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A piedade dos outros – FRANCO (RH-USP)
FRANCO, Renato. A piedade dos outros: o abandono de recém-nascidos em uma vila colonial, século XVIII. Rio de Janeiro: FGV/FAPERJ, 2014. Resenha de: VENÂNCIO, Renato Pinto. Revista de História (São Paulo) n.172 São Paulo Jan./June 2015.
No Vocabulario portuguez e latino de Raphael Bluteau, publicado em 1712, há um verbete a respeito da compaixão – expressão, aliás, grafada como “compaxam”. Nele, o significado da palavra aparece como sendo “pena, que se sente da pena alheia”. Esta definição revela uma ambiguidade de significados: “pena” expressa “ter piedade”, mas também denota “vivenciar o sofrimento”. Ter compaixão, portanto, é ter piedade do sofrimento alheio. O livro do historiador Renato Franco, A piedade dos outros…,reconstitui a genealogia desses sentimentos, em relação a um aspecto crucial da vida familiar colonial: o abandono de recém-nascidos e bebês em ruas, caminhos, praças, adros de igrejas ou portas de casas de Vila Rica, atual cidade de Ouro Preto.
Nesse universo social, o abandono do filho, por razões morais ou econômicas, constituía um sofrimento, uma “pena”, que comprometia a salvação das almas dos pais e das crianças, uma vez que estas corriam o risco de falecer sem o batismo. No entanto, “ter pena” dessa situação também constituía um extraordinário gesto de misericórdia e de caridade, salvando a alma dos protegidos e dos protetores. Portanto, ao contrário de nosso tempo, o auxílio às crianças abandonadas coloniais não se relacionava às políticas sociais ou às noções de bem estar social como uma dimensão prática de cidadania.
O livro em questão também reafirma a vitalidade dos estudos de história social da família e das situações de desagregação familiar. Esta última dimensão deve muito às pesquisas pioneiras de Maria Luíza Marcílio que introduziu e difundiu no Brasil as técnicas e metodologias da demografia histórica. Renato Franco também se filia a importantes correntes internacionais da história social da família. Desde os anos 1960, esse campo historiográfico foi impactado pelo livro de Philippe Ariès, L’enfant et la vie familiale sous l’Ancien Régime, que traçou um quadro fascinante a respeito da condição da criança na Época Moderna, sugerindo que o sentimento e os valores de nossa época não se aplicam ao passado.
No Brasil, investigações semelhantes a essa começaram a ser registradas nos anos 1980, em grande parte influenciadas, conforme mencionamos, pelas sugestões de pesquisa da demografia histórica. Também cabe ressaltar casos isolados, como o de Gilberto Freyre que, no clássico Casa-grande & senzala (1936), traça um interessante painel da meninice senhorial e escrava, recorrendo a fontes documentais inéditas.
Somam-se a essa historiografia pesquisas oriundas dos estudos de representação, como o clássico The kindness of strangers: the abandonment of children in Western Europe from Late Antiquity to the Renaissance, de John Boswell. O exaustivo estudo de fontes literárias mostrou que o abandono de crianças, sobretudo de recém-nascidos, tem raízes antigas. Na Europa, tal prática foi abundantemente registrada na literatura clássica. No final da Idade Média, principalmente após a Peste Negra (1348), o problema se agravou, exigindo uma intervenção das instituições dos burgos e cidades medievais. Em Portugal, antes mesmo da colonização do Brasil, câmaras municipais e hospitais, como as Santas Casas de Misericórdia, começaram a criar formas de auxílio destinadas às crianças abandonadas.
No século XVII, o abandono de crianças também é registrado no ultramar português. Várias câmaras coloniais começam a pagar famílias para acolher os “enjeitados” ou “expostos”, conforme eram denominados na época. Os hospitais, por sua vez, como se registra na Santa Casa de Salvador (1726) e na do Rio de Janeiro (1738), importaram as portuguesas rodas dos expostos – tonéis de madeira giratórios, presos no meio da parede, unindo a rua ao interior do imóvel e preparados para acolher recém-nascidos abandonados.
A capitania de Minas Gerais não contou com rodas dos expostos, mantendo a tradição do auxílio via câmara ou senado da câmara. Renato Franco apresenta um quadro detalhado da atuação dessa instituição para o caso específico de Vila Rica. No livro A piedade dos outros…, a prática do abandono de crianças é estudada em suas várias dimensões. De fato, o problema era grave. Conforme o próprio autor afirma: “Em Vila Rica, no fim do século [XVIII], cerca de 20% das crianças nascidas livres eram enjeitadas pelos pais” (p. 27).
A leitura do livro também revela que a primeira capital mineira legounos uma das mais ricas coleções de documentos a respeito do abandono de crianças. Uma parte dessa documentação foi produzida pela câmara local, como no caso dos livros de matrícula de expostos. Outras séries fundamentais são provenientes dos arquivos eclesiásticos. As atas batismais das paróquias de Antonio Dias e Nossa Senhora do Pilar contêm, além dos nomes das crianças, os das pessoas que as recolhiam e dos padrinhos, pequenas anotações e reproduções de bilhetes que acompanhavam os bebês. Ao anotarem isso, os padres tornaram-se cronistas da vida cotidiana colonial, conforme pode ser observado no exemplo abaixo:
José, filho de pais incógnitos, que aos vinte e cinco dias do mês de agosto foi achado por José Caetano Pereira e por Caetano da Silva, exposto na rua defronte da porta do Doutor Tomé Inácio da Costa Mascarenhas, com um timamzinho [pequena camisola] usado de baeta [tecido felpudo de lã] vermelha, forrado de tafetá (Paróquia de Nossa Senhora do Pilar, Vila Rica, 08/09/1756).1
O livro A piedade dos outros… traça o que poderia ser definido como uma história da compaixão como razão do auxílio à infância. Essa experiência, por sua vez, era filtrada pela sociedade escravista que constantemente ameaçava reduzir meninas e meninos enjeitados à condição de escravos.
A atualidade desta pesquisa consiste na visão substancialista do passado, superando o anacronismo através da contextualização precisa de um tipo de auxílio familiar. Enfim, revela-se, assim, que cada época cria suas próprias configurações de proteção à infância. Compreender essa evolução é o melhor caminho para avaliar e refletir a respeito das opções que, no tempo atual, a sociedade brasileira escolhe e implementa.
1VENÂNCIO, Renato Pinto. Mensagens de abandono. Revista de História da Biblioteca Nacional, ano 1, n. 4, out. 2005, p. 33.
Renato Pinto Venâncio – Pós-doutor pelo Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e professor no Departamento de Organização e Tratamento da Informação da Escola de Ciência da Informação. Pesquisador no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científco e Tecnológico – CNPq.