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Imperialism, power, and identity. Experiencing the Roman Empire / David Mattingly
David Mattingly / Foto: Archaeological Institute of America /
Professor de Arqueologia Romana na Escola de Arqueologia e História Antiga (School of Archaeology and Ancient History) da Universidade inglesa de Leicester, desde 1991, David Mattingly é, atualmente, diretor de pesquisa do College of Arts, Humanities and Law e membro da Academia Britânica. Arqueólogo consagrado na academia britânica, o referido autor possui inúmeras publicações a respeito da arqueologia do Império Romano, as quais abrangem o resultado de suas pesquisas realizadas na Grã-Bretanha, Itália, Tunísia, Líbia e Jordânia. No momento, a África Romana tem sido a grande preocupação de Mattingly. Uma de suas prioridades tem sido analisar as situações de colonização romana no norte da África e tentar perceber, por meio da cultura material, as condições locais das populações que viviam sob o Império. Dentro desta perspectiva, Mattingly também atua como coordenador geral do projeto “Trans-Sahara: Formação do Estado, Migração e Comércio no Sahara Central (1000 a.C. -1500 d.C.)”.
Imperialism, power, and identity. Experiencing the Roman Empire é formado, em sua maior parte, por ensaios resultantes de conferências realizadas por Mattingly na Tufts University, Massachusetts (EUA), em abril de 2006. A temática geral trata de um assunto muito debatido ultimamente na academia, que diz respeito, sobretudo, à aplicabilidade (ou não) do conceito de Romanização para os estudos do Império Romano. Mattingly opta pelo viés do Imperialismo, do poder e da identidade para formular sua proposta atual de pesquisa para o Império Romano, focalizando nas experiências locais como uma nova forma de interpretação dos vestígios arqueológicos. Segundo Mattingly, o termo Romanização não mais serve aos nossos propósitos atuais. O “seu” Império Romano, como realça, é o resultado de trinta anos de estudo. Após inúmeros trabalhos de campo e pesquisas científicas, o autor chegou à conclusão que as condições do Império Romano eram situacionais, pois a percepção do que era o Império variava de região para região. Os estudos pós-coloniais foram, neste sentido, essenciais para o desdobramento de sua tese atual.
Os capítulos do livro são formados por ensaios direcionados a temáticas variadas, mas sempre partindo de um eixo central – a questão do poder. São quatro as partes que compõem a estrutura interna do livro, a saber: 1) Imperialismos e Colonialismos; 2) Poder; 3) Recursos e 4) Identidade. A primeira parte é constituída por dois capítulos. No primeiro deles, intitulado “Do Imperium ao Imperialismo: escrevendo sobre o Império Romano”, Mattingly discorre a respeito de vários termos utilizados pela historiografia que trata de Roma Antiga. Conceitos como Império, Imperialismo, Colonialismo, Globalização e Romanização são colocados em pauta e debatidos. Partindo de uma revisão historiográfica sobre o Império Romano, o autor descortina as influências que o Imperialismo do século XIX, sobretudo o britânico, exerceu na interpretação do que foi Roma na Antiguidade.
A historiografia tradicional considerava que o Império Romano teria expandido a civilização para os povos bárbaros, assim como os europeus ocidentais estavam procedendo quanto às suas colônias na África e na Ásia. De uma maneira geral, os classicistas foram os grandes responsáveis por nos imputar a ideia de que somos herdeiros e beneficiários das ações civilizatórias romanas. Tal atitude é severamente criticada por Mattingly, que interpreta as atitudes romanas em relação às províncias como atos imperialistas, em muitos aspectos semelhantes àqueles perpetrados pelo Imperialismo contemporâneo. Segundo ele, o conceito de “Imperialismo” pode ser aplicado a Roma Antiga, pois Roma era um Estado excepcional na Antiguidade. A natureza das relações desiguais entre Roma e os estados conquistados, o exercício do poder e as diferentes respostas a ele indicam ao autor que o termo Imperialismo cabe bem à sua proposta de estudo. O desejo de poder é o ponto central que une todas as épocas e lugares que vivem sob um Império. Justifica-se também o uso do conceito de Imperialismo pelo fato de os administradores do Império Britânico considerarem a Roma Antiga como exemplo e modelo a ser seguido.
