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Quando nosso mundo se tornou cristão (312-394) | Paul Veyne
Paul Veyne é um nome proeminente e controverso entre os classicistas. Membro da École Française de Rome, sua eleição para o Collège de France, onde é professor honorário, causou certa surpresa. Pondo-se à margem das correntes historiográficas vigentes, seu trabalho é marcado pela curiosidade intelectual, certa ironia e pela influência da obra de Michel Foucault. Já nos anos 1970 abraça a narrativa e advoga sobre a importância do diálogo da história com a filosofia e a sociologia.
Comecemos pela afirmação que permeará todo o livro e que representa uma quebra a um cânone histórico: a fé do imperador Constantino (272-372 d.C) era verdadeira, e sua opção pelo cristianismo não foi fundamentada em interesses políticos. Os cristãos, durante o século IV, período ao qual o livro se atém, formavam uma parcela muito pequena da população do Império Romano, cerca de 5 a 10% do total. Constantino teria sido pragmático, pois não forçou os pagãos à conversão, o que teria feito com que esses se insurgissem contra sua autoridade. A política cristã do imperador se deu, sobretudo, em suas atitudes para com sua própria pessoa, sua religião foi imposta apenas em sua esfera pessoal.[1[ Todavia, a pessoa do imperador influi também nas questões estatais, como o exército, o fisco e a nomeação dos ocupantes de cargos públicos. Assim, aos poucos o cristianismo adquire cada vez mais força na vida pública romana. O livro relata que, com o decorrer dos anos, o cristianismo se torna a religião da maioria da população, mas se concentra mais na figura de Constantino e nas motivações de que o levaram a promover a fé cristã que nas práticas e doutrinas do cristianismo na antiguidade tardia.
A história da conversão de Constantino é famosa: no século IV de nossa era, o Império romano estava sob o governo de quatro coimperadores, dois governando o Ocidente e dois o Oriente. A porção ocidental se encontrava repartida entre Licínio e Constantino, sendo o último responsável pela administração das províncias da Gália, Inglaterra e Espanha. Maxêncio tomou a Itália, território que cabia a Constantino, que por sua vez declarou-lhe guerra e, na véspera da batalha decisiva, teve um sonho, no qual lhe apareceu o símbolo do crisma. Ordenou que o símbolo fosse pintado nos escudos de seus soldados, e no dia 28 de outubro de 312 derrotou as tropas do rival Maxêncio, episódio conhecido como a vitória de Ponte Mílvio. Entretanto, há questionamentos sobre o relato, pois a principal fonte, Vida de Constantino, de Eusébio de Cesareia, apresenta versões diferentes sobre o que teria sido visto pelo imperador no sonho, uma cruz ou o crisma. Veyne acredita que o sonho foi uma manifestação do inconsciente, revelando o desejo de Constantino em se converter.
O autor esclarece que, a seu ver, Constantino enxergou no cristianismo uma “superioridade” em relação ao paganismo. Seu monismo politeísta e natureza metafísica o faziam superior ao paganismo.[2] O imperador teria promovido uma verdadeira revolução religiosa ao conceder aos cristãos as mesmas benesses que os pagãos desfrutavam, e atribuiu a si o papel de protetor da cristandade. O grande atrativo para as conversões ao cristianismo, visto como vanguarda que atraía a elite, explica Veyne, era sua originalidade: ser uma religião que prega o amor; o “gigantismo de seu deus”, criador de todas as coisas e a vitória de Cristo sobre a morte. A nova sensibilidade a que o cristianismo deu gênese lhe proporcionou sucesso, pois se trata de uma religião que proclama a igualdade de todos (em espírito) e fornece significação existencial. O cristianismo não floresceu e se propagou por ter respondido às necessidades de uma época, e sim porque trazia em si algo novo, o amor da divindade pelos homens. O autor não se coaduna às explicações de natureza psicológica sobre a religião, pondo-se ao lado de Georg Simmel e defendendo que o sentimento religioso é algo inseparável do ser humano.[3] Constantino, no desejo de ser um grande imperador, necessitava de um grande deus. E o deus cristão abraça toda a humanidade. A religião de vanguarda viria a corresponder os desejos do imperador: ao se converter, ele tomou parte em uma “epopeia espiritual”, assumindo as rédeas da cristianização.
