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As verdades da ficção / História e Cultura / 2016
Introdução – verdades e ficções
Ao propormos um dossiê intitulado “As verdades da ficção”, é claro que estávamos pensando na série de debates que se travou, ao longo das décadas de 1960 e 1970, no campo da historiografia. As palavras “verdade” e “ficção” remetem, para todos que têm uma certa familiaridade com essa produção intelectual, em especial à obra de Hayden White, que, sob forte influência de um aparato teórico forjado no campo da teoria literária, tirou o sono dos historiadores tradicionais. O uso de obras ficcionais como fonte de conhecimento histórico ou social vem de longa data, contudo. [1] White, por sua vez, ao aproximar ambos os termos, inverte o sentido epistemológico: não é mais a obra ficcional que dá acesso, em alguma medida, a um conhecimento histórico ou sociológico — a alguma dimensão do que chamamos de real; se trata, agora, de ressaltar que o uso de elementos ficcionais pela narrativa histórica impossibilita ver a história como fonte objetiva de conhecimento.
O dossiê tem exatamente a finalidade de revisitar essa questão, que, verdade seja dita, já não causa o mesmo furor de outrora. O próprio Hayden White andou fazendo, recentemente, uma mea culpa, ainda que pela metade. Em The Practical Past, ele reconhece que ter usado, para tratar da escrita historiográfica, o conceito de ficção sem ressaltar que este seria “um tipo de invenção ou construção baseada em hipóteses, mais do que uma maneira de escrita ou pensamento focada em entidades puramente imaginárias ou fantásticas” (WHITE, 2014, p. xii), abriu espaço para mal-entendidos desnecessários. Em certa medida, o livro de Peter Gay, Represálias selvagens — cujo título do epílogo, “As verdades das ficções”, não custa lembrar, inspirou o presente dossiê —, é uma reposição da questão entre literatura (ou ficção) e história (ou verdade) em tempo do refluxo da vaga cética. Daí que possa sair mais ou menos incólume com uma afirmação como a de que “pode haver história na ficção, mas não deve haver ficção na história” (GAY, 2010, p. 150), a qual seria tachada de conservadora um quarto de século atrás.
Pelo número de artigos recebidos — 30 para ser mais exato —, nota-se que o interesse pelo assunto continua considerável. Ao chamarmos a atenção para ficção, um termo mais genérico do que literatura, pintura ou cinema, buscávamos, além da referência aos debates provocados pelo uso do conceito por Hayden White, ampliar o máximo possível o número de objetos ficcionais, aqui pensados quase como sinônimo de artísticos, que servissem de ponto de partida para reflexão. Não é de se estranhar que a grande maioria das contribuições tenha se debruçado sobre objetos literários. Além da formação dos organizadores ter sido nesse campo do conhecimento, há uma forte tradição na academia brasileira, que se mantém atuante especialmente em São Paulo, que relaciona o estudo da literatura ao da sociedade.
A proposta, como se vê, foi bastante aberta; não indicamos preferência por análises de objetos concretos ou formulações mais teóricas. Queríamos apenas retomar o debate, de modo a termos uma ideia do estado da arte nas pós-graduações do país. E os resultados que ora apresentamos dão bem conta dessa diversidade. Para abri-lo, contudo, escolhemos dois artigos recentes, produzidos no cenário internacional, que se debruçam sobre os desafios mais recentes a respeito da relação entre ficção e história — ou, mais precisamente, literatura e história. O primeiro, “História literária e história da leitura” foi escrito por Judith Lyon-Caen, professora da École des Hautes Études en Sciences Sociales. Seu olhar é de historiadora e se volta para as práticas de leitura e para os estatutos dos romances franceses produzidos ao longo dos anos iniciais da Monarquia de Julho, uma perspectiva, portanto, que se distancia do texto, espaço privilegiado no campo das Letras. O recurso às cartas e aos debates suscitados na imprensa pela publicação em folhetim dos Mistérios de Paris, de Eugène Sue, entre 1842 e 1843, é uma saída interessante da historiografia para lidar com o que Peter Burke (2011, p. 21) chama de “território não familiar” sobre os quais os historiadores têm se aventurado desde que, já há algumas décadas, decidiram ampliar seu rol de questões e, dessa maneira, de fontes e métodos.
Em certa medida, a metáfora do distanciamento [2] também tem uma função importante em “Narratologia no arquivo da literatura”, o ensaio de Margaret Cohen, professora de Literatura Comparada e Francesa da Universidade de Stanford. Não só a História, como todas as áreas das Humanidades, que é para usar uma expressão um tanto fora de moda, têm passado por um processo de redefinição de propósitos, objetos e métodos. O primeiro passo de Cohen diz respeito ao afastamento da leitura cerrada (close reading), que foi, por muito tempo e das mais diversas formas, [3] o paradigma dominante nos estudos literários (principalmente os anglo-saxões). O mais interessante da sua reflexão, contudo, está na tentativa de aparelhar metodologicamente uma demanda recente dos estudos literários, que têm encontrado nos arquivos um conjunto grande e importante de obras que foram negligenciadas pela crítica tradicional. Isso deve ser feito, segundo Cohen, sem abandonar a especificidade do objeto literário, ainda que este precise ser repensado noutros termos. Os ensaios de Judith Lyon-Cahen e Margeret Cohen, portanto, lidam, de maneiras distintas, com os desafios abertos aos seus respectivos campos, cruzando fronteiras e incorporando novos objetos, métodos e fontes.
