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Oceanos como espaços de conhecimento | Varia Historia | 2021
Oceanos | Foto: Tempo.Com
Oceanos são lugares de diversidade e ações inesperadas.
Oceanos e mares servem a uma multitude de objetivos – da pesca e de atividades recreacionais à guerra e pirataria; de repositório de oferendas a sítios de pesquisa científica; do naufrágio de imigrantes a projetos de preservação da biodiversidade. Espaços in between (REIDY; ROZWADOWSKI, 2014), os oceanos e mares, além de alimento, possibilitam a produção de inúmeras imagens e coleções, personagens humanos e não humanos, histórias fantásticas e maravilhosas, assim como sugerem novas interpretações.
Neste dossiê, os oceanos foram pensados em algumas dessas inúmeras possibilidades, entre áreas de conhecimento, comércio, instituições científicas, coleções, rotas de navegação, através de histórias inusitadas, autores pouco conhecidos, personagens anônimos. De uma multitude de documentos de ampla circulação entre baleeiros, capitães de navios, naturalistas e arquivos de instituições públicas, surgem neste dossiê diferentes perspectivas de abordagens sobre os oceanos.
Os textos deste dossiê se intercruzam em diferentes tempos: notícias de baleeiros que se transformavam em fatos; experimentos infraestruturais que tornaram visíveis investigações sobre os oceanos do século XIX em Portugal e até mais recentemente no Brasil. Todos esses atores circularam através de engrenagens de sistemas de comunicação, navegação e comércio, em que armadores e amadores, mulheres e marinheiros, burocratas e cientistas trocavam informações seja nos salões dos cafés, nos barcos, nos portos, nas praias, nas empresas marítimas ou nas instituições científicas.
Esses entrelaçamentos construíram complexas redes de diferentes interesses, forjaram ferramentas epistêmicas para estudar os oceanos em escala global, como afirma o texto sobre Los Balleneros y el conocimiento de los mares del sur en la primera parte del siglo XIX. E ainda forjaram as ciências dos oceanos claramente integradas nas redes internacionais de circulação de diferentes interesses, conhecimentos e complexidades de relações pessoais, institucionais e governamentais, como também no caso do Brasil e Portugal.
Nos últimos anos as questões ambientais, as mudanças climáticas e a queda da pesca em diversos países do mundo têm sido objeto de publicações acadêmicas (BOLSTER, 2012), assim como a história da Oceanografia, da Biologia ou da Geologia Marinhas, da Geofísica, da Matemática, das Ciências Ambientais, da Geografia e das Ciências dos animais marinhos. No entanto, os oceanos têm recebido, relativamente a outras temáticas, pouca atenção por parte da maioria dos historiadores, embora já conte com vasta tradição que muitos atribuem ao Mediterrâneo de Braudel (2002). Os oceanos continuam não surgindo fortemente na produção da maioria dos historiadores da ciência, particularmente em países como no Brasil (HEIZER; LOPES; GARCIA, 2014), nem tampouco incentivando abordagens como as que este dossiê sugere.
Da indústria baleeira “movida a oceanos e papéis” – como sugere o artigo Los Balleneros y el conocimiento de los mares del sur – à organização das estações experimentais de biologia marinha pela lógica reformadora portuguesa – como destaca o texto sobre O estudo científico do mar. Entre Ciência e Política, Laboratórios e Cientistas (1910-1926) – à exploração dos nódulos polimetálicos – como ressalta o texto Sobre culturas científicas sobre os oceanos no Brasil -, essas iniciativas tornaram-se novas estruturas de culturas que tanto criavam e criam novas representações dos oceanos como contribuíram e contribuem para a validação das aspirações sociopolíticas dos construtores de tais imagens, objetos, coleções e textos.
Em todos os processos de observação e ou navegação dos oceanos, foi recolhida uma multiplicidade de informações, novos animais, plantas, minerais, instrumentos, dados de centenas de sondagens em mar profundo, observações em série de temperaturas da água, milhares de amostras de água. A concepção, circulação e armazenamento de coleções, instrumentos e dados também continua a criar ou recriar novas propostas para apresentações e representações materiais e virtuais há séculos (HÖHLER, 2003).
A legitimidade dessas representações foi transformada em argumentos poderosos, em “epistemologias materializadas tornadas possíveis por novas ‘máquinas epistémicas’”, como Peter Galison (1997) já sugeriu, referindo-se aos papéis dos instrumentos e aparelhos em outras culturas científicas, mesmo que esses não se tornassem tão sofisticados, por longos anos, no caso dos oceanos.
Essas representações permitiram aos estudiosos estabilizar objetos científicos para diferentes comunidades desde baleeiros a comerciantes, investigadores, curadores de museus, arquivistas, estrategistas e o público interessado (DASTON, 2008). Práticas a bordo de navios, comércio, tecnologias e teorias foram unidas para assegurar a fiabilidade das novas representações que estavam a ser construídas (HÖHLER, 2003).
As culturas da caça de baleias, as coleções de objetos intercambiados, milhares de documentos e publicações científicas proporcionam nos artigos deste dossiê chaves para conhecimentos históricos, antropológicos, etnográficos e sociais das mais diversas ordens, seja para ampliar conhecimentos científicos, seja para publicizar culturas desconhecidas dos mares longínquos para os europeus, ou ainda para traçar investigações oceanográficas, ou fomentar indústrias e comércios que contribuíram para construir os oceanos enquanto espaços de produção de conhecimentos.
As viagens pelos oceanos deste dossiê também transcorreram por coleções e pelos arquivos como Marie-Noëlle Bourguet assinalou sobre as viagens de Humboldt (PODGORNY, 2012). De todos os textos emergem discussões fascinantes sobre histórias (inter)disciplinares, contextos locais, coleções, personagens e instituições de interesse não só para quem navega por profundidades oceânicas.
Em Portugal, desde as primeiras décadas do século XX, a consolidação das estações experimentais de biologia marinha e formalização de disciplinas científicas nas universidades foram bem sucedidas graças a ações de políticas individuais e associações, enquanto no Brasil esses processos foram mais tardios, exatamente por continuidade e efetividade de articulações como essas.
As ciências dos oceanos reúnem tradições que provêm das mais diferentes áreas disciplinares, desde a Hidrografia do século XIX, a História Natural, a pesca, a Oceanografia matemática e dinâmica pós Segunda Guerra Mundial e suas relações com as ciências ambientais contemporâneas, para além da História e das políticas. E por que não da História das Ciências, da Arquivística ou da Museologia?
Porque os processos de especialização perpassam as culturas científicas. Estabilizadas ou não, essas podem e devem ser problematizadas. Como Gregory Good (2000) sugeriu para estudos do magnetismo terrestre, também consideramos que os estudos dos oceanos são um tema densamente atrativo para estudos históricos, exatamente porque não permitem pressupostos fáceis sobre disciplinas, subáreas de conhecimento e as especializações envolvidas, mas que requerem o surgimento de quadros mais complexos que tenham em conta as variadas ligações entre instituições de investigação, indústria e governos, bem como personalidades únicas e cultura local, atores e práticas, desde especialistas a técnicos invisíveis (LOPES, 2015), tais como baleeiros que constroem instrumentos e aparelhos, comerciantes e ou naturalistas coletores, além dos próprios navios. A procura de tais quadros enquadra-se nas perspectivas das histórias das culturas científicas das últimas décadas, como James Secord (2004) o fez, recuperando os significados das práticas comunitárias das ciências, menos segregadas em quaisquer disciplinas, e mais amplamente consideradas através da circulação de conhecimentos, informações aparentemente desconexas, objetos e redes que articulam precisamente as práticas dos especialistas com uma série de outros atores sociais.
Coleções construídas por rotas de navegação, arquivos mal ou bem organizados, ou fragmentos deles, pessoais, de empresas baleeiras, companhias de navegação e instituições científicas se apresentam como fontes inigualáveis para história dos oceanos. Ricos em inúmeros e preciosos detalhes em meio a panoramas mais amplos sobre as temáticas a que se referem, oferecendo abordagens metodológicas e bibliografias vastíssimas, que praticamente não se repetem, os artigos deste dossiê sugerem novas rotas de reflexões, avançando nas perspectivas de maior abrangência das culturas científicas sobre os oceanos.
Este dossiê não teria sido organizado sem a contribuição fundamental de Irina Podgorny a quem agradecemos a generosidade em partilhar suas ideias.
Referências
BOLSTER, Jeffrey W. The Mortal Sea. Cambridge; London: Harvard University Press, 2012.
BRAUDEL, Fernand. El Mediterráneo y el mundo mediterráneo em la época de Felipe II. México: Fondo de Cultura Económica, 2002.
DASTON, Lorraine. On Scientific Observation. ISIS, v. 99, n. 1, p. 97-110, 2008.
GALISON, Peter. Image and Logic: A Material Culture of Microphysics. Chicago: University of Chicago Press, 1997.
GOOD, Gregory A. The Assembly of Geophysics: Scientific Disciplines as Frameworks of Consensus. Studies in the History and Philosophy of Modern Physics, v. 31, p. 259-292, 2000.
HEIZER, Alda L.; LOPES, Maria M.; GARCIA, Susana. Carta das editoras convidadas. Histórias, ciências e políticas de oceanos e mares. Revista História, Ciência, Saúde – Manguinhos, v. 21, n. 3, p. 803-804, 2014.
HÖHLER, Sabine. A Sound Survey: The Technological Perception of the Ocean Depth, 1850-1930. In: HARD, Mikael; LÖSCH, Andreas; VERDICCHIO, Dirk (eds.). Transforming Spaces: The Topological Turn in Technology Studies. Disponível em: < www.sabinehoehler.de/download. php?id=1 >. Acesso em: 13 jun. 2021.
» www.sabinehoehler.de/download. php?id=1
LOPES, Maria Margaret. Investigar oceanos, explorar terrenos historiográficos. Revista Maracanan, v. 13, p. 11-22, 2015.
PODGORNY, Irina. Los Archivos. Entre el síndrome de Barba Azul y los sueños de Napoléon. In: KELLY, Tatiana; PODGORNY, Irina (Dir.). Los Secretos de Barba Azul. Fantasías y realidades de los archivos del Museo de La Plata. Rosario: Prohistoria Ediciones, 2012. p. 21-39.
SECORD, James A. Knowledge in Transit. Isis, v. 95, p. 654-672, 2004.
REIDY, Michael; ROZWADOWSKI, Helen. The Spaces In Between: Science, Ocean, Empire. Isis, v. 105, p. 338-51, 2014.
Organizadora
Marıa Margaret Lopes – Universidade de São Paulo, Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE-PPGMUS). E-mail: mariamargaretlopes@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-9803-8378
Referências desta apresentação
LOPES Marıa Margaret. Apresentação. Oceanos como espaços de produção de conhecimento. Varia Historia. Belo Horizonte, v. 37, n. 75, set./dez. 2021. Acessar publicação original [DR]
Processos judiciais e escrita da história na América Latina | Varia História | 2021
Desde a década de 1980, os processos judiciais se consolidaram como fontes relevantes para a escrita da história da América Latina.[1] Partindo dessa historiografia, o presente dossiê procura apontar novas abordagens e perspectivas de pesquisa com esses documentos. Para além de repositórios privilegiados de informações sobre diferentes grupos sociais, seus modos de vida e estratégias de resistência, os processos judiciais também são essenciais para o entendimento de como se dá o processo de produção do direito.
Nas últimas décadas, muitos historiadores recorreram a arquivos judiciários em busca de janelas para mundos sociais e modos de vida pouco conhecidos. Em suas análises, leram os processos judiciais a contrapelo para atravessar os vieses e as formalidades de um direito até então visto como uma esfera de domínio exclusivo das elites. Procuraram alcançar, nesses documentos, as vozes de escravos, mulheres, indígenas, trabalhadores livres e outros grupos subalternos. Os processos judiciais mostraram como essas pessoas transformaram os tribunais da América Latina em “arenas de lutas” por liberdade e direitos. Nos tribunais das sociedades escravistas, africanos, indígenas e seus descendentes articularam suas próprias concepções de liberdade contra a escravidão e diferentes formas de trabalho compulsório. Nos tribunais das repúblicas, homens e mulheres pobres, excluídos de várias esferas da política tradicional, reivindicaram o exercício de direitos básicos, expandindo a prática da cidadania.
Esse corpo de trabalhos é bastante heterogêneo. Contribui, por exemplo, para a história da escravidão atlântica, possibilitando comparações entre Brasil, Cuba, Estados Unidos e outros países.[2] Os processos judiciais também foram de extrema importância para a historiografia sobre gênero, possibilitando análises acerca das concepções de honra, família e trabalho articuladas por homens e mulheres pobres em vários lugares da América Latina.[3] Os diversos processos nos quais indígenas eram partes foram fundamentais para a renovação da história indígena e para análises acerca do colonialismo, da submissão a várias configurações de trabalho coercitivo e das práticas de negociação e resistência das populações indígenas.[4] A pesquisa em arquivos judiciários, portanto, impulsionou avanços historiográficos em diversas áreas, das quais escravidão, gênero e história indígena são apenas alguns exemplos.[5]
Um dos principais focos desses trabalhos é a “agência” dos grupos subalternos, com especial atenção para suas concepções de mundo e estratégias para aquisição de direitos e melhores condições de vida. Nesse sentido, é comum que os tribunais sejam identificados como “arenas de lutas”, nas quais estavam em disputa concepções conflitantes acerca do direito e da justiça. A despeito de inegáveis contribuições historiográficas, que aprimoraram nossos conhecimentos sobre o funcionamento dos tribunais, sobre concepções vernaculares de justiça e sobre a luta de grupos subalternos pelo reconhecimento de direitos, ainda há lacunas na historiografia latino-americana a respeito de como o direito e as normas são produzidos. Ao tratar os tribunais e os processos judiciais como “arenas de lutas”, muitos historiadores presumem que o direito seja um objeto de disputa produzido em outros espaços.
Ainda é bastante recorrente na historiografia a ideia de que “direito” é “lei”, no sentido de normas escritas promulgadas por autoridades governamentais. No entanto, “direito” é um campo normativo muito mais amplo do que a legislação escrita. As normas, categorias e institutos jurídicos são produzidos em diversos locais, para além da lei propriamente dita. Os tribunais e os processos judiciais são locais de produção do direito, não de mera aplicação ou disputa. É um fato que, nos tribunais e nos processos judiciais, discutem-se e disputam-se diferentes concepções de justiça. Porém, nessas disputas, as normas, categorias e institutos jurídicos adquirem significados concretos. Em outras palavras, o direito também é produzido em disputas judiciais.
Nesse sentido, procedimentos, formalidades e a linguagem técnica do direito não são apenas “obstáculos” para o historiador que trabalha com essas fontes. São instrumentos da produção do direito e, portanto, essenciais para a compreensão da participação de grupos subalternos e de seus entendimentos compartilhados nos processos de produção normativa. Além disso, advogados, juízes e escrivães não eram meros agentes da aplicação e interpretação do direito, mas também tinham um papel ativo em sua produção. Ao considerar os processos judiciais como locais de produção do direito, indo além da percepção do direito como lei escrita, podemos levantar diversas outras questões acerca da atuação de grupos subalternos, elites e juristas nos tribunais da América Latina.
O presente dossiê procura apontar novos caminhos para questões como, por exemplo, “como se dá a produção do direito?”, “qual a participação de grupos subalternos nessa produção?”, “qual a participação de juristas e outros grupos de elite nesses processos?”, “o que esses grupos compartilham em termos de conhecimento e entendimentos jurídicos?” e “como se formam esses entendimentos jurídicos compartilhados?”. As perspectivas aqui propostas privilegiam uma história social do direito vista do “chão” dos tribunais, indo além das câmaras legislativas, bibliotecas e faculdades de direito. Uma história do direito na qual a produção normativa se dá tanto “de cima” quanto “de baixo” e é fruto da atuação de diversos grupos, incluindo legisladores, juristas, juízes, escrivães, advogados, procuradores e as próprias partes dos processos, sejam elas escravos, indígenas, mulheres ou trabalhadores livres.
Os artigos de Cristian Miguel Poczynok e Raquel Sirotti deixam claro que os processos judiciais eram espaços de produção normativa. Poczynok mostra que, na Buenos Aires do final do século XVIII e início do século XIX, havia uma grande pluralidade de modos de acesso e uso da terra. Os processos judiciais eram locais primordiais de construção desse “enjambre normativo”, principalmente por serem instrumentos de criação de “títulos” de propriedade. O autor argumenta que, no estudo dessas fontes, não podemos perder de vista que, mesmo no pós-independência, a cultura jurisdicional do Antigo Regime ainda tinha papel central na configuração das disputas judiciais e na criação de direitos de propriedade. Ademais, além de considerar as dinâmicas de poder, é preciso entender o direito enquanto campo intelectual e prática profissional, ressaltando a pluralidade dos procedimentos, discursos, categorias e argumentos evidenciados pelos processos judiciais. Ao invés de superá-los como obstáculos, precisamos incorporá-los à análise histórica.
Já Sirotti analisa a construção da categoria jurídica “crime político” em processos ajuizados após a tentativa de assassinato do presidente Prudente de Morais, em 1897. A autora argumenta que a legislação escrita e os textos doutrinários não traziam conceitos definidos de “crime político”. O significado concreto dessa categoria foi dado no âmbito de disputas judiciais, envolvendo a participação de diversos agentes. Assim, o caso dos crimes políticos no Brasil republicano aponta que o direito não era meramente aplicado pelos tribunais, mas por eles produzido. A autora também ressalta que categorias jurídicas não possuem um significado fixo, intrínseco e uniforme, supostamente dado pela legislação e pela doutrina, mas são constantemente ressignificadas e produzidas no “laboratório” da prática judicial.
Essenciais nos processos de produção normativa que acontecem em disputas judiciais são os conhecimentos jurídicos compartilhados entre diversos grupos sociais. Em seu artigo sobre a Porto Alegre do início do século XX, Rodrigo Simões discute como concepções acerca da força policial, de seu papel e limites de atuação eram compartilhadas por grupos subalternos, aos quais o autor se refere como “populares”. Ainda que formulados à margem dos espaços solenes de produção do direito, tais entendimentos compartilhados moldavam a maneira de agir dos sujeitos históricos e, por vezes, faziam eco no âmbito de instituições de controle. Como aponta o autor, esses entendimentos costumavam direcionar a ação dos grupos subalternos para a contestação violenta e resistência ao que entendiam como abusos das autoridades policiais.
Simões também discute a importância dos processos judiciais para a análise de concepções de mundo de grupos subalternos. Nos últimos anos, houve intensos debates acerca dos vieses e da incapacidade dos processos judiciais de trazer à luz a “voz” ou as “subjetividades” dos grupos subalternos. O autor, no entanto, aponta que, mesmo diante de tais críticas, os processos judiciais ainda são documentos extremamente valiosos para a escrita da história. Não se trata de acessar a “voz” ou a “subjetividade” dos grupos subalternos, mas, através das narrativas – verdadeiras ou verossímeis – presentes nos processos, apreender quais concepções de mundo as pessoas envolvidas em litígios mobilizavam e que entendimentos jurídicos compartilhavam.
Para ampliar nossas concepções acerca dos locais onde o direito e as normas são produzidos, também é importante alargar o corpo documental de nossas análises. Em seu artigo, Ana María Silva Campo mostra que, no período colonial, o Tribunal da Inquisição de Cartagena das Índias não se ocupava somente de “questões de fé”. O Tribunal também julgava os mais variados litígios cíveis, como cobranças de dívidas, discussões acerca da propriedade de escravos, questões de herança, dentre outros. Processos ajuizados perante a justiça eclesiástica já constituem um corpo de fontes consolidado entre os historiadores que tratam das jurisdições americanas do império espanhol para o estudo das chamadas “questões de fé”. Silva Campo, no entanto, aponta que os processos cíveis ainda não foram tratados de maneira sistemática pela historiografia. Segundo a autora, esses processos revelam o Tribunal da Inquisição como um espaço de mobilidade social a nível local e como um espaço jurídico e cultural com considerável autonomia em relação à metrópole.
Partindo de diferentes perspectivas e analisando corpos documentais distintos, os quatro artigos deste dossiê apontam que o direito não é apenas uma arena de poder ou de lutas, mas também um espaço de produção normativa no qual diferentes sujeitos históricos atuavam. Nesse sentido, eles também apontam para a existência de conhecimentos e entendimentos jurídicos compartilhados que são essenciais na produção normativa que ocorre no âmbito dos tribunais. Por fim, os artigos colocam lado a lado diferentes práticas e perspectivas sobre a escrita da história social e da história do direito na América Latina.
Notas
1. Essa produção historiográfica é extremamente ampla e, portanto, não seria possível indicá-la de maneira completa neste texto de apresentação. Em razão disso, optamos por indicar, ao longo do texto, algumas referências exemplificativas de cada área. Sobre a importância dos acervos judiciais, ver DANTAS; RIBEIRO, 2020.
2. Ver a respeito: CHALHOUB, 1990; GONZÁLEZ UNDURRAGA, 2014; GRINBERG; MAMIGONIAN, 2017; PERERA DÍAZ; MERIÑO FUENTES, 2015; DIAS PAES, 2019. Sobre processos judiciais envolvendo trabalhadores livres e pobres, ver ARIZA, 2014.
3. Ver a respeito: CALANDRIA, 2019; CAULFIELD, 2000; CHAMBERS, 1999.
4. Ver a respeito: BORAH, 2018; MELLO, 2005; PREMO, 2017.
5. Outro exemplo relevante é a historiografia sobre práticas de cidadania e acesso à cidade, como, por exemplo, em CHASKEL, 2011; FISCHER, 2008; RIBEIRO, 2009.
Referências
ARIZA, Marília Bueno de Araújo. O Ofício da liberdade. Trabalhadores libertandos em São Paulo e Campinas (1830-1888). São Paulo: Alameda, 2014.
BORAH, Woodrow. Justice by Insurance. The General Indian Court of Colonial Mexico and the Legal Aides of the Half-Real. Berkeley: University of California Press, 2018.
CALANDRIA, Sol. Cómplices y verdugos. Masculinidades, género y clase en los delitos de infanticidio (provincia de Buenos Aires, 1886-1921). História (São Paulo), v. 38, p. 1-25, 2019.
CAULFIELD, Sueann. In Defense of Honor. Sexual Morality, Modernity and Nation in Early-twentieth-century Brazil. Durham: Duke University Press, 2000.
CHAMBERS, Sarah C. From Subjects to Citizens. Honor, Gender, and Politics in Arequipa, Peru, 1780-1854. University Park: Pennsylvania State University Press, 1999.
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade. Uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
CHASKEL, Amy. Laws of Chance. Brazil’s Clandestine Lottery and the Making of Urban Public Life. Durham: Duke University Press, 2011.
DANTAS, Monica Duarte; RIBEIRO, Filipe Nicoletti. A importância dos acervos judiciais para a pesquisa em história. Lex Cult, v. 4, n. 2, p. 47-87, 2020.
DIAS PAES, Mariana Armond. Escravidão e direito. O estatuto jurídico dos escravos no Brasil oitocentista, 1860-1888. São Paulo: Alameda, 2019.
FISCHER, Brodwyn. A Poverty of Rights. Citizenship and Inequality in Twentieth-century Rio de Janeiro. Palo Alto: Stanford, 2008.
GONZÁLEZ UNDURRAGA, Carolina. Esclavos y esclavas demandando justicia (Chile, 1740-1823). Documentación judicial por carta de libertad y papel de venta. Santiago de Chile: Universitaria, 2014.
GRINBERG, Keila, MAMIGONIAN Beatriz. Le Crime de réduction à l’esclavage d’une personne libre (Brésil, XIXe siècle). Brésil(s): Sciences Humaines et Sociales, v. 11, 2017.
MELLO, Marcia Eliane Alves de Souza. Desvendando outras Franciscas. Mulheres cativas e as ações de liberdade na Amazônia colonial portuguesa. Portuguese Studies Review, v. 13, n. 1, p. 1-16, 2005.
PERERA DÍAZ, Aisnara, MERIÑO FUENTES, María de los Ángeles. Estrategias de libertad. Un acercamiento a las acciones legales de los esclavos en Cuba, 1762-1872. La Habana: Editorial de Ciencias Sociales, 2015.
PREMO, Bianca. The Enlightenment on Trial. Ordinary Litigants and Colonialism in the Spanish Empire. Oxford: Oxford University Press, 2017.
RIBEIRO, Gladys Sabina. Cidadania e lutas por direitos na Primeira República: analisando processos da Justiça Federal e do Supremo Tribunal Federal. Tempo, v. 13, n. 26, p. 101-117, 2009.
Pedro Cantisano – University of Nebraska at Omaha. E-mail: pcantisano@unomaha.edu
Marıana Armond Dias Paes – Max Planck Institute for Legal History and Legal Theory. E-mail: mdiaspaes@gmail.com
CANTISANO, Pedro; DIAS PAES, Marıana Armond. Apresentação. Varia História. Belo Horizonte, v. 37, n. 74, p. 353-360, maio/ago. 2021. Acessar publicação original [DR]
O Governo dos negócios: comércio, instituições e seus agentes entre os séculos XVIII e XIX / Varia História / 2020
A investigação sobre as origens do direito dos comerciantes, os debates em torno de sua datação mais ou menos recuada no tempo, as pesquisas das primeiras citações nas obras dos juristas do século XVI, ocuparam durante muito tempo os historiadores entre a Idade Média e a Era Moderna. O desafio era identificar o momento em que um mundo à parte teria sido criado e o comércio teria ganho uma relativa autonomia em relação a outras esferas da vida social, estruturando assim suas próprias instituições e ditando suas próprias regras. Essa investigação sobre as origens foi sem dúvida incentivada pelo desejo de legitimação das elites comerciais que, sobretudo no século XVIII e em várias situações na Europa e para além dela, manifestou-se de maneira particularmente urgente nos contextos frequentemente ferozes de disputas políticas dentro dos governos. Seus argumentos em torno da irredutível especificidade do universo do comércio e da necessidade de garantir-lhe um lugar privilegiado encontrou um público atento e sensível entre os historiadores contemporâneos, nutrido pela experiência atual da chamada “autonomia” de esfera econômica em relação a outros domínios da vida social.
Algumas pesquisas fundamentais contribuíram, nos últimos anos, para mudar essa situação e abriram caminho para questionamentos mais aprofundados. Por um lado, todo um ramo de estudos sobre o que podemos definir como “os léxicos econômicos” das sociedades medievais e modernas lançou uma nova luz sobre as relações entre economia, direito, religião, que mostraram sua estreita conexão. Nos trabalhos de Bartolomé Clavero (1991) ou de Giacomo Todeschini (2002) trata-se menos de identificar as raízes religiosas da economia do que mostrar em que medida os dois domínios são construídos com o mesmo material, pois seus conceitos estão baseados nos mesmos princípios. As palavras contrato, troca, dívida, crédito, juro… estão carregadas dessa pluralidade de significados devido a seu caráter anfíbio, em que toda separação entre questões materiais e questões morais ou jurídicas seria paradoxal. Nesse contexto, toda “autonomia” ou especificidade irredutível do campo econômico mostra seu caráter anacrônico; e a pesquisa sobre a “cultura do negócio” se abre a uma pluralidade de domínios frequentemente inesperados.
Outro movimento que contribuiu para “libertar” a esfera econômica dos limites que tinham sido construídos em torno dela foi a maior atenção em relação a um tema aparentemente técnico, o dos modos de resolução de conflitos e do procedimento judicial seguido nos tribunais dedicados aos casos comerciais (AGO; CERUTTI, 1999). O terreno era delicado porque, como acabamos de mencionar, o direito e a justiça eram os domínios em que a busca pela originalidade na esfera econômica era mais desenvolvida. O direito em vigor nos tribunais que lidavam com esses casos era visto como um ramo separado do direito, mesmo em períodos em que essa separação não estava prevista e nem era buscada pelos contemporâneos. Essa abordagem limitou a compreensão dos princípios que regiam esses procedimentos judiciais, cujas características – a brevidade, os custos mitigados, a ausência de advogados, importância das provas escritas, etc. – estavam relacionadas principalmente às exigências do comércio. Trata-se de um daqueles casos em que o resultado de um processo reconstrói, no sentido contrário, sua própria história. De fato, é sabido que o próprio conceito de ius mercatorum apareceu na verdade tardiamente, em pleno século XVI: anteriormente, as bibliotecas dos juristas falavam apenas de clérigos, professores, aprendizes, camponeses, soldados, viúvas, menores, e a condição jurídica do comerciante era difícil de distinguir daquela que caracterizava o grupo de pessoas que gozavam do mesmo regime de derrogação. Na mesma ordem de ideias, algumas décadas atrás alguns autores alertaram para perspectivas demasiado estreitas que tendiam a confinar o ius mercatorum em um espaço dedicado, negligenciando assim as relações que o vinculavam aos direitos e privilégios que uniam, na Idade Média, as diferentes figuras da itinerância.