A maior parte das fontes que dispomos sobre Roma Antiga diz respeito aos grupos que compunham a elite. Faltam estudos que mostrem as reações e atitudes dos povos conquistados pelos romanos. As abordagens pós-coloniais estão sendo consideradas apropriadas para quem se dedica a estudar os efeitos do colonialismo e da colonização exatamente pela possibilidade de darem voz aos oprimidos. Muitos arqueólogos têm, ultimamente, utilizado esta perspectiva de análise para verificar questões relativas à identidade local. Este é o caso de Mattingly, cuja preocupação é saber como as pessoas sujeitas ao Império viviam e como esta situação afetava o seu comportamento e a sua cultura material. A partir do conceito de experiência discrepante (discrepant experience), desenvolvido por Edward Said [1], Mattingly estabeleceu o seu próprio, diferindo em certos aspectos quanto à ideia original proposta por seu criador. Said havia pensado neste conceito como definidor de uma dicotomia entre governantes e governados, onde cada um tinha a sua própria história. No entanto, Mattingly prefere usar o termo “experiência discrepante” no sentido de incorporar todos os impactos e reações ao colonialismo rejeitando a ideia de bipolaridade, no seu caso específico entre romanos e nativos (p. 29).
Ao tratar da “Romanização” Mattingly é bem claro em recusar o uso do conceito. Atualmente, muitos arqueólogos e historiadores continuam a usar o termo “Romanização” pensando, sobretudo, nas negociações entre os membros da elite local romana e o agente nativo. Entretanto, embora tenha usado este conceito no passado, Mattingly agora se mostra enfático em suas objeções a ele: seria um paradigma falho, pois possui múltiplos significados; é um termo inútil, pois implica que a mudança cultural foi unilateral e unilinear; faz parte do discurso moderno colonial; dá grande ênfase aos vestígios da elite como grandes monumentos; leva os estudiosos a adotarem posturas pró-romanas; não destaca os elementos que sugerem uma continuidade das tradições culturais da sociedade indígena; reforça uma interpretação da cultura material que é simplista e estreita (como aculturação e emulação); enfim, focaliza a atenção no grau de semelhança entre as províncias e não na diferenciação e na divergência entre elas.
No segundo capítulo, intitulado “De um colonialismo a outro: o Imperialismo e o Magreb”, Mattingly discorre a respeito de um estudo de caso da África Romana, região também marcada pela estrutura colonialista contemporânea. As pesquisas arqueológicas no Magreb (Argélia, Tunísia, Marrocos e Líbia) foram influenciadas, segundo Mattingly, pela ação colonialista de franceses e italianos, que se consideravam herdeiros dos romanos na região. A população local, de origem berbere, foi classificada como selvagem, bárbara e não civilizada. Buscando paralelos entre os imperialismos, antigo e moderno, Mattingly estabelece a existência de uma ação direta entre o exército de ocupação francês e os assentamentos romanos na região. A arqueologia foi, inicialmente, dominada por ex-militares, que procuravam vestígios de fortificações romanas. Na verdade, o que aconteceu foi que muitos sítios arqueológicos que eram áreas agrícolas na Antiguidade foram interpretados como sendo assentamentos militares romanos. Houve uma manipulação dos dados em benefício dos colonizadores.
Com o desenvolvimento dos estudos pós-coloniais, baseados em atitudes de nacionalismo e de resistência, passou-se a considerar que a africanidade estava presente nos nomes púnicos das inscrições de época romana, na religião e em outros aspectos da sociedade dominada, fato que é demonstrativo da atuação dos agentes locais que viviam sob o Império Romano. Mattingly aponta as novas perspectivas necessárias, segundo ele, para que haja o desenvolvimento da arqueologia do norte da África: os estudiosos europeus devem abandonar o discurso colonial; a fase de ocupação romana precisa ser restabelecida no Magreb como uma parte importante de sua herança cultural; é importante a criação de uma nova agenda para a arqueologia clássica na região, uma que servirá às necessidades do turismo, mas que também se preocupará com a história do Magreb e, em última instância, uma mudança na atitude da Academia criará as circunstâncias certas para a utilização da teoria pós-colonial.
