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A Cultura do Romance – MORETTI (NE-C)
MORETTI, Franco. A Cultura do Romance. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Cosac Naify, 2009. Resenha de: VASCONCELOS, Sandra Guardini Teixeira. O romance como gênero planetário: a cultura do romance. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.86, Mar. 2010.
Ao percorrer as páginas de A cultura do romance, primeiro dos cinco volumes da série O romance, organizada por Franco Moretti, o leitor logo notará que se encontra diante de uma obra singular, pois ali se narra uma história do gênero que, não raro, transgride fronteiras nacionais, abole limites espaço temporais e segue uma orientação comparatista e internacionalista, certamente inspirada na conhecida posição de seu organizador sobre a literatura mundial. Com efeito, em ensaio publicado em 2000, Franco Moretti retomava o conceito proposto por Goethe, no final do século XVIII, e defendia o retorno à antiga ambição da Weltliteratur, a partir da constatação de que”afinal, a literatura a nossa volta é inequivocamente um sistema planetário”1.
Mescla de história e crítica literárias, esta coletânea reúne um respeitável time de especialistas e põe em funcionamento outro princípio que tem norteado o trabalho de seu organizador:o de que uma história do romance,fundamentalmente pelo caráter transnacional do gênero, teria de ser escrita a partir de um esforço coletivo, por meio do qual as diferentes especialidades contribuiriam para repensar o modo como tratamos a historiografia literária, reinscrevendo o romance não mais no espaço demarcado pelas linhas divisórias das nações, mas em um mundo cujas fronteiras se alargaram e no qual o romance viaja e viceja como forma verdadeiramente livre na sua tradutibilidade2.
O romance como um sistema planetário: eis o espírito que parece animar esse conjunto diversificado de ensaios que,recobrindo um largo espectro temático e um amplo arco temporal,abarca uma multiplicidade de pontos de vista e tradições, combina traços específicos e particulares a questões de ordem geral e redesenha o mapa da história desse gênero onívoro e inclusivo, dessa forma permanentemente a se fazer e se renovar3, cuja natureza de inacabamento se comprova fartamente aqui.
Graças à sua”capacidade de mudar sem transformar-se em outra coisa”,4 o romance desafia e desestabiliza convenções, alia continuidades e descontinuidades, reinventa-se e franqueia ao romancista liberdade de imaginação, de recriação das formas e de proposição de novos caminhos.Seu modo de ser protéico e camaleônico fica patente na pletora de temas, procedimentos, técnicas e soluções que vemos mobilizados nas obras que são discutidas e comentadas nos ensaios do volume. A dinâmica da forma-romance emerge, assim, nas suas mais variadas vertentes, como narrativas de fundação, relatos da vida cotidiana, histórias de sondagem da interioridade, da experiência urbana, dos embates entre o indivíduo e a sociedade, do sobrenatural, dos recônditos da alma humana – apenas alguns exemplos das potencialidades quase ilimitadas do gênero desde sua invenção. Do mesmo modo, pelas suas próprias características e desapego às convenções, o romance convida à aproximação com outros campos e artes, como a história, a historiografia, a sociologia, a política, o cinema, a linguagem, a psicanálise, a pintura, numa teia de relações que põe em destaque sua abertura para as mais diferentes esferas da experiência humana. Esses diálogos e intersecções também vemos em ação aqui.
Os dois ensaios que, respectivamente, abrem e encerram o volume, com seus títulos especulares não só estabelecem de pronto um vínculo estreito e indiscutível entre o romance e o mundo moderno, como também pontuam alguns dos temas que iremos acompanhar com interesse no percurso dessa”primeira forma simbólica verdadeiramente mundial”5. Assim, enquanto Mario Vargas Llosa encarece a importância da leitura e explora os sentidos da literatura, enfatizando seu papel na formação do cidadão e da linguagem, seu teor de conhecimento e sua vocação para despertar um”sentimento de pertencimento à coletividade humana através do tempo e do espaço”6, ele igualmente lembra a capacidade de insubmissão e transgressão dos bons romances e, num exercício de ficcionista, imagina o quê ou como seria um mundo sem romances. Claudio Magris, por sua vez, retoma e discute com maestria outro problema que, ao leitor mais atento, não deve ter passado despercebido ao final da leitura. Ao longo de todo o volume, vamos topando freqüentemente com certa variação dos modos de se referir ao romance: ora romance mesmo, ora”romance”, romance, novel, novelas ou ainda romanesco. Além disso, muitas vezes o vocábulo romance se faz acompanhar de um adjetivo. A lista não é muito extensa, mas intriga: moderno, medieval, antigo, de corte, de cavalaria. Para os leitores menos familiarizados com as questões mais técnicas, é bom esclarecer que na tradição inglesa romance e novel designam de fato modalidades narrativas distintas, e passaram a fazer parte do vocabulário crítico no século XVIII como efeito da percepção de que ocorrera uma importante mudança histórica, com reflexos indiscutíveis na prosa de ficção. Por isso, na maioria das vezes dispensam adjetivos. A inexistência dessa diferenciação em outras línguas européias e a subsunção de romance e novel num mesmo termo genérico (cf. romance, romanz, roman, romanzo) põem em menor evidência,nessas outras tradições, a noção de ruptura que norteou a adoção dos dois vocábulos em língua inglesa.