E, de fato, na origem dessa nova consideração do lugar do mundo do comércio nas configurações sociais dos diferentes países, havia também uma constatação importante: o fato de que o procedimento judicial seguido por um grande número de tribunais de comércio durante toda a Era Moderna tinha uma tradição antiga e estava longe de se limitar apenas aos comerciantes. O procedimento sumário – como era denominado em uma pluralidade de situações territoriais (CERUTTI, 2003) – era aquele ao qual tinham direito diferentes figuras sociais que compartilhavam uma debilidade específica, uma relativa incompetência das normas locais relacionada tanto à fragilidade de seus estatutos (e de sua capacidade de agir diretamente na justiça; viúvas, menores, etc.) quanto à mobilidade no território (comerciantes, soldados, peregrinos, empregados, etc.). A justiça sumária também era chamada de justiça para “os miseráveis”, isto é, os estrangeiros, os pobres, as viúvas, os menores, os órfãos, os camponeses, os soldados, os empregados, os peregrinos e, finalmente, os comerciantes. A “sumária” era, portanto, o procedimento que poderia ser administrado pontualmente por certo número de tribunais, para além daqueles destinados aos atos comerciais. No caso do Estado da Saboia, por exemplo (do qual tratou minha própria pesquisa), o rito sumário era aquele seguido pelo Senado do Piemonte para resolver os assuntos das viúvas e dos menores, ou ainda aquele seguido pelo Vigário para resolver os diferendos relativos aos empregados. Tal procedimento permitia o acesso direto à justiça (sem seus advogados, sem seus custos) por parte de uma população que compartilhava uma fragilidade devida a uma menor inscrição social. Esse procedimento deve ser inscrito, de fato, no quadro mais geral das justiças “derrogatórias” das formalidades do processo, caracterizadas por um arbitrium procedendi (MECCARELLI, 1998); se, no caso dos procedimentos inquisitoriais, por exemplo, o rito sumário remete à maior liberdade do juiz, livre da figura iudicii, no contexto judicial dos tribunais comerciais o arbitrium se traduzia pela maior possibilidade de ação das partes, expressa, aliás, na fórmula consagrada: ser “juiz em seu próprio processo”.
No entanto, reinserir a justiça dos comerciantes no panorama das justiças urbanas significa, ao mesmo tempo, ocultar sua irredutível originalidade e revelar a riqueza da cultura jurídica dessas sociedades da Era Moderna. Assim, somos confrontados a esse pluralismo jurídico que caracterizou uma parte da nossa história e, portanto, às condições de convivência, dentro da mesma sociedade, de várias maneiras de conceber o justo e de administrá-lo.[1]
Várias ideias de justiça podiam coexistir no mesmo espaço e no mesmo lugar, que podiam ser moduladas em função das fisionomias sociais do público ao qual essas justiças se dirigiam. Isso nos introduz à dialética existente nessas sociedades modernas entre diferentes fontes de direito, bem como entre diferentes tradições jurídicas que compunham a construção heterogênea do direito comum. Em relação à justiça comum, a “sumária” nos introduz a uma articulação diferente da relação entre caso e série; entre fatos e direitos; e finalmente aos diferentes elementos que constituem a gramática do vínculo social vigente no campo judicial.
Finalmente, o último ponto de inflexão que abriu uma nova consideração sobre o lugar ocupado pelo mundo do comércio nas sociedades da era moderna, colocando em discussão, mais uma vez, a suposta “autonomia”, foi inaugurado por esses trabalhos que reivindicavam sua filiação à economia neoinstitucionalista.[2] Como se sabe, a reflexão enfocou o papel desempenhado por uma pluralidade de instituições (mais ou menos formalizadas, das corporações aos tribunais, aos Consulados, aos árbitros privados…) na construção de relações de confiança e na produção de certificações capazes de reduzir a incerteza das trocas, ocorrendo em sociedades caracterizadas por sistemas de informação muito incompletos. A consideração das características próprias às economias e aos mercados da Era Moderna e das condições de incerteza em que as trocas aconteciam abriu caminho para uma nova atenção em relação a esse panorama institucional que, muito longe de ser apenas o cenário dessas trocas, tinha desempenhado claramente um papel essencial em sua realização.
Juntos, portanto, esses diferentes movimentos – a consideração das relações existentes entre direito, religião, economia e mercado; a consideração das modalidades de resolução de conflitos e da variedade de instituições que foram criadas e convocadas para garantir o sucesso das transações – mudaram definitivamente o nosso conhecimento do mundo do comércio e, de maneira mais geral, do funcionamento da economia da Era Moderna.
A coletânea de ensaios que se segue é uma excelente prova do novo momento que se abriu para esses estudos. Cada um dos seis artigos aborda um tema que evocamos. O ensaio de Guillermina del Valle Pavón nos mostra como o campo da economia e o da devoção se encontraram e se reforçaram mutuamente; as práticas de crédito adotadas pelos grandes comerciantes da Cidade do México no fim do século XVIII baseavam-se na criação de “capellanías”, portanto, de fundações religiosas, cujos bens constituíam meios de construção de redes úteis para o comércio. Em outras palavras, o terreno do investimento financeiro e o do investimento devocional estão estreitamente ligados, manifestando assim “a articulação complexa que existia entre a cultura católica e a reprodução social das redes de negócios no Antigo Regime novo-hispânico”.[3] Mais uma vez, trata-se menos de destacar comportamentos “oportunistas” por parte das pessoas no comércio do que enfatizar as imbricações de culturas familiares, comerciais e devocionais nessas sociedades da Era Moderna, o que torna anacrônico qualquer leitura disciplinar desses três domínios.
Por outro lado, duas das contribuições abordam um tema cuja importância acabamos de mensurar, o das formas institucionais que eram componentes essenciais do funcionamento do comércio em uma pluralidade de situações sociais. O ensaio de Javier Kraselsky, que traça as vicissitudes do Consulado de Comércio de Buenos Aires entre os séculos XVIII e XIX, mostra a importância dessa instituição na definição das políticas da coroa desde o início e depois dos governos revolucionários; enquanto o caso das corporações lusitanas analisado por Miguel Dantas da Cruz destaca o papel ativo que essas desempenharam no panorama urbano mesmo depois do terremoto de 1755 e pelo menos até as primeiras décadas do século XIX (contra a imagem corrente da decadência que teriam sofrido instituições que a historiografia frequentemente pintou como conservadoras e hostis a qualquer avanço do comércio e da indústria).
Finalmente, os ensaios de Andréa Slemian e Cláudia Chaves enfrentam o tema das modalidades de resolução dos conflitos comerciais, das instituições responsáveis por esses fins e das relações entre os sistemas judiciais que essas propõem e a oferta jurisdicional mais ampla. No centro dessas pesquisas estão os árbitros que garantiam uma justiça “laica” para os diferendos comerciais no Portugal do século XVIII, propondo, assim, os princípios de uma justiça “entre pares”; e, por outro lado, a Real Junta de Comércio do Império Luso-Brasileiro, cuja produção jurisprudencial é objeto de uma análise inovadora.
Cada um desses ensaios é, em suma, uma contribuição essencial para esta nova consideração do lugar do comércio e da vida econômica que contribuiu decisivamente para questionar não apenas o passado das sociedades da Era Moderna, mas também o nosso presente.
Notas
- A mais recente elaboração é de HERZOG (no prelo).
- A referência obrigatória é o trabalho de NORTH (1990).
- Trad. livre: “la compleja articulación que había entre la cultura católica y la reproducción social de las redes de negocios en el Antiguo Régimen novohispano”.
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Tradução: Alexandre Agabiti Fernandez
CERUTTI, Simona. Trad. Alexandre Agabiti Fernandez. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.36, n.72, set. / dez., 2020. Acessar publicação original [DR]
História econômica, política e intelectual da África Ocidental: Lógicas de intercâmbio / Varia História / 2020
Em 2013, a revista Varia Historia publicou o dossiê “Nações, Comércio e Trabalho na África Atlântica”. Ao apresentarem esta quinquagésima primeira edição do periódico, Vanicléia Silva Santos e Alexsander Gebara, seus organizadores, destacavam:
É visível o crescimento do campo dos estudos africanos no Brasil ao longo da última década. Cada vez mais eventos dedicados ao tema ocorrem em diversos espaços no país, as agências de fomento investem no desenvolvimento de projetos vinculados à área, as traduções e publicações de livros de pesquisadores brasileiros também aumentaram significativamente nos últimos anos. O diálogo internacional, já em andamento, é mais um objetivo a ser perseguido e consolidado nos próximos anos (Santos; Gebara, 2013).
Naquele momento, as expectativas de investimento no ensino superior brasileiro eram positivas, com editais de fomento em diferentes linhas e, em especial, com financiamento para pesquisas dedicadas aos estudos africanos. No ano anterior, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) havia lançado o Edital Capes n.º 33 / 2012, referente ao Programa Internacional de Apoio à Pesquisa e ao Ensino por meio da Mobilidade Docente e Discente Internacional – Pró-Mobilidade Internacional. Entre os objetivos do programa, constava o oferecimento de oportunidades a estudantes e docentes brasileiros para realização de atividades de pesquisas, desenvolvimento tecnológico e inovação em países lusófonos localizados na África e Ásia. Oportunidades como essa foram fundamentais nas trajetórias de vários jovens pesquisadores que, com financiamento público, puderam, pela primeira vez, estabelecer parcerias e interlocução com pesquisadores angolanos, cabo-verdianos, guineenses, moçambicanos, são-tomenses e timorenses. Thiago Mota, um dos organizadores deste dossiê foi beneficiário dessa iniciativa, enquanto estudante de doutorado. Hoje, professor universitário, coordena um convênio de cooperação entre a Universidade Federal de Viçosa e a Universidade Eduardo Mondlane, de Moçambique, fruto do investimento público no ensino superior de outrora.
Além do Pró-Mobilidade Internacional, a disponibilidade de recursos às universidades e a oferta de bolsas de mestrado e doutorado também foram fundamentais à ampliação da pós-graduação, em geral, e dos estudos africanos pós-graduados, em particular. Este dossiê resulta dessas duas iniciativas, uma vez que foi por intermédio delas que os pesquisadores aqui reunidos iniciaram uma rede de colaboração. Em 2015, o então Centro de Estudos Africanos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) lançou a Chamada de Apoio à Realização de Eventos Científicos, que contemplou a proposta da I Jornada de Estudos sobre África Ocidental. Esse evento foi um dos primeiros do gênero no país a concentrar-se especificamente numa porção do continente africano, considerando suas articulações sociais, culturais, econômicas e políticas internas. Inspirado no Seminário Internacional Cultura, Política e Trabalho na África Meridional, que se realizaria na Unicamp em maio daquele ano, a I Jornada propunha verticalizar a agenda científica em estudos africanos, rumo a uma maior especificidade no campo, por meio de dinâmicas circunscritas ao espaço oeste-africano. Foi a semente deste número.
Do evento resultou o livro Estudos sobre África Ocidental: dinâmicas culturais, diálogos atlânticos (Reis; Resende; Mota, 2016), por intermédio do qual um dos organizadores do dossiê travou profícuo diálogo com Sílvio Marcus de Souza Correa, um dos colaboradores deste volume. A iniciativa fomentou uma segunda edição da Jornada, que tomou corpo através da V Jornada do Centro de Estudos Africanos da UFMG, em 2017, em parceria com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (INEP), da Guiné-Bissau. Esse evento contou com ampla participação de pesquisadores brasileiros e estrangeiros, muitos deles africanos vindos de países como Cabo Verde, Gâmbia, Guiné-Bissau e Nigéria. Dele resultou outro importante livro sobre a história intelectual e o patrimônio cultural na África Ocidental (Santos; Amado; Marcussi; Resende, 2019), estreitando ainda mais os laços entre a historiografia brasileira e aquela procedente do oeste africano.
Entre 2016 e 2017, em decorrência de uma bolsa de doutorado sanduíche a ser cumprida na Universidade de Lisboa, oferecida pela FAPEMIG, o outrora doutorando em História na UFMG estabeleceu trocas intelectuais com Cornelia Giesing, uma vez que ambos estavam vinculados ao Centro de História da Universidade de Lisboa. A estadia em Portugal também o colocou em contato com Juliana Barreto Farias, professora da UNILAB que se preparava para atividades de pós-doutorado em Portugal. Ademais, com o auxílio da bolsa conseguida, o então pesquisador pós-graduando pode deslocar-se ao Senegal e à Gâmbia, para realizar pesquisas em arquivos e bibliotecas desses países. Em Dacar, no Senegal, onde ficou institucionalmente vinculado à Universidade Cheikh Anta Diop, travou duradoura interlocução com Idrissa Ba, outro organizador deste dossiê, parceira que tem se mantido ao longo dos últimos anos e resultado em produtos como este número.
Assim, a rede que permitiu a constituição da presente edição da Varia Historia resulta de um trabalho longo e contínuo, de colaboração e constituição de relações acadêmicas que somente foram possíveis devido ao investimento público na pesquisa brasileira. Destacamos essas informações para evidenciar como o financiamento público à pesquisa tem seus resultados prolongados ao longo do tempo, não se restringindo ao produto imediato do projeto em voga. Num momento em que a academia brasileira vive um período de crise, especialmente no que tange às Humanidades, reconhecer o amplo e duradouro impacto dos recursos recebidos torna-se estratégia de sobrevivência. Apesar disso, o fortalecimento de redes de cooperação acadêmica não isenta a organização deste número do rigor científico e da ética na condução de publicações de resultados de pesquisa. Por isso, todos os artigos que compõem este dossiê foram duplamente avaliados por pares, no sistema de revisão às cegas, e evidenciam os pontos destacados por Santos e Gebara em 2013, no que concerne aos estudos africanos: o impacto positivo do investimento público das agências de pesquisa na área, a maturidade das pesquisas realizadas no Brasil e os avanços necessários rumo à internacionalização dos estudos, da interlocução intelectual e dos resultados.
No Senegal, país cujo território atual corresponde ao espaço de várias das análises inscritas neste dossiê, que abriga muitos dos interlocutores mobilizados nos artigos a seguir e que é casa de um dos organizadores do número, a pesquisa também encontra suas principais fontes de financiamento em órgãos públicos. Trata-se de estruturas nacionais ou universitárias que arcam com a concessão de bolsas a professores-pesquisadores e pesquisadores. Entre essas estruturas, podem-se citar a Academia de Ciências, a Direção da pesquisa e cooperação internacional, as Reitorias, os Decanatos, as comissões de pesquisa dos vários estabelecimentos, as escolas de doutorado. Contudo, sob o impulso das autoridades ministeriais, a pesquisa e seu financiamento estão passando por uma revisão completa, que consiste em reorganizar as escolas de doutorado, a formação doutoral e as equipes de pesquisa, que devem tornar-se equipes maiores, transcendendo as fronteiras epistemológicas para melhor racionalizar os recursos e impulsionar as investigações. Além desse primeiro modo de financiamento da pesquisa, que conta com recursos públicos nacionais, há também parcerias internacionais, como a que está sendo formada entre universidades senegalesas, portuguesas e brasileiras em busca de formas de financiamento advindas de órgãos internacionais, como a União Europeia. Lá e cá, o que se nota é que a construção de redes internacionais de colaboração torna-se paulatinamente uma condição para a prospecção de recursos e otimização dos resultados das pesquisas históricas.
Diante desse quadro, a historiografia brasileira amplia seu diálogo com a Escola de Dacar. Essa, por sua vez, permanece fiel à sua tradição historiográfica em duas de suas principais preocupações: ampliar, seguindo Boubacar Barry (1988), a grande e bela Senegâmbia até os rios do óleo de palma; interrogar e integrar fontes de língua portuguesa (além de outras línguas europeias) aos principais materiais de construção do conhecimento histórico, como já o fizeram Sékéné Mody Cissoko (1966), Saliou Sarr (1980), Yoro Khary Fall (1991; 1992), e muitos outros. O dossiê “História econômica, política e intelectual da África ocidental: lógicas de intercâmbio” segue esse caminho. A proposta de regionalização da agenda africanista brasileira também resulta de reflexão amadurecida ao longo dos anos e das trocas realizadas em eventos acadêmicos, como as duas jornadas relatadas. Os artigos que os leitores encontrarão indicam, pois, como os estudos africanos têm crescido no Brasil, alcançando reconhecimento e visibilidade nacional e internacional,[1] em fundamental diálogo com historiografias africanas. Intercâmbios entre pesquisadores nacionais e estrangeiros são fundamentais à expansão das perspectivas sobre a História da África, seja em abordagem, metodologias ou debates nos quais se inserem. Atualmente, pesquisas sólidas, focadas na África Ocidental, encontram-se em curso em programas de pós-graduação em História, no Brasil, e indicam a relevância dessa discussão.[2]
A proposta deste dossiê é fomentar a ampliação do campo, trazendo outros problemas, fontes e abordagens. Nutrindo-se do dinamismo do cenário existente, da expertise já em curso na historiografia brasileira dedicada à África Ocidental e agregando colaboradores estrangeiros, apresentamos um conjunto de artigos que lida com o período entre os séculos XV e XIX. O foco está nas conexões, internas e externas, estabelecidas pelas sociedades da África Ocidental, lidas na perspectiva das últimas. Visa ainda ao estímulo a pesquisas em arquivos africanos pouco visitados por historiadores brasileiros, localizados no Senegal, Gâmbia e Guiné-Bissau, além dos bem conhecidos arquivos e documentos europeus. Através desse corpus documental, o dossiê destacará intercâmbios econômicos, políticos e intelectuais dentro do continente africano e desde esse espaço com o exterior. Nossa proposta parte das conquistas teóricas e metodológicas realizadas pela historiografia africanista brasileira, senegalesa e internacional, no que diz respeito ao uso de fontes orais (Henige, 1982; Wright, 1991; Green, 2012), às pesquisas em arquivos africanos (Nobili, 2016; Ceesay, 2018; Ngom, 2020) aos métodos de análise de fontes europeias que tratam da África (Jones; Heintze, 1987; Horta, 2011) e à busca pela perspectiva africana da História (Sarr, 2016; Cooper, 2016).
Dialogando com a bibliografia que aponta a complexidade na História africana, além das dicotomias branco / negro, colonizador / colonizado, estrangeiro / autóctone (Boilley; Thioub, 2004), este dossiê focará na inter-relação entre sociedades sul-saarianas, norte-africanas e europeias, em contextos transitórios, entre os séculos XV e XIX. O número é formado por cinco artigos, escritos por historiadores vinculados a instituições do Brasil, Senegal e Portugal. Trazem temas variados, orientados por diferentes metodologias: 1) justaposição de fontes narrativas europeias, tratados filosóficos africanos e fontes orais para o entendimento da formação de uma cultura política islâmica na Senegâmbia; 2) abordagem historiográfica das diferentes formas de acomodação entre o comércio transsaariano e o trato atlântico, na longa duração; 3) cruzamento entre fontes escritas e orais para estudo das transformações de identidades culturais e dinâmicas de ocupação e reivindicação do espaço; 4) análise de um inquérito produzido no Senegal, em 1844, sob encomenda da administração francesa, acerca dos significados da escravidão, liberdade e sentidos do trabalho; 5) estudo da produção, reprodução e circulação de imagens sobre a conquista europeia na África através do estudo comparado de dois casos oeste-africanos.
Em conjunto, essas pesquisas apontam um panorama sobre a África Ocidental, com destaque para a região conhecida como Grande Senegâmbia, que compreende os territórios dos atuais Senegal, Gâmbia, Guiné-Bissau, Guiné-Conacri e alcança o norte da Serra Leoa (Barry, 1988; Dias; Horta, 2007), além de uma incursão no atual Benim, em perspectiva comparativa. Nossa proposta é estimular o interesse de pesquisadores brasileiros por esse espaço, no período entre os séculos XV e XIX, marcado por intenso dinamismo. Ademais, buscamos evidenciar ao leitor as possibilidades de pesquisa em arquivos africanos, metodologias de trabalho com tradições orais e análises construídas a partir de textos e imagens produzidos na África e / ou na Europa, por agentes africanos e / ou europeus, ao longo do tempo. As fontes utilizadas e as abordagens recorridas indicam a riqueza do diálogo entre tais tipologias e coleções documentais publicadas ou presentes em arquivos europeus. Entendemos que a valorização desse intercâmbio documental e intelectual é necessária à ampliação e aprofundamento dos estudos africanos no Brasil, como já demonstrado pela Escola de Dacar. Dessa forma, este dossiê contribui para esse processo.
O presente número conta com cinco artigos, que abordam desde estudos de casos a análises inscritas na longa duração. A primeira contribuição é “Um coração de rei: cultura política islâmica como antecedente das revoluções muçulmanas na África Ocidental (Senegâmbia, séculos XVI e XVII)”, de Thiago Henrique Mota. Nesse artigo, o autor argumenta que os jihads que ocuparam a agenda política da África Ocidental, com maior fôlego entre os séculos XVIII e XIX, tiveram raízes mais profundas, que germinaram a partir do estabelecimento de uma cultura política islâmica sediada na África atlântica. Os elementos constitutivos dessa cultura política são uma base filosófica islâmica; sua difusão institucional a amplo número de pessoas por meio de escolas corânicas; a produção da ideia de um passado comum e o estabelecimento de expectativas de futuro fundadas num projeto de moralidade islâmica. Tais elementos teriam se articulado diante da ampliação do tráfico de pessoas através do Atlântico e seus variados impactos nas comunidades africanas. Por um lado, ampliação da violência endêmica, da escravização e das desigualdades sociais com rápido enriquecimento das elites locais envolvidas com o tráfico. Por outro, o fortalecimento das demandas por soluções jurídicas para o problema, que protegessem os muçulmanos da arbitrariedade da escravização. A isso se soma maior afluxo de papel procedente do comércio atlântico, aplicado na produção textual religiosa e jurídica islâmica através da região.
Em seguida, temos “Le commerce transsaharien et ses logiques d’accommodation par rapport au commerce transatlantique entre le XVe et le XIXe siècle”, de Idrissa Ba. Esse artigo pretende uma análise historiográfica. Ele convoca amplamente, de uma perspectiva crítica, trabalhos relacionados a três espaços intimamente ligados pela lógica comercial: o Saara, o Mediterrâneo e o Atlântico. No centro do debate, encontram-se as contribuições de David Robinson e de Vitorino Magalhães Godinho. A partir de Robinson, aborda o conceito de acomodação, redefinindo-o e recontextualizando. Em seguida, o conceito é aplicado para demonstrar como os atores e os beneficiários do comércio transsaariano adaptaram-se à abertura e ao comércio transatlânticos: por superposição, competição, colisão, captura de produtos, etc. Neste processo, o autor elabora uma contraposição à famosa fórmula de Vitorino Magalhães Godinho, relativa à vitória da caravana sobre a caravela.
“‘Le loup dans la bergerie’: narrations et identités des sujets de l’ancien royaume de Kasa en Sénégambie – Hommage à Stephan Bühnen (1950-2015)”, de Cornelia Giesing, é a terceira contribuição. Giesing é uma historiadora dedicada às fontes, como demonstrado por sua tradução e comentários acerca do Ta’rikh Mandinka de Bijini, na Guiné-Bissau (Giesing; Vydrine, 2007). Conforme a autora, o “artigo enfoca as divisões territoriais do país ajaa no interior do reino de Kaasa (séculos XV a XIX) através de narrativas sobre seu ocupação”. Na realidade, é por modéstia que Cornelia assim caracteriza sua contribuição, que explora vários documentos, constituídos principalmente por fontes portuguesas e pesquisas que ela própria conduziu em campo, para nos apresentar diferentes aspectos da história de Kaasa e dos reinos vizinhos, ao longo de cinco séculos. Tudo lhe toca: a estrutura política do espaço, em torno da capital Brikama e outras cidades secundárias; uma intensa mistura étnica e cultural (Mandinka-Sooninkee, Bañun, Joolaa, Balantes); o comércio entre o interior e a costa dominada, é verdade, pelo tráfico de pessoas; religiões locais; a exploração da terra e seus recursos. Em filigrana, a autora mostra que todas essas lógicas e dinâmicas foram feitas em detrimento dos povos Bañun que, de mestres e dominantes, tornam-se vítimas, minoritários e em vias de desaparecer. Esse processo macabro para os Bañun é reproduzido por uma frase bem escolhida, que Cornelia toma de tradições orais através da narrativa do comandante de um navio francês. Supostamente qualificando a atitude dos Balantas em relação aos Bañun, tem a seguinte redação: “um Balanta em uma de nossas aldeias é uma raposa no galinheiro”[3].
“‘Não há cativo que não queira ser livre!’: significados da escravidão e da liberdade entre marinheiros do Senegal, século XIX”, de Juliana Barreto Farias, é o quarto artigo. Aqui, o objetivo é compreender os significados da escravidão e da liberdade para os trabalhadores negros que atuavam em embarcações, nos rios e mares do Senegal. O principal aporte documental utilizado é um inquérito realizado em Saint Louis e Gorée, em 1844, no qual homens e mulheres escravizados, entre outros sujeitos, puderam se expressar e dizer o que pensavam sobre o cativeiro e sobre a liberdade. Trata-se de um documento sui generis, pouco explorado pela historiografia, ao qual se somam outras fontes, procedentes de arquivos senegaleses, franceses e publicações. Através da análise dessa seleta documentação, a autora aponta complexidades num sistema escravista vivido entre a ilha de Saint Louis e o continente africano, marcado pela mobilidade dos sujeitos escravizados, pelas relações de trabalho no contexto comercial da goma arábica e pelas hierarquias que estruturavam sociedades mestiças nos primórdios da colonização europeia na África. O sentido da liberdade construído por sujeitos negros – escravos ou livres – passava por uma ideologia marcada pela centralidade do trabalho, tema que era a ocupação central das autoridades coloniais naquela região.
O artigo que encerra o dossiê é um estudo comparado da produção, reprodução e usos de imagens, intitulado “Imagens itinerantes de potentados banidos da África Ocidental (1894-1899)”, de autoria de Silvio Marcus de Souza Correa. O texto é cronologicamente definido pelas capturas de potentados africanos diante da consolidação do colonialismo francês na África Ocidental. Em 1894, Béhanzin, oba do Daomé, foi deportado para a Martinica, após sua rendição diante das tropas francesas; em 1899 foi a vez de Samori Touré, almamy do Futa Jalom, ser deportado para o Gabão, após sua captura no ano anterior. Diante desses eventos, interessa ao autor refletir sobre as imagens desses governantes produzidas após sua captura, o trânsito delas, suas recepções e resignificações ao longo do tempo. Correa argumenta que tais representações fizeram parte da “ocupação imagética” da África Ocidental, termo que faz referência à fragilidade do controle exercido pelas metrópoles sobre os territórios africanos. Por outro lado, diferentes formas de apropriação das mesmas imagens, ao longo do tempo, transformaram-lhes os significados: de potentados africanos capturados como índice do poderio francês, foram lidas no período pós-colonial como ícones da resistência africana frente ao colonialismo. Nos dois casos, trata-se de representações pouco matizadas diante do complexo jogo de poder envolvido na captura desses sujeitos e na relação mantidas por eles com a França, antes e depois de seus exílios.
Portanto, esses textos se complementam, restauram diferentes dinâmicas e lógicas (comerciais, políticas, religiosas, etc.) que ocorreram na África Ocidental, esse vasto espaço constantemente redescoberto à luz das fontes e de sua exploração, entre os séculos XV e XIX. Aqui, as lógicas de intercâmbio são várias. Por um lado, remetem à natureza das trocas, compartilhamentos, acomodações e transformações ocorridos no espaço oeste-africano sob escrutínio. Por outro, dizem respeito aos diálogos e partilhas entre historiadores de distintos pontos da bacia Atlântica, unidos pelo interesse comum na história da África Ocidental. A continuidade desse tipo de intercâmbio depende de investimentos dedicados a pesquisas, por órgãos públicos e privados, nacionais e estrangeiros, e do fortalecimento das relações intelectuais trans-fronteiriças. Tais recursos permitiram a realização deste dossiê, que busca contribuir para nosso maior conhecimento da história africana e suas conexões com outras partes do mundo. Assim, ajuda-nos a compreender o passado da humanidade e a refletir sobre as escolhas feitas e os limites impostos a homens e mulheres, que ecoam na caracterização das sociedades do nosso tempo. Como as lógicas de intercâmbio através do tempo e do espaço bem o demonstram, ninguém é uma ilha, nenhum lugar existe fora do tempo, fora de suas conexões com o mundo. A história e sua construção estão, pois, em andamento, e a elaboração deste dossiê em tempo recorde, por historiadores de várias origens, é um exemplo disso e abre caminho para futuras colaborações, que esperamos que sejam frutíferas.
Notas
- Green (2019)publicou um artigo na revista Atlantic Studies discutindo o contributo de vários trabalhos realizados no Brasil à historiografia internacional, concernente aos estudos africanos.
- Para ficar em um exemplo, destacamos os resultados já publicados de Malacco (2017).
- A expressão original utilizada pela autora, loup dans la bergerie, corresponde a “lobo no curral”. Contudo, trata-se de expressão empregada por um europeu para expressar seu entendimento de tradições orais oeste-africanas, uma vez que o lobo não é uma espécie nativa do Kasa. Diante disso, optamos por uma frase mais familiar aos leitores de língua portuguesa, mantendo o entendimento central da metáfora utilizada.
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WRIGHT, Donald R. Requiem for the Use of Oral Tradition to Reconstruct the Precolonial History of the Lower Gambia. History in Africa, vol. 18, p.399-408, Jan. 1991. [ Links ]
Thiago Henrique Mota – Universidade Federal de Viçosa Departamento de História. E-mail: thiago.mota@ufv.br http: / / orcid.org / 0000-0002-2204-4229
Idrissa Ba – Faculté des Lettres et Sciences Humaines Université, Senegal. E-mail: idrissa1.ba@ucad.edu.sn http: / / orcid.org / 0000-0002-7107-4854
MOTA, Thiago Henrique; BA, Idrissa. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.36, n.71, mai. / ago., 2020. Acessar publicação original [DR]
Cultura escrita no mundo moderno / Varia História / 2019
O tema da Cultura Escrita não é novo no mundo das Humanidades. No século XIX, o desenvolvimento das tecnologias mecânicas aumentou o interesse sobre as práticas manuais da escrita e movimentou a produção editorial com pesquisas que ressignificaram os manuscritos iluminados do medievo ocidental.[1] No entanto, se durante muitas décadas os estudos sobre os textos escritos se firmaram nas técnicas aplicadas para a escrita, já há algum tempo antigas disciplinas como a Paleografia e a Diplomática se renovaram e incluíram em suas preocupações as relações entre produtos, produtores e consumidores e entre tempos e espaços (Petrucci, 1999). Por outro lado, a revalorização dos aspectos materiais da escrita levou os pesquisadores de diversos campos a desenvolver diálogos interdisciplinares, cruzando saberes, métodos e tecnologias para resolver diversos aspectos da curiosidade científica. De qualquer forma, as principais questões tratadas no campo da cultura escrita não podem se esquivar de considerar que o mental somente pode se expressar a partir do material (Almada, 2018).