A segunda parte do livro de Mattingly é dedicada ao “Poder”. No terceiro capítulo, nomeado “Mudança de regime, resistência e reconstrução: Imperialismo antigo e moderno”, o autor discorre a respeito da atuação romana frente aos seus reinos clientes. Mais uma vez procura-se associar o Imperialismo antigo e o moderno. Apesar das diferenças entre eles, Mattingly defende a ideia de que todos os impérios têm uma base comum na dominação de terras, mares e povos, cujo elemento principal é o “poder”. No final da República e início do Principado foi comum a existência de governantes clientes. Tratava-se de reis locais, que mantinham o seu poder graças ao apoio romano. Estes reinos amigos eram uma forma econômica de se conseguir recursos e extrair tributos. Entre o final do século I a.C. e início do seguinte muitos reinos clientes foram anexados por Roma. O momento de anexação coincidia com a morte do rei e a não aceitação de seu sucessor. Um exemplo famoso é o de Cleópatra Selene, filha de Cleópatra VII e Marco Antônio, casada com o rei Juba II e colocada junto com ele no trono da Mauritânia, reino que originalmente não era de seus pais. Era comum que os governantes romanos apresentassem uma imagem negativa dos reis clientes que foram por eles depostos. No caso da Britânia, Mattingly ressalta que os historiadores colocaram a culpa pela invasão romana nos governantes dos reinos clientes, sendo que os romanos tiveram a intenção de dominar a região e, por isso, incentivavam atritos entre os habitantes locais.
No capítulo seguinte, “Poder, sexo e Império” a temática principal gira em torno da relação entre corpo e poder. Para tanto, Mattingly se apropria dos estudos pós-coloniais e compara aspectos do sexo no mundo romano com as atitudes observadas nas sociedades coloniais modernas. Um assunto específico chamou a atenção do autor – a questão do poder sexual e seus efeitos na formação das atitudes sexuais romanas. Mattingly está preocupado em verificar a influência negativa do poder na sociedade romana, que causou alterações na conduta dos romanos à medida que o Império se expandiu e conquistou vastos territórios. É comum os estudiosos considerarem que as relações culturais entre Roma e suas províncias eram, em certo sentido, igualitárias. No entanto, embora Roma não fosse racista e exclusivista como as metrópoles modernas, o impacto da conquista romana sobre os povos conquistados não pode ser negligenciado. O Imperialismo Romano estava baseado em poder assimétrico, coerção, exploração e violência. Enquanto as antigas abordagens a respeito do Imperialismo Romano tendiam a considerar que os povos dominados não possuíam nenhum papel ativo no seu destino, Mattingly enfatiza que todos os atos de colaboração, participação seletiva e resistência tomava lugar na estrutura dinâmica das relações de poder.
As teorias pós-coloniais servem para observarmos a relação entre ambas sociedades – a que domina e a subjugada – também no que diz respeito ao comportamento sexual. Segundo Mattingly, o comportamento considerado bizarro de certos imperadores é, geralmente, descrito pelos historiadores, mas não analisado. E este deveria ser compreendido em um contexto amplo de sexualidades alternativas proporcionadas pela existência de sociedades coloniais. Orgias romanas míticas podem, então, ser relocadas neste discurso. As fontes romanas e o vocabulário sexual latino revelam um padrão de dominação e práticas que atravessam os limites normativos da moral, do gênero, da classe e da etnicidade. Existem paralelos, neste sentido, entre os imperialismos romano, britânico e norte-americano. Os efeitos desta prática de domínio sexual podem ser observados na população dominada. Mas outra característica importante é a corrupção psicológica da humilhação e degradação sexual – que tem sido um poderoso instrumento de sustentação das diferenças sociais entre governantes e governados nas sociedades coloniais.