Em verdade, como não poderia deixar de ser, o cruzamento de fronteiras é a tônica desse dossiê. Um bom exemplo dessa prática salutar é o ensaio de Everton Demétrio, “Sertão, nação e narração”. Aqui, a obra (e, mais especificamente, a narrativa) de Guimarães Rosa funciona como um modelo incômodo aos relatos que buscam recuperar e dar sentido a um passado e a uma geografia, uma vez que revela a impossibilidade de fazê-lo sem a remissão a uma alta dose de invenção. O sertão, de Ariano Suassuna dessa vez, também serve como objeto, ponto de chegada para ser mais exato, da reflexão teórica proposta pelo artigo de Jossefrania Vieira Martins, intitulado “História, literatura e representação”, na qual alguns pontos clássicos da relação entre esses campos do conhecimento são retomados.
Vale a pena notar, ainda que brevemente, duas questões. A despeito de termos recebido contribuições dos mais diversos Departamentos, os selecionados acabaram ficando restritos aos de História e Letras, o que, pelo que foi dito acima, não é de se estranhar. Contudo, em sua grande maioria, foram os historiadores que se aventuraram pelos meandros da teoria, mesmo que, como nos dois casos apresentados acima, houvesse sempre um objeto literário como suporte da reflexão. A exceção aqui é o artigo de Geruza Almeida, “Realidade e ficção, trauma e afeto”, que explora, com uma densidade teórica incomum, esses conceitos, em especial o de trauma. Um conceito que, é sempre bom lembrar, tem sido usado com bastante frequência pelos estudos historiográficos e literários que se debruçam sobre as questões da Shoah, no caso europeu, e das ditaturas, no sul-americano. [4]
Uma possível razão — e este é a segunda questão que gostaríamos de destacar — talvez seja ainda a forte presença de Hayden White, quando o assunto é a relação entre história e ficção. Na verdade, White reinou quase que soberanamente (mesmo em ensaios onde não é mencionado, como o de Everton Demétrio) em todos os trabalhos. O que causa estranheza não é esse fato, mas sim que as respostas ao ceticismo epistemológico no tratamento da ficção — como, para ficarmos em poucos exemplos, é o caso de Carlo Ginzburg (2002), [5] Peter Gay (2010) e Sidney Chalhoub (2003) — ainda não tenham sido incorporadas ao instrumental teórico apresentado nos trabalhos que lemos. [6]
Os artigos provindos dos Departamentos de Letras, por sua vez, se dedicaram a análises mais concretas, que fizeram dos textos ficcionais escolhidos pontos de partida para as discussões mais diversas. Tendo em vista o aparato conceitual de que se vale Hayden White, todo ele oriundo da Teoria Literária, é curioso notar sua ausência desse lado do debate. Aqui, o ceticismo epistemológico parece não ter vez, muito pelo contrário. Tome-se o artigo de Bruna Tella Guerra, “A armadilha de Padura”, como exemplo. Ela estuda, dentre outros livros do escritor cubano Leonardo Padura, O homem que amava os cachorros, um romance histórico recheado de dados, chamando em causa, contudo, sua dimensão estética e fazendo dela fonte de conhecimento. A literatura latino-americana, dessa vez da Argentina, também é o mote do trabalho de Iuri de Almeida Müller, intitulado “Verdade e ficção em Glosa e A armadilha, de Juan José Saer”. Além de apontar, junto com artigo de Bruna Tella Guerra, para uma retomada da produção literária do subcontinente, que andou em baixa por muito tempo nos Departamentos de Letras, o texto de Müller permite vislumbrar o tratamento dado à relação entre ficção e verdade a partir do ponto de vista de um ficcionista e como essa reflexão é incorporada na feitura dos romances do escritor argentino Juan José Saer.
Outra boa nova é a forte presença da literatura contemporânea auxiliando nas reflexões sobre ficção e realidade. Em “Desconstrução do exílio nos contos ‘Paris não é uma festa’ e ‘London, London ou Ajax, Brush and Rubbish, de Caio Fernando Abreu”, Thereza Bachmann se debruça sobre a prosa desse escritor curitibano de modo a poder discutir uma certa percepção do exílio, sedimentada entre aqueles que permaneceram no país durante a ditadura cívico-militar de 1964. Os contos de Caio Fernando Abreu trazem para primeiro plano uma dimensão nada idílica ou edulcorada desse processo, ressaltando, dentre outros problemas, o da exploração do trabalho.