O dossiê Cultura Escrita no Mundo Moderno abriga temas ligados à produção escrita ocidental moderna, abordando os discursos, as práticas, as representações e os processos de produção, circulação, uso e preservação, incluindo os aspectos técnicos e materiais que revelam as relações sociais e os agentes envolvidos nesta produção. Os artigos apresentam pesquisas dos campos da História, da Literatura e da Bibliografia Material e privilegiam os impressos e manuscritos como tecnologias de propagação de ideias e conhecimentos no tempo e no espaço. Entendemos como era moderna o período compreendido entre o desenvolvimento da tecnologia da imprensa por tipos móveis e a consolidação das mudanças nas relações com o escrito que possibilitaram a propagação de outras formas de produção – ou seja, entre meados do século XV até fins do século XVIII. Este longo período inclui muitas fases do desenvolvimento tecnológico, científico, social e econômico, o que torna a investigação sobre as formas de comunicação extremamente desafiadoras.
Reunimos, neste dossiê, resultados de pesquisas recentes no campo da Cultura Escrita. Foram convidados pesquisadores dos dois lados do Atlântico que estão na linha de frente na proposição de novos caminhos e olhares sobre as formas da escrita na era moderna. Dispomos os trabalhos apresentados em dois grupos: o das escritas e o dos escritos, ou seja, o dos processos de produção escrita e o dos resultados deste processo, inspiração surgida a partir da leitura do artigo de Fernando Bouza.
O artigo de Roger Chartier, Mobilidade de textos e diversidade de línguas. Traduzir nos séculos XVI e XVII, abre o grupo dos escritos tratando do tema da tradução e explorando os motivos pelos quais este tópico se tornou uma preocupação compartilhada pela história literária, pela crítica textual, pela sociologia cultural e pela história global. A resposta que o autor propõe se firma em três aspectos. O primeiro é o histórico e se refere a uma primeira “profissionalização” da escrita nos séculos XVI e XVII através dos trabalhos de tradução que, mesmo sendo vista como uma atividade mecânica, viabilizou a sobrevivência de muitos escritores. O segundo é metodológico e localiza os estudos da tradução como elemento essencial da chamada “geografia literária”, que opera seguindo a cronologia e a cartografia das traduções de uma mesma obra. A geografia das traduções, porém, não é a cartografia dinâmica de uma entidade textual estável e deve levar em conta as várias mutações que transformam a obra com o acréscimo de novos textos. Deve também adentrar a perspectiva das “histórias conectadas”, que são aquelas dos tradutores, não apenas de idiomas, mas também de culturas. Desta forma, o estudo das traduções propõe uma abordagem em menor escala dessas histórias textuais interatlânticas conectadas, concentrando-se nos múltiplos significados do mesmo texto.
O terceiro aspecto do interesse dos pesquisadores pela tradução, para Chartier, é linguístico-estética e enfatiza o intraduzível (ou os textos e autores considerados como tais). Seu artigo propõe três estudos de caso que podem identificar três escalas nas pesquisas sobre o tema e três modalidades da transformação do significado dos textos quando migram de uma língua para outra, seja em função da dificuldade de traduzir certas palavras, seja na influência do contexto de recepção. Enfim, a tradução é aqui pensada como uma prática que deve tornar a alteridade compreensível e fazer do outro um semelhante.
Littérature de l’expérience au XVIIe siècle é o segundo artigo do dossiê, no qual Christian Jouhaud, em um tom bastante pessoal, trata da questão da “literatura de experiência” a partir de um manuscrito deixado por um cavalheiro, um valet de chambre de Luís XIV, chamado Marie Du Bois, que viveu de 1601 a 1679. O texto parece se situar na categoria historiográfica de “escritos do foro íntimo”, mas Jouhaud questiona o anacronismo dessa definição e a própria distinção entre escritos de “pessoas comuns” e de “escritores”, em um momento no qual a noção de literatura apenas começa a existir como potência de simbolização do mundo. O texto deixado por Marie Du Bois, ao resistir a todas as classificações, convida a enfrentar a questão da historicidade da prática da escrita que permitiu sua existência, antes de qualquer extrapolação concernente a uma “cosmovisão” ou a uma “sensibilidade” ou mesmo a um pensamento ou a representações.
Jouhaud convida a fazer uma reflexão mais ampla sobre a relação entre o ato de escritura de Marie Du Bois e o impacto da sua forma narrativa sobre um leitor-historiador que o recebe como narrativa de uma presença em um passado, o qual é seu campo de estudo. O autor aborda, de forma original, a narrativa do cotidiano na perspectiva de sua transmissão em tempos distintos: o tempo do escrito e o tempo do historiador contemporâneo, sem descuidar da preocupação com o processo da escrita, o correr da pena, a organização das folhas e a unidade material final do relato, que deixam transparecer a pessoalidade de quem escreve e a realidade sobre a qual se escreve. Como reflete Jouhaud, essa produção do passado por uma sucessão de narrativas exerce sobre nós efeitos que não são idênticos àqueles percebidos por seus primeiros receptores.
Em outra perspectiva dos escritos, o artigo de Guillermo Wilde e Fabián R. Vega intitulado De la indiferencia entre lo temporal y lo eterno. Élites indígenas, cultura textual y memoria en lasfronteras de América del Sur nos introduz o tema da cultura textual das missões jesuítas a partir da curiosidade despertada por um pequeno papel dobrado contendo um texto de caráter religioso escrito em três idiomas: o latim, o castelhano e o guarani. E é a partir deste pedaço de papel que os autores partem para a compreensão das complexas relações entre os missioneiros e as elites indígenas, revelando a fascinante miscigenação entre valores de duas culturas, uma estruturada pela escrita e outra pela oralidade. Wilde e Vega nos informam que a expansão das missões, inicialmente fundadas pelos jesuítas na região de Guayrá (atual Estado do Paraná, Brasil) por volta de 1609, levou à reestruturação do espaço das populações e ao rápido desaparecimento de outras línguas faladas na região e de numerosas variantes dialetais da língua Guarani, impondo-se uma “língua geral”.
Através da unificação da língua indígena propiciou-se a uniformização do projeto doutrinário com uma ampla produção textual deliberadamente orientada para reunir o espiritual e o temporal, como parte de um programa mais amplo de reforma dos costumes e padronização da subjetividade cristã. Segundo os autores, as produções textuais estimularam a hibridação de gêneros textuais que promoviam, num plano individual, um modelo de subjetividade com base na virtude cívica e na devoção cristã e, no plano sociológico, uma memória coletiva fundada nos marcos da expansão territorial, ordenados em uma narrativa cronológica e mitológica. Neste sentido, através de diversos exemplos de produção textual impressa e manuscrita, os autores apresentam a conjunção do espiritual e do temporal, conduzida pelas missões, como estrutura de conformação dos indivíduos indígenas à conduta do cristão civilizado.
Introduzimos o grupo dos processos de produção, circulação e guarda dos escritos, com o artigo de Fernando Bouza, autor que costuma prender a atenção dos seus leitores já nas primeiras linhas. Em Escribir a corazón aberto: emoción, intención y expressión del ánimo em la escritura de los siglos XVI y XVII o historiador, desde o início, nos conecta com naturalidade às preocupações de Mário de Andrade e Lope de Vega sobre a produção de correspondências. Esta união de tempos históricos tão distintos é continuada com a apresentação de preciosos dados sobre a escrita de cartas em diversas épocas, oferecendo ao leitor a oportunidade de traçar conexões com seus próprios objetos de interesse.
No tema da epistolografia, o argumento principal do autor é o de que, nos séculos XVI e XVII, a materialidade da escrita revela as estruturas das regras de conduta cortesãs e, nestas, os aspectos corporais não podem ser desdenhados. Cartas hológrafas ou autógrafas, por exemplo, evidenciam diferentes níveis de pessoalidade na relação do remetente e do destinatário. Bouza extrapola a questão da gestualidade e apresenta uma fisiologia mais particular, que associa o coração, a mão e a pena, sendo a escrita anímica capaz de revelar o pensamento mais íntimo de quem escreve.
Este foi o argumento usado por Sigismondo Arquer, célebre réu da Inquisição espanhola, doutor em Direito e em Teologia, para defender-se da acusação de heresia, feita pelo Santo Ofício em 1563, em função de supostas proposições luteranas encontradas em suas correspondências. Segundo Arquer, usando o argumento da “escrita de coração aberto”, suas palavras nunca poderiam defender o protestantismo, pois haviam partido de uma alma católica. O réu baseou-se na tradição bíblica que distinguia a escrita Intus, que usava o coração como instrumento, da escrita Extra, que necessitava apenas da pena e da mão.
Se o coração pode ser um dos instrumentos da escrita, a troca de informações deve ser um de seus motores. A produção, consumo e colecionismo de notícias na Alta Idade Moderna, com destaque para a experiência ibérica, é o tema de Escritos breves para circular: relações, notícias e avisos durante a Alta Idade Moderna (sécs. XV-XVII), artigo de Ana Paula Megiani. A autora nos apresenta um panorama complexo das diversas formas de circulação das notícias, que não só estruturavam os novos sistemas de governança, mas também saciavam a “curiosidade em se saber o que passa fora de casa”. Trata-se das relações de sucessos, avisos, arbítrios, e notícias, modalidades que mantêm sua especificidade mas que não podem ser classificadas de maneira estanque devido ao fato de não se tratarem de um gênero de escrita. Assim, qualquer pessoa que tivesse presenciado um acontecimento poderia se tornar um agente propagador de notícias, gerando um sem número de relatos, inclusive com diferentes desfechos. No entanto, cabe notar que, para além da efemeridade da notícia e da própria configuração material deste tipo de escrita, feita em pequenos pedaços de papel ou anexada a cartas ou cadernos, havia a possibilidade da sua sobrevivência graças à iniciativa de determinados sujeitos que se propuseram a organizar e a colecionar notícias.
Para estudar este assunto, Megiani tem se debruçado no conjunto formado pelo português Jerônimo Mascarenhas que, antes de assumir o Bispado de Segóvia, em 1667, esteve diretamente envolvido com a Casa Real espanhola, mantendo alguma proximidade com o monarca. Mascarenhas tornou-se um cronista régio de intensa atividade e igualmente um colecionador de relações de sucessos que compunha com originais ou cópias de cartas, relatos, documentos antigos e oficiais, entre outros papéis que reuniu, junto a escritos de sua autoria, em volumes organizados cronologicamente, entre os anos de 1558 e 1666. Este material saciou a curiosidade dos coetâneos e hoje serve ao historiador interessado na recepção dos fatos à época dos acontecimentos. Mas para cumprir esta função, como ressalta a autora, esse acervo deve ser tratado nas perspectivas das práticas escriturárias e de colecionismo, que é uma das chaves para o entendimento dos usos dos escritos em diferentes temporalidades.
Fechando este dossiê, e selando a perspectiva interdisciplinar dos estudos, somos presenteados com Primeros vagidos de tipografia y biblioiconografía mexicana del siglo XVI, de Guadalupe Rodriguez. Pertencendo à área de Filologia Hispânica, a autora nos instiga com um artigo no qual faz uso dos métodos da Bibliografia Material para revalorizar o período de instalação e expansão da imprensa no México, a partir de 1539. Sua abordagem dá protagonismo aos editores / tipógrafos, profissionais que enfrentaram uma diversidade de problemas para realizar o seu trabalho e sanar a carência de insumos como papel, tinta, prensas, tipos, adornos e xilogravuras. A partir de breve revisão bibliográfica acerca das prototipografias mexicanas, Rodriguez expõe a vulnerabilidade de pesquisas anteriores que, embora tenham conseguido determinar, em boa perspectiva, o estoque de materiais e equipamentos das diversas tipografias, não puderam estabelecer relações entre as suas demandas devido à falta de estudos sistemáticos e análises comparativas dos acervos materiais de cada casa tipográfica.
Para sanar esta carência, Rodriguez se dispõe a realizar esta empreitada tendo como base o novo repertório da tipobibliografia mexicana do século XVI, desenvolvido sob sua coordenação. Com este material, reflete sobre as redes de sociabilidade desenvolvidas entre os quatro primeiros tipógrafos mexicanos (atuantes entre 1539 e 1593) e esclarece sobre os mecanismos de transferência (venda, aluguel ou empréstimo) e reutilização de insumos tipográficos entre familiares e profissionais. O artigo revela a habilidade da autora em manipular as fontes visuais e materiais dos acervos bibliotipográficos e em traçar a biografia dos insumos e das matrizes imagéticas em busca do entendimento das relações sociais envolvidas na sua utilização. Ao expor com clareza e generosidade os procedimentos metodológicos adotados, sua contribuição se torna ainda mais valiosa para os estudiosos da história da tipografia.
Agradecemos a dedicação dos autores e das autoras na construção de seus artigos tão originais e instigantes e esperamos que este dossiê possa contribuir para o aprofundamento dos estudos sobre Cultura Escrita no Mundo Moderno. Desejamos que os diálogos travados a partir destes excelentes textos sejam profícuos e tragam bons ventos para a área, gerando novas perspectivas de abordagem a temas imprescindíveis em tempos de profundas mudanças das relações sociais promovidas por nova mutação das práticas de comunicação escrita.
Nota
- CURMER, Léon (Ed.). Le livre d´Heures de la reine Anne de Bretagne traduit du latin et accompagné de notices inédites par M. lÁbbé Delaunay. Paris: Léon Curmer, 1841; CURMER, Léon (Ed.) Les evangiles des dimanches et fetes de lánne. Suivis de prières à la Saint Vierge er aux Saints. Paris, Léon Curmer, 1864.
Referências
ALMADA, Márcia. Cultura material da escrita ou o texto como artefato. In: CONCEIÇÃO, Adriana Angelita da; MEIRELLES, Juliana Gesuelli (Orgs). Cultura Escrita em Debate: Reflexões sobre o Império português na América, séculos XVI ao XIX. Jundiaí: Paco Editorial, 2018. p.19-42. [ Links ]
PETRUCCI, Armando. Alfabetismo, escritura, sociedad. Barcelona: Gedisa Editorial, 1999. [ Links ]
Guiomar de Grammont – Instituto de Filosofia Artes e Cultura Universidade Federal de Ouro Preto. E-mail: letras.ouro@gmail.com http: / / orcid.org / 0000-0001-8170-3258
Márcia Almada – Escola de Belas Artes Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: marcia.almada@gmail.com http: / / orcid.org / 0000-0002-9046-9229
GRAMMONT, Guiomar de; ALMADA, Márcia. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.35, n.68, mai. / ago., 2019. Acessar publicação original [DR]
Monarquia, Império e Política Popular na Era Atlântica das Revoluções / Varia História / 2019
É sabido que em diferentes cenários de todo o mundo atlântico as classes populares se mobilizaram em defesa da monarquia durante a chamada “era das revoluções”. Sua presença foi generalizada e influente nos intensos confrontos na Europa e nas Américas, quando as bases do poder dos monarcas europeus foram contestadas por meio de guerras internas e externas. Falando coloquialmente, os monarquistas, tanto populares quanto da elite, eram os bandidos que personificavam os obstáculos sociais e ideológicos na história universal da revolução e da modernidade.
Nas últimas duas décadas, historiadores da América Latina, Europa e Estados Unidos redescobriram esse fenômeno e o reexaminaram sob as lentes da nova história política. Mais recentemente, os estudiosos começaram a criar comunidades em torno do tema do realismo popular , às vezes com base em profundas tradições historiográficas e outras vezes experimentalmente. Por profundas tradições historiográficas, refiro-me particularmente aos estudos de contra-revolução e restauração na Europa que abundam e constituem um dos pilares das histórias nacionais em lugares como a Espanha ou a França. Mais experimental na abordagem foi a conferência que co-organizei com Clément Thibaud em 2016 na Universidade de Yale sobre o tema do Realismo Popular no Mundo Atlântico Revolucionário. De fato, foi sem precedentes (que eu saiba) que estudiosos com foco na história da África, Europa e Américas se reuniram para compartilhar e debater seu trabalho, o que ilustrou a gama de opções e escolhas políticas disponíveis para setores populares no Atlântico revolucionário, como povos nativos e afrodescendentes, camponeses e artesãos. Nesse diálogo produtivo, investigamos as maneiras pelas quais conceitos como liberdade e cidadania foram centrais para o engajamento popular com as instituições monárquicas e a política durante o século XIX. [1] Os sete artigos incluídos neste dossiê evoluíram a partir de apresentações naquela conferência e ilustram as abordagens variadas, bem como os múltiplos casos, que enriquecem nossa compreensão atual do realismo popularem um quadro atlântico. O dossiê, portanto, é uma porta de entrada para o emergente campo de estudos sobre o monarquismo popular e um reflexo do potencial do tema quando explorado em uma perspectiva comparada.
Histórica e historiograficamente falando, é claro, o assunto do monarquismo não é novo. Como personagens nas histórias nacionais, e na história da revolução mais amplamente, os monarquistas das elites foram naturalmente entendidos como representantes de setores conservadores cujos interesses se alinhavam claramente com o regime sob ataque. Além disso, é inquestionável que as elites monarquistas contavam com o apoio de grupos populares, que se mobilizavam formalmente em milícias ou como guerrilheiros que agiam em prol e em nome do rei. Tanto na Europa quanto nas Américas, essa mobilização popular tem sido amplamente explicada como um produto da manipulação ou como reflexo da essência extremamente reacionária das classes populares. Em outras palavras, o realismo popular tem sido, até recentemente,Hamnett, 1978 ; Landavazo, 2001 ; Lynch, 1986 ; 2006; Restrepo, 1827 ; Tilly, 1964 ).
À medida que a história social ganhava força no século XX, os historiadores procuravam dar corpo a uma explicação desse fenômeno histórico do ponto de vista marxista, mas sempre entendendo-o como um paradoxo ( Bonilla; Spalding, 1981 ; Bonilla, 2005 ; Carrera Damas, 1972 ; Craton, 1982 ; Izard, 1979) Essa interpretação foi fundamentada na expectativa de que a ação política popular deve ser associada a seu apelo histórico à revolução. Nesse quadro estrutural, as identidades sociais populares – definidas por uma posição de marginalidade – corresponderiam e deveriam corresponder a interesses políticos revolucionários, anticoloniais ou liberais. Em alguns casos, os historiadores resolveram essa inconsistência argumentando que as alianças monarquistas expressavam uma falsa consciência, a ignorância dos setores populares ou, novamente, suas visões de mundo tradicionalistas inerentes. Ao mesmo tempo, seja a partir dos paradigmas liberais ou marxistas, os historiadores da modernidade produziram interpretações condescendentes dos monarquistas populares. Também aqui, além de ver a lealdade dos setores populares à monarquia como um problema que revelava sua irracionalidade,Domínguez, 1980 ; Hobsbawm, 1973 ; Torras, 1976 ).
Isso explica por que, na historiografia europeia, a relevância das histórias do monarquismo popular reside em sua conexão com os estudos sobre as origens do conservadorismo. Ou seja, entende-se que os monarquistas populares foram subsumidos em causas reacionárias, principalmente lideradas por elites conservadoras, apegadas a princípios retrógrados e, consequentemente, prejudiciais às causas liberais e democráticas ( Beneyto, 2001 ; Bianchi; Dupuy, 2006 ; Canal, 2005 ; Comellas , 1953 ; Herrero, 1988 ; Lousada, 1987 ; Martin, 2001 ; Menéndez y Pelayo, 1965-1967 ; Ramón Solans; Rújula López, 2017 ; Rienzo, 2004 ;Rújula López, 1998 ; Solé i Sabaté, 1993 ; Suárez Verdeguer, 1955 ; 1956 ). É também a causa da produção de análises inconsistentes da mobilização popular durante a guerra de independência hispano-americana que associavam o que eram grupos formalmente monarquistas com rebeliões anticoloniais. Isso pode ser visto, por exemplo, nas obras de René D. Arze e José L. Roca que, escrevendo no final dos anos 1980, interpretaram os grupos indígenas que defendiam a monarquia no altiplano andino como precursores da identidade nacional boliviana. Arze e Roca buscavam e viam a emancipação na política das classes dominadas e entendiam a emancipação em termos de política revolucionária ou nacionalista ( Arze, 1987 ; Roca, 1988) Essa associação sugere ainda que, quando os historiadores deram o passo de descobrir a participação popular nas guerras de independência, eles preferiram enfatizar o antagonismo de classe entre as elites e as classes mais baixas, ao mesmo tempo que ignoraram a existência de alianças verticais essenciais para o surgimento de facções monarquistas no século XIX.
Nas últimas três décadas, historiadores do mundo atlântico revisaram as histórias nacionalistas e reformularam a era revolucionária, expandindo os limites geográficos e cronológicos do paradigma palmeriano original, que se concentrava exclusivamente nas revoluções americana e francesa ( Hobsbawm, 1962 ; Klooster, 2009 ; Palmer, 1965) O campo cresceu e evoluiu em várias direções, sendo uma delas a reavaliação da participação dos setores populares nas revoluções e sua relação com a ascensão do republicanismo na Europa e nas Américas. Se a narrativa dominante durante a maior parte do século XX excluiu as classes populares das histórias da revolução, ou independência nos casos americanos, a pesquisa agora levanta questões sobre representações centradas na elite da revolução, independência e formação do Estado. Além disso, ao vincular as mudanças mais amplas resultantes dos processos revolucionários atlânticos à Revolução Haitiana, estudiosos da América Latina demonstraram especialmente que o republicanismo popular era uma opção que refletia o compromisso revolucionário dos setores populares ( Alda, 2002 ;Blanchard, 2008 ; Di Meglio, 2006 ; Guardino, 1996 ; Guarisco, 2003 ; Helg, 2004 ; Lasso, 2007 ; Soux, 2010 ; Thibaud, 2003 ; Townsend, 1998 ; Tutino, 1989 ; Walker, 1999 ).
Mas a questão do apoio popular à monarquia permaneceu inexplorada ou confinada a interpretações esquemáticas duradouras e francamente simplistas ( Earle, 2000 ; Craton, 1982 ; Van Young, 1989 , 2001 ). Nas últimas três décadas, os estudiosos desafiaram a ênfase na irracionalidade intrínseca dos monarquistas populares. Focar em interpretações inovadoras da experiência do monarquismo popular e oferecer um contraponto a esse retrato dos setores monarquistas populares na Era das Revoluções, implica ainda questionar a teleologia revolucionária ( Echeverri, 2016 ; Gutiérrez, 2007 ; Méndez, 2005 ; Saether, 2005 ;Sartorius, 2013 ).
No trabalho sobre o Atlântico Britânico e a Revolução Americana, os estudiosos recuperaram a presença leal e delinearam a interseção vibrante do império e da política na era revolucionária ( Blackstock; O’Gorman, 2014 ; Calloway, 1995 ; Chopra, 2011 ; Frey, 1991 ; Jasanoff, 2008 ; 2010 ; 2011 ; McConville, 2006 ; Nash, 2006 ; Nelson, 2014 ; Norton, 1972 ; O’Shaughnessy, 2013 ; Pybus, 2006 ; Schama, 2006) A Revolução Haitiana tornou-se o foco de muitas pesquisas, porque é um caso que une a França e sua colônia caribenha de São Domingos em uma única revolução atlântica, trazendo também para o primeiro plano questões de escravidão e raça que eram centrais para as mais amplamente definidas. dinâmica revolucionária ( Childs, 2006 ; Dubois, 2004 ; Ferrer, 2012 ; Fischer, 2004) É claro, entretanto, que a Revolução Haitiana exemplifica a impossibilidade de pensar a revolução como um processo linear. Alguns autores descobriram a importância das lealdades monarquistas e dos interesses políticos que as sustentam. Ou seja, os afrodescendentes no Caribe receberam concessões em troca de sua lealdade e, em muitos casos, identificados com estruturas sociais corporativas monárquicas que reconheciam seus interesses coletivos ( Landers, 2010 ; Ogle, 2009 ; Thornton, 1993) Da mesma forma, os estudos radicais emergentes da Espanha, França e América Latina no campo das Revoluções Ibéricas desafiam as histórias nacionalistas, enquanto o constitucionalismo passou a ocupar o primeiro plano nos estudos sobre monarquia e império, rompendo com sua definição como antagônico à revolução, liberalismo, e modernidade ( Adelman, 2010 ; Bellingeri, 2000 ; Berruezo, 1986 ; Breña, 2006 ; Chust, 1999 ; Dym, 2005 ; Echeverri, 2011 ; 2015 ; 2016 ; Guerra, 2000 ; Lorente; Portillo, 2011 ; Morelli, 1997 ; Paquette , 2013; 2015 ; Portillo, 2006 ; Rodríguez, 1999 ; 2006 ). [2]
Esse dossiê fornece mais evidências da transformação no estudo do realismo popular na última década, por meio de sete estudos de casos que abrangem a Europa, o Atlântico britânico, o Brasil e a América espanhola. Como estudos sobre essas regiões, constituem contrapontos e acréscimos importantes a trabalhos sobre o republicanismo popular que se concentraram principalmente no Caribe. Os historiadores da área cujos trabalhos são aqui apresentados acessam o tema por meio de diferentes aspectos – ou portais – e oferecem interpretações variadas. Ainda assim, os distintos cenários, além das diferenças regionais, conceituais e temáticas, evidentemente fornecem elementos fundamentais para comparações. Em primeiro lugar, eles revelam que, embora o monarquismo popular representasse consistentemente uma opção generalizada de ação política, também era diverso e particular, vinculado a aspectos jurídicos, militares, e contextos políticos. Em segundo lugar, tomados em conjunto, os artigos sugerem que a fertilização cruzada entre a história social, cultural e política da Era das Revoluções permitiu aos historiadores da política popular reconhecer que, como uma subjetividade política, o apoio à monarquia é complexo e deve ser analisado cuidadosamente em relação a contextos históricos específicos para dar conta de sua profundidade e características conjunturais. Terceiro, os artigos apresentados aqui também questionam o entendimento de que, ao defender os regimes monárquicos, os monarquistas populares foram marginais a dinâmicas e processos mais amplos de revolução, modernização e formação do Estado na Europa, África, América do Norte e América do Sul. Em vez disso, enquadrando suas ações no contexto das profundas transformações da paisagem política atlântica,Echeverri, 2011 ; 2016 ; Kraay, 2001 ; Paquette, 2013 ; Straka, 2000 ; Schultz, 2001 ).
No primeiro estudo do dossiê que enfoca o período mais antigo, Sergio Serulnikov trata dos usos políticos da figura do monarca na mobilização política dos índios andinos antes da independência (do final do século XVIII a 1809). Para Serulnikov, as prisões conceituais e historiográficas que vinculam o monarquismo ao atraso podem ser questionadas pensando-se criticamente sobre os pressupostos por trás delas. No artigo, ele delineia os entendimentos mais comuns do monarquismo popular na teoria social para, reflexiva e diretamente, abrir uma nova maneira de abordar as relações políticas entre os índios e a coroa na América do Sul. Em vez de estudar esta questão de uma perspectiva materialista, que recorreria ao entendimento estrutural de que as posições sociais devem produzir interesses políticos específicos, sua ênfase em símbolos políticos e dinâmicas políticas mais profundas sugere que o rei era um “significante vazio”. Em vez de ver o monarquismo como um reflexo da ingenuidade dos camponeses indígenas, Serulnikov afirma que suas práticas – reconstruindo essas práticas em seu desenvolvimento contextual dentro da esfera pública – são mais significativas do que declarações formais de lealdade. Seu artigo mostra como a profunda história do engajamento dos índios com a lei (que estava ligada a questões de justiça e direitos) politizou as relações sociais no contexto colonial andino. Serulnikov afirma que suas práticas – reconstruindo essas práticas em seu desenvolvimento contextual dentro da esfera pública – são mais significativas do que declarações formais de lealdade. Seu artigo mostra como a profunda história do engajamento dos índios com a lei (que estava ligada a questões de justiça e direitos) politizou as relações sociais no contexto colonial andino. Serulnikov afirma que suas práticas – reconstruindo essas práticas em seu desenvolvimento contextual dentro da esfera pública – são mais significativas do que declarações formais de lealdade. Seu artigo mostra como a profunda história do engajamento dos índios com a lei (que estava ligada a questões de justiça e direitos) politizou as relações sociais no contexto colonial andino.
O caso fascinante do monarquismo quando os súditos populares se moviam através do Atlântico aparece no artigo de Ruma Chopra no dossiê, onde ela traça a origem da lealdade entre os quilombolas jamaicanos e suas mudanças em diferentes contextos geográficos ao longo do final do século XVIII. O estudo de Chopra analisa o Atlântico britânico e como a busca por liberdade legal estava ligada às estratégias políticas de pessoas que escaparam da escravidão na Jamaica. Os quilombolas da cidade de Trelawney que viviam na parte norte da ilha fizeram alianças com a coroa britânica, ganhando autonomia em troca de sua lealdade e defesa militar do poder colonial e de suas instituições econômicas. Chopra desenvolve esse caso bem conhecido seguindo esses quilombolas da Jamaica à Nova Escócia e depois à Serra Leoa.Jasanoff, 2008 ; 2010 ; 2011 ; Pybus, 2006) Depois que a comunidade quilombola viajou para fora da Jamaica, ela contrasta os interesses e a tomada de decisões dos quilombolas aos dos legalistas negros que defenderam a coroa naquela revolução. Como uma comunidade pré-existente dentro do império, os quilombolas usavam a lealdade ao rei como uma ferramenta política “elástica” para defender seus privilégios em diferentes cenários políticos. No entanto, essa história também envolve uma transformação na linguagem que os quilombolas usavam para reivindicar seus interesses. Quando sua posição como súditos imperiais mudou, eles continuaram a definir sua identidade em relação à sua lealdade. Não que os objetivos dos quilombolas tenham mudado em sua transição da Jamaica para a Nova Escócia e Serra Leoa. Foi a mudança de contexto que disponibilizou novos quadros políticos e institucionais, que deu um novo sentido às suas lutas por autonomia e inclusão. A ênfase analítica de Chopra no artigo está em como os quilombolas instrumentalizaram sua longa história de reconhecimento pela coroa e seu serviço a ela.
