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Viagens, Viajantes e deslocamentos / Projeto História / 2011
Enfim chegamos à estação Saint Paul
Imagino que estou na estação de Nice
Ou desembarcando em Londres Charing Cross
Encontro todos os meus amigos
Bom dia Eis-me aqui.
Blaise Cendrars
Blaise Cendrars, poeta nascido na Suíça, esteve muitas vezes no Brasil: em São Paulo, no Rio de Janeiro, em Minas Gerais. Em cada visita, registrou suas impressões em poemas, em cartas, em livros, em seu diário etc. Foi um viajante e um homem de seu tempo; circulou por diferentes lugares do mundo e o Brasil esteve em seus roteiros, espaço este marcado por um tempo, espaço– tempo lembrado e perpetuado por seus registros, disseminados talvez por seus leitores, interlocutores permeados por um imaginário, recheado de expectativas que preenchiam uma representação europeia sobre o outro e que, por fim, foi recuperado por historiadores numa leitura que precisou ponderar sobre o texto (formas de registro, conteúdo, contexto: espaço–tempo) e seus sentidos. O tema das Viagens, Viajantes e Deslocamentos, proposto para o número 42 da Projeto História, aborda o olhar e o registro sobre um outro espaço, um outro tempo e outros sujeitos históricos, o que nos encaminha para uma teia de questões que lidam com visões de mundo, representações que se constituem em registros que passam por metodologias e teorias, documentos e suas abordagens, configurando uma rica discussão historiográfica. Diferentes questões se entrecruzam nesta abordagem.
Nossa epígrafe retoma um célebre viajante ou “uma criatura desenraizada” nas palavras de Sevcenko[1] o que explica a citação, ao anunciar identificação e não estranhamento; Cendrars expressa, em alguns de seus poemas, sua paixão pela cidade de São Paulo, recuperada e discutida por Sevcenko na reconstituição da São Paulo urbana nascente no contexto do século XX. A paixão de Cendrars, aqui citada, denota uma relação viajante–viagem que se inicia com o estatuto do próprio viajante, constituído no intuito da viagem, seguido de seus registros e impressões. Os viajantes tiveram motivações distintas para suas viagens, demarcadas por interesses comerciais, culturais ou científicos; motivações estas que marcaram uma postura. Como discute Amilcar Torrão Filho [2], todo viajante precisa de um método e de uma teoria. Estes definem a mediação entre o olhar, ou seja, o sensório e o lugar, estabelecendo um campo organizado, uma cartografia do olhar na tentativa de sentir e perceber o outro. Esta cartografia orienta o olhar e pode aproximar o viajante de seus leitores, como enunciado por Said ao discutir sobre a construção da noção de “orientalismo”, na qual lemos: “o principal para o visitante europeu era uma certa representação europeia – compartilhada pelo jornalista e por seus leitores franceses – a respeito do Oriente e de seu destino atual”.[3] Antes mesmo de dizer sobre o outro, o viajante expõe os seus próprios esquemas mentais através de seu método, explicitando referências culturais. A literatura de viagem suscita, então, em primeira instância, a retomada da perspectiva do viajante. Em Cendras, o seu olhar buscava impressões imediatas, o registro do outro no ato da observação, quase numa ânsia de não perder a referência deste outro:
Era a estética que ele estabelecera no seu último livro, Kodak, segundo o qual o poeta deveria repercutir o choque instantâneo da realidade exterior em seus órgãos sensoriais, sem dar tempo para que a consciência ou a imaginação diluíssem aquele instante fragmentário na representação simbólica ou no substrato da tradição cultural.[4]
O registro traduz um método em Cendrars; apesar da afirmação de que o registro deveria preceder a interpretação, vemos o método expresso na cartografia do olhar de um modernista, um defensor dos fragmentos, das rupturas, na desmontagem das linguagens. O poeta procura explicações, origens e sentidos, tais quais outros modernistas como Picasso em sua leitura das máscaras africanas ou Gauguin, com a busca do primitivismo, denotando assim perspectivas culturais delimitadas por seu tempo–espaço, concernentes a uma visão de mundo e expressa em seu método de observação. Ao mesmo tempo, Cendrars demonstra seu projeto pedagógico, imbuído do caráter civilizatório europeu, ao receber artistas brasileiros em seu país, tecendo contatos, apresentando espaços, enfim, oferecendo o ambiente modernista europeu como referência cultural para a produção artística brasileira. O projeto transparece, se faz ver. Neste caso, Miceli [5] nos mostra como os modernistas brasileiros, viajantes na Europa e aprendizes dos europeus, reproduziram talvez a perspectiva do Grand Tour e viajaram para se alimentar, absorvendo a visão modernista pautada também por um olhar, o olhar da nação em construção, do viajante que busca sua própria identificação. Neste percurso, se mostraram mais tradicionais que os seus mestres, rompendo menos com a linguagem figurada, numa composição de valorização da Nação. Neste caso, o universo destes viajantes é o universo da Nação nascente, em construção, referenciada pelo modelo europeu civilizatório.
