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Velhice ou terceira idade? | Myriam Moraes Lins de Barros
O interesse das ciências sociais, sobretudo a antropologia, pelo tema da velhice é fenômeno recente, e deve-se, entre outros motivos, à dificuldade que os pesquisadores têm de se voltar para a parcela mais idosa da população e encontrar nela um objeto de reflexão. Durante muitos anos, os estudos antropológicos limitaram-se a considerar os velhos como “informantes privilegiados”, sem, no entanto, conceder-lhes um segundo pensamento. Essa dificuldade provem de uma tendência comum na sociedade ocidental moderna, de valorização da infância e da juventude como temas centrais de atenção não só do ponto de vista social, mas também como objeto de estudo.
Os estudos antropológicos sobre a velhice, particularmente no Brasil, têm acompanhado o próprio movimento de descoberta da mesma por parte da sociedade. A visibilidade dos velhos e da velhice evidenciou-se, sobretudo na última década, não apenas através dos dados demográficos divulgados na imprensa de um modo geral, como também pela experiência cotidiana, que nos faz conviver com um número cada vez maior de idosos(as), tanto no espaço público como no domínio da vida privada. Leia Mais
Los viejos y la vejez en la Edad Media. Sociedad e imaginario -HOMET (RBH)
HOMET, Raquel. Los viejos y la vejez en la Edad Media. Sociedad e imaginario. Rosario, Pontificia Universidad Católica Argentina/Faculdad de Derecho y Ciencias Sociales del Rosario, 1997, 257 p. Resenha de: SOUZA, Néri de almeida. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.19 n.38, 1999.
Desde o pioneirismo de Philippe Ariès, a morte não deixou de interessar aos historiadores. Medievalistas e modernistas exploraram e ainda exploram com interesse as possibilidades deste objeto. À visão panorâmica de Ariès se seguiram estudos regionalizados, com recortes temporais mais estreitos, baseados em uma documentação mais homogênea, e sobretudo, um grande número de objetos correlatos ou que se beneficiaram do tema ganharam luz como a história da espiritualidade, da liturgia, da família, da sensibilidade e mesmo das relações de poder e a história social.
O olhar de Ariès sobre a infância, no entanto, não despertou interesse de igual intensidade. Embora os trabalhos inspirados em sua pesquisa nunca tenham deixado de aparecer, são claramente menos numerosos e influentes. O estudo de uma faixa etária específica de um conjunto social apresenta evidentemente inconvenientes metodológicos que devem estar relacionados a tal carência. É o caso da dificuldade de se abordar com objetividade grupos isolados em um conjunto social. Impedimento que, de resto, afeta a já antiga e melhor desenvolvida história das mulheres. Para os períodos mais antigos não seria sequer necessário lembrar a parcialidade documental como inviabilizadora de uma história que repercuta nossas necessidades de descoberta e comprovação.
A historiografia destes segmentos sociais vê-se, assim, conformada a limites cuja ultrapassagem apenas os mais esperançosos podem divisar. Mesmo o recurso à arqueologia, que, embora ainda tímida, ganha cada vez mais importância entre os medievalistas, não promete um desbravamento muito amplo. Mas para além das dificuldades metodológicas, impedimentos mais profundos talvez guiem nosso desinteresse por recortes etários que fogem às vozes dominantes em nossa documentação. Neste momento histórico de uma valentia ímpar na proposta de objetos historiográficos, talvez vivamos uma ambigüidade na historiografia semelhante àquela que temos em nosso cotidiano político.
A criança, a mulher e o idoso fazem parte de um discurso constante de defesa e proteção que não repercute na maior parte de nossos gestos e preocupações quer em nossa vida institucional quer em nosso cotidiano. Para a Idade Média a valorização destes três objetos deveria dar-se ao menos devido à sua ligação com o tema da morte cuja relevância social, política e religiosa tem sido atestada em inúmeros trabalhos. Estas três personagens de relações extremas com a morte por si só seriam emblemáticas de uma experiência com os limites da vida do ponto de vista da cultura medieval e poderiam orientar uma releitura de documentos escritos com os olhos em outros resultados históricos e ambientes sociais.