Ao longo da costa caribenha de Nova Granada estão duas regiões representativas – Santa Marta e Venezuela – onde indígenas, escravos e afrodescendentes foram decididos defensores da coroa espanhola durante as guerras de independência na América do Sul entre 1809 e 1823. Ambos são ricos casos de compreensão do realismo popular que Steinar Saether e Tomás Straka, respectivamente, tratam neste dossiê. Saether se concentra em uma cidade em Santa Marta onde a coroa recompensou uma autoridade indígena, o cacique Antonio Nuñez, por sua defesa dos territórios contestados sob controle monárquico por meio de ações militares heróicas. Saether interroga os dois lados desse noivado. Em primeiro lugar, ele explora a estrutura da criação de sistemas de recompensas, mostrando que ela estava inserida em uma tradição militar europeia mais profunda. Segundo, ele investiga a interpretação que o próprio cacique Nuñez – e seus seguidores – fizeram das condecorações. Como Serulnikov, Saether sugere ainda que não é possível tirar conclusões de um monarquismo sincero subjacente à ação política e militar entre monarquistas indígenas. Colocando as decorações em um contexto mais amplo de confronto entre as forças republicanas e monarquistas, ele chama esse sistema de recompensas de “uma guerra de símbolos”. Saether mostra até que ponto as decorações buscavam não apenas recompensar a lealdade, mas também garantir a lealdade futura e garantir a obediência. Sua interpretação da perspectiva dos índios é que, para eles, esta foi principalmente uma aliança estratégica. Além disso, ele diz que,
Embora focados em diferentes casos e fontes, Straka e Saether comentam sobre a pouca evidência disponível para obter uma noção exata do que o monarquismo significava para os índios ou afrodescendentes na América do Sul. De fato, Saether afirma que não é possível saber como Nuñez “realmente concebeu o título”. Straka enfrenta o problema metodológico de encontrar referências claras ao entendimento que os grupos monarquistas tinham de conceitos cruciais que evidentemente se engajaram, como coroa, igualdade ou liberdade. Como em Santa Marta, na Venezuela, estudo de caso de Straka, os atores populares reagiram contra a organização experimental entre as elites crioulas que rejeitavam o domínio espanhol. No entanto, a abordagem de Straka ao tema do realismo popular é diferente. Primeiro, em vez de discutir o contexto atlântico de lealdade e recompensas, ele situa seu estudo no contexto local. Ele aponta para o fenômeno massivo do monarquismo popular na Venezuela, um lugar que exemplifica o significado sustentado do apoio popular à monarquia durante as guerras de independência na América espanhola. Em segundo lugar, Straka, como Chopra, também lida com a questão fascinante de como as lealdades das classes populares mudaram com o tempo. O que Straka mostra é que uma questão importante para os historiadores do monarquismo popular no caso venezuelano é a continuidade entre o monarquismo e o liberalismo após a independência ( também trata da questão fascinante de como as lealdades das classes populares mudaram ao longo do tempo. O que Straka mostra é que uma questão importante para os historiadores do monarquismo popular no caso venezuelano é a continuidade entre o monarquismo e o liberalismo após a independência ( também trata da questão fascinante de como as lealdades das classes populares mudaram ao longo do tempo. O que Straka mostra é que uma questão importante para os historiadores do realismo popular no caso venezuelano é a continuidade entre o monarquismo e o liberalismo após a independência (Zahler, 2013 ). Outra contribuição de Straka é sua observação sobre como é preocupante ter tão pouco conhecimento do realismo popular na Venezuela, dada a falta de trabalhos sobre o assunto, apesar de sua inegável importância histórica. [3] E sua interpretação ressoa com o que Serulnikov e Saether sugerem, que os monarquistas populares tinham uma compreensão diferente da monarquia e de sua lealdade do que a institucional. Além disso, destacando a interseção entre a luta pela independência e raça – uma questão que atravessa caracteristicamente a política nas Américas – ele descobre que os objetivos por trás das rebeliões anti-republicanas na Venezuela realmente revelam uma conexão entre democracia e realismo. [4]
Simon Sarlin oferece uma estrutura analítica completa para estudar e comparar diferentes mobilizações monarquistas na Europa durante o período de restaurações monárquicas. Seu trabalho concentra-se em casos de recrutamento voluntário na França, Espanha, Portugal, Estados Papais e Nápoles entre 1815 e 1848. Seu estudo orienta nossas lentes comparativas para novos temas, metodologias e contextos geográficos. Para começar, ao nos levar ao espaço europeu, ele ilustra a existência de uma sólida tradição nos estudos do monarquismo popular, da revolução e da construção do Estado, especialmente na Espanha. Sarlin se propõe a desemaranhar os mecanismos de mobilização que eram elementos processuais ligados ao maciço apoio popular às monarquias. Para traçar os processos que caracterizam cada caso, ele estabelece quatro categorias de análise baseadas em sua perspectiva sociológica: processo de criação, modelos de referência, conexão da constituição sociológica com o compromisso e efeito na estabilidade política. Os regimes que os setores populares defenderam nesses casos são historicamente entendidos como conservadores. A questão então é como desassociar essa categoria generalizante de acordo com a multiplicidade de casos e dinâmicas. Ao contrastar seu estudo com outros que tratam de casos no Caribe e nas Américas espanholas e portuguesas, aliás, fica claro o que está em jogo quando se pensa comparativamente o realismo popular. A relação entre monarquia e sociedade – tanto a elite quanto os setores populares – não é a mesma nos contextos europeu e americano. De certa forma, a natureza dos regimes imperiais refrata a questão da lealdade com implicações distintas. No último, é claro, a revolução está ligada ao anticolonialismo, assim como o realismo. Por outro lado, como Lisly, Kraay e Straka apontam em seus artigos, as distinções raciais e de classe estruturam alianças e interesses monarquistas de maneira diferente.
A perspectiva comparativa embutida no estudo de Sarlin para o contexto europeu também está presente no artigo de Andrea Lisly, no qual ela expande o quadro analítico para o Atlântico português. Lisly reúne os casos de Portugal e do Brasil em sua obra para ilustrar os múltiplos significados do monarquismo para as classes populares naqueles dois ambientes onde, mesmo se dentro de um Atlântico português fortemente conectado, a monarquia representava coisas diferentes no final da década de 1820 e início da década de 1830. De um lado do Atlântico – o Brasil – era uma monarquia constitucional e do outro – Portugal – era uma monarquia absolutista. Ao mostrar que havia uma diferença fundamental (geralmente mal compreendida ou apagada nas fontes primárias e na historiografia) entre a defesa de Pedro I no Brasil como liberal e o realismo associado à figura de Miguel em Portugal, Lisly abraça o realismo popular em todas as suas complexidade. Como é óbvio, também do lado brasileiro a questão era ainda mais complexa na medida em que implicava a opção de defender os laços com o monarca em Portugal, Miguel, como alternativa à monarquia liberal defendida por Pedro I. Lisly enquadra a sua análise aliás, num cuidadoso paralelo com estudos anteriores do “Miguelismo”, cuja abordagem de classe enfatizava os fatores econômicos associados ao apoio popular ao rei português. Esses estudos, ela argumenta, implicavam ainda que por trás dessa participação havia processos de recrutamento forçado.
Somando-se à discussão sobre o importante elemento de múltiplas perspectivas sobre o monarquismo a partir de pontos de vista culturais contrastantes, o artigo de Hendrik Kraay analisa três episódios em que afrodescendentes manifestaram identificação monárquica no Brasil, entre 1832 e 1889. Na leitura de Kraay, os três casos ilustram como os entendimentos populares da monarquia eram radicais e não conservadores como foram, em todos os três casos, geralmente retratados. Kraay estuda as definições afro-brasileiras populares do regime imperial, e sua análise representa um importante contraponto regional aos casos estudados por Saether, Serulnikov e Chopra. Ou seja, é significativo que Kraay não encontre no Brasil as bases institucionais que explicam o realismo indígena nos Andes ou o realismo quilombola no Atlântico britânico. No entanto, as evidências sugerem que o monarquismo constituiu uma opção para os afro-brasileiros expressarem suas demandas políticas. Curiosamente, também, Kraay faz uma abordagem diferente para Serulnikov quando diz que “a compreensão popular da monarquia brasileira … vai além do pragmatismo”. Mostra, aliás, que mais do que subsumir aos interesses das elites monarquistas, no Brasil setores populares “de várias cores” se mobilizaram de forma autônoma. O estudo de Kraay acrescenta outro elemento fascinante a este dossiê: o imaginário popular sobre a monarquia que além de se expressar em rituais cívicos tinha ligações com as eleições de rainhas e reis negros nas irmandades afro-brasileiras. Essas práticas e as relações sociais que elas personificaram e recriaram também estavam ligadas ao catolicismo congolês (Kiddy, 2002 ; Thornton, 1993 ). É importante, também, que no estudo de Kraay vemos um assunto que é igualmente relevante para os outros casos apresentados por todos os autores – especialmente Sarlin – a tensão entre a mobilização autônoma dos grupos populares e o medo das elites de que eles pudessem se expandir em manifestações mais potentes. de poder popular que poderia ser incontrolável e ameaçador. Em outras palavras, o estudo de caso de Kraay enfatiza até que ponto, além de ser um objetivo implícito ou explícito dos monarquistas populares, a autonomia estava em jogo e, com o empoderamento, em muitos casos ela se tornou uma conquista.
Uma visão sintética do trabalho dos autores deste dossiê produz pelo menos quatro conclusões sobre o estado atual do debate. Em primeiro lugar, os estudos continuam a fornecer evidências irrefutáveis sobre a importância da política popular, e especificamente do monarquismo popular, no mundo atlântico durante a Era das Revoluções. Mas eles mostram mais importante que não é suficiente inserir os monarquistas na narrativa da revolução ou independência; esse é apenas o primeiro passo. Na verdade, como já foi mencionado, geralmente há um espaço claro e uma representação dos monarquistas nas narrativas tradicionais que os enquadram como obstáculos anormais, pré-políticos ou reais à modernização. Abordar o “problema” do monarquismo popular requer uma abordagem que busque sua explicação como um tema histórico e, tratado desta forma, é uma lente que transforma a história da revolução e do mundo atlântico. Em segundo lugar, o ponto de partida de todos os artigos do dossiê é que a associação entre adesão à monarquia e contra-revolução – entendida como inerentemente conservadora – precisa ser questionada. Como resposta, esses estudiosos ilustram por que também é relevante reconstruir a compreensão dos monarquistas populares sobre a monarquia ao lado do estudo de seus interesses específicos. Ao mesmo tempo, eles destacam a natureza estratégica da política popular monárquica, especialmente porque ela respondeu ao conflito visível entre as elites. Em outras palavras, eles analisam o monarquismo popular em relação a oportunidades e recompensas. Terceiro, em todos os casos, os autores veem impulsos e consequências radicais – em vez de raciocínio ingênuo e retrógrado.
Em quarto e último lugar, a partir desses diferentes casos e abordagens, podemos ver que um tema tão variado é um ponto de vista particularmente criativo a partir do qual refletir não apenas sobre a especificidade da lealdade popular à monarquia, mas também sobre temas mais amplos, como política popular, revolução e contra-revolução, alianças verticais, religião, colonialismo e história atlântica. A contribuição mais rica deste dossiê é justamente colocar esses artigos lado a lado e, ao fazê-lo, ilustrar por que sob a categoria do realismo reside uma multiplicidade de fenômenos históricos. Na verdade, ao mesmo tempo que o monarquismo popular precisa ser definido para além das categorias maniqueístas, como tradicional / moderno ou liberal / conservador, ele também deve ser explorado em sua multiplicidade social. Os atores sociais que estão englobados no termopopulares são tudo menos homogêneos. As particularidades que os separam principalmente em relação às diferentes localidades, África, América e Europa, são uma dimensão dessa diversidade. O outro associado a ele – especialmente em ambientes coloniais – é a raça, que também permeia as características definidoras de interesses particulares que estão por trás do realismo popular. O dossiê está expandindo os limites do campo, explorando essas complexidades e exibindo a análise do monarquismo em várias camadas: conceitual, geográfica, social e política. Uma mudança de perspectiva que é bem-vinda e que certamente produzirá muitos estudos e percepções mais valiosos.
Notas
- A conferência ocorreu de 28 a 29 de outubro de 2016 na Universidade de Yale, financiada pela STARACO, Université de Nantes, Fundo Kempf do Centro MacMillan de Yale e Departamento de História de Yale. Desejo reiterar a atualidade deste dossiê como reflexo da situação de um campo em franca expansão. Prova desse dinamismo é outra conferência recente da qual participei em outubro deste ano (2018) na Universidade del País Vasco em Vitória (Espanha). Esta experiência merece um comentário porque me revelou a existência de uma comunidade profunda e coesa de estudiosos dedicados ao estudo do realismo popular no contexto europeu. As apresentações ilustraram a importância que a história do monarquismo teve e ainda tem para as tradições historiográficas nacionais da França, Espanha e Portugal. Essas histórias são baseadas em experiências que começaram com a Revolução Francesa, se expandiram para a Península Ibérica em 1808 e ganharam novos significados durante a ascensão contenciosa do liberalismo nas décadas de 1830 e 1840. Um tema indubitavelmente significativo do ponto de vista europeu pode ser transformado produtivamente e desvinculado do quadro nacionalista, uma vez que é colocado em conversação comparativa com as histórias do monarquismo popular nas Américas, como vemos neste dossiê.
- O capítulo de Andrea Lisly neste dossiê ilustra essa compreensão complexa das monarquias atlânticas e do liberalismo.
- Uma exceção é CARRERA DAMAS, 1972.
- Straka não se refere à história do liberalismo no império espanhol e na Venezuela, nem durante a crise monárquica (a constituição de Cádiz) nem durante o Triênio Liberal(1820-1823), mas ele olha para o período de formação republicana e pergunta por quê os setores populares monarquistas durante a guerra da independência se voltaram para o liberalismo como uma ideologia que representava seus interesses.
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ECHEVERRI, Marcela. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.35, n.67, jan. / abr., 2019. Acessar publicação original [DR]
Imprensa e mediadores culturais: ciência, história e literatura / Varia História / 2018
Este dossiê é resultado do trabalho de um grupo de pesquisadores que tem se abrigado sob um título amplo o suficiente, mas também claro o suficiente, para o recorte de seu objeto: “Imprensa e mediadores culturais: ciência, história e literatura”. Composto basicamente por historiadores que trabalham com história da imprensa, história da historiografia, história dos intelectuais, história do livro e da leitura e história das ciências, o grupo é também integrado por estudiosos da literatura e das ciências sociais.
Há alguns anos, membros do grupo vêm se debruçando sobre uma questão chave da área de investigações denominada história dos intelectuais, em cuja abordagem os intelectuais estão sempre imersos em redes de sociabilidade que os situam, inspiram, demarcam e deslocam através do tempo / espaço. Uma das contribuições importantes dessa abordagem é a maneira como se define (ainda que de forma fluida) a figura do intelectual. Entendido como um sujeito histórico que se envolve na produção cultural de bens simbólicos, sendo reconhecido por sua comunidade de pares, o intelectual, em uma acepção mais ampla, também é aquele que se volta para práticas culturais de difusão e transmissão, ou seja, que faz “circular” os produtos culturais em grupos sociais mais amplos e não especializados, razão pela qual pode ser identificado, entre outras possibilidades, como vulgarizador ou divulgador. As dificuldades, mas também as potencialidades de se investir em pesquisas para explorar a categoria de intelectuais e de intelectuais mediadores fizeram com que a maioria dos autores desse dossiê tenha participado do projeto de um livro, intitulado, Intelectuais mediadores: práticas culturais e projetos políticos, organizado por Angela de Castro Gomes e Patrícia Hansen.[1]
A possibilidade do grupo – naturalmente reconfigurado, mas sempre aberto – continuar e avançar na investigação sobre a questão das práticas culturais de mediação e dos perfis dos intelectuais mediadores se renovou e ganhou força com o convite para participar de um projeto maior, “Imprensa e circulação de ideias: o papel dos periódicos nos séculos XIX e XX”, coordenado por Isabel Lustosa (FCRB) e Tânia de Luca (UNESP / Assis). Ora, o objetivo principal deste projeto era justamente aproximar pesquisadores que se dedicassem ao estudo da imprensa brasileira – jornais, revistas e almanaques – neste período de tempo, seja em âmbito local ou nacional, sem desconhecer sua necessária inserção no contexto internacional.
Como uma das orientações de nosso grupo era trabalhar teoricamente com uma gama de sujeitos históricos que atuava fortemente na imprensa escrita – embora não exclusivamente – realizando nela suas ações de mediação cultural no campo científico, artístico e político, integrar uma grande rede voltada para o estudo da imprensa adequava-se perfeitamente aos nossos objetivos. Isso significava aproximar esses intelectuais mediadores das atividades jornalísticas (inclusive, porque muitas vezes eles eram jornalistas), mas também demarcar o tipo de atuação que tinham na imprensa, pois, o que desejamos destacar é a atenção que davam a práticas culturais explicitamente voltadas à divulgação de ideias e conhecimentos para públicos variados. Até porque, para se trabalhar com o papel dos periódicos faz-se necessário um conjunto de atores entendido como muito diferenciado, já que se envolve diretamente tanto na feitura material dos impressos como na produção das ideias que eles propagam, o que exige uma grande preocupação com estratégias de promoção de seus títulos e de atração de públicos, segmentados ou não. Daí a importância da ação de editores, livreiros, escritores, jornalistas, tradutores, ilustradores, críticos literários e teatrais etc, muitos deles, embora não todos eles, podendo ser considerados intelectuais dedicados e até mesmo especializados em práticas de mediação cultural.
Se o interesse de fundo do projeto “Imprensa e circulação de ideias: o papel dos periódicos nos séculos XIX e XX” é detectar e acompanhar a circulação dos títulos, formatos, propostas gráficas, organização do material textual e imagético, e também dos conteúdos publicados; o objetivo específico do subprojeto “Imprensa e mediadores culturais: ciência, história e literatura” é trabalhar com a relação entre imprensa e intelectuais que estejam se dedicando à mediação cultural, situando, nessa dinâmica, o teor extremamente diversificado de seus temas, bem como as múltiplas formas assumidas por suas práticas (direta ou indiretamente ligadas aos periódicos), sempre entendidas em dupla dimensão: política e cultural.
Nesse sentido, a opção teórica realizada pelos artigos que compõem este dossiê é tratar esses intelectuais que estão atuando como mediadores culturais na imprensa, como sujeitos orientados por projetos individuais e coletivos que possuem dimensões políticas e socioculturais, e que sempre estão imersos em redes de sociabilidade diversas, fundamentais para a conformação de seu perfil de intelectual. Sendo assim, a figura dos mediadores culturais e suas formas de ação na imprensa se tornam o foco principal das reflexões dos pesquisadores que colaboram para o dossiê, aliando-se ainda ao enfrentamento de outra questão.
Nas pesquisas históricas recentes que contemplam a relação entre imprensa e mediadores culturais, destacam-se aquelas que apontam a centralidade dessa combinatória para se entender melhor os processos de fabricação e circulação de ideias, valores e conhecimentos no espaço e no tempo, na medida em que, por meio dela, é possível privilegiar seus múltiplos agentes e suas variadas formas de ação, que se beneficiam, crescentemente, do lugar estratégico do impresso no século XIX e XX. Dito de outra forma, o impresso funcionou, durante a maior parte desses séculos, como um vetor incontornável para qualquer projeto político-cultural de produção e divulgação de ideias e conhecimentos.
Por isso, a questão teórica da mediação cultural exige investigações que contemplem a imprensa escrita, lócus de debates e, sobretudo, da ação de divulgação para um público diversificado e não especializado. No caso deste dossiê, interessa atentar para processos e estratégias de divulgação que abarquem as artes (com ênfase para a literatura) e as ciências – quer as ciências da natureza quer as ciências sociais – com particular destaque para a história e, no caso do Brasil, para os chamados estudos brasileiros. Tal tratamento enfatiza a dimensão político-pedagógica dessas ações, ao menos para parte desses mediadores culturais que “militavam” na imprensa, acreditando na possibilidade e viabilidade de permitir a um público mais amplo acesso ao conhecimento científico e artístico, quando estampado de maneira acessível nas páginas dos periódicos. Uma proposta que guardava relações com uma “concepção democrática de ciência” então vigente. Isto é, da defesa do conhecimento “para todos” e / ou para públicos geralmente menos contemplados, como os trabalhadores, as crianças e, no limite, o “povo” de uma nação que desejasse ser moderna.
Os textos reunidos no dossiê foram apresentados, entre outros, no workshop de mesmo nome do subprojeto, “Imprensa e mediadores culturais: ciência, história e literatura”. Ele foi realizado na Casa de Oswaldo Cruz / Fiocruz, em 30 de outubro de 2017. Assim como na proposta do evento, o dossiê busca explorar algumas possibilidades de análise de práticas de mediação cultural na imprensa, a partir de dois caminhos que, embora possam ser tratados separadamente, acabam se interpelando por muitas vias: o de uma história da divulgação científica; e o de uma história dos intelectuais aliada à história da historiografia. Em um primeiro plano, dá-se destaque aos mediadores das ciências da natureza e da ciência histórica em suas diferentes estratégias de divulgação, cuja legitimação ou “popularização” pela imprensa, impôs determinadas hierarquizações frente aos saberes – academicamente constituídos. Nesse sentido, Kaori Kodama apresenta um estudo de caso sobre o intelectual Louis Figuier – um dos vulgarizadores das ciências mais reconhecidos da segunda metade do século XIX – cujo nome circulou na imprensa brasileira até ao menos a primeira metade do século seguinte. Por meio da trajetória de Figuier, que fez de sua atividade um meio de vida e de carreira, o texto conduz a reflexões sobre uma das questões centrais sinalizadas na historiografia sobre divulgação científica: a dupla posição / identidade dos vulgarizadores desse período, que são vulgarizadores e também autoridades que falam em nome da ciência. Paralelamente, o artigo pretende mostrar como o público de Figuier se modificou ao longo das décadas de 1850 e 1870, conforme se dava a maior circulação de seus textos. Assim, busca-se apresentar alguns aspectos das relações entre as variações do público leitor e o estabelecimento de novas culturas científicas.
Por um ângulo um pouco diferente, mas também tratando da divulgação do conhecimento científico nas publicações brasileiras, ao longo do século XIX, o texto de Maria Rachel Fróes da Fonseca procura mapear jornais e revistas, apontando-os como significativos loci para a afirmação da ideia de uma “ciência para todos”. Nessa perspectiva, apresenta um conjunto de periódicos dedicado à “vulgarização das ciências” e à promoção da instrução, dirigido e redigido por intelectuais mediadores. Entre eles estão A semana: Jornal litterario, scientifico e noticioso; a Academia popular – Semanário de Instrucção e Recreio para o Povo; e a Sciencia para o povo. A ideia do valor central da ciência e da educação para o Brasil era difundida nas páginas de muitos destes periódicos. O artigo igualmente ressalta a importância do pensamento de Rui Barbosa em relação ao ensino da ciência e ao método, na época, considerado mais adequado para seu ensino: o das lições de coisas.
Uma atenção particular é dada ao próprio suporte ou veículo através do qual alguns mediadores criaram seus bens culturais e se consagraram diante de seus públicos. Os vulgarizadores das ciências (como eram chamados) atuaram na imprensa das últimas décadas do século XIX e certamente se inseriram e se beneficiaram de uma conjuntura de crescimento da leitura. Alguns jornais e revistas chegaram a ter uma seção de ciências em suas páginas, e outros passaram a se dedicar exclusivamente a esses assuntos, adotando uma linguagem mais compreensível para a população em geral, o que também ocorria com a publicação de livros. Pode-se dizer, portanto, que no momento em que se ampliava o acesso aos impressos e se discutia, nos países ocidentais, a “educação popular”, os mediadores tornavam-se, eles mesmos, produtores de novas modalidades de bens culturais dentro da mídia impressa e, também, autores de um novo tipo, produzidos por esse mesmo suporte. Assim, transfiguravam-se em intelectuais altamente reconhecidos por seu público, bem como por aqueles que realizavam a crítica de seus textos na imprensa, valorizando-os ainda mais.
Porém, as características da consagração de um intelectual mediador quer pelo público, quer pela crítica – o que, em certo sentido, pode ser avaliado por sua capacidade de “popularizar” um determinado saber – podem ser encontradas também na primeira metade do século XX, como no artigo de Angela de Castro Gomes, que trabalha com o texto e a recepção da peça, A Marquesa de Santos, de Viriato Corrêa, estreada em 1938. Nesse caso, o teatro histórico, enquanto texto e encenação, é que ganha destaque, estimulado pelo Estado Novo, então promovendo a nacionalização do ensino e a valorização do conhecimento histórico, que devia ser divulgado a partir de novas e variadas mídias. A Marquesa de Santos foi uma entre diversas produções de teatro histórico desse período a fazer muito sucesso. A numerosa e, em geral, elogiosa crítica publicada na imprensa permite tanto uma aproximação do espetáculo como a realização de reflexões sobre: o tipo de cultura histórica que estava então sendo construída e difundida; o tipo de batalhas de memória que eram travadas, quando um projeto nacionalista de Estado precisava “negociar” com eventos e heróis já conhecidos e consagrados; e o tipo de diálogo que se estabelecia entre uma escrita da história científica e uma escrita da história de teor cívico-patriótico, dirigida a um grande público, diálogo que, nesse caso, beneficiava-se do vetor das artes cênicas. Ambas, na verdade, em processo de construção e afirmação e, portanto, de discussão, dentro e fora das instituições acadêmicas.
Com o artigo de Angela de Castro Gomes, o dossiê começa a enveredar pelo segundo caminho nele contemplado, a saber, o que lida mais de perto com o enfoque dos estudos brasileiros e da história da historiografia. Se um dos interesses deste dossiê é o de situar a própria imprensa como objeto de análise, vislumbrando nela as possibilidades e significados da atuação dos mediadores culturais, é fundamental atentar para tudo que a estrutura e organiza materialmente, tal como os suplementos, as seções, os anúncios, as colunas, as fotografias, as manchetes, os encartes etc. Assim, Robertha Triches, volta-se para a coluna – “Terras de Nossa Terra” – do jornal, A Voz de Portugal, um entre os muitos periódicos da imprensa étnica que circulava pelo Brasil em meados do século XX. Mostra também como essa forma de imprensa se relacionava com o desenvolvimento de outras mídias populares à época, em particular, os programas de rádio. O jornalista e escritor encarregado da coluna era José Correia Varella, um imigrante português que por décadas se dedicou às mais diversas atividades culturais, tendo uma vasta rede de sociabilidade tanto entre a intelectualidade carioca como entre a vasta colônia portuguesa do Rio de Janeiro. Nesta coluna, ele se dedicou especialmente às históricas relações políticas e culturais entre Brasil e Portugal, celebrando a figura de Salazar e se transformando em um agente de propaganda do Estado Novo português no Brasil.
Por fim, Robert Wegner e Giselle Venancio elaboram uma instigante análise sobre o gênero do ensaio, a partir de uma série de artigos publicados no Suplemento Literário doDiário de Notícias, entre 1948 e 1950, com especial atenção para os escritos por dois intelectuais reconhecidos e festejados no momento em que escrevem: Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre. Os debates sobre esse gênero de escrita histórica, travados entre eles, nas páginas do jornal (portanto, lidos por um público não acadêmico), abrem uma janela para um período muito especial: o da implementação das pesquisas históricas em instituições universitárias no país. Um período de mudanças e deslocamentos, com as decorrentes redefinições dos lugares do intelectual acadêmico-universitário e, por conseguinte, do erudito que estava “fora” dessa nova rede de sociabilidade, distinta das associações de pares até então dominantes, a exemplo dos institutos históricos e geográficos.
As diversas caixas de diálogo abertas neste dossiê esperam por contribuições e esforços, individuais ou coletivos, para que melhor possamos compreender o complexo perfil do intelectual que se delineia, quando consideramos que diversificadas práticas de mediação cultural são igualmente parte constitutiva de sua identidade. Algo que, como fica aqui demonstrado, não é tão novo, mas que se torna urgente e quase incontornável no mundo mediatizado em que vivemos no século XXI. Que a leitura do dossiê seja um convite estimulante e convincente.
Nota
1.. GOMES; HANSEN, 2016. O livro recebeu o Prêmio Sérgio Buarque de Holanda, na categoria Ensaio Social, atribuído pela Biblioteca Nacional em 2017.
