Nietzsche e as cartas – DIAS; OLIVEIRA (CN)

DIAS, Rosa M.; OLIVEIRA, Marina G. de. Nietzsche e as cartas. Rio de Janeiro: Via Verita, 2019. Resenha de: COSTA, Gustavo Bezerra do N. Nietzsche por suas cartas. Cadernos Nietzsche, São Paulo, v.41 n.1 jan./abr. 2020.

Nietzsche e as cartas, coletânea organizada por Rosa Maria Dias e Marina G. de Oliveira, lançada no segundo semestre de 2019 pela Editora Via Verita, apresenta, de saída, dois importantes méritos.

Primeiramente, o fato de reunir em livro os textos apresentados no colóquio homônimo, realizado em novembro de 2017 na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Desnecessário talvez seja dizer que da relevância desse evento, cujo sentido extrapolou o estritamente acadêmico e alcançou a esfera política, na medida em que se pôs como importante marco de resistência do corpo docente, discente e de funcionários daquela universidade ante o processo de desmantelamento imposto pelo governo estadual, que naquele período chegava a um de seus momentos mais críticos.

Não obstante esse feito por si auspicioso, colóquio e livro têm também o mérito de trazer a público ensaios de cunho biográfico e filosófico em torno do epistolário de Nietzsche1, colaborando decisivamente para preencher a lacuna decorrente da escassez de produção teórica sobre esse tema em nosso país. Não se trata, certamente, de mera ilustração ao pensamento filosófico, como se poderia aventar em abordagens com viés estruturalista ou mesmo pós-estruturalista. Ao contrário, e os textos contidos em Nietzsche e as cartas dão prova disto, o epistolário pode fornecer uma seleta matéria-prima ao exercício filosófico, mais ainda quando se trata de um pensador no qual a relação entre vida e obra se mostra tão visceral.

Além de ser o elo do andarilho Nietzsche com a família e os amigos, particularmente: Erwin Rohde, Carl Fuchs, Franz Overbeck e Heinrich Köselitz (Peter Gast), suas cartas se mostram como um exercício genuíno de reflexão filosófica. Cabe ao epistolário, assim como aos fragmentos, textos póstumos e também aos prefácios à reedição de suas obras, fornecer subsídios e indícios de teor genético à compreensão e interpretação de uma filosofia na qual o problema da gênese é intrínseco a seu próprio método. Isto, além de ser o meio adequado ao relato daquilo que em sua obra publicada – particularmente as do período intermediário e em Ecce homo – assume importância filosófica ímpar no que se refere à criação ou cultivo de si: a atenção com as coisas próximas: saúde, clima, amizades, dietética, por exemplo.

Com graus diversos de liberdade interpretativa, sem porém descurar do rigor exegético, os textos reunidos na coletânea apresentam um leque variado de abordagens em torno do epistolário de Nietzsche, ora com ênfase na cronologia, ora com acento temático. À guisa de orientação de leitura, e ainda que sob risco de esmaecer a variedade de nuances ali envolvidas, poderiam ser elencados alguns temas gerais.

As questões de método no trato com o epistolário são o mote para o texto de Fabiano de Lemos, que aponta para a necessidade de uma propedêutica à epistolografia nietzscheana como forma de mensurar seu estatuto em relação à obra. Já a aproximação, há pouco aludida, entre vida e escrita em Nietzsche, ganha destaque no belo ensaio de Clara Savelli, bem como, mais especificamente voltados ao período de elaboração de Assim falou Zaratustra, nos textos de Tiago Barros, Carla Silva e Enock Peixoto – este último, salientando um viés educativo no problema da autossuperação presente naquela obra. Também próximos a esse tema estão os escritos que abordam a relação, bastante recorrente em suas cartas, entre saúde e doença, alimentação e clima, amizade e solidão, deslocamentos e estadias. Aqui merecem menção os ensaios de Sandro Adão, Pedro Lima Filho, Lana Faya, Suyane Comar e Gabriela Alves, que abordam o tema sob perspectivas e enfoques diversos; e ainda, o texto de Rosa Dias, uma das organizadoras do livro, que traça a relação entre vida e obra em Nietzsche a partir das missivas dos períodos de estadia em Sils-Maria, onde foi concebido e delineado Assim falou Zaratustra e onde eclodiu, em agosto de 1881, o pensamento do eterno retorno.