Que conseqüências tirar dessa instabilidade, então, e desse uso reiterado dos qualificativos para melhor definir e precisar aquilo de que se fala? A resposta já ficara delineada por Catherine Gallagher7, que expõe com clareza a questão e mapeia, com bom fôlego teórico, as diferenças entre romance e novel, entre o gênero pré-moderno, precursor imediato do romance, e esse outro, encarnação da modernidade. O ensaio de Magris volta ao assunto, com uma reflexão que incorpora algumas das mais iluminadoras discussões sobre o gênero, para não apenas ressaltar a sua modernidade radical, mas sobretudo para pensar essa”epopéia do desencanto”, nos termos propostos por Hegel e Lukács,como objetivação da cisão entre o eu e o mundo. Essa”por vezes degradada mas aventurosa e radicalmente nova odisseia”8 é, entre todos os gêneros, aquele que faz do mundo, enquanto história, seu objeto, em que o caráter temporal e histórico da ação dos homens é problema sempre crucial e sempre presente para o romancista. Ao afirmar que”o romance é o mundo moderno”, Magris, além de o alinhar aos desenvolvimentos da era que se inaugura por sobre os escombros da ordem feudal, sugere que nele podemos reconhecer a experiência que nos determina e constitui. Reaparece assim,nesse remate,a relação problemática entre romance e realidade que já viera pontuando várias das outras intervenções no debate que pudemos ir acompanhando até esse final.
Essa moldura enquadra, dessa maneira, um verdadeiro mosaico de leituras que nos deslocam no tempo e no espaço e nos confrontam com um rol de questões que rondam o romance desde seu surgimento. De dentro da diversidade de abordagens, ângulos e perspectivas que os autores dos ensaios escolheram para ler seus objetos, vemos surgir alguns temas recorrentes, que atravessam o volume como um todo e remetem às escaramuças que o romance teve de enfrentar no seu longo processo de ascensão e consolidação. Um deles diz respeito à tensão entre veracidade e ficcionalidade (ou verdade e mentira, verdadeiro e falso,fato e ficção),que desde sempre esteve no centro da discussão sobre as relações entre o romance e a representação do real. Não é muito difícil compreender por que essa tem sido uma preocupação constante por parte de teóricos e críticos: afinal, o romance tem suas raízes firmemente fincadas no tempo histórico e em contextos socioculturais específicos e, mesmo nos altos vôos da fantasia, tem um conteúdo de verdade e um notável poder de revelação, de “descoberta e interpretação da realidade” (a expressão é de Antonio Candido). É essa capacidade de escavar a superfície e penetrar nas correntes subterrâneas de uma vida, de uma comunidade, de uma experiência, que lhe confere a prerrogativa de produzir uma impressão de verdade, a qual nasce da arte do romancista de absorver na estrutura narrativa, para além dos detalhes e fragmentos do real, para além dos dados externos, certos princípios constitutivos da sociedade. Basta acompanhar o que fizeram os diversos romancistas dos mais diferentes quadrantes que são motivo de comentários nas leituras críticas que compõem o mosaico e estão distribuídas ao longo do volume.