Referência
GOMES, Angela de Castro e HANSEN, Patrícia. Intelectuais mediadores: práticas culturais e projetos políticos. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2016. [ Links ]
Angela Maria de Castro Gomes – Programa de Pós-Graduação em História Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: angelamariadecastrogomes@gmail.com
Kaori Kodama – Casa de Oswaldo Cruz Fundação Oswaldo Cruz. E-mail: kaori.flexor@gmail.com http: / / orcid.org / 0000-0002-5327-2689
Maria Rachel Fróes da Fonseca – Casa de Oswaldo Cruz Fundação Oswaldo Cruz. E-mail: rachel.froes@fiocruz.br http: / / orcid.org / 0000-0003-0865-2436
GOMES, Angela Maria de Castro; KODAMA, Kaori; FONSECA, Maria Rachel Fróes da. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.34, n.66, set. / dez., 2018. Acessar publicação original [DR]
Historicizando a Grande Aceleração do Brasil / Varia História / 2018
Na segunda metade do século XX, o uso global de recursos, a transformação da paisagem e as emissões de gases de efeito estufa adquiriram dimensões sem precedentes – o mundo experimentou uma “Grande Aceleração”. Esse processo foi particularmente espetacular em algumas regiões de rápida industrialização do Sul Global. Na história ambiental global e nas geociências, a Grande Aceleração se tornou uma noção comum para delinear um período particular – se não o início – do Antropoceno, a era em que os humanos se tornaram agentes geológicos ( McNeill; Engelke, 2014 ; Steffen et al ., 2015 ). Esta edição especial da Varia Historiaanalisa como a sociedade brasileira contribuiu e enfrentou as consequências da Grande Aceleração como um fenômeno global. Esperamos fornecer sugestões úteis sobre como escrever a história da Grande Aceleração com foco em barragens hidrelétricas, técnicas agrícolas, consumo de petróleo, ciência e valorização econômica, infraestrutura de transporte e percepção da paisagem. A expansão da infraestrutura de transporte e energia, bem como a introdução de novas tecnologias agrícolas e de mineração, têm estado no centro da política desenvolvimentista brasileira. Rodovias, barragens, refinarias, complexos industriais, locais de mineração gigantescos e até mesmo esquemas agrícolas planejados pelo estado eram formas de territorializar o poder do estado em associação com a expansão da economia capitalista. Ao desemaranhar alguns desses processos,
Escrever a história da Grande Aceleração exige que pesemos cuidadosamente as causalidades e consequências, sem recorrer a explicações teleológicas. Em seu The Great Acceleration , John McNeill e Peter Engelke (2014)colocam os “fatores de pressão” na base do processo da Grande Aceleração: a demanda por mais energia derivada do crescimento demográfico e econômico, bem como da guerra. Na verdade, migração, urbanização, conflitos de recursos, todos parecem derivados do crescimento da população global. No entanto, a principal descoberta desta edição especial é que os “fatores de atração” foram pelo menos tão decisivos no desencadeamento da Grande Aceleração. Com isso, queremos dizer tecnologia disponível, discursos científicos, ideologias e políticas de modernização, bem como a percepção estética das paisagens. Por um lado, as mercadorias da Grande Aceleração precisavam de “rotas de poder” para serem extraídas, produzidas, canalizadas e distribuídas aos consumidores ( Jones, 2014) Novos sistemas de transporte, disponibilidade de capital, técnicas de “beneficiamento” do solo, maquinários industriais, redes de energia e modernos equipamentos domésticos contribuíram para a criação de padrões, expectativas e necessidades que impulsionaram a aceleração do consumo e da produção. Por outro lado, a Grande Aceleração também emergiu de novos saberes e ideologias que constituíram uma “cultura antropocena” ( Pádua, 2017) Triunfalismo científico, discursos de modernização e representações do espaço (a “Marcha para o Oeste” em direção ao Cerrado nos anos 1940 ou a “terra sem gente para gente sem terra” que acompanhou a colonização do vale do Amazonas) foram catalisadores dessa cultura. Eles não apenas incentivaram os brasileiros a acelerar a exploração da natureza, mas também sinalizaram a disponibilidade do Brasil como fornecedor de matéria-prima para os mercados globais.
Defendemos uma abordagem que combine dimensões estruturais com uma perspectiva decididamente praxeológica, reconhecendo a agência de pessoas inseridas em constelações de poder e configurações institucionais. O que é particularmente importante para nós é a questão de como tecnologia, discurso e prática se entrelaçam para produzir novas demandas materiais e novas significações culturais da natureza. Uma maneira específica de falar e pensar sobre a natureza e a abundância material induziu a uma noção de abundância e disponibilidade? A transição de um discurso de escassez para um discurso de abundância é a chave para entender o salto para a Grande Aceleração? Que efeito a mudança tecnológica teve nesses discursos? O que o psicólogo social Harald Welzer (2011)apropriadamente denominado “infraestruturas mentais”, uma apropriação cognitiva do mundo, que toma a disponibilidade ilimitada e tecnologicamente mediada da natureza como certa, nos lembra que a Grande Aceleração pertence à história das mentalidades tanto quanto à história econômica ou à história de tecnologia. Em consonância com essa perspectiva, Thomas Mougey mostra em sua contribuição a esta edição especial que o engajamento científico com o vale do Amazonas precedeu o aumento global da demanda por commodities da floresta tropical na elaboração de grandes planos para o desenvolvimento econômico da região. Em seu artigo, Claiton da Silva defende que o conhecimento científico sobre fertilização e aclimatação das lavouras de soja foi o fator decisivo para o desencadeamento da Grande Aceleração no Cerrado.
Essas contribuições também destacam o papel desempenhado pelos contextos locais na construção de modelos antropocênicos, mostrando boas razões para descer das alturas em que operou a bolsa existente sobre a Grande Aceleração. A pegada humana no planeta não é homogênea, mas diferenciada. Como McNeill e Engelke reconhecem, um habitante do Reino Unido no século XX produziu mais emissões de carbono do que um de Cabul, e um habitante de Cabul provavelmente contribuiu mais para a poluição do que alguém de uma remota aldeia afegã. Isso é ainda mais verdadeiro para o Brasil, às vezes ironicamente rebatizado de “Belíndia” (Bélgica / Índia) ou “Dinamália” (Dinamarca / Somália) para enfatizar as diferenças nos níveis de desenvolvimento dentro do país. O desnível das paisagens socioambientais do Brasil quanto ao seu posicionamento na história da Grande Aceleração exige uma nova agenda de pesquisa, que deve consistir, por fim, em incluir os continentes latino-americano, africano e asiático na narrativa antropocênica. Enquanto o chamado mundo industrializado (principalmente América do Norte, Europa e Japão) ocupou uma posição central nas estruturas explicativas do Antropoceno, os territórios anteriormente colonizados permaneceram uma parte periférica da história. Devemos presumir que eles foram meros fornecedores de matéria-prima para a economia global ou, na melhor das hipóteses, reprodutores tardios dos padrões antropocênicos de seus ex-colonizadores? A Grande Aceleração do Brasil aponta para uma história muito mais complexa. que deveria consistir em incluir, por fim, os continentes latino-americano, africano e asiático na narrativa antropocênica. Enquanto o chamado mundo industrializado (principalmente América do Norte, Europa e Japão) ocupou uma posição central nas estruturas explicativas do Antropoceno, os territórios anteriormente colonizados permaneceram uma parte periférica da história. Devemos presumir que eles foram meros fornecedores de matéria-prima para a economia global ou, na melhor das hipóteses, reprodutores tardios dos padrões antropocênicos de seus ex-colonizadores? A Grande Aceleração do Brasil sugere uma história muito mais complexa. que deveria consistir em incluir, por fim, os continentes latino-americano, africano e asiático na narrativa antropocênica. Enquanto o chamado mundo industrializado (principalmente América do Norte, Europa e Japão) ocupou uma posição central nas estruturas explicativas do Antropoceno, os territórios anteriormente colonizados permaneceram uma parte periférica da história. Devemos presumir que eles foram meros fornecedores de matéria-prima para a economia global ou, na melhor das hipóteses, reprodutores tardios dos padrões antropocênicos de seus ex-colonizadores? A Grande Aceleração do Brasil sugere uma história muito mais complexa. territórios anteriormente colonizados permaneceram uma parte periférica da história. Devemos presumir que eles foram meros fornecedores de matéria-prima para a economia global ou, na melhor das hipóteses, reprodutores tardios dos padrões antropocênicos de seus ex-colonizadores? A Grande Aceleração do Brasil sugere uma história muito mais complexa. territórios anteriormente colonizados permaneceram uma parte periférica da história. Devemos presumir que eles foram meros fornecedores de matéria-prima para a economia global ou, na melhor das hipóteses, reprodutores tardios dos padrões antropocênicos de seus ex-colonizadores? A Grande Aceleração do Brasil sugere uma história muito mais complexa.
O Brasil, junto com países de outras regiões do mundo, ocupa uma posição peculiar e de dois gumes no Antropoceno. Por um lado, como grande fornecedor de recursos naturais, ocupa uma posição econômica periférica. Forneceu uma parcela significativa da base material da Grande Aceleração global, mas valor foi agregado em outro lugar. Suas commodities contribuíram para o desenvolvimento industrial pós-guerra de países como Japão e Alemanha Ocidental e, conseqüentemente, para o surgimento da cultura hiperconsumista, automobilística e intensiva em carbono de nossos tempos. O setor agrário do Brasil está sujeito às pressões do mercado global, alimentando a devastação das florestas tropicais e promovendo a destruição dos meios de subsistência de povos que tradicionalmente dependem de uma pegada ecológica mínima. O mesmo vale para o Nordeste,
Por outro lado, as classes alta e média (até recentemente em rápido crescimento) brasileiras têm caminhado rapidamente em direção aos padrões de consumo dos EUA. O Brasil, com suas indústrias estatais e agências de P&D, também desempenhou um papel ativo no co-desenvolvimento de tecnologias que são essenciais para a destruição ambiental em grande escala. As indústrias brasileiras de biocombustíveis e aeronáutica são exemplos disso, assim como a contribuição do Brasil para o “hard oil”, conjunto de tecnologias de alto risco utilizadas para atingir as últimas reservas mundiais de petróleo devido ao esgotamento dos poços convencionais ( LeMenager, 2014) A estatal petroleira Petrobras é considerada líder mundial em tecnologias de perfuração offshore desenvolvidas para a província do pré-sal, que, ocultadas pela opacidade do mar profundo, têm impactos devastadores sobre a fauna marinha. Os avisos dos cientistas do clima de que, para manter o aumento da temperatura global dentro de limites administráveis, a humanidade não pode se dar ao luxo de queimar as fontes fósseis de energia conhecidas, são ignorados por quase todos os campos políticos no Brasil. O recente abrandamento das regras sobre a participação estrangeira no “Pré-Sal” provavelmente acelerará ainda mais a exploração de petróleo em águas profundas com menos controle estatal. Além disso, o movimento da Petrobras em direção a campos de petróleo estrangeiros a partir da década de 1970 criou novos contextos pós-coloniais nos quais o país se encontra em uma posição historicamente reversa. Na África,
Considerando que a Grande Aceleração foi proposta como uma peça no quebra-cabeça de encontrar uma periodização para o Antropoceno, a identificação de seus inícios, fins, continuidades e rupturas apresenta alguns desafios interessantes por si só, como mostra este número. Como argumenta Claiton da Silva, no caso da soja, a Grande Aceleração foi exponencial e tendeu a crescer cada vez mais rápido nas últimas décadas do século XX. Aqui a noção de uma “ruptura” induzida pela mudança tecnocientífica parece adequada. No entanto, outras contribuições demonstram que o aparato técnico-político que permitiu a Grande Aceleração em outros campos começou a ser montado mais cedo. A hidreletricidade passou a ser vista como o futuro energético do Brasil já no século XIX, como Nathalia Capellini enfatiza nesta edição. Em cada caso,
Essas dinâmicas não representam resultados necessários dos processos de modernização ou dos desdobramentos mecanicistas das relações socioambientais capitalistas. A história da exploração e do desperdício da natureza é uma história de agência, negociação e conflito. Existe uma agenda política da Grande Aceleração, que não coincide com a transformação material, mas muitas vezes a precede ou acompanha. Indiscutivelmente, o período de governo de Getúlio Vargas (1930-1945 e 1951-1954) viu uma “aceleração política”: A expansão do governo central e os procedimentos de planejamento institucionalizados foram instrumentais para a realização de projetos de infraestrutura de grande escala, maior envolvimento da ciência na políticas governamentais e econômicas privilegiando a indústria e a agricultura mecanizada. No entanto, o desenvolvimentismo de Vargas não surgiu do vácuo.
Para o período pós-Segunda Guerra Mundial, que está no centro desta questão, diversos momentos foram particularmente significativos para a Grande Aceleração do Brasil. No plano simbólico, a presidência de Kubitschek se destaca: ele proclamou a “aceleração” como seu principal projeto político ao prometer “50 anos [de progresso] em cinco”. Uma personificação dessa agenda é, obviamente, Brasília, um projeto impressionante de desenvolvimento urbano acelerado. Da mesma forma, o regime militar usou a iconicidade das usinas de energia, infraestrutura de transporte e maquinário agrícola para se rotular como moderno. Na ausência de liberdades democráticas e igualdade social, o “crescimento” tornou-se o principal recurso de legitimação do regime. Posteriormente, os governos do PT embutiram seus ideais de redistribuição social em discursos de crescimento e progresso que giram em torno de coisas aceleradas, como pode ser visto. por exemplo, no “Programa de Aceleração do Crescimento”. No entanto, não devemos assumir uma linha de transmissão direta entre o discurso político e a materialização acelerada da infraestrutura. Na verdade, a construção da infraestrutura pode ser extremamente lenta, e ir do planejamento à construção pode levar décadas. Com isso, grandes sistemas tecnológicos poderiam adquirir novas funções econômicas, como argumenta Georg Fischer, nesta edição, a respeito da Estrada de Ferro Vitória a Minas, ou novos sentidos políticos, como no caso da hidrelétrica de Belo Monte, relíquia do planejamento. o regime militar. a construção de infraestrutura pode ser extremamente lenta, e a etapa do planejamento à construção pode levar décadas. Com isso, grandes sistemas tecnológicos poderiam adquirir novas funções econômicas, como argumenta Georg Fischer, nesta edição, a respeito da Estrada de Ferro Vitória a Minas, ou novos sentidos políticos, como no caso da hidrelétrica de Belo Monte, relíquia do planejamento. o regime militar. a construção de infraestrutura pode ser extremamente lenta, e a passagem do planejamento à construção pode levar décadas. Com isso, grandes sistemas tecnológicos poderiam adquirir novas funções econômicas, como argumenta Georg Fischer, nesta edição, a respeito da Estrada de Ferro Vitória a Minas, ou novos sentidos políticos, como no caso da hidrelétrica de Belo Monte, relíquia do planejamento. o regime militar.
A história da Grande Aceleração deve levar em consideração as conjunturas de produção de conhecimento e as mudanças nas relações natureza-sociedade em geral. As ideias sobre a gestão dos recursos naturais mudaram ao longo do tempo. Um caso em questão são os agroquímicos, cujos efeitos nos ecossistemas eram considerados positivos até a década de 1970: eles fariam a natureza “mais sólida” ao reforçar o húmus, enquanto para muitos conservacionistas e cientistas o verdadeiro “inimigo da natureza” era o caboclo praticante de pequena escala. corte e queima, destruindo manchas de floresta e promovendo a erosão do solo. Da mesma forma, petróleo, rodovias e automóveis foram bem-vindos como uma alternativa “limpa” à lenha, ferrovias e trens, que governos e cientistas brasileiros consideraram perigosos agentes do desmatamento.
O que é necessário para os humanos perceberem os danos que causam à Terra, ou pelo menos ao ecossistema em que vivem? Demora até que uma população humana tenha exaurido seu sustento a ponto de ameaçar sua própria existência, como escreve o historiador ambiental Donald Worster à luz de exemplos passados de “surpresas ecológicas” que afetaram gravemente os caçadores do Pleistoceno e os antigos mesopotâmicos ( Worster, 1994)? Na verdade, o problema histórico que está por trás do conceito da Grande Aceleração é precisamente que os humanos do século XX foram incapazes de identificar o ponto de inflexão após o qual sua intervenção nos ecossistemas se tornou uma força planetária desencadeando catástrofes ambientais irreversíveis. O Brasil é um bom exemplo para refletir sobre essa mudança de escala devido à espantosa rapidez com que deu as costas às formas tradicionais de extrativismo para abraçar a produção e o consumo antropocênicos. Os artigos da presente edição examinam processos de transições de energia, mudança no uso da terra e industrialização, cuja compreensão ajuda a situar a Grande Aceleração em uma perspectiva de longo prazo e identificar mudanças cruciais em direção a mudanças ambientais irreversíveis. Embora essa abordagem possa parecer pessimista, não esquecemos a forte tradição de resistência socioambiental do Brasil, que é viva hoje, apesar de um clima político muito difícil. Na verdade, ainda há muito a preservar: o Brasil abriga até 20% do estoque global de biodiversidade, cerca de 30% das florestas tropicais do mundo e 12% de sua água doce (Pádua, 2017 ). Povos indígenas, ribeirinhos, seringueiros, quilombolas, sem-terras e outros grupos têm ressignificado as formas tradicionais de extrativismo e agricultura como soluções locais para um futuro solidário e sustentável. Essas soluções devem fazer parte do esforço global para evitar uma nova mudança de escala na Grande Aceleração. Ao tentar entender por que os humanos não conseguiram detectar o momento em que a exploração da natureza começou a se transformar em superexploração, ameaçando seu próprio sustento, esperamos contribuir com outra parte desse esforço.
Referências
JONES, Christopher F. Rotas de Energia: Energia e América Moderna. Cambridge, Mass.; Londres: Cambridge University Press, 2014. [ Links ]
LEMENAGER, Stephanie. Living Oil: Petroleum Culture in the American Century. Nova York: Oxford University Press, 2014. [ Links ]
MCNEILL, John R .; ENGELKE, Peter. A Grande Aceleração: uma História Ambiental do Antropoceno desde 1945. Cambridge, Mass .: Belknap Press of Harvard University Press, 2014. [ Links ]
PÁDUA, José Augusto. O Brasil na História do Antropoceno. In: ISSBERNER, Liz-Rejane; LÉNA, Philippe (Org.). O Brasil no Antropoceno: Conflitos entre Desenvolvimento Predatório e Políticas Ambientais. Londres; Nova York: Routledge, 2017. p.19-40. [ Links ]
STEFFEN, Will, et al. A Trajetória do Antropoceno: a Grande Aceleração. The Anthropocene Review, vol. 2, n. 1, p.81-98, 2015. [ Links ]
WELZER, Harald. Infraestruturas mentais: como o crescimento entrou no mundo e em nossas almas. Berlim: Fundação Heinrich Böll, 2011. [ Links ]
WORSTER, Donald. The Wealth of Nature: Environmental History and the Ecological Imagination New York; Oxford: Oxford University Press, 1994. [ Links ]
Antoine Acker – Departamento de História da Universidade de Zurique. E-mail: antoine.acker@hist.uzh.ch http: / / orcid.org / 0000-0002-2698-359X
Georg Fischer – Departamento de Estudos Globais, Universidade de Aarhus, Dinamarca. E-mail: fischer@cas.au.dk http: / / orcid.org / 0000-0003-4791-5884
ACKER, Antoine; FISCHER, Georg. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.34, n.65, mai. / ago., 2018. Acessar publicação original [DR]
A Terra e os homens sob fogo / Varia História / 2017
Como revela o título deste dossiê, seu tema é o fogo, elemento constituinte do planeta Terra, recortando algumas de suas interações históricas com os homens. Os humanos constituem a única espécie animal que aprendeu a controlar o fogo. Em primeiro lugar, os homens o empregam de maneira produtiva: o usam para transformar plantas e animais em comida, minerais em moedas, artefatos ou joias, e ainda para os aquecerem no inverno. Mas esse controle não é absoluto, pois o fogo é um serviçal rebelde e, frequentemente, escapa do seu controle. De maneira destrutiva, chamas podem queimar uma casa, uma cidade, uma grande floresta, ou ainda uma imensa planície. Mas ao longo do tempo, em diversas situações históricas, o fogo é que exerceu seu controle sobre seus pretensos senhores, quando, por diversos motivos, homens lançaram outros homens às chamas, frequentemente utilizando para isso de crueldade e da tortura. Os exemplos são inúmeros: nos atos de canibalismo, nas penas impostas pela Inquisição, nas armas lançadas em várias guerras. Mas a experiência humana, para melhor ou para pior, tem sido moldada pelo fogo. Este é o tema desse dossiê.
Habitante da terra muito antes dos homens, o fogo é um dos elementos centrais que compõe a própria Terra e, ao longo da história diversas teorias tentaram compreender sua constituição e seu papel na origem do nosso planeta. Mas foi a partir do século XVIII, que os homens da ciência, afastando-se cada vez mais da explicação bíblica, sem no entanto abandoná-la completamente, buscaram cada vez mais as causas naturais por trás dos eventos geológicos observáveis. Nesse contexto, discutiram intensamente como se deu o processo de formação da própria Terra e, entre outros temas, debateram como o fogo atuou para moldar a paisagem desde a criação. Terremotos e erupções vulcânicas tornaram-se temas privilegiados nessas discussões, alguns deles, como que sacudiu Lima, em 1746, ou o famoso terremoto de Lisboa de 1755, puderam ser vivenciados por esses homens e tornaram-se temas recorrentes do debate erudito então travado.
De um lado, se posicionaram os Netunistas, para quem a terra esteve coberta, inicialmente, por um oceano primordial, onde muito lentamente depositaram-se os sedimentos que formaram os continentes (a vantagem era esta situação que correspondia ao cenário bíblico); a eles se contraporiam os Plutonistas, que, se não descartavam a existência de um oceano primitivo, não consideravam que todas as rochas se formaram a partir de sedimentos em suspensão nesse líquido inicial. Levando em consideração o fogo, consideravam a importância da ação do calor oriundo do centro da terra na formação das rochas terrestres, muitas delas originárias das atividades vulcânicas. Por fim, os Catastrofistas, chamaram a atenção para a atuação de eventos geológicos depois do surgimento da Terra, os quais seriam responsáveis por alterações na paisagem. Para eles, a história do planeta estava marcada por cataclismas, como fraturas, terremotos, vulcões, que revolucionavam o planeta de tempos em tempos.
No que diz respeito às causas naturais desses eventos – terremotos e vulcões – os homens de ciência também não eram unânimes. No século XVIII, se dividiam entre os majoritários que os atribuíam à existência de um fogo subterrâneo, que se espalhava sob a superfície da Terra por meio de cavernas, sendo que, para eles, terremotos e erupções vulcânicas seriam fenômenos associados entre si; e os que defendiam que era a água subterrânea o elemento primordial por trás desses fenômenos geológicos, exercendo, de tempos em tempos, intensa pressão sobre a crosta terrestre.
Em 1755, um enorme cataclismo abalou a Europa: o Terremoto de Lisboa, ao qual se sucedeu um tsunami e um grande incêndio que devastaram a outrora fulgurante cidade, capital europeia de um gigantesco império que se estendia às 4 partes do globo. Como destaca Stephen Pyne, em seu artigo “Sacudir e assar: um comentário sobre terremotos e incêndios”, o grande terremoto de Lisboa foi um dos eventos icônicos na história da humanidade em que houve a interação entre terremotos e incêndios. Como em Lisboa, essa conjugação expõe os limites humanos no controle dessa força da natureza. O autor acentua que, no século XX, os terremotos foram substituídos pela guerra como estopim das chamas capazes de destruir cidades inteiras. Por fim salienta que, por mais que o homem tenha domesticado o fogo, ele continua a ser uma ameaça incontrolável às grandes cidades que se espraiam espacialmente em subúrbios, cada vez mais adentrando o ambiente florestal, suscetível às chamas. Esse tem sido uma ameaça recorrente, mesmo em países desenvolvidos, como se viu no impressionante incêndio que alastrou-se no verão europeu de 2017, pela região de Trás os Montes, em Portugal.
Na segunda metade do século XVIII, como nenhum outro evento geológico, o terremoto de Lisboa de 1755 concentrou a atenção da comunidade savant europeia. Para além da literatura e da poesia, estudos sobre o evento surgiram da pena de importantes homens de ciência, como Voltaire, Leibniz, John Michell, entre tantos outros. Esses trabalhos foram fundamentais para o aprofundamento do processo já em curso, sob bases Iluministas, de entendimento da natureza em bases cada vez mais racionais, explicada a partir de causas naturais. Entre eles, destaca-se o português Joaquim José Moreira, observador direto do terremoto que, na sequência do mesmo, escreveu a História Universal dos Terremotos, livro que é analisado no artigo de Jorge Ferreira e Maria Margareth Lopes, intitulado “O fogo é o agente, que causa tantas maravilhas: a América e as explosões subterrâneas na História Universal dos Terremotos de 1758″. Ao analisar esse texto, os autores chamam a atenção para o fato de que Moreira adere à teoria das causas naturais por trás dos terremotos, ainda que não se prenda a discutir as de natureza religiosa. Como se tornará hegemônico à época, analisa a sua origem a partir do fogo subterrâneo submetido à enorme pressão sob a crosta terrestre. Para ele, “o fogo subterrâneo podia deflagrar acidentalmente por fermentação ou combustão espontânea e actuar sobre o ar e a água em cavernas subterrâneas, produzindo dessa forma a força explosiva que causava os terramotos”.
Ana Simões, Ana Paula Carneiro e Maria Paula Diogo, em “Ciências da Terra e História na obra de Correia da Serra (1751-1823)”, analisam a confluência das teorias de História e de Ciências Naturais no pensamento do famoso naturalista português, o abade Correa da Serra. Revelam, a partir da análise de seus textos sobre a geologia portuguesa, que, ainda que não tenha formulado de forma clara, era um adepto da teoria Catastrofista. São efetivamente esses estudos de geologia, que realiza por meio de várias viagens de campo e publica em diferentes textos, que o levam a estabelecer um entrelaçamento e um paralelo entre o homem e a natureza, o que se revela em seus trabalhos de História de Portugal. Segundo as três autoras, de maneira singular e criativa, seu pensamento promove “uma historicização da natureza e uma naturalização da História”, pois defende que ambas são, de tempos em tempos, abaladas por eventos únicos e de grande impacto, com grande capacidade de transformação tanto da paisagem, quanto da história da humanidade.
Júnia Ferreira Furtado – Pós-Graduação em História Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: juniaf@gmail.com
FURTADO, Júnia Ferreira. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.33, n.63, set. / dez., 2017. Acessar publicação original [DR]
Representações, identidades e literatura na América Latina / Varia História / 2017
A presente edição da revista Varia Historia traz o dossiê “Representações, identidades e literatura na América Latina” com a finalidade de contribuir para o sistemático e profícuo debate sobre as interfaces entre a história e a literatura. O dossiê tem como objetivos apresentar um enfoque interdisciplinar, trazer perspectivas diferenciadas acerca do tema e colocar em destaque a percepção de que diferentes narrativas, história e literatura, podem ser construídas, quase sempre, nas fronteiras. Utiliza-se fronteira como um espaço privilegiado para estabelecer laços, trocas, intercâmbios e não como um dado rígido e intransponível. Aliás, a fronteira é também movediça e sofreu no passado diversos deslocamentos (Pomian, 2003). O diálogo do historiador com diferentes linguagens, como a narrativa literária, possibilita-o “sondar outros terrenos de linguagem, construídos em torno de outros fazeres interpretativos, de outras experiências narrativas” (Pinto, 2004).
As diferenças e semelhanças entre história e literatura já foram amplamente debatidas. Debate que privilegiou as discussões sobre os limites e as especificidades das narrativas historiográfica e ficcional. Embora partilhem de recursos literários comuns, história e a ficção possuem metas distintas, com diferentes resultados. O discurso ficcional põe a “verdade” entre parênteses, enquanto a história procura fixá-la como conhecimento sobre o passado, ou seja, prima pela busca da condição de veracidade. Luiz Costa Lima sustenta que ambas são modalidades discursivas que “mantêm circuitos dialógicos diferenciados com a realidade”. Além do mais, cada uma, história e literatura, “ocupa uma posição diferencial quanto à imaginação”. A imaginação “atua na escrita da história, mas não é o seu lastro. Porosa, a história não há de ser menos veraz. Mas veraz, ela não pode pretender, como as ciências da natureza, a formulação de leis porque não pode renunciar à parcialidade”. A ficção tem fronteiras muito mais fluidas que a história e não tem limites para a imaginação. Portanto, do ponto de vista dos seus respectivos princípios de organização, história e literatura são formações discursivas que guardam suas especificidades.
Mesmo sendo formações discursivas diferenciadas, a literatura se nutre da história e a história, da literatura. Desde a epopeia antiga, observa-se que a história tem servido frequentemente de inspiração para as mais diferentes formas de produção literária, do poema épico às canções de gesta, do romance medieval ao romance moderno. Outro exercício possível, que se relaciona com o que foi dito, é a inserção da obra literária no contexto histórico em que ela foi produzida. Há uma interação do texto ficcional com o contexto ao qual ele se insere, isto é, a uma determinada época em que foi produzido. Para Dominick LaCapra (1983), é fundamental privilegiar a leitura de um texto literário em relação a seu contexto, articulando a obra com a formação social e cultural de seu autor e o momento histórico em que ela foi produzida. Desse modo, a literatura pode ser também compreendida como a expressão ou sintoma de formas de pensar e agir dos homens em um certo momento da história. Para o autor, ao analisarmos os textos literários, é mister compreendermos que, quase sempre, eles propõem articulações gerais com os grandes problemas do momento e tendem a deslocar-se das questões parciais e específicas para as perspectivas globais, instalando-se na esfera pública e ali construindo sua interlocução.
A escrita da história está em constante movimento e se adaptando às “demandas” e transformações do seu tempo. A introdução de novos temas, novos objetos e o uso de novas fontes, permitiu aos historiadores a construção de novas metodologias de investigação histórica e novos métodos de produção do conhecimento. O alargamento do caráter interdisciplinar — ou a aproximação com outras áreas do saber — permitiu ao historiador aprimorar ainda mais a produção historiográfica. O texto literário passou a ser incorporado às pesquisas históricas como mais uma forma de acesso ao passado. O presente dossiê, nessa perspectiva, coloca em destaque o entrecruzamento de temas, ideias e fronteiras.