As cartas do período de docência na Basileia, com ênfase em sua interrupção por motivos de saúde, bem como na crítica nietzschiana à burocracia e ao nivelamento imposto pelo sistema educacional alemão, são alvo, respectivamente, das abordagens de Vilmar Martins e Mariana Moreira. Já as missivas em torno da relação entre Nietzsche e Wagner são objeto da interpretação de Nilcinéia Longobuco, Marina Oliveira e Maria Helena Lisboa. Marina Oliveira, também organizadora da coletânea, toma a noção de amor fati como mote para pensar as distintas disposições de afeto suscitadas na comparação feita por Nietzsche entre a obra do compositor alemão e Carmen, ópera de Bizet. Esse ponto é também levantado na robusta interpretação de Maria Helena Lisboa sobre a amizade e o rompimento com Wagner, explorando determinadas nuances e mitigando aquilo que em uma leitura desatenta se teria como uma ruptura radical e pouco amistosa. As cartas sobre o relacionamento com Paul Rée e Lou-Salomé, por sua vez, ganham relevo no ensaio de Cristie Campello.

Chama a atenção, em uma abordagem distinta, a maneira atenta com que foram tratados nessa coletânea os prefácios de Nietzsche à reedição de suas obras, verdadeiras cartas a seus leitores, como muito bem apontam os ensaios de Joaquim Alves e de Miguel Angel de Barrenechea – este último, argutamente intitulado “Carta ao jovem Nietzsche”.

Já as cartas do período que antecede seu colapso mental, as chamadas “cartas da loucura”, ganham destaque nos textos de Alexandre Cabral, Carlos Estellita-Lins, Aparecida Duarte e José Nicolau Julião. Trata-se certamente do período mais crítico da trajetória intelectual nietzscheana, daí a importância inestimável que possuem os relatos desse período. Sob diferentes perspectivas, os três primeiros autores tratam dos temas da transgressão, despersonalização, performatividade e ressignificação da loucura a partir da escrita de si, chegando com isso a interpretações distintas, mas certamente mais potentes do que a leitura científica do estado psíquico do filósofo. Dentro dessa mesma temática, mas com abordagem diversa, está o texto de José Nicolau Julião que, partindo da missiva de Köselitz a Overbeck, traz à tona o debate ainda hoje aberto sobre a indefinição quanto ao diagnóstico do colapso.

Podem também ser ressaltadas as interpretações que, a partir das cartas e ainda que com temáticas diversas, estimulam um paralelo entre Nietzsche e outros filósofos e escritores, tais como Heidegger, Emerson, Sartre e Bishop. Aqui podem ser mencionados os textos de Kim Abreu, Tito Palmeiro, Helio Herbst e Lucrecia Corbella. Chamam ainda a atenção dois curiosos e bem-humorados ensaios. Um deles, uma bem construída carta a Nietzsche em torno do tema da ciência, redigida por Christine White. O outro, escrito com refinado grau de ironia por Rilza Barbosa, em torno dos boatos sobre o suposto encontro entre Nietzsche com D. Pedro II.

A abrangência de abordagens que aqui procuramos elencar e expor de forma sintética e talvez pouco atenta não faz certamente jus à miríade de perspectivas que caracterizam os ótimos ensaios contidos em Nietzsche e as cartas. Espera-se, contudo, que sirvam de ensejo à leitura dessa obra que, como aventamos no início, já se põe como marco nas pesquisas em torno desse instrumento ímpar de reflexão filosófica que é o epistolário de Nietzsche.

