O Sertão Anárquico de Lampião / Luiz Serra

Já lá se vão 25 séculos – desde que Heródoto foi renegado por seu discípulo Tucídides – que perdura a velha discussão teórica sobre como devem ser, afinal, os limites entre a escrita literária e a narrativa histórica. Heródoto, considerado o Pai da História, interpretava, opinava, e se posicionava no contexto, deixava fluir suas próprias impressões. Escrevia com paixão e apresentava, sem qualquer pudor, sua visão pessoal sobre gregos e persas. Esmerava-se ele em tecer uma narrativa inspirada, literária, e considerava as crônicas e os mitos épicos fontes históricas dignas de consideração, ecos de um passado a ser estudado. Heródoto foi o primeiro a ver o passado dentro da perspectiva filosófica, histórica e política, não apenas factual.

Tucídides, por sua vez, autor do clássico História da Guerra do Peloponeso, denunciava a fragilidade da memória, tanto a sua quanto a de terceiros. Para ele, lembranças e testemunhos devem ser condenados à relatividade da memória e à subjetividade das opiniões pessoais. Rejeitava, com veemência, sobretudo, as crônicas, as lendas e os mitos forjados pelo imaginário popular em torno de determinados personagens históricos. Mutatis mutandis, para Tucídides, como rege hoje a máxima do jogo do bicho, só vale o que está escrito. Ele defendia a ideia de que os fatos falavam por si e o resto seria logro. Por isso, o discípulo acusou de imprecisa a obra do próprio mestre. Ficou com a última palavra por mais de dois milênios.

Essa velha discussão retornou no século XIX, o Século das Ciências, quando Augusto Comte e seus positivistas rejeitaram a Filosofia da História proposta por Hegel e os historiadores pensaram que poderiam transformar a História numa ciência tão precisa e previsível quanto a Física e a Matemática.

A ordem do dia passou a ser construir uma História meramente factual, com nomes, datas e acontecimentos precisos. Obviamente calcada em documentos oficiais. O marxismo apareceu um pouco depois, mas ascendeu quase simultaneamente, e buscou igualmente ressignificar a Filosofia da História hegeliana.

Marx também pregava uma História “científica”, só que baseada na indefectível luta de classes. Em conclusão, nos finais do século XIX tentou-se consolidar a autonomia da historiografia em face à filosofia (e à teologia) e afirmar o seu cariz científico, através de um método crítico, apto a estabelecer a objetividade dos fatos e a tornar o autor “ausente” da sua narração.

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Saltemos no tempo e no espaço para apresentar aos senhores, prezados leitores, a obra O Sertão Anárquico de Lampião, do professor Luiz Serra. Seria ele um escritor ou um historiador? Em outras palavras, sua obra seria literatura ou história? Trata-se de um livro escrito com paixão, na qual o autor apresenta, sem qualquer pudor, sua visão pessoal sobre o sertão de Lampião, “anárquico”, de acordo com sua interpretação.

A narrativa está ambientada no início do Século XX, em um Brasil imerso nas brumas de um atraso ancestral, em que a república nascente pouco tinha de iluminista e os poderes, antigos e novos, se digladiavam em busca de consolidação, segundo apresentação da editora Clara Arreguy. No Nordeste, um mundo ensolarado, sem lei e sem Estado, coronelismo e cangaço ora se abraçavam, ora se engalfinhavam. Ecoava por toda parte o messianismo – sob as bênçãos do Conselheiro e de Padre Cícero ou sob as botas da Coluna Prestes.

Em O Sertão Anárquico de Lampião, Luiz Serra costura esses acontecimentos, retratando muitas histórias em uma e traçando o painel de um tempo de personagens míticos da história do país.

O autor esmera-se em tecer uma narrativa inspirada, literária, considerando as crônicas e os mitos épicos sobre Lampião e seu bando de cangaceiros, fontes históricas dignas de consideração, espera de um bom discípulo do mestre Heródoto, consegue nesta obra ver o passado dentro da perspectiva filosófica, histórica e política, não apenas factual.

Serra tenta encontrar no cipoal da História o espírito desse protagonista que resolvia as desavenças no braço e na bala. Os sertanejos daquele tempo, como bem lembra Maurício Melo Júnior na orelha da obra:

“eram homens embrutecidos pelo meio, um fenômeno que não se apegava apenas aos cangaceiros e aos soldados, mas também aos oficiais supostamente bem treinados pelas linhas do positivismo republicano, que o digam Moreira César em Canudos ou os revoltosos da Coluna Prestes”.

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A construção narrativa de Luiz Serra está fundamentada, ontológica e epistemologicamente, na escola historiográfica dos Estudos da Cultura, cujos pressupostos começaram a ser formulados na década de 1920, na França, com a École des Annales, sob a liderança de Lucien Febvre e Marc Bloch. A partir dos Annales, a historiografia começou a ser reinventada com vertentes mais flexíveis de análise, como a Nova História, a História das Ideias, e a das Mentalidades. A Nova História também passou a defender a relevância dos perdedores, dos pobres, dos personagens anônimos e dos anti-heróis. Os cangaceiros, por exemplo, encontram-se nesse escopo.

Se faço essa ligeira panorâmica preliminar sobre a transição da História monológica para a explicativa, é para ressaltar o fato de que recentemente, nos últimos trinta anos, a História vem dando uma grande guinada.

Influenciados pela Antropologia Cultural, historiadores ingleses e franceses reinventaram aquela Nova História imaginada nos primórdios do século XX, tão ofuscada pelo estruturalismo marxista, e lançaram os pressupostos para a criação de uma História Cultural.