Na América Latina, a literatura esteve e está em constante diálogo com a história. No século XIX, foram intensas as conjunções entre política, literatura e cultura em textos ficcionais produzidos durante os intensos debates sobre a construção das identidades nacionais e os projetos de nação. No século XX, não foi diferente: as vanguardas, com seus manifestos e polêmicas; as revoluções mexicana e cubana que despertaram o apoio e a crítica de muitos escritores; o fenômeno do boom da literatura latino-americana; e as ditaduras caribenhas, centro-americanas e do Cone Sul, com seus mecanismos de poder autoritários, contribuíram enormemente para aproximar, cada vez mais, a literatura da história. Diferentes escritores como José Mármol, José Martí, Andres Bello, Machado de Assis, Ezequiel Martínez Estrada, Oswald de Andrade, Mariano Azuela, Gabriela Mistral, Jorge Luis Borges, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Miguel Ángel Asturias, Pablo Neruda, Alejo Carpentier, Pedro Henríquez Ureña, Juan Carlos Onetti, Augusto Roa Bastos, Gabriel García Márquez, Julio Cortázar, Mario Vargas Llosa, Clarice Lispector, Diamela Eltit, Héctor Libertella, Jorge Volpi — e muitos outros —, são exemplos de escritores que, a partir de diferentes concepções estéticas e diferentes formas discursivas, aproximam ficção e história e nos levam a compreender que a literatura está em constante diálogo com as tradições e a modernidade, com as mudanças socioculturais, com as representações e construções identitárias, com os ideários políticos. Uma literatura que, de um modo geral, se quis realista, militante, utópica, mágica, ciclópica e mítica, mas que nunca perdeu seu diálogo, mesmo que, às vezes, em filigranas, com a história.
Pensar literatura e identidades na América Latina pressupõe pensar também a história da literatura, não somente para compreende-la ou revisá-la, mas como uma forma de acesso ao passado. Importantes empreendimentos para compreender a história da literatura na América Latina foram realizados por pesquisadores e críticos literários, e também da cultura, com o intuito de compreender as realidades latino-americanas — em diálogo com as realidades nacionais — como Angel Rama, Antônio Cândido, César Fernández Moreno, Bella Josef, José Miguel Oviedo, Rafael Gutiérrez Girardot, Ana Pizarro, Alfredo Bosi e tantos outros. As ideias de Rama e Cândido, em especial, tiveram o mérito de demarcar a preponderância da escrita literária para a formação das sociedades latino-americanas.
Os artigos que compõem o dossiê abordam temas como as capacidades imagéticas e representativas dos textos literários em suas relações com a história, as conexões texto-contexto, os vínculos com a cultura e a política, as dinâmicas criativas dos textos e os posicionamentos públicos de intelectuais latino-americanos. O resultado é a constituição de um dossiê formado por três densos artigos que abarcam temáticas variadas, apoiadas em fontes como romances, contos, poemas e ensaios.
No primeiro artigo, “Identidades erosionadas: literaturas latinoamericanas, de la espacialidad ontológica a la atopía”, Cláudio Maíz mostra como a literatura se constituiu como um importante espaço para expressar diversas identidades: das mais ontológicas às étnicas, sexuais e ecológicas. No século XXI, diferentemente do século XIX, e mesmo de grande parte do XX, as espacialidades e as tradições deixaram de ser os marcos referências para construções identitárias mais “homogêneas”. Em sua análise, o autor explora desde os textos sarmentianos e martianos, produzidos nos oitocentos, aos textos polêmicos da Geração de McOndo e do Manifesto Crack mexicano produzidos mais recentemente.
Indagar por que e como o ensaio se tornou, a partir da década de 1970, um espaço por excelência para compreender e definir a literatura latino-americana é o propósito do artigo “Literatura latino-americana e representatividade cultural. Uma leitura dos ensaios de Héctor Libertella e Jorge Volpi”, de Ana Cecília Arias Olmos. A autora analisa os ensaios do escritor argentino Héctor Libertella e do mexicano Jorge Volpi como importantes estratégias discursivas que contribuíram para a “descentralização de uma noção ideologizada da literatura latino-americana que a sujeitou a funções de representatividade cultural”, exemplificada, principalmente, pela narrativa do boom e do “macondismo”.
O escritor uruguaio Juan Carlos Onetti é o centro da análise de Júlio Pimentel Pinto no artigo “Sobre fantasmas e homens: passado e exílio em Onetti”. Como o próprio título sugere, o foco da análise é compreender, por meio dos contos “La casa de la desgracia” (1960) e “Presencia” (1978), como o escritor abordou, nos respectivos contos, temas recorrentes, tais como o passado, a memória, o tempo e o exílio, com o intuito de problematizar as fronteiras e os diálogos entre história e ficção.
Para finalizar, agradeço a todos os que colaboraram com a viabilização do dossiê e saliento que o intuito foi o de despertar inquietações para além das fórmulas já consagradas de pensar as interações entre história e literatura. Espero que a leitura dos textos que o compõem possibilite reflexões enriquecedoras para a construção de novos conhecimentos e a ampliação dos debates sobre o tema.
Referências
LACAPRA, Dominick. Rethinking Intellectual History: Texts, Contexts, Language. Ithaca / London: Cornell University Press, 1983. [ Links ]
LIMA, Luiz Costa. História. Ficção. Literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. [ Links ]
PINTO, Júlio Pimentel. A leitura e seus lugares. São Paulo: Estação Liberdade, 2004. [ Links ]
POMIAN, Krzysztof. História e ficção. Projeto História, n. 26, p.11-45, 2003. [ Links ]
Adriane Vidal Costa – Departamento de História. Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: adrianeavc@gmail.com
COSTA, Adriane Vidal. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.33, n.62, mai. / ago., 2017. Acessar publicação original [DR]
Arte e Ciência, um processo operativo / Varia História / 2016
Apresentamos, nesta nossa publicação, três textos que se inserem no dossier da Revista Varia do Departamento de História da UFMG. Nossa preocupação foi dispor ao estudioso da história da arte alguns textos inéditos dedicados à reflexão do objeto artístico. Estes estudos discutem e investigam a arte sob pontos de vista não apenas históricos ou sob as vestes culturais, mas analisam ainda sob concepções formalistas, numa dinâmica imagética mais atual, apesar dos temas aqui exibidos não disporem de uma mesma cronologia, ao contrário, insistimos numa abordagem diversificada, tanto sob o ponto de vista da forma, como do espectro cultural. Optamos igualmente por uma estrutura diversificada dos temas, muito mais que um processo homogêneo e linear.
É importante ver a História da Arte estudada em sua conjuntura ampla nas possibilidades de investigação. Não apenas uma pesquisa filológica ou de pura catalogação ou inventário, mas um estudo mais abrangente e interdisciplinar. Estão aqui não apenas o curioso objeto como uma pintura ou uma construção arquitetônica, mas um processo operativo vinculado a dispositivos culturais arraigados ao universo de produção do próprio objeto.
O nosso propósito foi o de discutir aspectos do objeto artístico, mas contemplando a História Cultural e a História da Arte (e também a história da ciência) em suas múltiplas e diversas formas de apresentação imagética. Este dossier pretendeu abranger toda e qualquer abordagem no âmbito cultural, seja especificamente com discussões formalistas em relação à arte, seja em reflexões históricas e metodológicas. O universo imagético pressupõe-se a partir de estudos entre os tons culturais, entre as formas e a iconografia. Uma engrenagem voltada para debates profícuos e específicos da História da Arte e da História da Ciência. Este universo tenciona abarcar toda a discussão da imagem como arte, desse modo, novas problematizações, novos conceitos e novas dinâmicas foram utilizados numa experiência interdisciplinar, o que permitiu uma discussão mais profícua e menos engessada dos conceitos tradicionais da História da Arte. O leitor terá em mãos temas (assuntos) diluídos entre os três artigos de modo a promover uma interlocução entre os textos e sua interação nos diferentes conteúdos aqui apresentados. Essa organização permitirá avançarmos em assuntos diversos sem ter de seguir uma linha condutora exclusiva.
O leitor-estudioso perceberá nossa preocupação desde o discurso formal, até a discussão histórico-cultural. Não está esquecido o artista e a obra; os trânsitos culturais – legados culturais artísticos; os vestígios e a construção histórica da arquitetura; o saber ver e as discussões culturais; as variantes arquitetônicas e cenográficas; a história da imagem como construção de um ideal cultural; a literatura científica; as considerações técnicas e os processos operativos na obra de arte. Nossas discussões permearam todos esses temas e, sendo assim, os artigos, que hora se apresentam estão inseridos numa ampla contextura. Tencionou-se estimular a abertura de novas propostas metodológicas no estudo do objeto artístico com vistas a renovar as investigações com novas sugestões de pesquisas. O organizador espera que este dossier exponha um tributo essencial aos estudos sobre o conhecimento artístico tanto a partir de enfoques específicos da arte como também da História da Arte, do que vale lembrar que história da arte é, história e arte.
Não nos custa lembrar que a História da Arte ocupa um lugar de destaque nas Ciências Sociais, no entanto, é conveniente realizar uma revisão crítica de seus métodos para então conhecer seus fundamentos e a realidade científica de seus posicionamentos operacionais (ou operativos), sejam no campo da teoria ou das disposições da práxis. A revisão prática historiográfica da arte permitirá saber como se estruturar esta História da Arte e em que situação ela existe. Damos aqui apenas algumas das ferramentas para que o leitor possa construir seu imaginário.
Sabe-se que a História da Arte se formou ao longo de décadas como resultado de conceitos operativos e critérios de investigação diante do manancial de obras artísticas. O uso dos discursos, dos seus métodos depende de circunstâncias plenamente culturais. A principal questão é o enfoque. Muda-se isto, e, consequentemente, a História da Arte apresenta novo leque de proposições. Segundo alguns autores, tantas histórias da arte, quanto práticas historiadoras.
Contextualizado nestas poucas observações o dossier proposto pretendeu absorver reflexões sobre a produção artística em suas mais variadas seções. Os autores escolhidos, Sara Fuentes, Beatriz Hidalgo e Alfredo Morales são investigadores (e professores) que se preocupam com a dinâmica clara e objetiva da Arte, mas igualmente com suas estruturas históricas e contribuições científicas nas diversidades das análises: tudo apresentado numa problemática inédita. No artigo El perfil de Andrea Pozzo como maestro de perspectiva encontramos uma diversa análise e um estudo metódico do jesuíta trentino e um dos perspécticos mais influentes do século de setecentos desde o estudo sistemático da perspectiva, passando pelo simulacro arquitetônico, tudo transformado num método didático e prático, publicado em forma de dois tomos no fim do século XVII, com uma repercussão global entre os séculos XVIII e XIX, atingindo não apenas o Continente Europeu, mas avançando para as Américas e ainda o Oriente. As análises são bem construídas exemplificando não apenas a formação cultural de Pozzo, mas também seus enfoques técnicos e suas preocupações em atender ao artista praticante da pintura de falsa arquitetura com pressupostos perspécticos, isto é, a quadratura ou a pintura de Sotto in sù, como ele mesmo denomina em seu texto. Já o estudo de Beatriz Hidalgo, com o título A originalidade técnica no desenho de Goya e seus contemporâneos. Abordagens sobre o desenho na segunda metade do século XVIII, nos apresenta um estudo instigante sobre “a arte do desenho”, uma expressão artística de grande variedade e que aqui concentra seus esforços durante o século XVIII num dos mais significativos artistas espanhóis: Francisco Goya. O desenho não é apenas a representação da forma sobre um suporte, como o papel, uma parede ou mesmo coberturas abobadadas e cupuladas, mas o desenho expressa o contexto de uma época, de um mecanismo estilístico e, naturalmente, um contexto operativo-cultural. Enfim, adaptações e estratégicas culturais que motivaram Goya em suas criações, mas também com outros artistas, como a autora bem demonstra (ou demonstrou). O estudo de Alfredo Morales sobre Cartografía y cartografía simbólica. Las “Theses de Mathematicas, de Cosmographia e Hidrographia” de Vicente De Memije nos brinda com um tema abordado de modo original e que cobre a rota marítima entre a Península Ibérica e as Filipinas. Para além de apresentar um contexto histórico abordando a missionação no Oriente, este texto expõe de modo analítico e meticuloso nova proposta cartográfica que se pode chamar artística, não apenas por suas concepções imagéticas / simbólicas, mas porque atrela-se a outro valor científico / funcional. Mudanças de paradigmas, evidências num novo contexto entre o espaço tridimensional e a representação no papel. Além da restituição gráfica operacional do relevo territorial e seu controle, o autor nos mostra a fruição consciente de um novo espaço conhecido não apenas em contexto específico da gnomônica, mas em espectros culturais por meio do vasto universo das belas estampas que escondem um mágico universo simbólico que entre Ocidente e Oriente preenchia todo o imaginário dos “homens do mar” e suas dinâmicas de apreensão entre espaço projetado e mensurabilidade, entre áreas percorridas e ícones / imagens em seus mais intrínsecos significados.
Assim, espero que a diversidade destes textos possa ser um estímulo para o jovem leitor e estudioso da arte, mas também do pesquisador mais acurado e determinado em pesquisas específicas, em novos processos e em novas dinâmicas interdisciplinares.
Magno Moraes Mello – Departamento de História, Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: magnomello@gmail.com
MELLO, Magno Moraes. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.32, n.60, set. / dez., 2016. Acessar publicação original [DR]
História e Teatro no Brasil pós-64 / Varia História / 2016
No emblemático ano de 1968, o destacado dramaturgo Dias Gomes publicou um artigo em número especial sobre o teatro brasileiro na Revista Civilização Brasileira, então periódico de referência, apontando o que considerava uma singularidade do teatro: era a arte da palavra, que acontece diante do público.
O abuso de adjetivos, embora escape a uma regra básica de redação da narrativa historiográfica, foi voluntário até aqui. Visa a destacar a força da ideia (re)criada pelo texto de Dias Gomes, corrente à época e que se perpetuou, longa e fortemente, na memória social sobre a arte engajada: o teatro seria a expressão artística de resistência mais destacada durante a ditadura militar brasileira, por algumas razões.
Por um lado, pelos projetos políticos e estéticos que engendrou, por vezes conflitantes, que queriam cumprir o papel de conscientizar o público, fosse promovendo a “catarse”, o distanciamento e / ou o estranhamento com relação à realidade imediata (Napolitano, 2001, p. 109). Por outro, pelas relações conflituosas – estratégicas e, por vezes, cômicas – que se desenvolveram entre os profissionais da área de teatro e os órgãos de repressão e censura. E, ainda, pela natureza mesma da arte dramática, que combinaria a força da literatura, “a arte da palavra” do engajamento sartreano clássico, com a possibilidade de tocar corações e almas, exortando os sujeitos à ação no momento da encenação.
Foi nesse cruzamento de peculiaridades que se construiu a temática desse dossiê da Varia: História e Teatro no Brasil Pós-64. O que se propõe é um panorama com diferentes abordagens da relação entre esses dois campos de saber / fazer – a história e o teatro – num contexto específico da nossa história, qual seja, o período que se inaugurou com o golpe civil-militar de 1964. Essa encruzilhada temática, constituída das características específicas de cada campo, e de novas, produzidas no encontro entre eles, aponta-nos uma série de problemas, dos quais se destacam três.
Em primeiro lugar, desde o campo de pesquisa em que se unem a história e o teatro, é preciso considerar especificidades teórico-metodológicas. Para além da letra – ou seja, do roteiro teatral e das fontes dele derivadas, imediatamente, como os processos de censura – o teatro é uma modalidade artística de difícil apreensão. Os espetáculos, o momento de realização da arte, são voláteis. Como apreender os sentidos de uma prática cultural que foi pensada para durar instantes, há décadas? Ademais, as fontes relativas ao processo da produção cultural raramente duram no tempo e, quando permanecem, dificilmente estão ordenadas e reunidas em arquivos próprios. Então, pesquisar uma história do teatro, ou a história por meio do teatro, implica lidar diretamente com especificidades teórico-metodológicas que vêm ganhando corpo há relativamente pouco tempo, especialmente na historiografia brasileira.
Uma segunda questão que cabe destacar é a construção de uma historiografia sobre o período da ditadura militar. O período ainda se pode inscrever na chamada “história do tempo presente”, com as delicadezas epistemológicas que envolvem a categoria. Desde a proximidade dos acontecimentos, que acabam atribuindo à memória individual e social uma força que pode chegar a comprometer a coerência dos procedimentos teórico-metodológicos da pesquisa histórica, até a dificuldade de acesso a fontes de pesquisa, o campo de pesquisa sobre a ditadura militar vem se (re)estruturando a partir de tais delicadezas. No entanto, apesar de recente, tem uma produção importante, tendo crescido consideravelmente, em número e complexidade, sobretudo nos últimos quinze anos. E, como se pode observar nas muitas teses e dissertações produzidas sobre os mais variados temas, bem como nos balanços historiográficos constantes das coletâneas publicadas nas duas efemérides do Golpe de 64 (em 2004 e 2014), o campo tem-se ocupado de qualificar melhor as interpretações sobre o período, por meio de pesquisas que ressignificam as memórias sobre o período e se beneficiam da recém-abertura de arquivos.
Finalmente, uma terceira questão são as mitologias sobre as relações entre teatro e política durante a ditadura militar, derivadas das duas anteriores. Os abusos de memória sobre esse período recente da história brasileira e a dificuldade de se realizar pesquisas sobre história e teatro acabaram perpetuando lembranças de graves embates entre artistas e censura, boa parte delas apoiada na lógica maniqueísta em que o bem absoluto reside na resistência. Essa lógica, por um lado, não considera as estratégias de acomodação e conciliação tão comuns nos conflitos políticos brasileiros, inclusive nesse período, como pondera Rodrigo Patto Sá Motta (2014, p. 14). Por outro, produziu relativa lacuna de pesquisas sobre obras de teatro que se não se enquadram em posição política definida ou alinhadas “à direita”.
A partir de abertura de arquivos, organização e disponibilização de importantes séries documentais, novos diálogos conceituais com a historiografia do período e construção de conceitos e metodologias próprios para essa interface, as relações entre o teatro e a história do Brasil contemporâneo vêm sendo revisitadas. Essa historiografia recente tem produzido novas visões sobre velhos fatos, assim como tem construído novos fatos históricos, a partir de acontecimentos já conhecidos pela memória social. E os três artigos que compõem esse dossiê compõem essa “nova” historiografia.
Reinaldo Cardenuto analisa montagens teatrais e televisivas, numa comparação temporal entre realizações das décadas de 1960 / 70 e suas respectivas adaptações atuais. O autor analisa as obras Eles Não Usam Black-Tie e A Grande Família, nos dois contextos – ambas de autores ligados ao Teatro de Arena e, originalmente, relacionadas à proposta de crítica, contestação e conscientização política. Encarando a dificuldade de analisar a efemeridade dos espetáculos e a dificuldade de acesso às fontes audiovisuais, aponta uma tendência marcante do drama contemporâneo de esvaziamento do conteúdo político, em favor da construção de um humor tributário à comédia de costumes.
Saindo do circuito do teatro de companhias e voltado para o mercado, Leon Kaminski propõe uma leitura dos Festivais de Inverno de Ouro Preto (UFMG), entre 1967 e 1979. Analisa esse projeto de extensão como um espaço de criação e trocas culturais, dando especial atenção ao teatro, às suas relações com as demais performing arts e com os limites impostos pela censura oficial e extra-oficial praticada durante a ditadura militar brasileira. A partir, sobretudo, dos documentos institucionais sobre o festival e de notícias de periódicos, o autor apresenta grupos e propostas dramáticas que se constituíram no âmbito do evento, bem como os que compuseram aquele circuito cultural. Analisa, também, as tensas relações entre estado, sociedade e campo artístico na produção de sentidos sociais para obras dramáticas e práticas culturais no período.
Miliandre Garcia analisa a constituição de um espetáculo de caráter quase mitológico no imaginário sobre a arte de resistência contra a ditadura militar, a I Feira Paulista de Opinião (1968). O exame vertical do processo de censura do espetáculo – articulando roteiro, anotações de censores, pareceres técnicos e documentos anexados -, cotejado com propostas dramáticas do período, legislação e outros processos de censura, construiu uma interpretação singular sobre a obra. O roteiro, em termos políticos e estéticos, é considerado peça de resistência cultural, que guarda permanências das propostas anteriores e anuncia o que viria a ser a tônica dos anos 1970. As relações com a censura, que chegam no âmbito da justiça comum, são interpretadas como um processo de desobediência civil, característica específica dessa resistência cultural.
Olhares novos sobre esse objeto em construção – História e teatro no Brasil pós-64 – os três artigos apresentam ao leitor a possibilidade de refletir sobre as relações entre arte dramática e sociedade, política e estética, passado e presente, fontes e pesquisador, entre tantas outras combinações possíveis.
Com a “arte da palavra” (engajada ou não), nossos autores.
Referências
GOMES, Dias. O engajamento é uma prática de liberdade, Revista Civilização Brasileira – Caderno Especial de Teatro e Realidade Brasileira, ano IV, p. 7-17, 1968. [ Links ]
NAPOLITANO, Marcos. A arte engajada e seus públicos. Estudos Históricos, n. 28, p. 103-124, 2001. [ Links ]
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As universidades e o regime militar. Cultura política brasileira e modernização autoritária. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2014. [ Links ]
Miriam Hermeto – Departamento de História, Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: miriamhermeto@gmail.com
HERMETO, Miriam. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.32, n.59, mai. / ago., 2016. Acessar publicação original [DR]
Culturas alimentares, práticas e artefatos / Varia História / 2016
Refletir sobre as práticas alimentares na história é entender a alimentação e seu processo de construção histórica como uma linguagem que expressa vocábulos, gramáticas, sintaxes e retóricas, apresentando-os, respectivamente, em produtos, receitas, cardápios e comportamentos (Montanari, 2009, p.11). Fazer história sobre os processos que envolvem a alimentação – a necessidade, o gosto e os artefatos – é reconhecer no ato de alimentar e em todo o aparato material e simbólico que lhe dá conformação histórica, não apenas as representações de pessoas e de sociedades, mas a própria constituição do humano.
A alimentação é ato de sobrevivência, mas é, também, uma invenção. É necessidade instrumentalizada por artefatos facilitadores. É gosto, fruto de instintos, de percepções sensoriais, e, sobretudo, de construções históricas. As coisas que o homem inventa e torna úteis no ato de comer, participam de sua experiência e atendem às suas necessidades exigindo dele manipulações. Como todas as suas invenções! Elas tornam-se instrumentos de sua vivência e dele requerem gestos artesanais. As coisas da alimentação e o próprio alimento são importantes parcelas da materialidade da cultura, mas, também, são constituídas de valores que vão além de sua concretude. Os elementos materiais de nossa cultura e a relevância de seus significados são objeto de reflexão das disciplinas humanas, em geral e da História, em particular.
O presente dossiê da Vária História, Culturas alimentares, práticas e artefatos, apresenta textos que, dentro do universo da cultura material, apreendem a alimentação e o espaço das práticas alimentares, refletindo, em suma, sobre realidades físicas e simbólicas, práticas e conceituais, em torno dessa banalidade da atividade humana: comer e cozinhar para comer. A alimentação como documento de realidades, não se apresenta aqui apenas como simples reflexo da construção social, mas como repertório de elementos integrados em sua constituição histórica. Os artefatos da alimentação, também, não são apenas fetiches ou simples detentores de sentidos sociais deslocados de seus usos: são enunciados que dão sentido às realidades, atribuem valor às coisas dos homens, induzem e instrumentalizam as práticas sociais.
Este dossiê temático apresenta ao leitor interpretações sobre as práticas alimentares no mundo americano, em vasta temporalidade. Os textos que o compõe trazem criativas articulações metodológicas, utilizando tipos documentais diversos que denotam materialidades amplas em espaços díspares. Conformam, a despeito dessa diversidade, um repertório reflexivo de unidade inequívoca: materialidades e simbologias, além de políticas públicas e práticas cotidianas, conformando vivências humanas e nos permitindo a compreensão delas.
Quando praticamos a compreensão histórica a partir da perspectiva da cultura material temos necessariamente de ficar atentos aos artefatos. Podemos nos ater a eles, tomando-os, a exemplo do que fundamentalmente fizeram a arqueologia e a antropologia do século XIX e parte do XX, como objetos que denotam a construção da cultura e que pela avaliação dessas disciplinas apresentam a evolução técnica do homem e o desenvolvimento social (progresso). Seria, como nos diz Marcelo Rede, o “espetáculo de produção, circulação e consumo (Rede, 2012, p.134) que encantou os pensadores do “oitocentos” e que os diferenciou “dos organizadores dos “gabinetes de curiosidades” do século anterior: estes últimos interessados no “exótico”, enquanto o homem de ciência social oitocentista centrado no artefato para construir uma taxonomia e um padrão cultural para a classificação dos povos e das culturas, aos modos dos cientistas naturais. Se seguíssemos essa tradição, poderíamos fazer uma “arqueologia” dos grupos sociais em uma “perspectiva difusionista”, onde os instrumentos e as técnicas, vistos através da análise dos objetos, nos mostrariam a sua história evolutiva. Certamente que essa perspectiva seria simples e simplificadora; pobre sob a perspectiva da História. Desde os anos de 1960, uma Nova Arqueologia já se distanciou desta perspectiva, aproximando-se da Antropologia, negando a ideia de registro material do sítio e buscando a compreensão do funcionamento do agrupamento social naquela materialidade. Ainda hoje, no entanto, nós, historiadores, antropólogos e arqueólogos insistimos nessa diferenciação (como eu o faço aqui), o que denota, ainda, a necessidade de romper com certa incompreensão sobre o valor da cultura material para nossos estudos.
A antropologia do consumo (“consumo como ato social criador de sentidos”) (Rede, 2012, p.139) desenvolvida a partir dos anos 1980, sob a influência da dimensão semiológica dos estudos sobre a cultura material, nos dá uma contribuição fundamental para os estudos históricos. Interessante que, ao pensarmos uma nova antropologia do consumo, necessariamente, temos de referenciar Daniel Miller que, em vários estudos trata o consumo (1987; 1998), não como algo a distinguir camadas sociais, mas como um fenômeno gerador de sentidos para a compreensão das sociedades modernas e contemporâneas e em discussão muito crítica à perspectiva semiótica, por tratar as coisas como “simples trecos inanimados” ou como “meros servos” da representação do homem (2013, p.22). Em Miller as coisas não apenas representam o homem, mas o constituem. Para ele
(…) denegrir coisas materiais, rebaixá-las, é uma das principais maneiras de nos fazer subir em aparentes pedestais. E, dessa altura, reivindicamos uma espiritualidade inteiramente divorciada de nossa própria materialidade e da materialidade do mundo em que vivemos (Miller, 2013, p.230).
A dificuldade que temos, de acordo com Miller, é devida a que os “Trecos têm uma capacidade notável de se desvanecer diante de nossos olhos, tornam-se naturalizados, aceitos como pontos pacíficos, cenário ou moldura de nossos comportamentos.” (Miller, 2013, p.228). Sugere que mergulhemos nossas abstrações teóricas “de volta na algazarra da vida cotidiana e na gloriosa confusão de contradição e ambivalência que ali se encontram” (Miller, 2013, p.230).
Os textos que compõem o presente dossiê da Vária História, denotam essa riqueza de parâmetros na busca de compreensão da alimentação, das práticas alimentares, de suas simbologias e materialidades. Ultrapassando perspectivas semióticas e discursivas (a leitura da materialidade como um texto) Leila Mezan Algranti, Gregório Saldarriaga, Marjolaine Carles e Maria Aparecida de Menezes Borrego mergulham na “algazarra do cotidiano” do passado, tentando compreendê-lo em sua dimensão sócio-histórica. O fazem em um eixo que o arbítrio do organizador do Dossiê ordenou como da modernização social à prática dos usos de artefatos, passando pela distinção e diferenciação sociais à ação político-administrativa de autoridades municipais.
Em Alimentação e cultura material no Rio de Janeiro dos vice-reis: diversidade de fontes e possibilidades de abordagens, Leila Algranti discute fontes e abordagens para entender os artefatos das refeições, no Rio de Janeiro, na segunda metade do século XVIII, como documentos das transformações dos modos à mesa, tidas como modernizadoras da sociedade europeia. Uso de talheres e atenção à etiqueta, perscrutados pela historiadora, evidenciam menor distância entre o que se pratica na Europa e na América portuguesa, contrariando uma tradição interpretativa fortemente arraigada nos estudos sobre a alimentação.
Gregório Saldarriaga mostra em seu artigo Comer y ser: la alimentación como política de la diferenciación en la América española, siglos XVI y XVII a alimentação como elemento diferenciador de camadas sociais. Os estamentos e a hierarquização da sociedade americana dimensionam-se em uma complexidade que incorpora principios europeus de raíz medieval e apresenta padrões novos e estruturas modernas que reforçam o antigo e dão dinâmica à realidade social na integração de espanhóis, criollos, mestiços e índios.
O texto de Marjolaine Carles, Eaux du domaine public (Brésil colonial) : le cas de Vila Rica, 1722-1806 (Minas Gerais), analisa o patrimônio hídrico público em Vila Rica, buscando compreender o abastecimento das fontes públicas, a apropriação das águas pelos particulares, e a ação camarária no âmbito do domínio público desse bem de consumo primordial para a organização da sociedade. Enfatiza na análise o orçamento municipal na efetivação dessa apropriação e busca relacionar o uso da água e a ocupação da terra sob aspectos sociais e jurídicos.
Já Maria Aparecida Borrego nos apresenta em Artefatos e práticas sociais em torno das refeições (São Paulo, séculos XVIII e XIX), sua interpretação sobre práticas vivenciadas pela sociedade paulista em torno das refeições e de sua mesa, tomando os artefatos como constituintes de uma transformação das sociabilidades em vivências interiorizadas no ambiente doméstico. Analisa-os na dimensão de objetos em seus lugares de escolhas para servir à experiência social e, assim, os compreende em uma dinâmica de hierarquias e de poderes.