O contrato com o leitor, a “plausibilidade fictícia”9, o jogo ficcional – tudo contribui para a suspensão da descrença e carrega o leitor para um mundo que parece verdadeiro,quando é apenas crível, verossímil. A verossimilhança, entretanto, não explica esse sentimento de verdade de que somos possuídos quando um romancista” toma a si o encargo de imaginar e compor o movimento da sociedade”10. Sem dúvida, foram os nexos que estabelece com a vida real, somados à sua inegável faculdade de estimular a imaginação,que lhe valeram a pecha de influência perniciosa e prejudicial e fizeram dele alvo de censura e condenação, inclusive judicial, por meio de processos que levaram às barras dos tribunais romances e romancistas. A história literária está repleta de exemplos, e eles não se limitam aos tempos em que um controle mais rígido e rigoroso sobre a moral esteve vigente. Alguns deles são lembrados aqui e dão notícia dos obstáculos que o gênero enfrentou para ganhar dignidade e reconhecimento. Um verdadeiro dossiê reúne vários documentos que registram a história dessa batalha, cujo último capítulo não está tão distante assim e envolveu a fatwa contra os Versos satânicos de Salman Rushdie. Mas as imputações não se restringiram ao terreno da religião,da política ou da moralidade, como foi o caso de Madame Bovary ou de O amante de Lady Chatterley.Para além das acusações de sedição, blasfêmia, obscenidade ou difamação que fustigaram o romance em diferentes momentos da sua história, esse”vão caudal de tinta sobre papel esfarrapado”11 teve ainda de se haver com aqueles que o consideravam apenas um gênero bastardo, destituído de tradição e da nobreza do teatro e da poesia. Um parvenu da República das Letras, o romance não mereceria senão desprezo e desconfiança, e o establishment literário não perdeu as oportunidades de golpeá-lo,como o fizeram Pierre Nicole ou Gotthard Heidegger12. Como outros, antes e depois, eles esgrimiram argumentos éticos e estéticos para desaprovar o gênero. Na Itália, ainda no século XIX, prevalecia”a aversão da escola com relação ao romance” e se assistia” à luta destemida do padre Antonio Bresciani […]” e de seu aliado Cesare Cantú”contra a podridão proveniente das cloacas francesas”, isto é, contra o romance-folhetim13. Na mesma Itália, em 1956, Pier Paolo Pasolini foi chamado a defender seu Ragazzi di vita diante de um tribunal, que exigiu dele”justificar a sua obra no plano moral [e] esclarecer [seu] significado artístico e literário”14, enquanto em Moscou, dez anos mais tarde, os autos contra Juli Daniel e Andrei Siniavski acusavam Govorit Moskva de instigar”um acerto de contas com os dirigentes do partido e do governo”15.
Havia ainda outro motivo para a condenação da ficção. Desde seu surgimento, o romance esteve bastante próximo do universo feminino. As mulheres foram, desde o início, suas protagonistas e seu público. Por isso, muitos dos ataques ao romance foram provocados pelo medo da imitação.A oposição à fantasia e a suspeita de que a liberdade de imaginação podia levar à ação foram argumentos recorrentes nas discussões sobre os efeitos deletérios da leitura de romances principalmente sobre os jovens e as mulheres.Julgava-se que o poder corruptor dos romances, esse passatempo de ociosos, podia influenciar condutas e pôr em risco a virtude feminina, inspirando a desobediência ou a transgressão de normas de comportamento consideradas essenciais para a reputação das mulheres. Havia também um temor generalizado da identificação do leitor com as personagens ficcionais, pois ela poderia provocar emoções e sentimentos e mobilizar sua sensibilidade, fazendo aflorar uma série de reações físicas que se acreditava serem evidências da comoção produzida pela leitura. As mulheres pareciam especialmente suscetíveis a essas alterações emocionais,que se traduziam em afecções do corpo, como testemunha essa leitora de Samuel Richardson, em carta ao romancista:
Se me tivesses visto, tenho certeza de que teria despertado vossa piedade. Quando só, em agonia eu punha o livro de lado, o retomava novamente, andava pela sala, derramava um rio de lágrimas, enxugava os olhos, lia novamente, talvez nem três linhas, jogava longe o livro, bradando, desculpai-me, bom Sr. Richardson, não consigo continuar; é vossaculpa- fizestes mais do que consigo suportar; jogava-me sobre o sofá para me recompor, recordando minha promessa (que mil vezes desejei não tivesse sido feita); de novo lia, de novo agia exatamente igual: às vezes agradavelmente interrompida por meu querido esposo, que estava naquele momento avançando com dificuldade ao longo do 6o volume, com um coração capaz de impressões como o meu […].
Vendo-me tão comovida, ele implorou, pelo amor de Deus, que eu não lesse mais; bondosamente ameaçou tomar-me o livro, mas, diante da minha promessa, permitiu-me continuar. Aquela promessa agora está cumprida e estou grata que a pesada tarefa tenha acabado, embora os efeitos não. Tivesse ela sido conduzida como eu desejava, em vez de ficar impaciente para terminar a triste história, como eu teria me demorado, com prazer, em cada linha, e me sentido relutante em chegar à conclusão.