Estes fatos fazem com que a opção temática da professora Raquel Homet já torne seu trabalho louvável, pois preenche de forma oportuna uma lacuna e um silêncio que, infelizmente, afetam não apenas a história medieval mas também a contemporânea. Tais circunstâncias fazem de seu trabalho uma pesquisa historiográfica de grande importância, mas também um atualíssimo alerta social. No entanto, neste caso, a ousadia exige seu preço, e o historiador tem de se debater com um campo aberto carente de apoio para firmar suposições. Por isso, a professora Raquel Homet acerta na opção por uma obra ampla cronologicamente e tematicamente abrangente. Seu texto se organiza em dois grandes blocos em que a autora estuda sucessivamente retratos da condição social do idoso e da consideração da velhice e representações dos mesmos na longa duração da história castelhana que vai do século VIII ao XV.
As duas partes da obra sintetizam um problema fundamental do pensamento sobre as idades da vida no período, quando estas foram quase sempre influenciadas por um enquadramento mítico que as relacionava ora a uma escala de decadência ora a uma consumação temporal que aproximava seus extremos da beatitude. A autora procura acompanhar a mudança desta perspectiva que, segundo ela, acontece com o aparecimento de uma visão mais objetiva do idoso ao longo das mudanças demográficas do final da Idade Média. No entanto, as representações mentais não deixam de, à sua maneira, acompanhar este movimento no ressurgimento compensatório de outras tradições que vinculavam a velhice à sabedoria e à pureza espiritual1.
Os resultados apresentados na primeira parte da obra foram obtidos a partir da análise de um conjunto documental tão vasto quanto heterogêneo. Foram pesquisadas correspondências particulares e institucionais, cartas de doação, testamentos, legislação, literatura, regras religiosas, textos teatrais e hagiográficos de Castela e, por vezes, de um círculo hispânico mais amplo. Na segunda parte, a documentação perde o caráter exclusivamente regional. São utilizados textos que, embora tenham uma história bem documentada de difusão no território de circunscrição da pesquisa, foram produzidas em outros locais e tiveram circulação em escala européia.
Aqui as fontes também mudam de tom. Mesmo a hagiografia, que na primeira parte teve selecionados exemplares próximos de uma verdadeira biografia, na segunda parte dá lugar à documentação estereotipada da Legenda aurea, por isso mesmo bastante adequada aos imperativos da pesquisa das representações. Embora tenha sido composta na segunda metade do século XIII, a Legenda aurea, com sua hagiografia recolhida sobretudo em fontes da alta Idade Média, segundo a autora, ao lado da interpretação do legado bíblico, fornece o modelo de interpretação da velhice nas representações da alta Idade Média e da Idade Média central. Junto com a Legenda aurea tem destaque o Libro del Conoscimiento de uma anônimo franciscano espanhol e o Libro de las Maravillas del mundo de John de Mandeville, ambos de meados do século XIV.
Francamente motivada por sua experiência pessoal com a “velhice ditosa” de seus avós, a autora se interessa em examinar a definição da velhice ao longo do tempo e as formas de assistência e amparo previstas pelos costumes e pela legislação para o cuidado do sustento, abrigo e saúde do idoso. As dificuldades na perseguição desses objetivos não são mascaradas pela autora. A própria definição do que a sociedade entende como sendo um homem velho é muito difícil no período uma vez que não se trata de uma “questão de idade cronológica mas de apreciação subjetiva”2, não diz respeito também simplesmente à aparência, como para nós. Ademais, as posições apresentadas nas fontes são vagas e contraditórias. No entanto, a autora mostra que, ao menos nos estratos mais altos da sociedade – aqueles que as fontes contemplam com maior precisão – o afastamento das funções sociais não vinha com data marcada, definida por taxas etárias precoces como acontece hoje mas com a incapacidade trazida pela decrepitude física.
