nuclear de Tchernóbil, na atual Ucrânia.
No dia 26 de abril de 1986, à 1h23min58, uma série de explosões destruiu o reator e o prédio do quarto bloco da Central Elétrica Atômica (CEA) de Tchernóbil, situado bem próximo à fronteira da Bielorrússia. A Catástrofe se converteu no mais grave desastre tecnológico do século XX.
A obra Vozes de Tchernóbil, que foi lançada mundialmente em 2013 e publicada no Brasil pela Companhia das Letras, venceria o Prêmio Nobel de Literatura em 2015. Na edição brasileira, indicando os possíveis rumos metodológicos da autora, como subtítulo na capa traz: “a história oral do desastre nuclear”. O livro é composto por doze capítulos separados em três partes. Inicialmente, uma “Nota Histórica” é oferecida com recortes de jornais, sites da internet e livros, para dar a magnitude da catástrofe. “Uma voz solitária” é a narrativa da esposa de um bombeiro que acompanhou seu marido em seus últimos dias de vida, no retorno à casa logo após o desastre. A autora também se entrevista no início da obra, por se considerar uma testemunha de Tchernóbil e por, ainda, não conseguir compreender plenamente as consequências do acontecimento para a história da humanidade.
Vozes de Tchernóbil realiza um flerte entre realidade e ficção, sobrepondo e costurando narrativas para estruturar uma dinâmica de leitura semelhante aos roteiros dos vídeo-documentários. Nas três partes centrais da obra – Coro de Soldados, Coro do Povo e Coro das Crianças – são trazidos depoimentos sobre as experiências das mais diversas pessoas sobre o desastre e a vida depois do acidente. No tocante ao aparato metodológico, a autora em momento algum explicita os procedimentos utilizados nas entrevistas, fazendo o aviso na capa da edição brasileira parecer muito mais uma estratégia editorial do que sua metodologia de trabalho. Inicialmente, são colocados os nomes dos entrevistados e depois, sem definir autoria, os dramas pessoais são conectados. A autora raramente explicita as perguntas que geravam as respostas, o que leva a entender que os dramas pessoais e as histórias de sobrevivência surgem espontaneamente. Antes de cada capítulo dos coros são apresentados monólogos com indicação de autoria logo após o depoimento. Contudo, o que se percebe ao longo de todo o livro é uma homogeneização da narrativa pela autora que escolhe, seleciona e monta o seu texto literário.
No final da obra, uma outra “Solitária voz humana” é trazida. Novamente uma mulher, esposa de um liquidador voluntário conta como foi a transformação do homem que amava em um monstro que se liquefazia. “A título de epílogo” destaca como a vida e o capital se rearranjam depois do desastre, quando o turismo atômico passa a ser atração de um país que tem um quinto de sua população vivendo em áreas contaminadas pela radiação. “A batalha perdida” é o título do discurso conferido por Svetlana Aleksiévitch na Academia Sueca de Literatura em 2015, que compõe a edição brasileira lançada após o recebimento do prêmio, em que a autora relaciona o desastre de Tchernóbil à decadência da URSS e defende a desocupação da Ucrânia pelas tropas russas.
Vozes de Tchernóbil é um monumento à memória do desastre. O livro pode ser entendido como sintomático para exemplificar o caminho que a sociedade industrial tomou nos últimos duzentos anos. Svetlana Aleksiévitch dá sentido a uma série de depoimentos que tentam dar conta do inenarrável. No começo do trabalho, a alusão ao Holocausto Nazista e o Gulag Stalinista ditam a dinâmica da composição das memórias que tateiam entre a vontade de lembrar e a necessidade de esquecer.
O sarcófago criado para conter a radiação é entendido pela autora como um monumento da modernidade. Seguindo os passos de Pierre Nora (1993), Aleksiévitch define o sarcófago como um monumento à impotência, um lugar para memória, onde as intencionalidades na criação da obra dão o tom da incapacidade humana de lidar com os riscos da sua criação. A qualquer momento um desastre pior do que o de 1986 pode surgir, caso o mausoléu atômico sucumba.
O questionamento da centralidade da ciência na contemporaneidade é constante nas narrativas dos sobreviventes. As incertezas sobre os riscos da radiação e a incapacidade de tratar os sobreviventes são trazidas a todo o momento nas narrativas. Seja pela perda dos maridos nos relatos femininos ou pelo sofrimento das crianças que nascem deformadas e têm pouco tempo de vida. A Sociedade de Risco (BECK, 2010) se materializa através das histórias de vida, uma sociedade permeada pelos riscos do desenvolvimento tecnológico. A capacidade da jornalista em acessar depoimentos dramáticos se sobressai ao longo de toda obra, contudo a própria dinâmica narrativa nas exposições das entrevistas busca esconder Svetlana, no intuito de colocar o leitor em contato “direto” com os depoimentos.
Uma nova relação da vida humana no planeta também se inscreve a partir do desastre. Tchernóbil é também uma catástrofe do tempo, em que os radionuclídeos espalhados sobre o solo durarão cinquenta, cem, duzentos mil anos. Seguindo os passos de François Hartog (2013), um novo regime de historicidade foi produzido com o desastre. A eternidade surge em comparação com a brevidade da vida humana. A aceleração do tempo que levou ao desenvolvimento da humanidade também conduziu à incerteza e ao medo.
Um dos pontos centrais da montagem das narrativas está na relação do desastre com o desmoronamento da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Trezentos e quarenta mil militares, em sua maioria voluntários, foram deslocados para atuar na contenção do desastre. Nenhuma máquina conseguia funcionar nas proximidades do reator, somente homens munidos apenas de pás evitaram que Europa e Ásia sofressem os efeitos da explosão do reator. Estes homens viviam na cultura particular das proezas e da defesa do comunismo, a qual conteve a fumaça tóxica que se espalharia pelo continente.
A falta de uma compreensão mais apurada sobre o que aconteceu é uma marca nas entrevistas. A incapacidade de se produzir uma narrativa que dê conta do horror se confunde com o controle das informações realizado pela antiga URSS. O livro produzido em 2013 terminaria como um redundante ponto de interrogação, marca de uma era de incertezas. Contudo, no discurso à Academia Sueca, incorporado ao livro em 2015, Svetlana Aleksiévitch compara a batalha perdida em 1986 à ocupação russa na Ucrânia e ressalta a ameaça do novo “homem vermelho”.
Ao comparar o perigo vermelho ao imperialismo da Era Putin, a autora perdeu a oportunidade de relacionar Tchernóbil (1986) a Fukushima (2011) e, assim, abriu mão da defesa de uma nova matriz energética para o século XXI, o que pôde garantir a aceitação da obra no Ocidente. Apesar do discurso ao final da edição brasileira, Vozes de Tchernóbil continua sendo uma leitura obrigatória para uma compreensão mais apurada da contemporaneidade.
Referências
BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Tradução de. Sebastião Nascimento. São Paulo: Ed. 34, 2010.
HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Tradução de Andréa S. de Menezes, Bruna Breffart, Camila R. Moraes, Maria Cristina de A. Silva e Maria Helena Martins. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
NORA, Pierre. “Entre memória e história: a problemática dos lugares”. Projeto História. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP, n. 10. São Paulo, dez.-199.
Alfredo Ricardo Silva Lopes – Doutor em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UFSC). Pós-doutorando no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul – Campus Três Lagoas (UFMS). Professor da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul – Campus do Pantanal (UFMS). Corumbá – MS – BRASIL. E-mail: alfredorsl@gmail.com.