A sexualidade romana, no decorrer do tempo, sofreu alterações. De uma tradição comportamental austera adquiriu aspectos eróticos jamais vistos anteriormente. Mattingly se questiona sobre o que aconteceu. A resposta é algo interno à sociedade romana ou foi resultado de seu domínio colonial? Nos primórdios da civilização romana se falava de castidade, respeitabilidade e virtude e o comportamento adequado para as mulheres da aristocracia eram o de fidelidade sexual e de modéstia. Já os homens tinham suas licenças para ter sexo fora do casamento. Com a expansão da riqueza advinda das terras conquistadas e o aumento na quantidade de escravos, a sociedade romana teria sofrido transformações também em relação ao seu comportamento sexual. O exército estabelecido fora da Itália poderia experimentar novas formas de luxúria, colocada por Mattingly em termos de bens materiais, artísticos e acesso a uma culinária diferenciada.
Mattingly propõe deslocar o fenômeno da permissividade romana para o discurso colonial, onde temos a violência e a exploração em relação à sexualidade. O poder colonial inclui exercer o poder sobre os dominados inclusive no âmbito da sexualidade. Nas sociedades coloniais a distância do colonizador da sua terra de origem e sua permanência em um lugar desconhecido favorecia a transgressão às regras. A humilhação sexual dos colonizados, homens e mulheres, era comum. No vocabulário latino e nos relatos das práticas sexuais romanas fica evidente que o falo era um símbolo de poder, além de possuir seu significado propriamente religioso de proteção e de fertilidade. Termos linguísticos para o intercurso sexual estão sempre relacionados aos soldados. É o caso de verbos como penetrar, cortar, cavar e atacar, normalmente associados ao ato sexual masculino. Tanto a vagina (cunnus) quanto o reto (culus) estavam associados metaforicamente a animais, campos, grutas e objetos domésticos. As mulheres e aqueles que se sujeitavam ao papel passivo em uma relação sexual eram considerados de status social inferior. A palavra stuprum significa, em latim, vergonha. Era, por exemplo, chamado de stuprum o ato de um homem exercer a função passiva em uma relação sexual com outro homem, o que o equiparava a um escravo.
Ao tratar das relações de poder Mattingly nos remete às ideias de Michel Foucault (p. 102-103). A sexualidade não é considerada como uma condição natural e sim como produto das relações de poder e resultado do efeito de operações historicamente específicas de diferentes regimes de poder sobre o corpo. Embora Mattingly concorde com Foucault no sentido de considerar a existência de múltiplas formas de relações de poder, discorda deste pela não observação dos fatores que se opunham ao poder. Esta crítica a Foucault foi apresentada primeiramente por Said, preocupado com questões relativas à resistência ao poder dominante. Geralmente, quando se estuda sexo e desejo no mundo antigo não se faz pelo viés das relações de poder e sob a ótica do Colonialismo e do Imperialismo, tarefa a que Mattingly se propõe neste capítulo.
A terceira parte do livro aborda a temática “Recursos”. A questão relativa à economia e à exploração dos recursos das áreas conquistadas é central nos três capítulos que consideraremos a seguir. No capítulo V, denominado “Regiões governadas, recursos explorados”, Mattingly retoma um antigo debate a respeito da economia antiga. Durante muito tempo a historiografia foi dominada pelas ideias de Moses Finley, para quem a economia antiga não poderia ser considerada de mercado ou capitalista como queria alguns autores marxistas, entre eles Michael Rostovtzeff (p. 125). Finley seguia, neste sentido, as ideias desenvolvidas por Karl Polanyi, que postulou o conceito de uma economia “embededd”, imbuída em todas as esferas da sociedade. Estas opiniões divergentes polarizaram o discurso em dois matizes: os formalistas e os substantivistas. Os primeiros considerando a existência de uma economia de mercado, de cunho racionalista e, os últimos, sendo partidários de uma economia primitiva. Mattingly defende que a economia romana possuía ambos os aspectos, primitivo e progressivo, sendo uma economia híbrida. O objetivo de Mattingly é focalizar sua pesquisa no papel do Estado como motor da atividade econômica através de seu status de poder imperial. Sua análise parte das questões atuais a respeito do discurso colonial e não se define pela teoria econômica.