Referências

DIAS, Rosa M.; OLIVEIRA, Marina G. de (orgs.). Nietzsche e as cartas. Rio de Janeiro: Via Verita: 2019. [ Links ]

NIETZSCHE, Friedrich W. Correspondencia. Trad. esp. Luis Enrique de Santiago Guervós et. al. Madrid: Trotta, 2005-2012, 6v. [ Links ]

NIETZSCHE, Friedrich W. Sämtliche Briefe – Kritische Studienausgabe in 8 Bänden (KGB). Berlim: DTV / Walter de Gruyter, 1975-2004, 8v. [ Links ]

1A edição consolidada das cartas de Nietzsche, Sämtliche Briefe – Kritische Studienausgabe (Nietzsche, KGB, 1975-2004), é resultado de um trabalho extenso e minucioso coordenado por Giorgio Colli e Mazzino Montinari, e publicada a partir de 1975 em oito volumes por Walter de Gruyter, em parceria com a Deutscher Taschenbuch Verlag (dtv). Os textos que compõem Nietzsche e as cartas valem-se dessa edição, bem como da espanhola Correspondencia (Nietzsche, 2005-2012), organizada por Luis Enrique de Santiago Guervós, publicada entre 2005 e 2012 em seis volumes pela Editorial Trotta.

Gustavo Bezerra do N. Costa – Universidade Estadual do Ceará (UECE), Fortaleza, CE, Brasil. E-mail: arqgustavocosta@hotmail.com

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Banalidade de Heidegger – NANCY (C)

NANCY, Jean-Luc- Banalidade de Heidegger. Trad. De Fernando Bernardo e Victor Maia. Rio de Janeiro: Via Verita, 2017. Resenha de: PROVINCIATTO, Luís Gabriel. Conjectura, Caxias do Sul, v. 23, n. 1, Jan/Abr, 2018.

Luís Gabriel Provinciatto – Doutorando em Ciência da Religião – área de concentração: Filosofia da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) com bolsa de financiamento Capes. Mestre em Ciências da Religião e licenciado em Filosofia pela PUC-Campinas. E-mail: lgproviatto@hotmail.com

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A redenção de Deus: sobre o Diabo e a inocência | Alexandre M. Cabral e Jonas N. Rezende

O tema do paraíso fascina o ser humano desde longa data. Para muitos, o mais célebre jardim da história foi o Éden e sua representação bíblica goza até hoje de uma grande força figurativa. O relato bíblico apresenta o deus hebraico como um ser repleto de poderes agrícolas, pois foi ele quem criou a terra, a água, a vegetação e o homem (feito de barro). Não só isso. Para além da descrição idílica, o mito do paraíso também deixa vir a lume um conflito que não tem fim: a “guerra entre Deus e o Diabo”, da qual o homem não pode escapar. É com esse pano de fundo que os filósofos Alexandre Marques Cabral e Jonas Neves Rezende buscam explicar de que maneira essa lógica binária faz-se presente no imaginário social cristão ocidental. Trata-se de uma tarefa hercúlea, contudo os autores conseguem atingir os fins a que se propõem. A obra seduz do início ao fim o leitor por meio de linguagem e estilo de ensaístas literários que buscam destacar tanto as imagens simbólicas quanto as discussões filosófico-teológicas em torno dessa narrativa.

O livro divide-se em duas partes: um ensaio filosófico-teológico de Alexandre Marques Cabral e, em seguida, um poema de Jonas Rezende. Juntos, os autores visam desconstruir a oposição que se petrificou e que ainda faz-se sentir na cultura ocidental cristã: Deus e Diabo. Do primeiro, reteve-se o bom, o justo, a glória; do segundo, o pecado, a rebelião, a inveja. Como é sabido, esse pensamento um tanto maniqueísta gerou inúmeras contestações na história e é exatamente esse aspecto que os autores buscam desvendar ao longo da obra.

