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O ponto onde estamos — Viagens e viajantes na história da expansão e da conquista – MICELI (VH)
MICELI, Paulo. O ponto onde estamos — Viagens e viajantes na história da expansão e da conquista. São Paulo: Scritta, 1994. Resenha de: VIDAL, Diana Gonçalves. As viagens são os viajantes. Varia História, Belo Horizonte, v.12, n.15, p. 203-204, mar., 1996.
Fascinante. Talvez o adjetivo que melhor qualifique o livro de Paulo Miceli. O ponto onde estamos — Viagens e viajantes na histeria da expansão e da conquista, adaptação de tese de doutorado, recentemente publicado pela Scritta. Livro de História e de histórias. Agrada aos que buscam o rigor do trabalho cientifico e aos que apenas desejam o deleite da leitura.
Nele, as viagens trágico-marítimas ganham vida. Deixam de ser “riscos coloridos que percorrem milhares de léguas, unindo os portos de saída aos de chegada”, como figuram nos mapas, na critica do autor, para assumir outra materialidade, a dos relatos de bordo. 0 cotidiano das embarcações nos é narrado numa linguagem fluida e convidativa. Embalados pela narrativa, ora nos deliciamos com os lazeres de bordo: encenação de peças teatrais escritas por padres, procissões religiosas e festas tradicionais — como a da coroação do imperador —; ora nos aturdinos com os reveses das viagens, ondas gigantescas governadas por “uma grande folia de vultos negros, que não podiam ser senão diabos”, epidemias e fome.
Na busca as razoes dos naufrágios, nos deparamos com explicações curiosas. Às vezes, a inepcia do piloto: o privilégio de dirigir a embarcação poderia ser atribuído a “homem desacostumado nesta carreira”, desde que o comprasse. Às vezes, o descuido na construção dos navios: madeiras verdes, furos de verruma não preenchidos por carpinteiros, falta de proporção nas medidas. Às vezes, o despreparo dos homens do mar: marinheiros de última hora — sapateiros, agricultores que não conheciam o linguajar de bordo, nem sabiam nadar. Às vezes, a ação das “peçonhas do diabo”, designação dada pelos padres as prostitutas que embarcadas, distraiam os homens de seus afazeres, deixando-os a merca da tuna do mar (sic). Às vezes, a cobiça: excesso de carga, má distribuição do peso.
Este relato de viagem(s) nos permite, ainda, conhecer a alimentação, a hierarquia social, os conflitos, as disputas, a medicina, as doenças, o proibido e o permitido a bordo dos navios nos séculos XV e XVI. Através dos escritos dos cronistas da época somos lançados neste universo, que para Miceli, ao contrário da sabedoria popular, não é um mundo à parte. Os termos portugueses, muitas vezes desconhecidos, destas crônicas nos são esclarecidos em notas.
O livro se divide em seis capítulos, em cada um deles o autor procura situar aspectos da história da expansão e da conquista portuguesa. Uma breve discussão histórica posiciona Miceli em relação ao seu objeto e a arte de narrar. O segundo capitulo leva-nos a um passeio pela Lisboa quinhentista: fome, doenças, guerras e catástrofes naturais. O capítulo III debruça-se sobre a arquitetura naval. Percorremos as várias etapas da feitura de um navio: projeto, modelo, produto final. Descobrimos carpinteiros e calafates como um poderoso grupo profissional. Percebemos mãos femininas auxiliando a construção de naus — desfazendo cabos de cordas de linho, velhos, e tornando a fiar em estopa de calafetar. Em Singradura, conhecemos a “gente do mar” e alguns de seus relatos de experiencias. Um convite a participar do cotidiano das viagens: festas, teatros, dietas e doenças, nos é realizado no quinto capitulo. Finalmente, em Passageiros do Acaso, o autor interroga-se sobre as raízes dos naufrágios. Falhas na construção, reparo e manutenção das embarcações, além de cobiça, são algumas das causas apontadas.
As notas no final de cada capitulo revelam um intenso trabalho de pesquisa em bibliotecas e arquivos portugueses. Mas indicam, também, o desejo do autor de interferir o menos possível na fluidez do texto, deixando o leitor a vontade para escolher entre entregar-se ao prazer de uma viagem descomprometida ou ao rigor da leitura acadêmica.
Do ponto onde estamos, dirigimos nosso olhar ao passado, tentando captá-lo, conhecê-lo, talvez, aprisioná-lo. Fica o alerta do autor, citando Fernando Pessoa: “As viagens são os viajantes. 0 que vemos não é o que vemos, senão o que somos”.
Diana Gonçalves Vidal – Doutora em História da Educação.
[DR]