Ao tratar da Igreja Católica, Paul Veyne contraria, mais uma vez, a corrente tradicional. Para os marxistas, Constantino valeu-se da Igreja para se estabilizar no poder. Para Veyne, o cristianismo era atrativo ao imperador por seu dinamismo e organização, traços presentes na própria personalidade de Constantino. Tratava-se de uma instituição cuja influência sobre seus membros era notável, pois infundia um modo de vida aos fiéis e possuía uma rígida hierarquia. Todavia, por si mesma a Igreja não tinha meios suficientes para se impor junto à grande maioria pagã. Constantino, ao crer que Deus o havia escolhido para difundir a Sua palavra, promove a construção de igrejas em diversos locais do Império, faz doações vultosas, concede cargos aos cristãos, entre outras benesses, o que amplia a divulgação religiosa. Destarte, não foi Constantino que se apoiou na Igreja: essa foi beneficiada pela ação prosélita do monarca. Segundo o autor: “Constantino instalou a Igreja no Império, deu ao governo central uma função nova, a de ajudar a verdadeira religião…”.[4] Paul Veyne utiliza diversas cartas do próprio Constantino como forma de rebater a historiografia tradicional e não crê que ele tenha utilizado o cristianismo como uma ideologia em seu governo: o monarca mantinha a fachada pagã do Império, não precisava da religião a fim de se legitimar, os cristãos eram uma minoria desprezada. E também porque não eram necessárias motivações de cunho ideológico para que as multidões venerassem o imperador. A obediência à autoridade e o patriotismo são frutos da vivência social. Para os antigos o respeito à lei e a ordem também era algo sagrado. O que ocorre a partir de Constantino é a adoção de uma nova fraseologia legitimante: reina-se pela graça e pela vontade de Deus, e a função do imperador é estar a serviço da religião.
Outra novidade do governo de Constantino é a entrada do sagrado na política. O laicismo não seria uma invenção moderna. O paganismo romano do século IV era como um hábito, respeitado como uma tradição patriótica, mas em crise entre os intelectuais. A questão da verdade religiosa é apontada por Veyne, que afirma que o paganismo não tinha respostas para ela, enquanto o cristianismo se posicionou como a verdadeira religião. Ao se converter, Constantino considera o avanço da Igreja uma questão política, pois cabia a ele, como cristão e como soberano, levar a verdadeira fé a seus súditos e zelar por sua salvação. Apesar disso, não há perseguição aos pagãos e sim aos hereges. A preocupação com a ortodoxia faz com que Constantino se insira nos assuntos da Igreja, agindo como seu “presidente” e essa, no século IV, não interfere no governo secular, ao contrário: se mostra submissa ao imperador. De fato, era pregada a divisão entre “as coisas do céu” e “as coisas da terra”, e a Igreja prezava pela fidelidade ao Império Romano. Constantino uniu ambas as coisas ao portar-se como líder não apenas político, mas também espiritual. A Igreja, antes da conversão do imperador, já era uma instituição independente, mas irá ter proveito com o proselitismo imperial.
Mesmo com o favorecimento do cristianismo o Império continuava pagão, pelo menos em sua fachada. O imperador ainda era o sumo-pontífice da religião politeísta, e não houve uma mudança significativa nos costumes. Havia o foro íntimo do imperador, que era cristão e coexistia com a religião pagã, formando um ‘”Império Bipolar”.[5] Durante o século IV o clima entre as duas religiões é de tolerância, apesar das benesses ao cristianismo. A manutenção da ordem pública era um ideal que devia ser mantido a despeito das convicções religiosas.
O judaísmo não teve a mesma sorte. Durante o período em que o paganismo primava, a religião judaica era rejeitada por suas restrições alimentares e pela exclusividade de seu Deus. Quando o cristianismo começa a se propagar, o judaísmo é rechaçado justamente por conta de sua proximidade com a nova religião. Ambos têm por característica a inventividade. Os judeus não eram nem cristãos, nem pagãos, e essa incerteza, que Paul Veyne relaciona aos estudos de Mary Douglas sobre o puro e o impuro, faz com que a população judia sofra perseguições. No apêndice do livro, onde são analisadas as transformações do judaísmo, de uma monolatria a um monismo e religião nacional, vê-se que o judaísmo, antes da expansão do cristianismo, atraía alguns pagãos e tinha um caráter prosélito.[6] Com as perseguições cristãs, que se iniciaram no período de Constantino, a comunidade judaica fecha-se sobre si mesma, tornando raras as conversões à sua fé. O autor vê na intolerância desses tempos a causa real do antissemitismo atual.