Destarte, os viajantes não são agentes neutros, carregam diferentes projetos em suas bagagens e orientam seus olhares com especificidades. Em muitos casos, o viajante, como indivíduo de passagem, toma o especial como regra. Quando Peter Burke, em Cultura Popular na Idade Moderna, discute sobre as festas, chama atenção de que eram momentos especiais, em que as pessoas buscavam sair da rotina (comiam e bebiam mais, usavam roupas e utensílios especiais). “Dentro das casas, muitas vezes os jarros, copos e pratos mais ricamente decorados só eram usados em ocasiões festivas, e assim as peças remanescentes podem enganar o historiador, se não for cuidadoso, quanto à qualidade da vida cotidiana no passado”.[6] A utilização das descrições de viajantes para reconstituir esse cotidiano pode apresentar algumas armadilhas. Mas esses problemas e armadilhas não são dos viajantes e de seus relatos, são problemas para os historiadores que precisam considerar que todo relato de viagem é um documento permeado de intencionalidades e especificidade próprias de seu tempo–espaço. São as bagagens do viajante e por isto o projeto de viagem se historiciza. No caso de Cendrars, no contexto do início do século XX, num país republicano e recente que se coloca o problema da identidade nacional, o caráter pedagógico é o da busca da especificidade desta Nação, o que lhe é próprio e inusitado. Teoria e método, assim, indicam o caráter do projeto do viajante e a viagem, historicizada, permite reconstituir a própria historicidade das diferentes viagens. Podemos perceber pela definição tempo–espaço a mudança de lugares, de roteiros, de intenções, bem como então, de registros e percepções.
Nesse sentido, seria interessante apresentar a obra de Theodor Bry, Americae Tertia Pars, terceiro volume das Grandes Viagens, do século XVI – que descreve nativos, rituais, aspectos culturais, sem jamais ter visitado a região. Ele fundamenta sua obra a partir de relatos de viajantes, em especial Hans Standen e Jean de Léry.
As imagens de rituais antropofágicos, tão pitorescos e interessantes ao Velho Mundo, estão amparadas na sua própria ideia de antropofagia, dos rituais de bruxaria. Laura de Mello e Souza7, Inferno Atlântico, mostra isso em Léry: “[…] na passagem em que Léry associa o ritual tupi do litoral brasileiro ao sabá europeu das bruxas -, a relação entre os ritos ameríndios e a demonologia é inequívoca”.[8] Bry representa os tupinambás utilizando caldeirões, algo pouco provável, assim como a presença constante de mulheres nesses “festins diabólicos”. São referências aos rituais europeus, assim sua forma de “ver” e “relatar” acaba sendo influenciada pelo seu acreditar, por aquilo que supõe ser.