De modo geral, especialmente em se tratando de literatura, essa relação entre literatura e realidade tem como objeto privilegiado de estudo produções mais distantes no tempo, daí que tenhamos louvado os estudos que a encaram a partir de produções contemporâneas. O artigo de Sébastien Rozeaux, “Do mito à realidade”, por sua vez, retorna ao século XIX brasileiro para estudar a peça de Araújo Porto-Alegre, A estátua amazônica, de 1851. Contudo, seu trabalho não se faz nem nos moldes clássicos, por assim dizer, dos estudos do período — como é o caso de Antonio Candido (2004) e Roberto Schwarz (2000a e 2000b) —, nem o toma como parte do processo constitutivo da nação, outra linha de força que, mesmo não sendo mais hegemônica, ainda tem lá seu peso. Rozeaux lê a peça em relação ao seu contexto imediato de produção, que foram as expedições científicas do naturalista francês Francis de Castelnau.
Por fim, encerrando o dossiê, temos o artigo de Hezrom Vieira Costa Lima, “Escravidão e(m) quadrinhos”. Ao fazer uso de uma forma ficcional como a dos HQ’s, considerada por alguns um produto rebaixado, sem maiores interesses, para entender o alcance de novas concepções historiográficas, o autor inova não só no objeto que escolhe, como também na inversão do sentido do que foi proposto no dossiê. Em linhas gerais, o que temos é a ficção, iluminando, seja de maneira teórica, seja de forma mais concreta, algum aspecto da realidade. O que Hezom Lima faz é inverter o sentido desse processo. Agora são as mudanças produzidas pela nova história social da escravidão — crítica de uma concepção que representa o negro escravizado de maneira passiva, trazendo para primeiro plano as suas mais diversas formas de agência, mesmo aquelas que não se mostram de maneira evidente — que dão uma forma distinta ao enredo ficcional.
Notas
1. Uma relação que, como se sabe, é feita desde que o mundo é mundo — uma declaração intencionalmente nada acadêmica. Para ficarmos mais próximo ao nosso paradigma epistemológico, cf. Lepore (2008), que, num texto tão curto quanto provocativo, chama a atenção para a produção ficcional do século XVIII, quando romances ainda podiam se arvorar à autodenominação de História. Já num período de constituição da História como disciplina em busca de uma metodologia, digamos assim, científica, cf. Peter Burke (2008, em especial seu primeiro capítulo “A grande tradição”), que discute, ainda que brevemente, as obras de Jacob Buckhardt e Aby Warburg. Em se tratando deste e de toda uma tradição intelectual que se formou a partir do seu legado, cf. Carlo Ginzburg (1989).
2. Para uma reflexão ainda mais radical a respeito da necessidade de distanciamento do texto nos estudos literários, cf. Moretti (2005 e, especialmente, 2013).
3. O próprio pós-estruturalismo, a última grande moda a tomar de assalto os Departamentos de Letras ao redor do país, não deixa de ser, nas palavras de Derrida (1995, p. 31), um “ultra-estruturalismo”.
4. Para uma síntese, cf. Seligmann-Silva (2002).
5. Carlo Ginzburg é um dos casos mais interessantes a esse respeito, porque, além do debate teórico travado em Relações de força, ele ainda dedicou um conjunto de ensaios para pensar as maneiras através das quais o objeto figurativo (ficcional, portanto) pode servir como conhecimento histórico. Além do clássico “De A. Warburg a E. H. Gombrich”, já citado, sua retomada crítica dos trabalhos de Roberto Longhi sobre Piero dela Francesca é das mais interessantes. Cf., em especial, o “Prefácio (1981)” e o Apêndice IV, “Datação absoluta e datação relativa” (Ginzburg, 2010)
6. Vale a pena também ressaltar que essas breves reflexões não têm nenhuma pretensão “científica”. A amostragem, se não é pequena, tampouco é representativa a ponto de nos permitir tirar conclusões mais sólidas. O que deixamos aqui são, antes de tudo, simples insights, os quais podem funcionar como ponto de partida para aqueles que, por ventura, possam vir a se interessar por eles.
Referências
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CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis: historiador. São Paulo: Cia. das Letras, 2003.
DERRIDA, Jacques. Força e significação. In: A escritura e a diferença. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1995, p. 11-52.
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LEPORE, Jill. Just the Facts, Ma’am. The New Yorker, New York, 24 Mar. 2008. Disponível em: http: / / www.newyorker.com / magazine / 2008 / 03 / 24 / just-the-factsmaam. Acesso em: 13 Nov. 2014.
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WHITE, Hayden. The Practical Past. Evanston: Northwestern UP, 2014.
Rodrigo Cerqueira – Doutor em Teoria e História Literária (IEL / Unicamp) — Pós- doutorando — Departamento de Sociologia — Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, SP – Brasil. Bolsista Fapesp. E-mail: drigocerqueira@gmail.com
Leandro Thomas de Almeida – Doutor em Teoria e História Literária (IEL / Unicamp) — Pós- doutorando — Departamento de Teoria e História Literária — Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Campinas, SP – Brasil. Bolsista Fapesp. E-mail: leandroth@gmail.com
CERQUEIRA, Rodrigo; ALMEIDA, Leandro Thomas de. Apresentação. História e Cultura. Franca, v. 5, n. 2, set., 2016. Acessar publicação original [DR]