Meu ânimo foi estranhamente afetado; meu sono está perturbado, despertando durante a noite, tenho ataques de choro; isso aconteceu no desjejum, essa manhã, e agora, de novo. Deus, seja misericordioso – o que isso pode significar? Talvez, Senhor, atribuais isso a paixões violentas, mas, de fato, se conheço a mim mesma, não sou acometida delas. É tudo fragilidade, inequívoca fragilidade tola. Eu vos asseguro, não exacerbo o desassossego que me aflige, não, nem comunico o pior [Lady Bradshaigh, 6 de janeiro de 1748].
Esse depoimento de leitura é um dos exemplos daquilo que Stefano Calabrese chama de”patologias da leitura romanesca”, tais como a Wertherfieber e o bovarismo16, as quais pareciam acometer principalmente as mulheres e fazer delas suas vítimas potenciais, aumentando o preconceito e as restrições ao gênero. Apesar disso,o romance foi um dos principais instrumentos do acesso delas à esfera pública.
O século XVIII marcou em definitivo a entrada das mulheres no mundo da escrita, não mais apenas na condição de leitoras. E os romances desempenharam um papel fundamental nisso,porque,sendo um gênero sem leis nem regras e tratando de assuntos da vida cotidiana numa linguagem acessível a todos, eles se constituíram como um espaço no qual elas, como escritoras, podiam exercitar seus talentos e tratar de temas que as tocavam de perto, e, como leitoras, se reconhecer como partícipes de uma comunidade de interesses e de destino, que lhes permitia partilhar,mesmo que vicariamente,experiências comuns. O âmbito doméstico e o viés sentimental das narrativas, assim como o recurso à vivência pessoal de suas autoras,elas mesmas envolvidas e empenhadas em uma luta pela afirmação de suas aspirações, facilitavam esse reconhecimento. O romance tornou-se, para muitas delas, meio de expressão, de denúncia, de revolta e de recusa das limitações e dos constrangimentos sociais a que estavam submetidas.Um passo que Virginia Woolf reconheceria como um feito histórico, em Um teto todo seu (1929):
Assim, para o término do século XVIII promoveu-se uma mudança que, se eu estivesse reescrevendo a história,descreveria mais integralmente e consideraria de maior importância do que as Cruzadas ou as Guerras das Rosas. A mulher da classe média começou a escrever17.
Inaugurava-se, assim, uma linhagem, com uma participação cada vez maior e mais ativa das mulheres na cena literária.Mesmo em culturas muito diversas da européia, como é o caso da japonesa, a presença feminina foi central para o florescimento da prosa, por meio de cartas e narrativas escritas pelas damas da corte, com as quais elas, se utilizando da língua coloquial, própria da esfera privada, contribuíram para a busca e a formação de uma nova linguagem literária e para o desenvolvimento do romance18.A tradição da escrita feminina tem ainda desdobramentos trazidos à tona por Christa Bürger19, que, numa visada diacrônica,percorre os modos como o tema do amor assumiu diferentes formas e ajudou a inscrever algumas mulheres na história do romance. Esse quadro se completa com as leituras críticas que tratam de outras romancistas que representaram uma enorme contribuição ao gênero, como George Eliot e a própria Virginia Woolf.
Na sua longa trajetória, alguns romances foram esquecidos e condenados”à morte pelo tribunal da posteridade”20, mesmo que tenham sido populares à sua época e caros aos seus leitores; porém, a grande maioria deles passou a fazer parte do nosso acervo comum, fornecendo um repertório de imagens, temas, personagens e enredos que se incorporaram à nossa experiência e às nossas maneiras de explicar e compreender o mundo.Por quase três séculos,o romance tem sido expressão artística de um espírito democrático21, e espaço onde questões cruciais são objeto de configuração estética. Trata-se de um gênero inquieto, que continua”inacabado”, com uma”ossatura […] ainda […] longe de ser consolidada”, tornando impossível”prever todas as suas possibilidades plásticas”22.