Ainda dentro desse mesmo processo histórico – expansão marítima e colonização – cabe destacar outras obras. Na obra de Sérgio Buarque de Holanda,[9] Visão do Paraíso, temos inúmeros relatos de viajantes. Existia na Europa a crença na terra, distante, onde os homens não adoeciam. A crença na existência de paraísos perdidos entre mares impiedosos justificava a busca do Éden durante as navegações. Viagens reais e ficcionais – como as de Sir John Mandeville – fomentaram o mito, que acabou sendo reforçado pelas descrições de viagens e viajantes reais, como a descrição de Américo Vespúcio, em 1502: “Terra amena, de arvores infinitas e muito grandes, que não perdem folha, aromáticas, carregadas de saborosos frutos, e salutíferos para o corpo […]”.
Na carta de Caminha, a descrição também é semelhante:
“[…] a terra em si é de muito bons ares […]. Águas são muitas: infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar dar-se-á nela, tudo, por bem das águas que tem.” Essa visão está fundamentada naquilo que o viajante procurava encontrar: o “Paraíso”: “Tinha também o Senhor Deus feito nascer da terra todas as castas de árvores agradáveis à vista, e cujo fruto era gostoso ao paladar: e a árvore da vida no meio do paraíso […]”.[10]
Não podemos deixar de destacar, também, a obra Viajantes do Maravilhoso, de G. Giucci, que busca na Odisseia inspiração para discutir a viagem de Cristóvão Colombo em direção ao desconhecido. Aqui temos uma visão diferente do “outro”. Os viajantes – Ulisses ou os modernos, nesse caso representado por Colombo – tem como correto, certo e justo o seu espelho, assim o ciclope Polifemo, como os ameríndios, são bestializados a priori. “Várias vezes o viajante curioso manifesta seu interesse em verificar se os colossos se atêm às regras de hospitalidade. Mas o gigante dissipa toda fantasia bucólica ao confrontar-se violentamente com os estrangeiros”.[11] Isso também ocorreu com os ameríndios, para uns habitantes do paraíso, para outros seres demoníacos.
Em seu diário, Antonio Pigafetta – escritor italiano que acompanhou Fernão de Magalhães na primeira viagem de circunavegação – tem uma visão oposta à de Caminha sobre os nativos. Ele apresenta a “libertinagem das moças – algumas vezes, para conseguir uma faca de cozinha ou outro instrumento de corte, nos ofereciam como escravas uma ou duas de suas filhas” e também o traço definitivo para comprovar a “bestialidade”, a antropofagia, “comem muitas vezes carne humana, porém, somente de seus inimigos.”[12]
Essas descrições, mais do que apresentar povos e terras, são excelentes fontes para entendermos o pensamento do homem europeu dos séculos XV e XVI. No contexto do Grand Tour o destino era a própria Europa, prioritariamente a Itália; neste momento, os lugares e roteiros demonstram a busca do lazer alimentado de cultura e conhecimento, numa perspectiva clara do que se entendia por conhecimento e cultura. Aqui, a narrativa de viagem é essencialmente descritiva e o viajante é um aprendiz e uma referência; o lugar é o urbano, construído. Aqui podemos vislumbrar os motivos das viagens, os destinos escolhidos, os registros, tanto em seu conteúdo, quanto em sua forma, reconstituindo um imaginário europeu próprio do século XVIII. Estas narrativas elucidam uma perspectiva civilizatória europeia, no alimento da própria civilidade:
O culto ao antigo que acompanhou o Grand Tour à Itália também não se esgotava na viagem, tendo desdobramentos posteriores à chegada dos viajantes a seus países, especialmente na Inglaterra, onde eles eram em maior número e mais ativos. Um desses desdobramentos foi a fundação de sociedades reunindo pessoas com interesse em antigüidades. A Society of Dilettanti, fundada em 1734 por um grupo de gentlemen que havia viajado em um tour à Itália, tinha como preocupação central promover a investigação e a publicação dos resquícios das grandes civilizações do passado. [13]
Afinado neste diapasão, o texto de Mikael Dumont, O Atlântico dos Emigrantes Franceses (séculos XVII e XVIII): Experiências Humanas da Travessia, explicitam a travessia oceânica pelos franceses e a modificação estrutural que a sociedade era forçada a atravessar: o poder deixa de se entificar na monarquia e passa a se entificar no capitão. As vicissitudes da travessia eram tão graves que faziam os emigrantes desejarem a terra a todo custo.