Ao historiador que busca a compreensão de realidades sociais passadas através da dimensão material da cultura, é necessária uma atenção desmedida e cuidadosa aos objetos que parecem naturalizar-se no uso. É a ele fulcral que dê complexidade ao óbvio em reflexão cognitiva. Nessa perspectiva, o primeiro passo é muito difícil: romper com o pensamento dualista que tende a opor materialidade e imaterialidade, valorizando o simbólico, o mental, o ideal, o abstrato e desvalorizando o material, o sensorial, o corporal. Como nos lembra Marcelo Rede (2012, p.143), inspirado em Bruno Latour (Nous n’avons jamais modernes), as considerações intelectuais hierarquizam os estudos na cadeia pensamento-comportamento-matéria. Em consequência, reforçam o dualismo de opor mente-pensamento-linguagem a corpo-prática-matéria. Essa oposição é falsa e, mais que isso, é ilusória e enganadora.
Vivemos um bom momento para relativizar criticamente essa hierarquia, quando os nossos valores atuais tentam exaltar o biológico e o ecológico e, com isso, valorizando a relação homem-ambiente, acabam por ajudar-nos, em certa medida, a desumanizar as ciências humanas percebendo os artefatos do homem na íntima relação que eles têm com o seu pensamento. É preciso, no entanto, não inverter o dualismo, supervalorizando a materialidade. É preciso entendê-la como Ulpiano Bezerra de Meneses que toma “cultura material” como o “segmento do meio físico que é socialmente apropriado pelo homem” (1983, p.112). É preciso, enfim e sobretudo, dar significação à materialidade.
Referências
MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. A cultura material no estudo das sociedades antigas. Revista de História, n. 115, p.103-117, 1983. [ Links ]
MILLER, Daniel. Material culture and mass consumption. Oxford: Blackwell, 1987. [ Links ]
MILLER, Daniel (org.). Material cultures: Why some things matter. Chicago: The University of Chicago Press, 1998. [ Links ]
MILLER, Daniel. Trecos, Troços e Coisas. Estudos antropológicos sobre a cultura material. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. [ Links ]
MONTANARI, Massimo. Introdução. In: MONTANARI, Massimo (org.). O mundo na cozinha. História, identidades, trocas. São Paulo: Estação Liberdade / SENAC, 2009. p.11-17. [ Links ]
REDE, Marcelo. História e Cultura Material. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Novos Domínios da História. Rio de Janeiro: Campus / Elsevier, 2012. p.133-150. [ Links ]
José Newton Coelho Meneses – Departamento de História, Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: jnmeneses@gmail.com
MENESES, José Newton Coelho. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.32, n.58, jan. / abr., 2016. Acessar publicação original [DR]
Historiografia e História Intelectual / Varia História / 2015
)Não por acaso, este Dossiê escolheu como tema Historiografia e História Intelectual. O movimento historiográfico com renovado interesse, já há algumas décadas, tem registrado uma produção em uma escala bastante globalizada, marcada pela reivindicação de um alinhamento com a chamada História Intelectual, cuja definição tem comportado diferentes entendimentos, e cujas fronteiras disciplinares têm comportado deslocamentos sistemáticos e bastante e promissores. Em suas margens, delimitadas por variadas tendências, se tocam, se cruzam, se confrontam questões teórico-conceituais de tradições, linhagem e filiação diversas, as quais nem sempre se ocupam do mesmo objeto. O que por vezes confunde e obscurece as incursões dos interessados, já que nem sempre há clareza suficiente dos itinerários e dos percursos a serem seguidos, em um espaço que não se furta a alimentar debates, e tampouco descarta a possibilidade de sua autonomização no interior da disciplina histórica.
Sua geografia inclui espaços nacionais diversos, a exemplo da Alemanha, Inglaterra, Estados Unidos, França, Argentina, em instituições de renome, como as universidades de Cambridge, Oxford, Johns Hopkins, Cornell, Chicago, Yale, Quilmes , os institutos de Sciences Po, CNRS, em que filósofos, lingüistas, epistemólogos, historiadores, sociólogos do direito, enfim, nomes de grande reputação como Reinhard Koselleck, Quentin Skiner, François Sirinelli, François Foucault, M. Abensour , Charles Zarka, Carlos Altamirano, J. A. Pocock, Richard Rorty, Dominique La Capra foram definindo novas epistemologias e espaços de pesquisa. Entre a história intelectual e a história dos intelectuais, a história dos conceitos e a história da historiografia, a abordagem contextual e a reflexão lingüística, a internalidade e a externalidade dos textos vão pontificando os conceitos de semântica histórica, campo semântico, atos de linguagem, lance, formação discursiva, redes, gerações, corpus textuais entre tantos outros. Os avanços, as mudanças e as convergências entre as várias correntes no movimento de sua instituição foram introduzindo novos desafios e outras práticas: dos grandes textos filosóficos, históricos e políticos a outros corpus documentais, como os escritos dos publicistas, os manifestos políticos e culturais, os jornais e revistas, as correspondências, as biografias e autobiografia, dentre outros. Entra em cena a atenção sobre o papel das trocas culturais, a intertextualidade, a dimensão comparativa no âmbito da história conceitual e as inúmeras relações, já apontadas por estudiosos, “entre conceitos e práticas não lingüísticas: o gesto, a imagem, o cênico”. Neste vaivém das trocas entre teoria e empiria, pensamento e texto, o texto e o contexto, a multiplicidade de sentidos e a mobilidade das significações, a natureza histórica das obras e a instabilidade das mesmas, as performances do texto e as interpretações estabelecidas, as regras metodológicas e os processos de pesquisas se cruzam e extrapolam as fronteiras disciplinares, e se reforça a irredutibilidade de busca da historicidade.
O Dossiê aqui proposto pretendeu, entre outros objetivos, acolher reflexões de natureza historiográfica que pudessem trazer pistas ao leitor sobre o “estado da arte” da historiografia nas suas interfaces com o domínio da chamada História Intelectual. Os autores convocados, Jorge Eduardo Myers, Valdei Lopez de Araújo, Verônica Zarate Toscano e Gabriella Pellegrino Soares, conhecidos pela excelência da sua contribuição histórica e científica, aqui se detiveram em criativas e diversificadas análises que mostram como o manuseio de referenciais teórico metodológicos, afinados com a História Intelectual, pode contribuir para desvendar ricos aspectos no campo dos estudos do pensamento, da cultura e das práticas intelectuais, e dar mostras do seu impacto sobre o labor historiográfico e a escrita da história. Os textos tangenciam, quando não atacam diretamente, questões importantes como aquelas dos limites, bem como dos contatos, aproximações e possíveis tensões no interior da historiografia, entre a História Intelectual e a História das Idéias, uma vez que experimentam, na exploração dos seus objetos ou dos balanços que realizam as implicações da opção por uma ou por outra, em termos das aberturas hermenêuticas e / ou dos possíveis déficits epistemológicos.
A leitura das contribuições aqui apresentadas aporta aos leitores, por um lado, vários elementos especulativos. De outro, motivam e induzem perguntas e respostas, ainda que nem sempre diretas, e que não podem ser negligenciadas, a exemplo de ser ou não procedente a separação da História Intelectual frente a uma Nova História das Idéias. Que balanço pode ser feito da fortuna crítica nesses domínios, bem como nas interfaces da História Intelectual com a história dos conceitos, com a nova história política e com a história cultural? Como pensar as relações da História Intelectual com a memória e a narratividade da história? Como se complementam História Conceitual e História Social? Os textos publicados neste Dossiê fazem perfilar, nas suas diferenças de abordagem, pistas para se pensarem essas questões, ao tempo em que sinalizam para algumas tendências mais recentes, responsáveis por uma configuração outra da abordagem e da análise dos corpos textuais, sejam historiográficos, sejam do pensamento político, sejam documentais.
O Dossiê se respalda em estudos e análises históricas sobre o tema nos domínios de pesquisa dos convidados, daí contar com explorações mais pontuais, comparações e balanços, que propiciam importantes aportes para a historiografia do Brasil e de outros países também da América Latina, a exemplo do México e da Argentina.
Que os leitores da Varia Historia aproveitem e façam uma boa e proveitosa leitura!
Eliana Regina de Freitas Dutra – Pós-Graduação em História. Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: erdutra@terra.com.br
DUTRA, Eliana Regina de Freitas. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.31, n.56, mai. / ago., 2015. Acessar publicação original [DR]
Por uma nova história da Igreja medieval / Varia História / 2015
O presente dossiê temático está intimamente relacionado às discussões que foram levantadas por ocasião do Congresso Internacional sobre Ordens religiosas na Idade Média: concepções de poder e modelos de sociedade, ocorrido na Universidade Federal de Minas Gerais, entre os dias 26 e 29 de maio de 2014. Reunindo professores medievalistas de dez universidades brasileiras e seis professores / pesquisadores de universidades estrangeiras, bem como grande número de pós-graduandos, o congresso pretendeu apresentar uma análise inovadora do papel social e político das Ordens religiosas no Ocidente medieval, enfatizando os modos de reprodução do político no seio das comunidades urbanas. Tal empreitada manifesta uma mudança significativa no procedimento analítico da história religiosa ou da história medieval tradicional, bastante dependentes de uma argumentação estanque que tende a separar ou a dicotomizar uma sociedade eclesiástica (os clérigos) de uma sociedade secular (os leigos), tomando-as como antípodas de um projeto social que, gradativamente, foi afirmando-se sempre mais laico e, neste sentido, “moderno”. As conclusões do congresso são aqui alargadas para além do espaço social das Ordens religiosas, procurando abarcar o mais possível o lugar da Igreja na cristandade latina, no fim da Idade Média. O tom revisionista continua o mesmo: esperamos realocar as discussões sobre a “religião”, a “igreja” e a “fé”, só para citar três exemplos, no debate mais atualizado da historiografia medievalística que tem conseguido um impressionante grau de respeitabilidade até mesmo em lugares, como Brasil, Argentina, Chile e México, em que tradicionalmente o período medieval não havia ainda despertado interesse a ponto de produzir historiografia, e não mais simplesmente reproduzi-la.
O interesse que moveu a composição deste dossiê está atrelado ao fato de que a historiografia medievalística contemporânea, ainda marcadamente europeia, apresenta-se bastante negligente em reavaliar o lugar da Igreja – e das instituições eclesiais – nas sociedades medievais latinas, mantendo-a, apesar de todo relativismo acadêmico, num posto inquestionável de “instituição dominante” (para usar uma expressão cara a Jérôme Baschet), sem, contudo, submeter este posto ao crivo da crítica com que foram analisadas outras instituições e / ou conceitos, como nação, Estado, povo, império etc. Deste modo, constatamos um desnível epistemológico significativo: historiadores que são profundamente desconstrutivistas, quando se trata de falar de povo ou nação, são marcadamente dogmáticos ao conceber uma “Igreja Medieval”, síntese de uma cultura englobante, universalizante, soberana e monopolizadora. De onde vêm tais ideias? Talvez devêssemos recordar que as recentes nações liberais viveram um conflito, incluindo às vezes lutas reais, para impor uma estrutura política em que “Estado” e “Igreja” fossem instâncias autônomas e autossuficientes. Tais lutas encontraram eco nas universidades, cujos intelectuais produziram discursos historiográficos que ora defenderam e ora combateram o projeto de separação Igreja-Estado. Surge daí uma história política para a qual a Igreja é secundária, e uma história eclesiástica, bastante apologética, para a qual o Estado sempre corrompe a Igreja. Em ambos os casos, a premissa mantém-se a mesma: Igreja e Estado são sempre e inexoravelmente coisas diferentes.
Como já se pode entrever, este raciocínio é de todo estranho ao dito período medieval quando os aspectos políticos e religiosos, bem longe de serem antitéticos, convergiam para um modelo social de Estado místico que, como tal, não se deixava manipular nem por reis supostamente corrompidos pelo mundo, nem por papas sedentos de santidade: papas e reis, condes e frades participavam de uma sociedade mística que incluía, mas não se confundia com a instituição Igreja, ao mesmo tempo em que a política não se esgotava e nem poderia se esgotar naquilo que chamamos Estado. Na Baixa Idade Média, debateu-se a premissa de que a Ecclesia universalis era a continuação e o aperfeiçoamento do imperium Romanorum, e, em virtude desta noção de império (ratione imperii romani) o papa podia, inclusive, reivindicar o fim do domínio muçulmano sobre a Terra Santa porque outrora aquela terra fora conquistada pelo império romano (Hostiensis, Commentaria, Lib. III, tit. xxxiv, cap. viii, n. 26). O interessante do comentário do Hostiensis, a meu ver, não reside tanto na defesa da plenitude do poder papal, mas na ideia de que o império romano persistiu na cristandade latina graças a seu sucessor, o bispo de Roma. E este passado romano, que igualmente misturava sagrado e profano, constituía boa parte da base da identidade político-religiosa das sociedades medievais e não podemos impunemente ler a história medieval à luz das realidades políticas contemporâneas profundamente secularizadas e laicistas.
Neste dossiê, as discussões relativas ao papado couberam a Leandro Duarte Rust, com seu artigo “Inventando Gregório VII”. O autor reavalia a historiografia política e eclesiástica das últimas dez décadas, a qual concebe Gregório VII e, a partir dele, o poder pontifício como dotado de uma lógica interna coerente, programática e estatizante, cuja ascensão irrefragável levou de roldão a todos os sistemas políticos ocidentais, antecipando, no século XI, a política moderna de centralização, controle e, quem sabe, de supressão da anarquia feudal. A análise de Rust, contrariando a tradicional historiografia, nos põe diante de um papado gregoriano igualmente envolvido nas malhas dos poderes senhoriais, baseado na sacralidade dos laços de dependência; um papado destituído de uma ação política ou eclesiástica coerente, marcada por idas e vindas à mercê de interesses regionais, sem garantia alguma de que, pela sua autoridade, nasceria uma ordem política e social reformada e reformadora capaz de superar a dependência da Igreja em relação ao Estado.
Com o artigo de Eleonora Lombardo, abre-se uma perspectiva de análise das relações sociais e eclesiásticas que tem nos textos de sermões um impressionante acervo documental. A autora nos apresenta Sovramonte de Varese, um frade talvez pouco conhecido por nós, mas que, em seu tempo (séc. XIII), era um dos grandes pregadores urbanos, em cujos discursos podemos captar o vivo da oratória sacra que, misturada àquela política, das assembleias cívicas, fizeram a história da Itália comunal. Partindo de dois temas específicos, a usura e a heresia, Lombardo discute as relações entre o sermão pregado e aquele escrito (posteriormente), o público ouvinte e o público leitor, a sociedade e o pregador: a palavra e a ação. Numa cidade comunal, a pregação constituía, sem dúvida, um dos mais eficientes motores da atividade política e esta aparente contradição, atualmente, tem sido a marca inovadora dos estudos sobre as comunas, como mostram os artigos de Paolo Evangelisti e Pietro Delcorno.
Evangelisti, tomando a pregação de Bernardino de Siena e comparando-a com as obras de Francisco Eiximenis, discute a validade cívica de termos que, à primeira vista, soariam completamente religiosos, sem nenhum interesse para os debates públicos das assembleias comunais. Ao definir, por exemplo, a caridade, o autor nos mostra que Bernardino de Siena construía uma pedagogia política que foi aproveitada pelas instâncias citadinas na regulação do bem comum, do mercado e, por conseguinte, do dinheiro e das trocas, o que nos obriga a ver que o sermão não só não era apenas um discurso religioso, mas que o ambiente cívico de uma comuna, apesar de ser regido por leigos, não era secularizado, uma vez que o sermão constituía um grande canal de educação para a vida na cidade e os valores republicanos.
Pietro Delcorno, de alguma forma, corrobora a reflexão de Evangelisti, trazendo ao debate a ação do pregador Miguel de Acqui e a instituição do Monte de Piedade de Verona. O autor também nos brinda com a primeira edição do incunábulo vaticano referente a Miguel de Acqui e ao Monte de Piedade que é uma instituição de empréstimo sem juros ou a juros moderados, criada pelos frades Menores Observantes no séc. XV e que, de maneira muito concreta, incidiu não só no dinamismo econômico das cidades italianas do fim da Idade Média, como ofereceu um canal de inclusão social e participação através da religiosidade penitencial que marcava tanto a vida de ordens rigoristas, como a dos Menores Observantes, como também das próprias cidades-república que se entendiam como “cidades de Deus”, para aproveitar o título da instigante obra de Augustin Thompson sobre as comunas italianas.
Com estes quatro artigos, estou certo de que damos um passo muito importante nos debates sobre as imbricações do religioso e do político no período medieval reavaliando, de um lado, as cisuras impostas pela historiografia pós-iluminista e, de outro, evitando que se olhe para o período com as marcas obsessivas de um sagrado folclórico, extraordinário e maravilhoso, propalado pela história das mentalidades. O crescente público brasileiro interessado em história medieval terá aqui um bom material de reflexão e aprendizado.
André Luis Pereira Miatello – Departamento de História. Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: andremiatello@gmail.com
MIATELLO, André Luis Pereira. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.31, n.55, jan. / abr., 2015. Acessar publicação original [DR]
Intelectuais e circulação de ideias na América Latina / Varia História / 2014
O presente dossiê de Varia Historia é dedicado à História Intelectual Latino-Americana, com ênfase na história dos impressos, das ideias e de sua circulação.
A História Intelectual é um campo de estudos que vem crescendo nas universidades e instituições de pesquisa latino-americanas, particularmente a partir dos anos 1980 e 1990, juntamente com os processos de redemocratização em vários países do continente e a necessidade de se repensar o papel dos intelectuais na vida política e social de cada um dos países e na América Latina como um todo.
O importante ensaísta e crítico literário uruguaio Ángel Rama já havia, em seu famoso livro La ciudad letrada, de 1984, indicado alguns caminhos que seriam percorridos pela história intelectual latino-americana nas décadas seguintes, particularmente sobre as vinculações entre os intelectuais e os núcleos urbanos de poder.[1]
Conforme Carlos Altamirano, em sua introdução geral aos dois volumes da Historia de los intelectuales en América Latina, além das ideias, era necessário aprofundar a reflexão sobre a posição dos letrados latino-americanos no “espaço social, suas associações e formas de atividade, instituições e campos da vida intelectual, seus debates e relações entre ‘poder secular’ e ‘poder espiritual'”.[2]
Os estudos na área de História Intelectual, em um sentido amplo, têm como seus objetos de pesquisa e reflexão não apenas a história do pensamento e o debate de ideias e ideologias, mas questões como a constituição de redes e sociabilidades intelectuais; os variados tipos de impressos, sua circulação e articulação com o debate público; as viagens e intercâmbios; as experiências de exílio e deslocamento etc. São estudos que buscam analisar as conexões entre os intelectuais e as diversas instâncias da vida pública, como a política, a diplomacia, os meios de comunicação, as instituições educativas e científicas, as expressões artísticas, associações e movimentos sociais, entre outras.
Na América Latina, as pesquisas nessa área tiveram um incremento muito vigoroso a partir dos anos 1990. A criação do Programa de História Intelectual da Universidad Nacional de Quilmes, na Argentina, em 1994,[3] e a publicação de Prismas – Revista de historia intelectual pela editora da UNQ, desde 1997, são marcos importantes para essa área de estudos. Em vários países latino-americanos – com destaque para Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, México, Peru e Uruguai – é crescente o número de pesquisadores e trabalhos publicados na área de História Intelectual. Esse aumento teve, como um de seus desdobramentos, a realização do I Congreso de Historia Intelectual de América Latina, em Medellín, Colômbia, em setembro de 2012, e o II Congreso de Historia Intelectual de América Latina, que será realizado em Buenos Aires, em novembro deste ano.
O dossiê que ora apresentamos traz cinco artigos que abordam algumas das temáticas elencadas acima: o debate de ideias e sua circulação entre países e continentes; os periódicos, sua importância e repercussão; as trajetórias e inserção de intelectuais na cena pública.
Abrindo o dossiê, Maria Ligia Coelho Prado analisa os artigos publicados a respeito do México na famosa publicação francesa Revue des Deux Mondes, entre 1840 e 1870. A revista, muito lida pelos intelectuais latino-americanos, expressava, como demonstra a autora, os interesses nacionais e a perspectiva imperial da França. De todos os países latino-americanos abordados pela Revue, o México foi o objeto predileto das reflexões do periódico, no período estudado, em cerca de 30 artigos. Os intelectuais franceses que escreveram na Revue defendiam que seu país deveria ocupar um papel de liderança do “mundo latino”. O México era representado, nesses artigos, como um país “exótico, atrasado, anárquico, vivendo nos tempos de Felipe II”. E, como lembra Prado, durante o governo de Napoleão III, os franceses colocaram em prática esta perspectiva, ao enviar tropas para sustentar a monarquia no México, numa intervenção, afinal, derrotada pelos liberais mexicanos. Sendo assim, o artigo de Ligia Prado traz elementos para uma melhor compreensão de um aspecto pouco salientado da ação francesa na América Latina no século XIX, seu papel imperial, para além do lugar da França – e de Paris, especialmente – como o principal centro intelectual, literário e cultural, para onde convergiam, ou desejavam convergir, os intelectuais latino-americanos.
José Luis Bendicho Beired, em seu artigo Hispanismo e latinismo no debate intelectual ibero-americano, analisa a constituição de vertentes defensoras do hispanismo e do latinismo nos dois lados do Atlântico, entre meados do século XIX e meados do XX. Utilizando-se de revistas e jornais como principais fontes documentais, o autor mostra que, até inícios do século XX, não havia evidente oposição entre essas duas correntes, sendo predominante, inclusive, uma visão de complementaridade. Para intelectuais franceses, assim como para espanhóis, devia-se contrapor, às intervenções norte-americanas sobre a América ao sul do Rio Bravo, a “cultura latina”. E nos países hispano-americanos, principalmente após a intervenção dos Estados Unidos na guerra de independência de Cuba, fortaleceu-se uma afirmação latino-americanista. Após a Primeira Guerra Mundial, entretanto, as distinções entre o latinismo, vinculado às pretensões hegemônicas francesas, e o hispanismo, encabeçado pela Espanha, ficaram mais pronunciadas. O autor faz referências, também, acerca do debate sobre o iberismo, tanto na Espanha como em Portugal. Ao analisar concepções formuladas por intelectuais da península Ibérica e da América Hispânica, além de ações concretas para incrementar os vínculos com os países ibero-americanos, tanto por parte da França como da Espanha, Beired mostra a riqueza dos debates que envolviam, por um lado, filiações e vínculos intelectuais entre hispano-americanos e europeus, e, por outro, afirmações identitárias dos países latino-americanos – que cada vez mais se reconheciam como parte de uma região denominada América Latina –, sem ignorar as alterações que se estabeleceram nos termos do debate em função das significativas mudanças ocorridas na Espanha, a partir da Guerra Civil e da vitória franquista, em outros países europeus e nas Américas, ao longo do período enfocado.
No terceiro artigo do dossiê, Alejandra Mailhe analisa a revista Archivos de psiquiatría, criminología, medicina legal y ciencias afines, dirigida pelo médico e ensaísta argentino de origem italiana José Ingenieros (1877-1925), um dos mais importantes intelectuais latino-americanos de sua geração. A revista Archivos, publicada em Buenos Aires de 1902 a 1913, ocupou um lugar central, como mostra Mailhe, no desenvolvimento da psiquiatria e da criminologia como áreas especializadas do conhecimento, não só na Argentina como em muitos países da América Latina, contribuindo para a formação de uma rede de contatos e de ideias no continente. Entre seus colaboradores, Archivos teve autores latino-americanos e europeus. Entre os primeiros, brasileiros como Evaristo de Moraes, Francisco Franco da Rocha e Raimundo Nina Rodrigues. Conforme esclarece a autora, a revista tinha, como principal objetivo, o “estudo científico dos homens anormais”, especialmente criminosos e dementes, com ênfase em concepções positivistas de começos do século XX, mas com aberturas para outros enfoques. Para o leitor brasileiro, é de especial interesse a abordagem de Mailhe sobre as contribuições de Nina Rodrigues a Archivos e as divergências entre o autor brasileiro e José Ingenieros. O artigo de Mailhe procura mostrar, também, como a revista contribuiu para um processo, ainda que “muito moderado”, de “latino-americanização” dos intelectuais argentinos.
Regina Crespo, no artigo seguinte, intitulado O México de Rodrigo Otávio e de Cyro dos Anjos: entre as atribuições do funcionário e o olhar do escritor, analisa os olhares dos dois intelectuais brasileiros sobre o México, a partir de suas experiências no país setentrional em atividades diplomáticas. Depois de breves considerações sobre autores brasileiros que escreveram sobre o México – como Ronald de Carvalho, Erico Verissimo e Vianna Moog –, Crespo dedica-se à análise dos textos que, sobre o México, escreveram dois outros escritores brasileiros: o jurista Rodrigo Otávio e o escritor e funcionário público Cyro dos Anjos. Otávio esteve no México algumas vezes, entre 1923 e 1926, nas quais atuou em missões diplomáticas. Cyro, por sua vez, viveu na Cidade do México três décadas depois, de 1953 a 1954, atuando como professor da cátedra de Estudos Brasileiros na Universidad Nacional Autónoma de México e, a serviço da Embaixada brasileira, dando palestras sobre o Brasil em várias cidades mexicanas. No caso de Rodrigo Otávio, a principal fonte de Crespo foi seu livro México e Peru, publicado em 1940, além de jornais mexicanos da década de 1920 e da correspondência diplomática. Para analisar a visão de Cyro dos Anjos sobre o país hispano-indígena, a autora também se utilizou, principalmente, da correspondência diplomática, além das cartas entre o romancista de Montes Claros e o conterrâneo mineiro Carlos Drummond de Andrade.
Carlos Cortez Minchillo, no artigo que fecha o dossiê – intitulado A América Latina de Erico Verissimo: vizinhança, fraternidade, fraturas –, aborda a presença da América Latina na obra e trajetória do escritor gaúcho Erico Verissimo, com ênfase no seu relato de viagem México, publicado em 1957, e no romance O senhor embaixador, de 1965. Como sustenta o autor, Verissimo pensou a América Latina tendo os Estados Unidos como contraponto, tanto em razão do contexto da Guerra Fria como da polarização do debate político nos países latino-americanos, particularmente após a vitória, em 1959, da Revolução Cubana. A contraposição entre a América Latina e os Estados Unidos deu-se, também, face à própria vivência pessoal e profissional de Erico nos Estados Unidos, como palestrante e professor visitante em universidades norte-americanas, em 1941 e 1943-1945, e como diretor do Departamento de Assuntos Culturais da União Pan-Americana, de 1953 a 1956 – períodos em que Verissimo ampliou sua sociabilidade intelectual não só com norte-americanos como também com vários hispano-americanos. Se nos anos 1940, no contexto da Segunda Guerra, Erico assumiu a defesa do pan-americanismo, na década seguinte, em plena Guerra Fria, o escritor brasileiro tornou-se cada vez mais crítico da política interna e, principalmente, da política externa dos Estados Unidos, e mais sensível às sociedades latino-americanas, suas culturas, histórias e problemas sociais. Carlos Minchillo mostra, entretanto, as ambiguidades das representações do “povo” latino-americano nessas duas obras de Erico. O artigo busca avaliar, ainda, a recepção das obras de Verissimo entre os anos de 1950 e 1970, assim como as possíveis implicações das posições políticas do autor, um social-democrata crítico tanto dos regimes ditatoriais de direita como dos regimes totalitários do Leste Europeu, naqueles anos polarizados e de intensos debates em torno do compromisso político dos escritores e intelectuais.
Esperamos que este dossiê de Varia Historia contribua com o crescimento do interesse pela História Intelectual Latino-Americana e para incrementar as pesquisas, o intercâmbio e a circulação de ideias entre pesquisadores brasileiros e hispano-americanos.
Notas
1. RAMA, Ángel. La ciudad letrada. Hanover, New Jersey: Ediciones del Norte, 1984. [ Links ] A primeira edição brasileira foi publicada no ano seguinte: A cidade das letras. São Paulo: Brasiliense, 1985. Vale lembrar que Rama teve fortes vínculos com a cultura e a literatura brasileiras, tendo ministrado aulas na Universidade de São Paulo, em 1974, em disciplina sob a responsabilidade de Antonio Candido, e retornado ao Brasil em 1980 e 1983, apenas dois meses antes do acidente aéreo que o vitimou. Cf. AGUIAR, Flávio; VASCONCELOS, Sandra G. T. (orgs.). Ángel Rama: literatura e cultura na América Latina. São Paulo: Edusp, 2001, p. 30-35. [ Links ] 2. ALTAMIRANO, Carlos (dir.). Historia de los intelectuales en América Latina. Buenos Aires: Katz, 2008, p. 11. [ Links ] 3. O Programa de História Intelectual esteve sob a direção de Oscar Terán até 2005, Carlos Altamirano até 2009 e, desde então, Adrián Gorelik. Em 2011, foi criado o Centro de História Intelectual da UNQ. Cf. http: / / www.unq.edu.ar / secciones / 243-centro-de-historia-intelectual-chi / . Acesso em: 15 set. 2014.
Kátia Gerab Baggio – Departamento de História. Universidade Federal de Minas Gerais.
BAGGIO, Kátia Gerab. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.30, n.54, set. / dez., 2014. Acessar publicação original [DR]
Educação e História / Varia História / 2014
A educação, sobretudo escolar, assumiu ao longo do século XIX uma posição cada vez mais importante no mundo ocidental. Como processo central na configuração do mundo contemporâneo, a formação dos Estados nacionais repousou sua soberania sobre o conjunto dos cidadãos. Para que isso se tornasse efetivo, era necessário formar um novo indivíduo que se dispusesse a sacrificar-se por sua comunidade política imaginada. Imaginar a camaradagem horizontal, de que fala Benedict Anderson,[1] em que homens e mulheres se solidarizam entre si sem nunca terem se conhecido só foi se tornando possível à medida que diversas instituições foram se voltando para essa tarefa. A adoção de uma língua comum, o reconhecimento de um espaço geográfico nacional, a construção de um passado nacional foram, dentre outras, tarefas a que se dedicaram os construtores desse artefato cultural denominado Estado nacional. É por isso que a educação ocupa um papel cada vez maior nesse processo.