Já na introdução, denominada Mito, verdade e existência, Resende não entra na discussão de explicitar se o mito (mythos) é incompatível com a ciência. É verdade que, para o homem contemporâneo preso ao pensamento lógico (logos), cartesiano e racional, os mitos são geralmente considerados ilusórios, fantasiosos e mentirosos. Todavia, segundo o autor, é preciso empatia nessa discussão para se compreender que também o mito contém realidades profundas, ocultando um tipo específico de verdade. Por conseguinte, se o mito do paraíso possui suas mais puras e coerentes representações de cunho religioso, isso não é razão para o cientista social descartá-lo como mera construção fantasiosa. Essa postura poderia levar o historiador a negar falaciosamente, por exemplo, que a literatura ou a poesia, só para citar dois exemplos, tenham qualquer aspecto válido a ensinar acerca da realidade. Logo, não é porque o Éden não existiu no plano concreto que esse espaço tenha deixado de ser sonhado e buscado. Sua verdade e sua lógica não são teóricas. Ao contrário. Por isso, os autores concebem “o mito como uma metanarrativa que fala metaforicamente de um universo atemporal” (CABRAL, 2012, p.78). Nesse sentido, à luz das discussões de Rudolf Karl Bultmann (1884-1976), perfila-se, ao longo da obra, pensar o real por intermédio do mito, admitindo que também o mito produz uma espécie de cosmovisão específica.

O primeiro capítulo, A lógica do paraíso, analisa os relatos presentes no Gênesis, explicando seu universo semântico, mas sem apresentar qualquer fórmula hermenêutica que encontre no relato uma “verdade absoluta”. O que mais interessa aos autores é compreender de que maneira o mito do paraíso perdido pôde ser apropriado criativamente pelos homens ao longo do tempo e quais elementos simbólicos foram perdidos após a “queda”; é esse aspecto que pode auxiliar pesquisadores das mais diversas áreas a entender a eterna “guerra entre Deus e o Diabo”. Enfatizando a primeira parte do mito do paraíso perdido, a obra auxilia o leitor a perceber de que maneira a representação do jardim paradisíaco foi sendo associada quase sempre a uma região verdejante impregnada de enorme beleza cênica que exprime conforto, alegria, paz. Por ser um santuário, era como um espaço em que o deus hebraico representativamente andava e se comunicava com o primeiro casal humano. Assim, o mito hebraico da criação instituiu no imaginário social uma divindade onipotente e perfeita em oposição ao diabo, sempre identificado como adversário, corruptor, enganador. A obra lembra, todavia, que satanás e o deus hebraico estavam juntos no jardim e que ambos pertenciam, cada um à sua maneira, à plenitude desse espaço. Para o autor, essa harmonia conflitiva entre um e outro compunha os traços do próprio jardim e exibia esses personagens como adversários, mas não inimigos.

O segundo capítulo, O fim do paraíso: a genealogia do mal, busca explicar como a “queda” deu origem ao que os autores denominam “teatro de horrores”, que engendrou e justificou ao longo da história ocidental uma pluralidade de sofrimentos. Explana que nada externo destruíra o paraíso. A rebelião, a bem da verdade, começou por dentro. Simbolicamente, a perda da região paradisíaca demonstrou que ali não era um espaço de necessidade, mas de liberdade. A tentação, o desejo que possuiu o fruto proibido, a possibilidade de “ser como Deus”, constituem características dessa parte do mito. Mas, com a expulsão do homem do jardim, confusão e pecado se introduziram no mundo. A natureza passou a assumir um aspecto de inimigo caótico e violento contra o qual teria o homem de lutar. Assim, “Fora do paraíso, Deus tornou-se um forasteiro e Satanás transformou-se em eterno companheiro” (CABRAL, 2012, p.174). A partir da “queda”, os humanos serão encarados como seres em eterna disputa entre o seu criador e o diabo. A dualidade entre o centro (paraíso) e a periferia (ermo), tão perfeitamente ancorada na organização concreta dos espaços vividos, é um aspecto interessante a se notar nesse mito, supondo outra dualidade que opõe interior e exterior. Disso resulta, segundo o autor, a valorização do centro positivo e sacralizado (por oposição à periferia) e uma interioridade vigorosa e protetora (por oposição ao exterior). A “expulsão” ou “a queda”, enquanto deslocamento para o exterior, significa, no nível simbólico, uma espécie de confrontação com um mundo diferente, outro espaço, “um vale de lágrimas”. A travessia reforça tão somente a perda de ligação com o lugar protetor conhecido (o ecúmeno), e por isso a realidade também passará a ser dividida entre dois reinos no cristianismo: Céu (alto, superior, bom) e Inferno (baixo, inferior, mal). Esse sistema binário ajuda a explicar em parte o porquê de o Cristianismo valorizar sobremaneira o futuro, o post-mortem, exigindo dos homens um eterno processo de purificação.