O Brasil também participará dos roteiros de viagens no contexto do final do século XIX e início do XX. Há, aqui, um ponto de inflexão que norteará estas viagens, presente numa postura cientificista nascente. Estes viajantes assumem a perspectiva cientificista e buscam não mais o alimento cultural, mas o experimento, a observação, saindo do reconhecido e caminhando para o exótico; ocorre uma mudança do interesse do mundo urbano para o ambiente natural e o registro do outro assume um caráter mais pedagógico, coadunandose com um contexto de Nação nascente.
A historicidade das viagens expressa as marcas da relação tempo–espaço, mas independentemente do momento, as viagens e seus viajantes propõem uma discussão de alteridade. Vemos aqui a busca do outro, o que significa muitas vezes a busca de si próprio, a construção do eu–nós na oposição do outro–eles. Said, em sua discussão sobre a construção do orientalismo pelo ocidente, demonstra esta tessitura:
Além disso, o Oriente ajudou a definir a Europa (ou o Ocidente) com sua imagem, ideia, personalidade, experiência contrastantes. Mas nada nesse oriente é meramente imaginativo. O oriente é uma parte integrante da civilização e da cultura material europeia. [14]
Esta alteridade é constituída na demarcação das fronteiras, territoriais, econômicas, políticas e culturais, visível em seus símbolos, inserida em sistemas classificatórios perceptíveis na observação dos elementos que compõe o todo da viagem: seu planejamento, roteiro, registro e retorno, como observado nos diferentes registros sobre as viagens do Atlântico acima comentadas. A construção do outro e a demarcação do eu–nós passa pela própria narração da viagem, o que remete à importância do registro, do texto. Alguns aspectos perpassam o mesmo. O primeiro é o da consideração dos relatos de viagem na relação que estabelecem com os seus autores, os viajantes.
O artigo de Laís Guaraldo proposto neste volume, Delacroix no Marrocos e a Inversão do Exótico, faz esse trabalho de situar o viajante e seus relatos, quando mostra os registros do pintor – letras e imagens – na viagem ao Marrocos (Missão Diplomática, 1832) e as mudanças em suas concepções do “exótico”. A busca pelo pitoresco é comum e constante, no entanto, o conceito de pitoresco pode se alterar.
O segundo aspecto resvala na posterior apropriação das narrativas de viagem como texto historiográfico. Quando observamos as obras de Debret, sobre o Rio de Janeiro, em especial sobre os negros, temos um retrato desse cotidiano, registrado pelo viajante e analisado pelo historiador.
A obra Marchand de Tabac, de 1835, mostra uma cena muito interessante: alguns negros, acorrentados pelo pescoço, defronte a uma loja de tabaco, um desses negros está dentro da loja, supostamente comprando tabaco. Esse relato apresenta elementos fundamentais para compreendermos melhor o cotidiano dos escravos nos centros urbanos. Nesse caso, percebemos certa “mobilidade” desses indivíduos. Mesma “mobilidade” foi percebida por Sidney Chalhoub,[15] no livro Visões da Liberdade. Quando ele mostra possibilidades de intervenção do escravo em suas vidas, o quadro de Debret é um excelente argumento.
Aliás, essa obra nos apresenta outro grupo de viajantes e suas histórias: os escravos envolvidos no tráfico interprovincial. A partir de 1850, duzentos mil escravos foram transferidos para o sudeste brasileiro, através de vários atravessadores (com a utilização de procurações, substabelecimentos, para evitar os impostos e escrituras de compra e venda). Os escravos transferidos, na maioria dos casos, nasceram no Brasil e possuíam uma família. A vinda para o sudeste configurava-se como a primeira experiência traumática da escravidão. Buscando recompor algumas histórias, Chalhoub tenta entender essas viagens e descrever situações, como a do escravo Bráulio, que tenta fugir da escravidão no sudeste para voltar ao antigo cativeiro. Esse aparente paradoxo só pode ser entendido a partir da compreensão desse sujeito histórico.