Por essa razão, o romancista está permanentemente diante de desafios formais, sempre repostos. Se no romance oitocentista o indivíduo burguês se constituiu como uma subjetividade que se reconhecia como sujeito da história, a progressiva perda dos vínculos do homem consigo próprio e com a comunidade acentuou-se cada vez mais no mundo administrado da sociedade industrial.A partir de meados do século XIX,assistimos à desagregação desse indivíduo e sua diluição na massa, no caos urbano. Desde suas origens, o romance instaurou a fratura entre o eu e o mundo,encenando a jornada do homem solitário, que já não se sente em casa em lugar algum. O esforço de recriação da totalidade preside o gesto do romancista,cuja tarefa é construir o sentido de uma vida e de um mundo que perdeu o sentido,por meio de uma forma que é a”tentativa,na época moderna,de recuperar algo da qualidade da narração épica como uma reconciliação entre matéria e espírito, entre vida e essência’23. Essa empreitada foi se mostrando cada vez mais difícil. Matéria primordial do gênero, o eu fraturado, numa sociedade fraturada, configura-se como o tema por excelência principalmente do romance modernista, com conseqüências para a forma romanesca, que também se estilhaça e se refrata na perda da onisciência ou na multiplicação da voz narrativa, na interiorização dos conflitos e na quebra do encadeamento causal no âmbito do enredo. A crise da experiência e do indivíduo contemporâneo encontra rebatimento numa forma também em crise, obrigando o romancista a re-configurar seus materiais e técnicas para dar conta de novos conteúdos,a aventurar-se em novos experimentos formais, como os que vemos comentados no último conjunto de leituras críticas, quase ao final do volume24.
Cobrindo o período de 1900 a 1950, e portanto dos movimentos de vanguarda que mudaram o panorama das artes no século XX, esse instantâneo dos múltiplos caminhos abertos aos romancistas pela consciência das transformações cruciais que sofria o mundo naquela quadra histórica flagra algumas das respostas possíveis para o desafio de dar uma nova conformação narrativa ao real.Não se trata apenas da dissolução da forma-romance tradicional,mas também de enfrentar a”questão do sujeito e de sua representação,sua ausência ou desagregação”25. Uma observação de Virginia Woolf, em ensaio de 1924, cristaliza essa percepção numa tirada lapidar:”em ou por volta de dezembro de 1910, o caráter humano mudou”. Woolf parece se reportar aqui a alguns dos acontecimentos, entre eles a exposição do Pós-Impressionismo naquele ano,que marcaram o fim de uma época de estabilidade e, na sua visão, praticamente obrigaram os artistas a repensar o modo como o caráter humano era moldado e compreendido. Essa mudança é o que ela vai buscar representar literariamente em seu romance Mrs. Dalloway (1925), como concretização de uma nova concepção do personagem de ficção e das novas maneiras de captar o fluxo incessante e caótico da vida, tanto no plano exterior como interior26.
De Rainer Maria Rilke a Mikhail Bulgakov, passando por Luigi Pirandello, Louis Aragon, Mário de Andrade e Vladislav Vanura, vemos como diferentes autores, de origens e tradições diversas, fizeram implodir a estrutura narrativa que o romance realista do século XIX havia erigido em modelo. Por meio de soluções inovadoras para o tratamento do tempo e do ponto de vista, do recurso à livre associação de idéias, ao monólogo interior e ao fluxo da consciência, entre outras providências,eles puseram em xeque as próprias fundações do gênero, possibilitando, com isso, sua renovação. Os romances que esses escritores nos legaram são exemplos do esgarçamento da experiência e da “fratura do senso de continuidade”, de que fala Enrico Testa a respeito de Pirandello27, e, no seu desassossego, são a materialização de experimentos formais que configuram algo que está para além de meros procedimentos técnicos. Na sua discussão sobre o romance moderno, Anatol Rosenfeld argumenta que a arte do século XX se caracteriza por um fenômeno que ele chama de”desrealização”, para se referir ao abandono da mimese, pela arte, e à recusa da”função de reproduzir ou copiar a realidade empírica, sensível”28. O realismo forte nunca se contentou com a mera reprodução ou cópia da realidade, contudo. O que os romances modernistas impõem, ao contrário, é a necessidade de ampliação do conceito de realismo para compreendê-lo na sua dimensão plural e histórica. Se aceitarmos que a”matéria do artista [não é] informe: é historicamente formada,e registra de algum modo o processo social a que deve a sua existência”29, é possível perceber nesses autores o esforço que empreenderam de ir além da superfície e ler cada obra como”a historiografia inconsciente de si mesma da sua época”30.
Podemos concluir, assim, que A cultura do romance constitui seu objeto como um campo de tensões e de negociação, e, à sua maneira, narra a história da ascensão, do apogeu e da crise do romance, na qual se inscreve a história do indivíduo, cuja trajetória o gênero formaliza em seus impasses, conflitos e contradições. Os autores aqui reunidos aceitam e cumprem à risca o desafio proposto por Franco Moretti de conferir aos seus ensaios”aquele tom antropológico – história da literatura como história da cultura – que é a aposta desse volume”31.