Veyne afirma que, sem o posicionamento de Constantino, o cristianismo estaria fadado ao papel de seita e tenderia a se esvanecer com o tempo. Para ele, a ação do monarca foi crucial para o desenvolvimento e expansão da religião. Com a morte de Constantino funda-se uma tradição de imperadores cristãos, quebrada momentaneamente por Juliano, o Apóstata (331-363 d.C), que tenta restabelecer o paganismo ao seu antigo esplendor. Com sua morte, o exército coloca no poder imperadores cristãos. Arbogast, líder germânico, toma o poder na parte ocidental do Império e põe no trono o imperador-fantoche Eugenio, o que agrada aos pagãos. De fato, durante a primeira metade da década de 390 há um reflorescimento dos cultos pagãos. Teodósio (347-395 d.C), o governante cristão do Oriente, não vê com bons olhos essa manobra, rejeitando Eugenio como coimperador. A proibição dos cultos pagãos em 392 transforma o conflito pelo trono em disputa religiosa, e o paganismo tem fim como religião autorizada em 394. O cristianismo se torna religião de Estado.
Enquanto nos quadros do governo imperial a nova religião avançou rapidamente, a cristianização da população foi um processo que levou séculos, especialmente no campo, onde ocorreu por impregnação progressiva, e não individualmente. A recepção do cristianismo pelas camadas populares provocou a paganização. O fervor cristão dos primeiros séculos de nossa era transforma-se e nos séculos VI e VII o cristianismo, tal como o politeísmo antigo, passa a ser uma religião habitual. Paul Veyne discorda da expressão de Max Weber: para ele não houve um “desencantamento do mundo”, e sim uma especialização 7.[7] Os sincretismos que ocorreram por conta da conversão em massa e que se tornaram a religião popular não são tratados no livro, algo que seria interessante abordar.
No último capítulo o autor nos pergunta sobre as raízes cristãs europeias. Para ele, como uma realidade heterogênea, não é possível que a Europa possua raízes. A formação da Europa atual foi uma epigênese, se fez de etapas imprevisíveis. A religião é apenas um dos muitos traços das sociedades. Um traço que se sobressai, é verdade, mas que sozinho não pode definir uma realidade social. Sendo uma elaboração coletiva e oral, os criadores do cristianismo foram os apóstolos, os primeiros fiéis. O Império Romano, em sua vastidão, significava uma oportunidade maior de expansão dessa nova fé, a qual os judeus não davam crédito. Os valores que hoje são caros às sociedades europeias, tais como a democracia, a liberdade religiosa e sexual, a redução das desigualdades, não são cristãos. O cristianismo não era um programa político: pregava o desligamento das coisas mundanas, uma vivência casta e obediente. Veyne crê que a espiritualidade moderna estaria muito mais ligada á filosofia de Kant e Spinoza que ao Evangelho. As transformações do 7 Ibid., pp.184-185. mundo fizeram com que o catolicismo assumisse algumas posições sociais, porém, os cristãos não estão distantes da moral social vigente. Assim, “não é o cristianismo que está na raiz da Europa, é a Europa atual que inspira o cristianismo ou algumas de suas vertentes”.[8] O cristianismo permanece como um ancestral, mas não se pode dizer que a Europa atual é uma sociedade cristã. O humanitarismo atual não é fruto do cristianismo, mas sim do Iluminismo. Todavia, ele (cristianismo) auxiliou na tarefa de “preparar terreno” para as ideias de igualdade. Mas já não está nas raízes da Europa há muito tempo.
O livro, publicado originalmente em 2007 na França, se tornou um bestseller, e oferece uma visão original sobre os primeiros séculos do cristianismo. Veyne busca as grandes figuras públicas e os eventos, afirmando a importância da ação individual na história.
Notas
1. VEYNE, Paul. Quando nosso mundo se tornou cristão (312-394). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p.28.
2. Id. Ibid., p.40.
3. Id. Ibid., p.47.
4. Id. Ibid., p.138.
5. Id. Ibid., p.143.
6. Id. Ibid., p.273.
7. Ibid., pp.184-185.
8. Ibid., p. 232.
Mariana Figueiredo Virgolino.
VEYNE, Paul. Quando nosso mundo se tornou cristão (312-394). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. Resenha de: VIRGOLINO, Mariana Figueiredo. Constantino, um Imperador de fé. Cantareira. Niterói, n.17, p. 138-141, jul./dez., 2012. Acessar publicação original [DR]