Cabe destacar que os estudos sobre tráfico negreiro e escravidão dos últimos anos, sobretudo a partir da década de 1980, ampliaram essa discussão, introduzindo o indivíduo na história, tornando-o sujeito histórico de fato e de direito. Dessa forma, o negro poderia passar da condição de “mercadoria” à condição de viajante – contrariado, é bem verdade – mas também ele capaz de nos trazer relatos do que viu e do que viveu. A obra de Marcus Rediker [16] se junta a outras que mostram essas histórias. Quando ele nos apresenta depoimentos – de tripulantes, de observadores diversos, dos escravos – dá feições aos números. Algumas histórias são simples quase banais, mas mostram o horror da escravidão, do cativeiro, do “tumbeiro”. A captura e escravidão inicial no interior africano era o primeiro ato da tragédia, muitos morreram nesses choques e sequer estão computados nos números assustadores de perdas humanas. O segundo ato era a viagem em um navio negreiro.
Jaime Rodrigues, em sua obra De Costa a Costa, nos apresenta alguns relatos de viajantes acerca dessas embarcações, descritas como infectas, repletas de pessoas “o teto era tão baixo e o lugar tão apertado que eles ficavam sentados entre as pernas uns dos outros, formando fileiras tão compactas que lhes era totalmente impossível deitar ou mudar de posição, noite e dia”.[17] É importante destacar que essa embarcação era tida como uma das melhores do período (século XVIII). Recompor esse cenário só é possível mediante os relatos desses viajantes, desses indivíduos diretamente relacionados ao processo histórico.
Nesse sentido, cabe destacar o artigo de Amilcar Torrão Filho, que apresenta uma discussão sobre as formas como a literatura de viagem foi utilizada pela historiografia brasileira. Em seu artigo Bibliotheca Mundi: Livros de Viagem e Historiografia Brasileira Como Espelhos da Nação quando mostra a obra de Von Martius – Como se deve escrever a história do Brasil – de 1845, percebemos o espanto e estranhamento desse autor – e tantos outros – com a mistura racial existente no Brasil. Martius buscava, como se fosse possível, uma visão imparcial, “do de fora” para emitir suas opiniões. Mas como cita Amílcar Torrão, “formas de ver são formas de pensar”.
Na obra de Fréderic Mauro, O Brasil no tempo de Dom Pedro II, [18] temos um exemplo dessa situação. O autor, através de relatos de viajantes, tenta recompor o Rio de Janeiro do século XIX. Os visitantes, antes de aportarem, deliciam-se com a visão paradisíaca da cidade. No entanto, o que mais apontavam nas suas descrições era a insalubridade. Um porto antigo, com escadas podres, detritos jogados na baía, transformada, assim, em uma grande fossa. As ruas eram utilizadas como sanitários pelos negros e deposito de lixo por todos. Temos nesse caso, uma visão de “atraso” calcada na ideia de “progresso” que estava ocorrendo na Europa. O final do século XVIII e, sobretudo o XIX, foram tempos de “limpar”, de “purificar”, como bem mostra Corbain.
Apesar de influenciados pela “forma de pensar”, estes são relatos fundamentais para tentarmos montar o mosaico do século XIX. O historiador tem a função de inserir as peças corretas e, mais, não poderia descartar aquelas destoantes, pois elas podem fornecer subsídios para a compreensão do pensamento estrangeiro sobre o Brasil e o que subsidiou essa visão.
Por fim, destacamos um último viés deste emaranhado de questões possíveis ao se ponderar sobre viagens e viajantes: a perspectiva do viajante que se estabelece nas novas paradas. Este passa por diferentes processos de olhares, significações e re-significações e a experiência, de viagem, se transforma agora em diáspora, como se vê no artigo de Jeffrey Lesser e Raanan Rein, Laços Finais. Novas Abordagens sobre diáspora na América Latina do Século XX: Os Judeus como Lentes.