Esta situação, segundo Raquel Homet, era responsável por abusos como os deveres de guerra que eram exigidos a cavaleiros idosos. Quadro agravado por uma legislação que apenas no final da Idade Média passou a prever meios institucionais para a manutenção de idosos. Por outro lado, esta “aposentadoria” tardia também permitia, em presença das condições físicas para tal, uma vida social e econômica mais longa que preservava, ao menos por mais tempo, o idoso da “exclusão” e lhe reservava melhor consideração social. No entanto, permanece o fato de que o idoso, incapacitado para se manter, se não podia contar com o auxílio de sua família via-se em situação de indigência. A única opção ficava por conta das instituições eclesiásticas às quais a autora dedica especial atenção.
As dificuldades para abordar a história dos velhos e da velhice na Idade Média não estão limitadas às fontes primárias. A bibliografia apresentada pela professora Homet mostra como a história dos velhos ainda carece de atenção. É ao caráter pioneiro desta pesquisa, portanto, que se devem algumas de suas limitações. A necessária amplitude documental e cronológica deste estudo numa área em que quase tudo ainda está por ser feito, deu ao resultado da pesquisa um caráter desigual. As conclusões não aparecem num mesmo volume ao longo dos diferentes capítulos e partes da obra. A conclusão final, por sua vez, ficou devendo uma correlação mais extensa entre os dois eixos de desenvolvimento da pesquisa: a sociedade e o imaginário. A exposição, segundo uma seqüência cronológica secular, não estabelece uma ligação constante e incisiva da história dos velhos com o desenvolvimento histórico geral da sociedade. Por fim, infelizmente, as fontes não permitem muitos avanços na precisão da origem social dos idosos e mesmo as realidades econômicas dos diversos extratos sociais.
O cuidadoso inventário de fontes de naturezas tão diversas e sua apresentação e análise criteriosa, no entanto, fazem desta obra um amplo panorama de orientação de pesquisa. A riqueza documental que por vezes dificultou a obtenção de resultados, por outro lado, é um manancial de possibilidades de recorte. Implicitamente, a pesquisa da professora Homet indica também a necessidade de se percorrer o caminho de monografias mais circunscritas em termos documentais, no espaço e no tempo. Um exemplo disso pode ser encontrado no capítulo “Longevidad y eterna juventud” que, envolvendo um volume mais amplo de fontes similares às utilizadas, daria um belo livro comparativo. Tal orientação, porém, não abole a importância de visões panorâmicas, aliás tão caras aos trabalhos, já mencionados, de Philippe Ariès.
Cabe ao leitor avaliar com maior profundidade a importância de se prosseguir na exploração desta linha investigativa e decidir se esta não nos levará aos mesmos impasses que outros objetos historiográficos contemporâneos. De nossa parte, o recorte etário parece extremamente oportuno para a abordagem da história medieval, pois fornece um critério alternativo, que podemos considerar universalmente válido que estabelece recortes, funções, valores e relações sociais. Perspectiva antropológica que fornece um ponto de partida que permite ao historiador reatualizar sua consideração do tecido social e das fontes, ultrapassando o critério anacrônico de “classe” e a noção ideológica e elitista das “ordens” do período. Talvez a perspectiva etária nos leve a reavaliar o retrato da sociedade legado por teorias e ideologias e nos aproximem de um perfil mais verossímil das práticas históricas.
Notas
1 HOMET, Raquel. Los viejos y la vejez en la Edad Media. Sociedad e imaginario. Rosario, Pontificia Universidad Católica Argentina\Faculdad de Derecho y Ciencias Sociales del Rosario, 1997, p. 228.
2 Idem, p. 10.
Néri de Almeida Souza – Departamento de História – UNESP – Franca.
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