No capítulo VI, “Paisagens do Imperialismo. África: uma paisagem de oportunidade?”, Mattingly aborda uma temática recorrente nas pesquisas arqueológicas atuais, que diz respeito aos estudos da paisagem. A África seria, neste sentido, uma paisagem da oportunidade para os romanos. Pelo trabalho arqueológico foi possível, segundo o autor, identificar o crescimento econômico intensivo nas províncias da África Proconsular e a Numídia, entre os séculos II e IV d.C. Enquanto esta província cresceu, outras, como a da Acaia, diminuiu após a conquista romana. As paisagens provinciais foram o produto de processos complexos de coerção, negociação, acomodação e resistência, sendo exploradas tanto pelos colonizadores como também pela população nativa.
Em “Metais e Metalla: paisagem de uma mina de cobre romana em Wadi Faynan, Jordânia”, capítulo VII, o enfoque está colocado sobre a paisagem desta importante mina de cobre romana, cuja exploração intensiva tinha por objetivo manter o exército romano e o próprio império. Em comparação com as atividades industriais atuais, Mattingly salienta que a poluição causada ao meio-ambiente derivada desta ação humana passada permanece na localidade até os dias de hoje, sendo muito comum a contaminação do solo com chumbo, o que afeta a produção de alimentos e causa doenças em pessoas e animais. Estudos de caso como este de Mattingly são importantes, pois revelam a existência de vários tipos de relações de trabalho nas minas exploradas pelos romanos. Era comum que em uma mesma mina trabalhassem escravos e homens livres. Enquanto na mina de Wadi Faynan prevaleciam indivíduos condenados a trabalhos forçados, geralmente oriundos de populações que tinham se rebelado contra Roma, outras minas como as de granito e pórfiro do Egito (Monte Porfirius e Monte Claudianus) possuíam trabalhadores contratados, que recebiam salário.
“Identidade” é a temática da quarta parte, dividida em dois capítulos. No capítulo oitavo, intitulado “Identidade e Discrepância”, Mattingly apresenta uma nova abordagem para explicar a mudança cultural, que oferece uma alternativa àquela da Romanização. A história tradicional considerava as áreas conquistadas como tendo um papel passivo frente à civilização romana. Uma postura corrente nos estudos atuais, adotada, por exemplo, por autores como Martin Millet e Greg Woolf (p. 206), é considerar o papel ativo das elites locais que estavam sob o domínio imperial romano. Enquanto os membros pertencentes à elite adotavam a língua latina e os novos tipos de vestimenta, adornos e um comportamento romano, aqueles das camadas mais humildes teriam uma experiência mais diluída da Romanização. No entanto, para Mattingly, este modelo falha por considerar que a maioria da população nativa era passiva frente ao Império Romano. Mattingly conclui que, como a identidade está relacionada ao poder, a criação das identidades provinciais não pode ser tomada isoladamente da negociação de poder entre o Império Romano e os povos conquistados. E o que falta no modelo de Romanização é saber como as dinâmicas do poder operam tanto de cima para baixo quanto de baixo para cima. Outra abordagem que busca se diferenciar dos estudos tradicionais foi proposta por Jane Webster com o uso do termo “crioulização” (p. 203-204), com a finalidade de visualizar na cultura material vestígios da cultura escrava crioulizada. Mattingly acredita que o uso deste termo é perigoso, pois acabamos por substituir um conceito elitizado, o de Romanização pelo seu oposto, que prioriza os indivíduos de baixo status social. Segundo ele, uma abordagem que combine ambos os lados se faz necessária.
Como observar esta diversidade em uma pesquisa arqueológica? Mattingly retoma as ideias de Sian Jones [2], que defende ser a etnicidade uma forma de identidade que a sociedade constrói (p. 209-210). A solução de Jones para este problema é focar a pesquisa nas culturas locais e comparar grupos de sítios como assentamentos rurais e fortes romanos, por exemplo. Ao trabalhar com estudo de caso de sítios rurais ela demonstra que havia considerável diversidade, que era obscurecida pelo modelo de Romanização com sua tendência em enfatizar a homogeneidade. Mattingly tem dúvidas em dar à etnicidade muita importância nos estudos sobre identidades passadas, mas sabe que tanto no mundo grego quanto no romano os discursos de etnicidade tinham um importante papel. Se a etnicidade era um dos pontos de significância para marcar a identidade, a evidência arqueológica sugere que ela não era uma constante no tempo e no espaço.