No artigo de Maria Izilda Santos de Matos, intitulado A Diáspora Portuguesa: mulheres imigrantes portuguesas, é possível observar a análise de perseguições e expulsões ocorridas entre as décadas de 1920 e 1940. Com relação a esse artigo, é interessante pensar a relação do estado, do nacional, com esses viajantes, com esses estrangeiros. Temos, ao longo da nossa história, um constante “atrair” – imigrantismo no século XIX – e “afastar” – medidas restritivas da década de 1930.
Isso também ocorreu com o negro. Como aceitá-lo, posto que necessário, sem incluir ao povo brasileiro. Importante destacar que a questão negra, a questão das raças, do povo brasileiro, perpassa alguns artigos dessa revista. Nesse sentido, podemos destacar o texto O Brasil de Silvio Romero: uma leitura da população brasileira no final do século XIX, de Alberto Luiz Schneider, que mostra como Romero vislumbrava a questão racial no Brasil, seu equilíbrio entre a defesa da modernização e a defesa do nacional e da própria miscigenação racial.
Outros artigos, não menos importantes, compõem este dossiê, como A Memória da Catástrofe como unificadora do acontecimento e da experiência, de Fabiana Fredrigo e Laura de Oliveira, que é, não obstante, um depoimento sobre testemunhos do holocausto. Caminhos físicos, imaginários e simbólicos, de Adriana Vidotte e Adailson José Rui, relaciona o culto a São Tiago e as peregrinações a Compostela. O artigo de Ricarda Musser, Mulas, bondes y ferrocarril, analisa viajantes e viagens no Império brasileiro. O texto de Carlo Maurizio Romani, Um Eldorado fora de época, discute as expedições à região do Amapá no final do século XIX. Os artigos Luanda, Precisão do Olhar e Canibalismo: Georg MarcGrave e a História do Altântico Sul, de Ineke Phaf-Rheinberger e Intrahistoria de la Revolución Mexicana, de Carolina Depetris, também compõem de modo substancial este dossiê sobre Viagens, Viajantes e Deslocamentos.
Notas
1. SEVCENKO, Nicolau. Pindorama Revisitada. São Paulo: Peirópolis, 2000.
2. TORRÃO FILHO, Amilcar. A Arquitetura da Alteridade. São Paulo: Hucitec, 2010. Viagens, Viajantes e Deslocamentos. 17
3. SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: companhia das Letras, 2007.
4. SEVCENKO, op. cit. 2000, p. 88.
5. MICELI, Sérgio. Nacional Estrangeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
6. BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna. São Paulo: Cia das Letras, 2010, p. 244.
7. SOUZA, Laura de Mello e. Inferno Atlântico. São Paulo: Cia das Letras, 1993.
8. LÉRY, Jean. Viagem à terra do Brasil. São Paulo: Ed. Itatiaia. EDUSP, 1980, p.42.
9. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso. Os motivos edênicos do descobrimento e colonização do Brasil. São Paulo: Edusp, 1969.
10. Gênesis 2, 2-9.
11. Cf. a obra de Giucci. Cf. CORBIN, Alain. Saberes e Odores: o olfato no imaginário social nos séculos XVIII e XIX. São Paulo: Cia das Letras. E Cf. também PRIORI, Mary Del. Esquecidos por Deus. São Paulo: Cia das Letras, 2000.
12. PIGAFETTA, A. A primeira viagem ao redor do mundo. trad. Jurandir S. dos Santos. Porto Alegre: LPM, 1985, p. 58 e 59.
13. SALGUEIRO, Valéria. ‘Grand Tour: uma contribuição à história do viajar por prazer e por amor à cultura’ in Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 22, n. 44, 2002, p. 301.
14. SAID, op. cit. 2007, p. 28.
15. CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
16. REDIKER, Marcus. O Navio Negreiro: uma história humana. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
17. RODRIGUES, Jaime. De costa a costa. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 133.
18. MAURO, Frèdèric. O Brasil no tempo de D. Pedro II. São Paulo: Cia das Letras, 1991.
Carla Reis Longhi
Luiz Antonio Dias
LONGHI, Carla Reis; DIAS, Luiz Antonio. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v. 42, 2011. Acessar publicação original [DR[