Notas
1 Idem.”Conjeturas sobre a literatura mundial”.Novos Estudos Cebrap, 2000, nº 58, pp.173-181, p.174 “Conjectures on world literature”.New Left Review, 2000, nº 1, pp. 54-68.
2 Idem. Atlas of the European novel 1800-1900. Londres: Verso, 1997 [ed. bras.: Atlas do romance europeu 1800-1900. Trad. SANDRA Guardini Vasconcelos. São Paulo: Boitempo, 2003].
3 BAKHTIN, Mikhail.”Epic and novel”. In:The dialogic imagination. Austin: University of Texas Press, 1986, pp.3-40 [Ed.bras.: “Epos e romance”. In: Questões de literatura e estética.2 ed. Trad. Aurora F. Bernardini e outros. São Paulo: Hucitec, 1990].
4 MCKEON, Michael. “Introduction”. In: Theory of the novel: a historical approach. Baltimore/Londres: The Johns Hopkins University Press, 2000, p. xiv. Tradução minha.[Links]
5 MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., p. 11.
6 LLOSA, Mario Vargas.”É possível pensar o mundo moderno sem o romance?”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., p. 22. [Links]
7 GALLAGHER, Catharine.”Ficção”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., pp. 629-58. [Links]
8 MAGRIS, Claudio.”O romance é concebível sem o mundo moderno?”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., p. 1016. [Links]
9 GALLAGHER, op. cit., p. 638.
10 SCHWARZ, Roberto.”Outra Capitu”. In: Duas meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 104. [Links]
11 HEIDEGGER, Gottard.”Mitoscopia romântica: ou discurso sobre o chamado romance”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., 202. [Links]
12 Ver NICOLE, Pierre.”Sobre a comédia”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., pp. 200-201; Heidegger, op. cit., pp. 201-203.
13 FAETI, Antonio.”Um negócio obscuro: escola e romance na Itália”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., p. 147. [Links]
14 SITI, Walter.”O romance sob acusação: aparato crítico”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., p. 227. [Links]
15 Ibidem, p. 233.
16 CALABRESE, Stephano.”Wertherfieber, bovarismo e outras patologias da leitura romanesca”. In: MORETTI (org.),A cultura do romance, op. cit., pp. 697-732. [Links]
17 WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 86. [Links]
18 ORSI, Maria Teresa.”A padronização da linguagem: o caso japonês”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., pp. 425-58. [Links]
19 Ver BÜRGER, Christa.”O sistema do amor: gênese e desenvolvimento da escrita feminina”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., pp. 595-627. [Links]
20 LUZZATTO, Sergio, em”Leituras: bestsellers perdidos”, pp. 735-819. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., p. 787 (sobre O ano 2440, de Louis Sébastien Mercier). [Links]
21“O romance nasce ao mesmo tempo que o espírito de revolta e traduz, no plano estético, a mesma ambição” (Camus, Albert. L’homme révolté. Paris: Gallimard, 1951, p. 320, trad. minha).
22 BAKHTIN, op. cit., p. 397.
23 JAMESON, Fredric. “Georg Lukács”. In: Marxism and form. Princeton: Princeton University Press, 1974, pp. 171-172. [Links]
24 Ver “Leituras: experimentos com a forma (1900-1950)”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., pp. 951-1012. [Links]
25 TESTA, Enrico, em “Leituras: experimentos com a forma (1900-1950)”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., p.972 (sobre Um, nenhum e cem mil, de Luigi Pirandello). [Links]
26 Ver BANFIELD, Ann, em”Leituras: experimentos com a forma (1900-1950)”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., pp. 961-70 (sobre Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf ). [Links]
27 TESTA, op. cit., p. 971.
28 ROSENFELD, Anatol. “Reflexões sobre o romance moderno”. In: Texto/ Contexto. São Paulo/Brasília: Perspectiva/INL, 1973, pp. 75-97, p. 76. [Links]
29 SCHWARZ. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades, 1977, p. 25. [Links]
30 ADORNO, Theodor W. Teoria estética. São Paulo: Martins Fontes, 1970, p. 207. [Links]
31 MORETTI.”O século sério”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., p. 823. [Links]
Sandra Guardini Teixeira Vasconcelos – Professora do Departamento de Letras Modernas da FFLCH-USP.