Para Mattingly, a identidade deve ser estudada em termos de poder e de cultura. E embora considere a importância do agente ativo nativo na mudança cultural sabe que há limites sobre a habilidade de escolher nossa identidade aos olhos dos outros. Enquanto o processo de conquista e assimilação ao Império Romano promoveu uma delineação profunda de identidades étnicas, vários fatores militaram contra a manutenção disto na longa duração. A identidade étnica dificultava e criava uma barreira para estas sociedades negociarem com Roma. As distinções étnicas, que tornaram-se grandes e significantes durante o processo de expansão imperial, foram, mais tarde, diminuídas como estratégias múltiplas para lidar com a identidade individual e comunal. A construção romana de identidade étnica servia ao propósito de facilitar a violência colonial, ao passo que a nativa servia como forma de resistência durante a fase de conquista.
A heterogeneidade de respostas a Roma não era uniforme e variava conforme o local. Alguns estudos recentes de identidade têm empregado o termo hibridização para definir o resultado do contato cultural entre romanos e nativos. Mattingly, ao priorizar a diferença ao invés da semelhança, defende a utilização do termo “discrepante”, que indica “discordância” e “desarmonia”. O ponto é que as sociedades provinciais romanas poderiam algumas vezes exibir discordância cultural assim como similaridades, que são geralmente celebradas por meio da teoria da Romanização. A principal preocupação do autor é mostrar que os indivíduos e os grupos no período romano foram multifacetados e dinâmicos. O que foi previamente descrito como Romanização representa as interações de múltiplas tentativas de definir e redefinir a identidade.
“Identidade discrepante” possui similaridades com os trabalhos que usam o conceito de agência e teoria da estruturação.[3]Estas teorias enfatizam as escolhas do sujeito na estrutura social (p. 216-217). Mas, no caso de sistemas imperiais, há uma limitação nesta escolha. Então, é preciso balancear o conceito de agência com um exame profundo das influências estruturais. Um ponto a considerar é que as estruturas imperiais afetam os atores locais de diferentes maneiras. Os impactos imperiais sobre as áreas dominadas podem ser observados, geralmente, por meio de atos intencionais perpetrados pelo Império Romano e o consequente comportamento dos sujeitos afetados. Alguns fatores importantes a se considerar pelo pesquisador são elencados por Mattingly (p. 217): 1) o status social (escravos, livres, libertos, bárbaros, cidadãos romanos, não cidadãos etc.); 2) riqueza – as formas de produção econômica (economia de subsistência, de mercado etc.); 3) localização (espaço urbano, rural, zonas civil, militar etc.); 4) trabalho (artesãos, membros de guildas, soldados do exército etc.); 5) religião – sobretudo as seitas exclusivistas como o Mitraísmo, os Cultos de Mistério, Judaísmo e Cristianismo); 6) origem (geográfica ou étnica, tribal etc.); 7) associação por serviço ou profissão ao governo imperial (ou não); 8) aqueles que viviam sob lei civil ou marcial; 9) linguagem e literatura; 10) gênero e 11) idade.
Mattingly exemplifica sua proposta de encaminhamento de pesquisa arqueológica com os dados provenientes da Britânia e do norte da África. Sua abordagem inicial para o estudo da Britânia foi isolar as evidências da comunidade militar, da população urbana e das sociedades rurais. Um dos vestígios mais prementes para observar a identidade discrepante diz respeito à religião, pois é uma esfera recorrente para a marcação de diferenciação social. A religião romano-britânica tem sido frequentemente apresentada como um amálgama de práticas romanas importadas e práticas nativas britânicas temperadas com influências galo-germânicas. Segundo Mattingly, a distribuição dos vestígios de certas práticas em santuários como a presença de altares e de inscrições com maldições são indicadores de que a religião estava associada à identidade social. O exército, por exemplo, tinha cultos muito diferentes daqueles dos civis. Enquanto nas áreas militares predominavam santuários romanos em outras comunidades os templos possuíam características celtas. Inscrições funerárias também servem para demonstrar as diferentes identidades do indivíduo no decorrer do tempo. Por exemplo, o relevo funerário de Regina, esposa de um mercador ou soldado de Palmira que vivia na Britânia, a retrata como uma respeitável matrona romana. Na representação iconográfica ela aparece usando vestimentas e adornos símbolos deste status social. No entanto, pela inscrição da lápide, em texto bilíngue, ficamos sabendo que antes do casamento Regina havia sido escrava de seu futuro marido (p. 218, fig. 8.3).