Esse é o momento em que surge a “geografia espiritual” para a consciência judaica. Deus, que fugira da Terra após a queda do paraíso, habita os “Céus”. Satanás, que caíra dos céus levando uma miríade de demônios, entrou na terra e passou a comandar o inferno. Alguns anjos perseveraram ao lado de Deus. Já Satanás e seus demônios passaram a marionetizar a Terra, manipulando seres humanos à perdição (…). A divisão Céu/Inferno foi acompanhada de uma imagem ambígua da Terra. Se Deus está para além da vida terrena, estar com ele é um evento post-mortem. Se o diabo está dentro da Terra, também para estar integralmente com ele é necessário morrer. Por isso, a terra tornou-se um campo minado: ora explodem as bombas dos demônios e ora aparecem as espadas e escudos dos anjos. Aqui se decidem o céu e o inferno, pois é aqui a bilheteria onde compramos a entrada para o Céu ou para o Inferno (CABRAL, 2012, p.181-2).

O terceiro capítulo, Ocidente e ascese: a falência da oposição entre Deus e Diabo, questiona se o paraíso é de fato o paradigma fundamental do Ocidente. Para tanto, os autores abordam a questão sob a ótica dos estudos do biblista alemão Julius Wellhausen e dos escritos de Platão. Os efeitos colaterais na busca de uma ascese são evidentes no Ocidente cristão: agir moralmente, ser autovigilante, subjugar os prazeres carnais, controlar as tentações. Disso depende a salvação individual. A partir desse férreo controle, existe a possibilidade de o cristão ser digno de “entrar no céu”. Todavia, longe de significar fidelidade para com os preceitos divinos, esse autocontrole denota que o homem ocidental tem, na verdade, temor de sua perdição. As consequências desse paradigma são bem conhecidas dos historiadores: ao longo da história os cristãos mataram, difamaram, perseguiram, destruíram e anularam os “elementos tentadores” (ateus, bruxas, homossexuais, etc.). Tudo isso em nome de um ideal maior. Por isso, cristianismo e terrorismo são irmãos siameses. Olhar para um sem ver a presença do outro é praticamente impossível: “Os fundamentalismos de toda espécie, a homofobia, a misoginia, etc. sempre estiveram a serviço de um ideal de bem supremo, que funcionaliza toda realidade, posicionando-a a seu serviço” (CABRAL, 2012, p.261, grifos do autor).

O último capítulo, denominado A redenção de Deus ou o desamaldiçoamento do Diabo, busca ressignificar os personagens principais da narrativa paradisíaca do Gênesis (o deus hebraico e o diabo), dando-lhes novos sentidos. Para tanto, os autores destacam o pensamento de Willian Blake, artista londrino que se notabilizou por suas pinturas e poemas. A “lógica do jardim” deveria ser analisada à luz da supressão da dicotomia Bem/Mal e da integração Deus/Diabo, uma vez que existe uma funcionalidade do diabo que o cristianismo tende a abafar.