Buscaram inspiração nos historiadores Febvre e Bloch, entre outros precursores. Também resgataram o pensador alemão Walter Benjamin, que já nas décadas de 1920 e 1930 – naqueles tempos de Lampião – andando na contramão do cientificismo, escrevia que memória, ficção, poesia, pintura, fotografia ou quaisquer formas de arte, incluindo o cinema, que ainda engatinhava, são relevantes fontes de estudo da realidade.

Assim como os Annales, Benjamin foi crítico ácido do historicismo positivista do século XIX e do modelo de escrita da História que privilegiava os documentos criados pelo aparato do Estado. Essencialmente, ele negou as possibilidades de uma História segundo a concepção historicista-positivista, representada pela célebre frase de Ranke – a tarefa do historiador seria, simplesmente, apresentar o passado “tal como ele propriamente foi”. Sua proposta é a de tecer uma narrativa histórica inspirada na crônica cotidiana, que busca valorizar os pequenos e os vencidos.

A outra contribuição de Benjamin é a tessitura da trama, na qual propõe entrelaçar todas as fontes históricas disponíveis – tanto documentos oficiais quanto cartas, poesias, canções e narrativas orais que, algumas vezes, tangenciam a ficção. Benjamin, como Heródoto, defendia a narrativa oral e a crônica pessoal, fundamentando, assim, os pressupostos da História narrativa.

“O cronista é o narrador da História”, ensinou Benjamin. Luiz Serra, tal qual o cronista benjaminiano, é um narrador da História.

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Registro, ainda, que os historiadores da Cultura buscam o diálogo permanente com as narrativas, as tradições, os mitos e os símbolos, em especial com os estudos das Representações e do Imaginário. Como aquelas representações sobre Lampião e seu bando registradas nos cordéis populares tão recitados nas feiras do sertão nordestino.

Outros, como o francês Paul Ricoeur – este, uma estrela maior do pensamento do século XX –, vão buscar as fontes de informação na memória e nos símbolos, e apontam uma aproximação entre história e literatura. Ricoeur, como Benjamin, abandona a concepção da história dita “científica” para defender a narrativa poética e ficcionista.

Ricoeur também lembra que os historiadores, tal qual os narradores orais medievais, tecem uma trama de acordo com a sua visão pessoal do que venham a ser a realidade e os fatos. Ao fazer a defesa da narrativa para a tessitura da história, Ricoeur propõe rever a concepção do que sejam “verdade” e “realidade” para poder ver o que está por trás das narrativas ficcionais. Assim, as narrativas passariam a oferecer possibilidades de experiências do tempo que não resistem à linearidade.

O filósofo defende a ideia de que o entrecruzamento da narrativa histórica com a ficção configura nossa própria experiência, ou seja, constitui nossa própria “identidade narrativa”, que tem uma dimensão que não é estritamente veraz, mas a dimensão de elementos fictícios e de construção poética.

Assim, história e literatura se aproximam, pois ambas emergem da memória e trabalham com a narrativa. Mas o pensador faz uma distinção entre os dois campos:

“A ficção é quase histórica, tanto quanto a história é quase fictícia. (…) O grande historiador é aquele que consegue tornar aceitável uma nova maneira de seguir a história”.

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Isso posto, torna-se possível asseverar que estamos diante de um “grande historiador”, segundo o conceito de Ricoeur, pois Luiz Serra “consegue tornar aceitável uma nova maneira de seguir a história”.

Confiram os senhores, prezados leitores, com os seus próprios olhos.

Hugo Studart – Ocupante da Cadeira 47 [IHGDF], patroneada por José Ludovico de Almeida; é membro, também, da Academia de Letras de Brasília; jornalista, professor universitário, mestre e doutor em História.


SERRA, Luiz. O Sertão Anárquico de Lampião. Brasília: Outubro Edições, 2016. Resenha de: STUDART, Hugo.Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal, Brasília, n.10, p.247-252, 2020. Acessar publicação original. [IF].

Lampiões acesos: o cangaço na memória coletiva | Marcos Edilson de Araújo Clemente

Diferente das abordagens históricas que visam reconstituir a trajetória de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, bem como o movimento de resistência sertaneja das primeiras décadas do século XX conhecido como cangaço, o professor da Universidade Federal do Tocantins, Marcos Edilson de Araújo Clemente, propõe analisar a forma como a temática tem sido apropriada pela Associação Folclórica e Comunitária Cangaceiros de Paulo Afonso (Bahia). Lampiões acesos: o cangaço na memória coletiva é também “consequência direta” das lembranças do próprio autor que, em sua infância assistia às apresentações desta agremiação..

Antes, contudo, Clemente busca entender o modo como outras cidades nordestinas se apropriaram deste legado histórico-cultural. Os lugares escolhidos refletem os caminhos trilhados pelo “rei do cangaço”, a citar, Serra Talhada e Triunfo, PE; Mossoró, RN; Poço Redondo, SE e Piranhas, AL. Assim como foram diferentes as circunstâncias da passagem de Lampião em cada uma dessas regiões, também são os modos de apropriação das memórias que resistem, sobretudo nas últimas décadas, através de instituições conhecidas por “museus do cangaço”. Sendo Lampião exaltado ou mesmo condenado, a exemplo da memória construída em Mossoró, importa é que, de qualquer forma, sua representação e a do cangaço são recorrentes na promoção das identidades destes lugares de memória. Leia Mais