Em comparação com a Britânia a África era mais rica e próspera, possuindo maior quantidade de inscrições latinas. Léptis Magna, por exemplo, era uma grande cidade da Tripolitânia, habitada por líbios-fenícios, oriundos de casamentos mistos entre fenícios (púnicos, originários de Cartago) e líbios. A identidade púnica era muito parecida com a dos egípcios que viviam sob o domínio romano: servia à elite provincial que circulava pelas estruturas do poder romano, assim como era um marco da identidade local. A cultura material de cunho funerário como estelas, tipos de enterramento e inscrições bilíngues é demonstrativa deste tipo de comportamento.
O último capítulo, o nono, denominado “Valores familiares: Arte e Poder em Ghirza no pré-deserto líbio”, trata da relação entre arte e poder. Nos estudos historiográficos sobre a arte romana normalmente a arte das províncias é retratada como inferior, como sendo uma imitação inadequada daquela produzida no centro do Império. Não havia a preocupação em indagar qual iconografia ou estilo servia aos propósitos indígenas. Faltava também aos historiadores de arte considerar que na Antiguidade não existia separação entre arte e artesanato e também não havia um padrão estético que valesse para todo o Império Romano. A arte era usada por diferentes grupos na sociedade para expressar relações de poder. A arte oficial romana, que se expandia a todas as camadas da sociedade, servia para dar suporte à dominação imperial. No entanto, sabemos que a interpretação da iconografia dependia do contexto e da audiência. Para Mattingly, a adoção do estilo romanizado facilitou a continuação das tradições indígenas.
As tumbas de Ghirza, na Líbia, servem para exemplificar esta questão. Interpretadas à luz da arte romana eram vistas como degenerativas pelos escritores do século XIX e início do XX. Para Mattingly, estas tumbas devem ser consideradas não apenas como monumentos aos mortos, mas também como estruturas que tinham uma continuidade na significância religiosa dos vivos. O objetivo principal de Mattingly, nesta sua pesquisa, foi relacionar a imagética presente nas tumbas com as redes de poder construídas ao redor dos membros vivos e mortos das principais famílias de Ghirza. Sua hipótese é de que existiam duas famílias principais da elite em Ghirza, que procuravam demonstrar poder e status social por meio dos enterramentos e da iconografia funerária. Os chefes das famílias aparecem retratados nas tumbas com cetros e outros elementos simbólicos associados ao poder: vestimentas e adornos, cavalos, cães etc. As mulheres, por sua vez, aparecem representadas usando joias romanas. No entanto, Mattingly conclui que os retratos seguiam o padrão de representação púnico e serviam ao culto ancestral líbio.
Esta série de ensaios de David Mattingly é elucidativa do caminho que a arqueologia romana tem percorrido nos últimos tempos. O conceito de Romanização tem sido colocado em xeque e debatido em vários sentidos. Por isso mesmo, vem sendo utilizado com cautela no sentido de ser uma via de mão dupla, que permita vislumbrar não apenas a ação romana nas províncias, mas também as respostas dos sujeitos subordinados ao Império Romano. O desenvolvimento da teoria pós-colonial foi imprescindível para que vários arqueólogos e historiadores passassem a adotar uma postura mais crítica em relação à Romanização. Este livro de Mattingly é importante no sentido de trazer luz ao debate atual e por propor novas diretrizes para arqueologia romana. O caráter do Imperialismo e Colonialismo romanos, seu impacto econômico, a operacionalidade do poder nas sociedades coloniais e o modo como os indivíduos sob governo imperial construíram suas identidades são pontos-chave de sua proposta (p. 269).