São, dessa maneira, demasiadas as áreas de sombra que, provavelmente, emergirão dessa obra, o que recomenda doses de tolerância aos leitores mais exigentes. Afinal, sendo a Filosofia um estudo que se caracteriza pela intenção de ampliar incessantemente a compreensão da realidade, no sentido de apreendê-la na sua totalidade, ela guarda óbvias afinidades com a racionalização e as demais operações de que faz uso para compreender o homem. Eis uma obra ricamente erudita e repleta de informações filosóficas. É contundente a profundidade das colocações dos autores e, consequentemente, notável seu valor, bem como o prazer que se extrai do texto. Obra vigorosa que elucida o mito do paraíso e a oposição entre Deus e o Diabo e que age sobre as mais variadas concepções. Não é a esperança do paraíso celeste um desejo de retorno à felicidade perdida no Gênesis? De fato, como interpretar as utopias e seu singular adendo que é o tão aclamado paraíso? Simples fantasia literária? Talvez aqui, considerada em sua ampla dimensão histórica, a primeira hipótese comece a revelar-se mais interessante. E mais complicada.

Wallas Jefferson de Lima – Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do CentroOeste (PPGH/Unicentro). E-mail: wallasjefferson@hotmail.com


CABRAL, Alexandre Marques; REZENDE, Jonas Neves. A redenção de Deus: sobre o Diabo e a inocência. Rio de Janeiro: Via Verita, 2012.  Resenha de: LIMA, Wallas Jefferson de. Aedos. Porto Alegre, v.6, n.14, p.155-158, jan./jul., 2014. Acessar publicação original [DR]

Ideias sobre uma psicologia descritiva e analítica – DILTHEY (V)

DILTHEY, Wilhelm. Ideias sobre uma psicologia descritiva e analítica. Trad. Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Via verita, 2011. Resenha de: MERTENS, Roberto Saraiva Kahlmeyer. Veritas, Porto Alegre v. 56 n. 3, p. 187-190, set./dez. 2011.

Em 2011, celebra-se o centenário de morte de Wilhelm Dilthey (1833-1911). Para esta data, no Brasil e no exterior, editoras e universidades vêm se mobilizando, desde o ano passado, para organizar novas edições e eventos acadêmicos sobre o filósofo alemão. Associados à Fundação Fritz Thyssen em Colônia, Alemanha, tradutores de diversos idiomas vêm vertendo a obra para o inglês, o russo e o japonês. Também traduções para o português estão sendo preparadas no Brasil.

Em nosso país, trabalhos de diferentes fases da obra de Dilthey já foram traduzidos por editoras de expressão. Até o momento, o resultado dessas publicações é um desenho sincopado da produção do autor que foi, além de filósofo, hermeneuta, psicólogo, historiólogo e pedagogo. Com todas as lacunas, entretanto, tal política editorial ainda nos é mais favorável do que a situação de penúria que enfrentávamos até a presente data, quadro em que eram quase ausentes as traduções confiáveis de Dilthey. Sem o interesse de avaliar o estado da arte das pesquisas sobre Dilthey (tarefa ampla que não seria pertinente em uma resenha), nos limitamos a indicar que a flagrante carência de estudos críticos no Brasil (lacuna que, muito mais do que uma hipótese, é uma evidência empírica) fez com que o esforço de recepção do pensamento desse autor, em nosso país, se limitasse praticamente à aplicação do método diltheyano pelo historiador Octávio Tarquínio de Sousa na redação de suas biografias e, muito posteriormente, em alguns rodapés de José Guilherme Merquior.

Formada de trabalhos heterogêneos, é lugar comum indicar que a obra de Wilhelm Dilthey é assistemática desde sua juventude; mas, essa característica não nos impede de ver um interesse comum que perpassa todos os escritos do alemão. Consideremos, por exemplo, o ensaio Ideias sobre uma psicologia descritiva e analítica, que se trata de uma obra tardia, escrita entre os anos de 1892-94 e revista em 1907-08. Tal trabalho é costumeiramente lido ao lado dos escritos literários de Dilthey (sobretudo seu Vivência e poesia), tema que comparece na obra de maturidade do autor (final da década de 1880). Por apresentar as bases psicológicas e

teóricas do conhecimento do pensamento de Dilthey, o ensaio em questão também é utilmente recomendado como introdução à obra A construção do mundo histórico nas ciências humanas, de 1905 (o que não constitui nenhum anacronismo, haja visto as datas de redação e revisão do texto de psicologia). Toda essa equivalência deve-se ao fato das referidas obras terem o mesmo pano de fundo e motivação.

Com a derrocada dos idealismos no fim do século XIX, o que vemos é uma tendência ao positivismo. Ante a drástica crise de paradigmas que grassava, chegou-se a acreditar que apenas um recurso às ciências positivas poderia garantir o acesso a um conhecimento válido. Deste modo, a filosofia parecia não ter outra escolha senão subordinar-se à ciência, rejeitando sua vocação metafísica e tornando-se, pois, algo assim como epistemologia. Destarte, em uma época na qual a sociologia é criada e a antropologia e a psicologia avançam com vigor, traz perplexidade constatarmos que o saber pretensamente rigoroso de tais ciências se encontra atrelado aos princípios e métodos das ciências positivas.

Entendendo que o idealismo foi deposto, mas que o positivismo também não constitui solução, a resposta a essa falta de alternativa é dada por Dilthey de maneira combativa e entusiástica. No interior de sua “filosofia da vida”, especialmente nas bases lançadas em Introdução às ciências humanas (1883), o filósofo propunha uma fundamentação das referidas ciências num solo próprio ao espírito e, antes, denunciando a atuação abstrativa e autonomizante que ciências naturais exerciam sobre as humanas. Segundo Dilthey, as ciências abstrativas, em seu modo de agir, cindem o fenômeno da vida, convertendo-o em objeto. Tal objeto, porém, apareceria isolado num campo de investigação sem conservar seu nexo com a própria vida. Quer dizer, para que as ciências abstrativas possam apontar um fenômeno como objeto de pesquisa, é preciso que todo o contexto do mundo vivido (isto é, o horizonte em que se dá a realidade absoluta das vivências) seja negligenciado, daí Dilthey afirmar que a abstração “desvivifica” o conhecimento.

É com base nessa premissa que o filósofo estabelece a clássica distinção entre o fazer das diferentes ciências: as naturais, abstraindo o fenômeno de seu horizonte total, isolam-no, determinam-no e explicam-no, sendo seu conhecimento retirado do que estava implícito em hipóteses (literalmente, um ex-plicare); as humanas, por sua vez, tomariam (ou deveriam tomar) o fenômeno em seu horizonte de modo a abranger ou compreender (no sentido estrito do termo latino comprehensio) seu todo, seriam, portanto, compreensivas.

A tentativa de uma fundamentação das ciências humanas (espe-cialmente as sociais e as históricas) conserva, ao longo do tempo, suas principais características e pressupostos, sofrendo reformulações de

pouca monta. Isso é o que vemos na obra Ideias sobre uma psicologia descritiva e analítica, apontada como extensão do projeto hermenêutico diltheyano que apresenta os termos da psicologia descritiva analítica, no que tange a análise das vivências do saber, a amplitude da captação de seus objetos, os valores e propósitos aos quais correspondem à descrição e análise da atividade psíquica, pontos basilares aos estudos posteriores, referentes à constituição do mundo histórico.

Embora em forma de ensaio, a obra, em nove capítulos, aborda (com até mais didática do que outros escritos do mesmo autor), primeiramente, a tarefa de fundamentação das ciências do homem, da sociedade e da história pela psicologia; após, distingue a psicologia explicativa da descritiva analítica, a estrutura, o desenvolvimento de diversidade da vida psíquica.