A existência de um “Imperialismo Romano” é defendida enfaticamente no decorrer da obra, sendo que Mattingly não considera que haja problemas na utilização de termos como “Império”, “Imperialismo”, “Colonialismo” e “Colonização”, quando se trata de Roma Antiga. Os estudos sobre Roma foram pautados, no passado, pelo discurso colonialista europeu do final do século XIX e início do XX, do qual os norte-americanos foram herdeiros. Tal fato afetou toda a produção historiográfica que se dedicava aos estudos do Império Romano e possui repercussões até hoje. A teoria da “Romanização” é rejeitada e por meio das abordagens pós-coloniais outros aspectos da sociedade romana podem ser observados, segundo o autor: o dinamismo de seu Imperialismo e Colonialismo; a questão do poder, central para a compreensão da relação entre Roma e suas províncias; a existência de uma “economia imperial”, sendo o vetor econômico pautado pela exploração de recursos um dos pontos que caracteriza o Imperialismo Romano e, por fim, o conceito de “Identidade”, que pode ser usado para se estudar a diversidade e o hibridismo resultado do contato entre romanos e nativos.
Além das proposições teóricas propriamente ditas, Mattingly apresenta sua metodologia de pesquisa, que se detém em interrogar o registro arqueológico procurando exemplos de diferenças no uso da cultura material com o objetivo de saber se tais ocorrências podem ser atribuídas a práticas sociais distintas que foram sendo usadas para expressar noções de identidade na sociedade. O método, derivado da proposta de Sian Jones, está relacionado à abordagem da Arqueologia pós-processual, cuja preocupação com o contexto arqueológico e as questões de status social e poder definem bem este paradigma científico. Desta forma, as “experiências” que se busca traçar do Império Romano estão relacionadas aos vários tipos de ações de Roma e às múltiplas respostas ao Império, que são condicionadas pela região e o período que estivermos analisando. Os estudos arqueológicos permitem esta consideração do contexto para a verificação da atuação das identidades locais. Mattingly exemplifica com suas pesquisas realizadas no Norte da África e Britânia. Mas sua metodologia, resguardadas as diferenças regionais, pode ser aplicada para o Império Romano como um todo.
Alguns autores podem fazer críticas ao modelo de Mattingly pela sua ênfase na questão da diferença e da não uniformidade do Império Romano e, sobretudo, pela sua comparação da atitude imperial romana com a ação imperialista das nações contemporâneas. Ele seria anacrônico ao tomar a experiência de épocas recentes para tentar entender os romanos? Mattingly, em suas considerações finais, tem plena consciência deste fato e se defende dizendo ter uma postura crítica analítica e não se interessar em construir um Império Romano totalmente negativo, em contraposição aos estudos mais antigos, que vangloriavam a grandeza de Roma (p.274-275). Concordo com o autor neste aspecto. A abordagem pós-colonial trouxe novas perspectivas para entendermos situações de colonização e ações imperialistas. Sua utilização em conjunto com a análise do contexto local, por meio de comparações de sítios arqueológicos e da cultura material, é que traz o equilíbrio necessário ao desenvolvimento da pesquisa. É por meio desta combinação de teoria e dados que poderemos tomar ciência da grande diversidade que constituía o Império Romano.
Notas
1. SAID, Edward W. Culture and Imperialism. London: Vintage, 1993. Edição brasileira: SAID, Edward W. Cultura e imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
2. JONES, Sian. Archaeology of ethnicity: Constructing identities in the past and present. London: Routledge, 1997.
3. A referência principal do autor para a Teoria da Estruturação é derivada das ideias de Anthony Giddens, em sua obra: GIDDENS, Anthony. The constitution of society: Outline of a theory of structuration. Cambridge: Polity Press, 1984.
Marcia Severina Vasques – Professora Adjunta do Derpartamento de História – UFRN. Doutora em Arqueologia – USP.
MATTINGLY, David. Imperialism, power, and identity. Experiencing the Roman Empire. Princeton: Princeton University Press, 2011. 342p. Resenha de: VASQUES, Marcia Severina. Revista Porto. Natal, v.1, n.2, p.136-149, 2012. Acessar publicação original [IF].