Entre os referidos capítulos, chamemos atenção para o primeiro. Nele, Dilthey mostra a necessidade de uma fundamentação psicológica das ciências da realidade histórico-social, mas, antes, esboça a maneira com a qual atua a psicologia científica (apresentação que vale, extensivamente, para as ciências positivas). Além de nomear estudiosos do homem comprometidos com o modelo positivista (Spencer e Taine), Dilthey indica que a psicologia científica seria explicativa, lógico-causal, dedutiva, materialista e hipotética. Uma esclarecedora reflexão acerca do modelo hipotético, paradigmático das ciências positivas, é dada ao leitor, que passa a entender a hipótese não apenas como um componente metodológico do conhecimento, mas como uma “hipostasia do real”, obstáculo epistemológico que denuncia inconsistência no próprio modo de conhecer das ciências. Tal inconsistência é ilustrada pelo próprio Dilthey quando assevera que, no conhecer pela ciência, “somos banidos para o interior de uma nuvem de hipóteses, para as quais não há nenhuma esperança de que se possa comprová-las a partir de fatos psíquicos” (p. 28). Tal afirmativa nos mostra que mesmo a explicação da natureza dependeria de uma compreensão fundamentada no psiquismo.

Também digno de atenção é o capítulo dois, no qual, por meio da distinção entre a psicologia explicativa e a descritivo-analítica, apresenta-se a interface que a filosofia do século XVIII possui com a psicologia do XIX. Daí, Dilthey desfiar o roteiro que nos leva de Wolf a Kant e, deste, à psicologia de Drobisch, passando pela de Herbart e de Waitz.

Possuidor de muitas intuições luminosas ao longo de suas 152 páginas, o ensaio de psicologia de Dilthey nos reserva, em seu oitavo capítulo, a confirmação de uma suspeita que se insinuava desde o primeiro momento, a influência que o autor exerceu sobre os autores vinculados às ditas “filosofias da existência”. Ao ler a passagem transcrita logo adiante nesse tópico referente ao desenvolvimento da vida psíquica, se faz

possível imaginar o quanto as ideias de Dilthey constituíram êmulo aos estudos de Scheler, Heidegger e Jaspers: “Não se poderia compreender o desenvolvimento do homem sem a intelecção do nexo amplo de sua existência: sim, o ponto de partida de cada estudo do desenvolvimento é essa apreensão do nexo no homem já desenvolvido e a análise desse contexto” (p. 125). O que se delineia aqui é a missão assumida por alguns pensadores do século XX em reconhecer o que há de incomensurável na existência humana.

Sob o selo da Via verita (editora que, na contramão dos apelos mercadológicos, possui um projeto editorial que pretende viabilizar versões de textos de relevo para o pensamento filosófico no século XXI) e com tradução de Marco Antonio Casanova, a edição brasileira pode ser criticamente avaliada, aqui, sob o ponto de vista da tradução: constata-se que ela apresenta uma versão elaborada de maneira atenta à tendência dos estudos mais atuais da obra de Dilthey. Por isso traduzir a expressão alemã Geisteswissenschaften por “ciências humanas” (em vez da literal “ciências do espírito”), apoiando-se em traduções precedentes para a língua inglesa e encontrando endosso junto a comentaristas especializados que se inclinam a acatar que “ciências humanas” traz melhor a conexão de sentido da realidade histórica e social do que a nomenclatura “ciências do espírito” (na qual a noção de “espírito” facilmente pode sugerir erroneamente uma independência de homens reais). Deste modo, por suas opções e acuro terminológico, a tradução brasileira se mostra claramente superior à portuguesa, apresentada sob o título: Psicologia e Compreensão – Ideias sobre uma psicologia descritiva analítica (Edições 70).

Roberto Saraiva Kahlmeyer-Mertens– Doutor em Filosofia pela UERJ. Professor Adjunto naUniversidade Cândido Mendes (UCAM) e no Centro Universitário Plínio Leite. E-mail: kahlmeyermertens@gmail.com

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