Por outro lado, a educação foi se tornando uma ferramenta importante de transformação social. O estudo clássico de T. H. Marshall sobre a evolução da cidadania na Europa ocidental já aponta isso.[2] Seu esquema de análise procura mostrar a articulação de três momentos sucessivos nesse processo. Primeiramente, há a conquista dos direitos civis, ligados à afirmação da liberdade individual e da propriedade privada. Em seguida, e como decorrência, há a progressiva expansão dos direitos políticos, sobretudo o voto, mas também o direito de associação. Com o aumento da participação política, houve o avanço dos direitos sociais, que abriu caminho para o surgimento do chamado welfare state ao longo do século XX. Nesse esquema, Marshall reconhece que houve um direito social que antecedeu todos os outros e que foi condição para que as classes trabalhadoras pudessem se organizar e ampliar suas reivindicações: a educação. Motivada pelas guerras, que agora eram travadas entre Estados nacionais, a defesa dessa nova forma de soberania requereu que se cuidasse da formação dos cidadãos, o que favoreceu a universalização do ensino laico e público. Consequência imprevista dos rumos tomados pelo processo de formação dos Estados nacionais, a educação veio a moldar as faces do mundo ocidental no século XX.
Os economistas também têm se preocupado com o problema da educação, nesse caso aplicado ao desenvolvimento econômico. Tratada como capital humano, a formação educacional de uma população teria implicações cada vez maiores sobre a capacidade de uma economia nacional fazer frente aos desafios do mundo contemporâneo. Por outro lado, estudiosos vêm se debruçando mais recentemente sobre o impacto da formação de capital humano na trajetória histórica das nações. Estudando de forma comparada a difusão do letramento e do numeramento em diversos espaços nacionais, a literatura econômica mais recente tem procurado correlacionar tal difusão com a maior capacidade de resposta aos desafios econômicos que se antepuseram ao longo da história desses Estados nacionais, sobretudo o problema da superação da desigualdade econômica.[3]
É diante desses papéis desempenhados pela educação na história que foi organizado o dossiê desse número de Varia Historia. O objetivo é destacar artigos que mostram a importância assumida pela educação em um momento chave no processo de formação do Estado nacional brasileiro: o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX.
O primeiro artigo, de autoria de Juliana Goretti Aparecida Braga Viega e Ana Maria de Oliveira Galvão e intitulado “Interfaces entre o processo de legitimação do grupo escolar como instituição de saber e a ressignificação do lugar simbólico de Ouro Preto como cidade monumento”, trata da criação do Grupo Escolar Pedro II como a construção de uma imagem de lugar de memória preservada para Ouro Preto. No contexto das reformas escolares do início da Primeira República, em Minas Gerais avançou-se na construção dos grupos escolares com o propósito de substituírem as antigas aulas isoladas. Para as autoras, a forma como se deu a instalação do Grupo Escolar Pedro II, e a própria escolha do seu nome, mostram que o contexto do qual o grupo escolar fazia parte parece ter desempenhado papel fundamental em seu processo de legitimação como instituição de saber. Portanto, a história dos locais onde os grupos foram implantados parece ter influenciado na produção de sua legitimidade e nos rumos que essas novas instituições escolares assumiram.
No texto “Colecionar e educar: o Museu Julio de Castilhos e seus públicos (1903-1925)”, Zita Rosane Possamai apresenta a trajetória dessa instituição museológica desde sua criação até o momento em que ela deixa de ser um museu de ciências naturais e se transforma em uma instituição historiográfica. Nessas primeiras décadas de sua existência, a despeito dos desafios sempre enfrentados pelos seus dirigentes, a instituição teve como foco a pesquisa e, ao seu lado, o ensino em articulação com instituições escolares gaúchas. Nesse sentido, ganha importância a aproximação dos procedimentos de exposição museológica com o chamado método intuitivo ou Lição de coisas. Introduzido ainda no Império e retomado na República, o novo método contrapunha-se aos métodos tradicionais de ensino (baseados na memorização e na repetição), estimulando um papel ativo do aluno no processo de aprendizagem. Ao partir do concreto para chegar ao abstrato, das coisas para chegar às ideias, procurava estimular a observação e a experiência no cômputo de uma educação científica. Para a autora, é possível observar nas práticas e ideias expressas por Francisco Rodolpho Simch, diretor do museu no período em estudo, “uma afinidade com os pressupostos do método intuitivo ao privilegiar a coleta, estudo, classificação e exposição de coleções vinculadas especialmente às ciências naturais, concebendo seus produtos como aqueles que permitiriam uma utilidade prática pela sociedade em favor do desenvolvimento econômico do estado do Rio Grande do Sul”.
O terceiro artigo do dossiê (“Cultura cívico-escolar católica e desfiles patrióticos no Brasil do início do século XX”, de Marcus Levy Bencostta) trata de analisar as estratégias utilizadas pela hierarquia da Igreja Católica que incentivaram em seus documentos episcopais as manifestações culturais de caráter cívico nas instituições educacionais sob sua tutela. Mais especificamente, aborda a atuação de Dom Nery, bispo da diocese de Campinas em São Paulo (1908-1920), que se integra às estratégias desenvolvidas pela Igreja Católica nas décadas iniciais do século XX para se reaproximar do Estado brasileiro, em resposta à laicização e ao anticlericalismo que marcaram a instalação do regime republicano. As escolas vinculadas à diocese voltaram-se, assim, para a participação nos desfiles cívicos. Nessa aproximação, não se furtaram à introdução da formação militar para seus alunos, em estreita colaboração com o Exército brasileiro.
Esses três textos mostram os rumos assumidos pela educação nesse momento específico da nação brasileira. Chama a atenção as inúmeras idas e vindas no estabelecimento de processos de formação educacional, apontando para os diferentes processos e contextos de legitimação dos processos educacionais que iluminam as dificuldades de universalização do ensino no Brasil.
Notas
1.ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
2. MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.
3. Exemplo dessa abordagem é: BATEN, Joerg; JUIF, Dácil; MUMME, Christina. Aberto e desigual: a globalização aumentou o intervalo educacional entre ricos e pobres? In:BOTELHO, Tarcísio R.; VAN LEEUWEN, Marco H. D. (orgs.). Desigualdade social na América do Sul: perspectivas históricas. Belo Horizonte: Veredas e Cenários, 2010, p.139-162.
Tarcísio R. Botelho – Departamento de História Universidade Federal de Minas Gerais.
BOTELHO, Tarcísio R. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.30, n.53, mai. / ago., 2014. Acessar publicação original [DR]
Direita na história / Varia História / 2014
Durante muito tempo, a pesquisa acadêmica relegou a segundo plano o estudo da direita política. Em parte, isso se explica pelo desprezo que os círculos progressistas devotavam à direita, que muitos consideravam destinada ao lixo da história graças ao esperado triunfo das forças favoráveis à mudança social. Tal quadro de pensamento fortaleceu-se com a derrota da direita no contexto da Segunda Guerra, o que levou os mais afoitos a imaginar um declínio irreversível das forças conservadoras. Ledo engano. Em décadas recentes a direita demonstrou capacidade de renovar-se e formar novas lideranças, ao mesmo passo em que tem conseguido atrair apoio social e suporte eleitoral. Processos iniciados há algum tempo, como o declínio dos modelos dominantes à esquerda – notadamente a crise das matrizes soviética e social-democrata – contribuíram para esse quadro, assim como eventos mais atuais, como a crise econômica europeia. Já vão longe os tempos em que a direita parecia sem futuro, obliterada pela sensação (exagerada) de uma maré montante dos valores progressistas. O fato é que a direita “voltou” ao proscênio da política mundial – e nacional –, o que a torna um tema de pesquisa ainda mais relevante. Para os historiadores, o fato de um determinado processo ou fenômeno estar superado não diminui sua importância como objeto de estudo. Porém, sem dúvida, a atualidade aguça o nosso interesse e curiosidade, bem como as eventuais implicações políticas do nosso trabalho.
Para designar adequadamente esse campo político o melhor seria dizer “direitas” – embora a pluralidade pode ser entendida como implícita no conceito –, pois o grupo é heterogêneo e marcado pela presença de diferentes tradições políticas. O estabelecimento das “fronteiras” que definem o campo direitista é assunto polêmico. Há desde as situações consensuais, como o conservadorismo clássico e o fascismo, cujo pertencimento à direita não é objeto de questionamento sério, até o caso mais complexo do liberalismo, que gera disputas mais acirradas devido a suas implicações atuais. Por outro lado, deve ser lembrado que a própria luta contra a esquerda ajuda a estabelecer os contornos da direita, já que o combate acirrado contra os inimigos é fundamental para a sua instituição como segmento específico do campo político.
Ao longo do tempo as forças de direita construíram tradições que lograram arraigar-se profundamente, ao ponto de podermos identificar algumas delas como verdadeiras culturas políticas. Mais além de constituírem projetos de poder e basearem-se em conjuntos de ideias, as culturas de direita fornecem identidades agregadoras e implicam valores que transcendem a política stricto sensu. A manutenção da ordem, na perspectiva de algumas culturas de direita, significa muito mais do que a defesa da propriedade e de interesses materiais. Elas batem-se, também, por valores morais e, frequentemente, religiosos, que percebem como estando ameaçados pelas ações da esquerda. Fundamental levar em conta a complexidade que caracteriza os grupos de direita, estudar seus valores, seus mitos, seus objetivos, de outro modo não se alcançará análise e compreensão adequadas desse fenômeno pleno de relevância histórica e de atualidade.
Tais considerações explicam a motivação para propor este dossiê aos editores de Varia Historia. Para dar corpo à ideia de organizar o volume foram convidados destacados pesquisadores estrangeiros que se dedicam à história das direitas. A intenção é oferecer aos estudiosos do tema no Brasil – aliás, um grupo em crescimento – uma amostra do que nossos colegas do exterior têm realizado. E os cinco artigos apresentam diferentes possibilidades (teóricas, temáticas, regionais) de abordagem do campo da direita. Não se trata de aprender ou ensinar lições, afinal, estudos elaborados no Brasil também têm inspirado pesquisadores de outros países. A expectativa é estabelecer uma relação de troca que poderá ser frutífera para todos nós, inclusive porque a maioria dos autores convidados pesquisa o contexto brasileiro ou dialoga com ele.
O primeiro texto do dossiê é de autoria do pesquisador e professor português António Costa Pinto, que tem publicado importantes trabalhos sobre movimentos autoritários e fascistas da Europa. No presente artigo, Costa Pinto centra sua análise no corporativismo e nas instituições nele inspiradas, que foram apropriadas por diferentes grupos de direita. O autor analisa as origens do corporativismo, mas, sobretudo, a sua difusão no contexto entre guerras (anos 1920-40), quando alcançou vários países na Europa e em outros continentes. No texto, Costa Pinto mostra que as ideias e as instituições corporativistas, originalmente produtos do pensamento católico, transcenderam essas bases religiosas e foram adaptadas por diferentes regimes políticos autoritários e fascistas, por vezes alcançando marcante longevidade.
No artigo seguinte, a pesquisadora norte-americana Margaret Power apresenta um estudo sobre tema marcante na histórica recente das manifestações de direita, o ativismo político de grupos femininos. A participação das organizações femininas no golpe de 1964 é tema conhecido e já bastante estudado no Brasil. A novidade do artigo é mostrar as conexões transnacionais estabelecidas por tais grupos de mulheres, concentrando-se no estudo de redes que se constituíram entre Brasil, Chile e Estados Unidos. Tributária da historiografia mais recente que vem questionando visões tradicionais sobre a Guerra Fria e o papel dos atores locais nessas disputas, Power analisa como a direita norte-americana foi influenciada pela atuação das mulheres conservadoras atuantes em países da América Latina.
O terceiro texto do dossiê foi escrito por Ernesto Bohoslavsky, historiador argentino que tem oferecido contribuição importante ao estudo das direitas no cone sul. Neste artigo, Bohoslavsky analisa o tema do anticomunismo no debate político e parlamentar do Brasil e do Chile no contexto dos anos iniciais da Guerra Fria. Nesse período ocorreram processos semelhantes de perseguição aos comunistas nos dois países, que culminaram na exclusão dos respectivos Partidos Comunistas do jogo político institucional, nos anos de 1947 e 1948. Aprofundando o estudo dos discursos políticos produzidos por líderes de direita nesse contexto, o autor encontrou um quadro mais complexo no que toca ao anticomunismo professado por todos eles. A iniciativa de proscrever os partidos comunistas do jogo político não foi aceita de maneira unânime entre as direitas, que divergiram na estratégia de combate ao comunismo. Enquanto alguns setores apoiaram a repressão total aos partidos comunistas, outros grupos de direita acharam que a proibição do funcionamento legal de tais partidos era ineficiente, além de significar uma agressão inaceitável às garantias democráticas tradicionais.
No artigo seguinte do dossiê publicamos uma interessante reflexão do historiador francês Stéphane Boisard, cujas pesquisas têm como foco as direitas na América Latina. Neste texto, a proposta de Boisard é fazer algumas reflexões gerais sobre a aplicação à América Latina de categorias e conceitos elaborados originalmente para o quadro europeu. Partindo da análise dos principais debates teóricos realizados por autores europeus para a caracterização das direitas, o autor aponta a necessidade de aprofundar as pesquisas sobre esse tema na América Latina. Enfatizando a importância de pesquisar as redes de circulação de ideias entre a América e a Europa, e o modo como os conceitos europeus foram recebidos nesta parte do mundo, Boisard sugere, entre outras coisas, que se dê atenção especial à periodização da história das direitas, e que se busque uma adequada caracterização dessas correntes políticas na América Latina.
O texto do historiador norte-americano Benjamin A. Cowan encerra o dossiê, com um esclarecedor estudo que aponta a atualidade do tema da direita. Ele aborda a história recente da atuação política dos evangélicos conservadores, que ganharam notável visibilidade nos dias atuais. A originalidade do trabalho de Cowan reside em mostrar o processo de surgimento e ascensão da direita evangélica em seus primórdios, nos anos 1970. Atemorizados com o processo de mudança de comportamentos e valores morais, que eles percebiam como implicado nas ações da esquerda, os evangélicos conservadores abandonaram sua atitude tradicional de evitar o campo político. Eles passaram a abraçar com entusiasmo a militância conservadora, entrando em choque com grupos protestantes de linha “progressista”. Nesse caminho, aliaram-se à ditadura militar, em nome da defesa da família tradicional e da moral cristã, contra a liberdade sexual e o comunismo.
Enfim, o leitor tem nas mãos um conjunto de trabalhos de qualidade, que mostram o “estado da arte” no campo de estudos da história da direita. O dossiê é uma aposta no estreitamento do diálogo transnacional envolvendo os pesquisadores dedicados ao tema, assim como um convite para que jovens historiadores venham se juntar ao grupo.
Boa leitura, bom diálogo.
Rodrigo Patto Sá Motta – Departamento de História Universidade Federal de Minas Gerais.
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.30, n.52, jan. / abr., 2014. Acessar publicação original [DR]
Nação, Comércio e Trabalho na África Atlântica / Varia História / 2013
É visível o crescimento do campo dos estudos africanos no Brasil ao longo da última década. Cada vez mais eventos dedicados ao tema ocorrem em diversos espaços no país, as agências de fomento investem no desenvolvimento de projetos vinculados à área, as traduções e publicações de livros de pesquisadores brasileiros também aumentaram significativamente nos últimos anos. O diálogo internacional, já em andamento, é mais um objetivo a ser perseguido e consolidado nos próximos anos.
Este dossiê é mais um passo nesta direção tendo sido originalmente pensado para trazer novas reflexões ou releituras acerca dos temas relacionados à história do trabalho no continente africano. Trata-se de tema caro e fundamental para a compreensão dos desenrolares históricos das formações sócio políticas da África, inclusive por sua centralidade na própria tradição historiográfica. Estudos sobre a escravidão, o tráfico atlântico de escravos e as formas de trabalho forçadas produziram verdadeiros clássicos cujas influências extrapolaram as áreas de estudo relativas apenas à história do trabalho.
Se por um lado os desenvolvimentos historiográficos das últimas décadas fizeram muito para ultrapassar as velhas dicotomias que nortearam as pesquisas sobre história da África por boa parte da segunda metade do século XX, mostrando as complexidades das condições sociais para muito além dos binômios escravo-livre, colonizado-colonizador, vítima-algoz, colonial-pós-colonial, entre outros, por outro, não é possível desprezar as relações violentas que se impuseram em diversos níveis sobre as várias regiões do continente africano desde o contato com a Europa em estágio inicial da expansão capitalista. Como pensar as mudanças nas formas de escravidão no interior do continente sem levar em consideração as dinâmicas atlânticas das épocas moderna e contemporânea? Como considerar as condições extremas de exclusão e opressão no continente sem atentar para as lógicas coloniais derivadas da expansão imperial europeia a partir de meados do século XIX? Boa parte destas questões estão, direta ou indiretamente, abordadas nos textos do dossiê, escritos por historiadores brasileiros, africanos e europeus, num esforço de ampliar os debates do campo crescente em searas brasileiras e estimular um produtivo diálogo internacional.
Antes porém, apresentamos um texto de José da Silva Horta, que chegou-nos por ocasião de sua eleição para o PROGRAMA CÁTEDRAS do Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares / IEAT / UFMG e patrocinado pela Fundação de Desenvolvimento da Pesquisa – FUNDEP. Nações”, marcadores identitários e complexidades da representação étnica nas escritas portuguesas de viagem: Guiné do Cabo Verde (séculos XVI e XVII) foi o texto original apresentado na Grande Conferência, atividade primeira desenvolvida no âmbito do programa de Catedrático Residente da UFMG que teve parcerias transdisciplinares com vários grupos de pesquisa, centros e laboratórios da UFMG e PUC-Minas.1
O texto de José da Silva Horta apresenta análise singular ao defender o uso de etnônimos para compreender as “nações” enquanto identidades étnicas das sociedades do Noroeste africano subsaariano a partir das pistas fornecidas por três dos mais importantes tratados do corpus documental para a região, escritos entres fins dos séculos XVI e XVII, por André Álvares de Almada, André Donelha e Francisco de Lemos Coelho. O autor enfrenta não apenas o desafio conceitual da historiografia mas também avança ao apresentar metodologias de leituras para compreender como pensavam os oeste-africanos em relação aos seus marcadores identitários, que variavam conforme as sociedades. As lógicas identitárias oeste-africanas, por vezes, foram bem captadas pelos discursos antropológicos dos viajantes / comerciantes, e em outras foram reconstruídas pela matriz de pensamento ocidental destes. Este foi o escopo da análise de Horta – mostrar que as sociedades se identificavam a partir do sentimento de pertença não restrito a um território ou a uma língua.
Voltando, portanto, ao tema original do dossiê, a organização dos outros artigos se deu por sequência temática e temporal. No artigo Biografia como História Social, Roquinaldo Ferreira apresenta a trajetória incrível de duas gerações da família Ferreira Gomes com o objetivo de explicar o funcionamento das redes transatlânticas que deram sustento ao comércio ilegal de escravos entre Angola e o Brasil. Assim como as estratégias utilizadas pelos comerciantes de Benguela, como o empresário Gomes Júnior, filho do carioca Ferreira Gomes e de mãe africana (Benguela), para driblar o controle do comércio ilegal de escravos. As trajetórias familiares mostram como comerciantes brasileiros e angolanos instalados ao sul de Luanda tentaram driblar as autoridades britânicas e portuguesas na costa angolana no contexto da proibição do tráfico de escravos e do comércio de urzela. A decadências das famílias angolana-brasileiras em Benguela, como ocorreu com o clã Ferreira Gomes, foi marcada pela independência do Brasil, a extinção do comércio de escravos e a tentativa de maior controle colonial português que diminuía drasticamente o papel das elites da terra. As questões raciais que até então não eram levadas em consideração devido ao pequeno número de brancos passavam a ter outra conotação em meados do Oitocentos em Angola.
O artigo de Elaine Ribeiro trata dos trabalhadores africanos no período posterior ao tratado por Ferreira. Seu texto aborda um grupo contratado em Luanda para acompanhar a expedição de Henrique de Carvalho à Mussumba do Muatiânvua, na década de 1880, no contexto pós abolição da escravidão nas possessões portuguesas. Com uma instigante análise baseada principalmente no próprio relato de Henrique de Carvalho – inclusive em parte da documentação iconográfica disponível – Elaine procura apresentar as condições de trabalho destes africanos, suas atividades e remunerações, as hierarquias estabelecidas entre eles e suas estratégias de atuação no contexto da expedição. Desta forma, aflora de sua pesquisa, por um lado, uma rica imagem do cotidiano destes trabalhadores, sempre em relação dialógica com a historiografia africanista que aborda as regiões visitadas e, por outro, eventuais formas de reconstrução identitária deste grupo que apropriava-se de elementos culturais distintos e construíam seus caminhos e vivências ao longo da expedição.
O historiador português Augusto Nascimento, especialista na história de São Tomé e Príncipe, analisou as questões relativas ao trabalho forçado de serviçais nas roças de São Tomé e Príncipe, importados do continente, principalmente através de Angola, e ao poder dos roceiros no momento da polêmica do cacau escravo no arquipélago. Os objetivos do autor consistem na análise, através dos discursos na imprensa de São Tomé, de como os são-tomenses se tentaram interpor no debate em torno do trabalho forçado de africanos e também na reflexão das fronteiras entre nação e raça, pensadas de forma distintas pelos ilhéus e autoridades colonizadoras num período em que a colonização estava assentada em critérios de hierarquização racial e as noções republicana de cidadania não se aplicavam à maioria dos indivíduos dos chamados territórios coloniais.
O ensaio de Jean Michel Tali, numa instigante reflexão sobre o trabalho forçado no caso dos regimes coloniais franceses no continente africano, retoma um dos temas clássicos da historiografia sobre o período colocando-o em perspectiva e dialogando com autores de diferentes matizes. Desta reflexão, resulta uma interessante síntese do estado atual das pesquisas sobre o tema. Ao realizar uma análise ao mesmo tempo aguçada e ampla, o autor recoloca a importante questão da relação entre formas de trabalho compulsório e o imperativo capitalista dos regimes coloniais. Com foco principal nas relações de produção na África colonial francesa, Jean-Michel amplia o escopo de análise com constantes comparações com regiões colonizadas por outros países europeus, demonstrando com grande clareza que, a despeito de projetos coloniais aparentemente diferentes, a expropriação forçada do trabalho foi, em conjunção com a expropriação territorial, elemento fundamental e basilar das práticas colonialistas em todo o território africano. Desta forma, sua interpretação reapropria-se de uma perspectiva global ao considerar a violência das relações de trabalho no continente africano como parte integrante do processo de formação do sistema mundo capitalista, e como ela se entranha em todos os níveis da hierarquia social ao longo do tempo.
Esta mesma perspectiva global orienta a pesquisa do historiador nigeriano Adoyi Onoja, a despeito de seu estudo de caso referir-se especificamente a uma história regional, qual seja, ao trabalho da polícia na cidade de Jos, Plateau, no centro da Nigéria. O percurso que Adoyi traça para analisar as entrevistas realizadas com membros da polícia em Jos engloba desde as relações entre a conformação do Estado nacional nigeriano pós independência e suas relações políticas internacionais imersas na Guerra Fria, passando pelas reflexões sobre os impactos dos longos anos sob governo militar em seu país e as consequências desastrosas das políticas econômicas centralizadoras, organizadas em torno da exportação de petróleo principalmente a partir da década de 1980, que desmantelaram os setores agrícola e industrial da economia nigeriana.
A conversão dos rendimentos do petróleo em investimentos na área de segurança, justificados pela instabilidade social resultante do desmantelamento dos demais setores da economia, explicaria então a predominância do exército como força de segurança nacional, que assumiu em grande parte as atividades que originalmente seriam apanágio de sua polícia não militar. Finalmente, surge um vívido quadro das condições materiais de trabalho de policiais e oficiais numa região marcada por tensões sociais no centro da Nigéria.
Esperamos, enfim, que as leituras destes textos estimulem cada vez mais novos pesquisadores e novas pesquisas sobre o tema, sempre ampliando os debates e contribuindo para o amadurecimento de um campo em acelerado crescimento no Brasil, e fortalecendo e consolidando o processo de internacionalização em curso.
Nota
1.GRUPOS DE PESQUISAS: Escravidão, mestiçagem, trânsito de culturas e globalização – séculos XV a XIX, coordenador: Eduardo França Paiva (Departamento de História – FAFICH / UFMG); Migrações e deslocamentos – a constituição de ‘estéticas diaspóricas’ nas literaturas africanas de Língua Portuguesa, coordenadora: Maria Nazareth Soares Fonseca (Programa de Pós-graduação em Letras / Instituto de Ciências Humanas / PUC-MG); População e Políticas Sociais,coordenador: Eduardo Rios Neto (Departamento de Demografia – FACE / UFMG); Literaterras: escrita, leitura, traduções; pesquisadora: Sônia Queiroz (Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários – FALE / UFMG); ARCHE – Arte, Conservação e História – Espaços, pesquisadora: Yacy-Ara Froner (Departamento de Artes Plásticas – Escola de Belas Artes / UFMG); A Modernidade Ibero-americana e a capitania de Minas Gerais (séculos XVII-XVIII) – Espaços, Poder, Cultura e Sociedade (UFMG / CNPq), coordenadora: Júnia Furtado (Departamento de História – FAFICH / UFMG), pesquisadora: Márcia Almada.
CENTROS E LABORATÓRIOS: Centro de Estudos sobre a Presença Africana no Mundo Moderno-CEPAMM-UFMG, coordenador: Eduardo França Paiva (Departamento de História – FAFICH / UFMG); Centro de Estudos Africanos – CEA-UFMG, coordenador: Luiz Alberto O. Gonçalves (Presidente do Conselho do CEA-UFMG); Laboratório de Estudos Africanos e História do Atlântico Negro (CNPq / UFMG), coordenadora: Vanicléia Silva Santos (Departamento de História – FAFICH / UFMG); Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino de História -LABEPEH, coordenadores: Júnia Sales, Pablo Lima e Soraia Dutra (Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino, DMTE – FAE / UFMG).
Alexsander Gebara – Departamento de História. Universidade Federal Fluminense
Vanicléia Silva Santos – Departamento de História. Universidade Federal de Minas Gerais.
GEBARA, Alexsander; SANTOS, Vanicléia Silva. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.29, n.51, set. / dez., 2013. Acessar publicação original [DR]
Relações Civis e Militares e Segurança Nacional / Varia História / 2012
Mais uma vez navegando na transdisciplinaridade, o atual dossiê “Relações Civis Militares e Segurança Nacional”, a exemplo do dossiê anterior, “História e Inteligência”, trafega em temas cujo estudo vem, paulatinamente, crescendo no país e na América Latina. A importância de pesquisas sobre temas vinculados à defesa, estudos estratégicos e segurança tem sido reconhecida em termos nacionais por meio do Ministério da Defesa, por exemplo, que vem ampliando o debate junto à sociedade civil, fomentando pesquisas por meio de editais e prêmios e abrindo interlocução com a CAPES e o CNPq, e no âmbito internacional, pela criação de instituições de pesquisa tais como a Red de Seguridad y Defensa de America Latina (RESDAL).
De uma análise sobre o comportamento dos militares e o uso da violência que remonta à década de 1970, realizada ainda por poucos pesquisadores, a exemplo do trabalho pioneiro de Eliézzer Rizzo de Oliveira, estas pesquisas passaram nos anos de 1980 e 1990 para um enfoque sobre as relações civis-militares, com destaque para a influência exercida por trabalhos como os de João Roberto Martins Filho, Jorge Zaverucha, e a trilogia produzida pelo Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getúlio Vargas – CPDOC / FGV, sob responsabilidade de Maria Celina D´Araújo, Celso Castro e Gláucio Ary Dilon Soares. Atualmente, estas análises abarcam também as possibilidades de emprego da força e uso político das forças armadas, a exemplo de alguns artigos que se seguem.
De uma forma geral, trabalhar sobre o conceito de segurança nacional permite uma gama infinita de possibilidades pois, afinal de contas, o que podemos entender como segurança? A segurança implica uma situação percebida como livre de ameaças ou de quaisquer outros fatores conflitivos. Na presença de ameaças ou conflitos identificáveis, a segurança, do ponto de vista institucional das democracias, é percebida como a possibilidade de articulação de mecanismos institucionais capazes de neutralizar essas ameaças ou conflitos, a fim de se alcançar determinado ordenamento e assegurar o conjunto de garantias e direitos constitucionais, bem como de assegurar o funcionamento integral das instituições política.
No entanto, a segurança é interpretada e defendida tanto nas democracias como em regimes ditatoriais, e está relacionada às ameaças internas e externas e aos padrões de relação existente entre as instituições vinculadas ao poder coercitivo e à sociedade.
A segurança pode tanto estar relacionada às ameaças externas, que dizem respeito à própria existência do Estado, preservação de território, sobrevivência de sua população etc., quanto a aspectos internos da sociedade. Quanto mais fechado for o regime, maior será a propensão do governo a enfatizar a segurança interna e preocupar-se com a repressão política dentro do próprio território.
Durante os governos autoritários latino-americanos, o estabelecimento da “segurança nacional” foi a base para o desenvolvimento de uma série de desrespeito aos direitos individuais e humanos, e é possível que esta “herança maldita” desqualifique a utilização do conceito de segurança nacional para a resolução de conflitos em sociedades democráticas. Não obstante, Marco Cepik chama atenção para uma importante questão: embora o conceito de “segurança nacional” careça de legitimidade em um contexto democrático, é impraticável reduzir a segurança coletiva à segurança individual, o que impede o simples abandono do conceito de segurança nacional. Neste sentido, a Segurança Nacional implica um grau relativo de proteção individual e coletiva. Estar seguro significa viver em um Estado minimamente capaz de neutralizar ameaças através de negociações, de obter informações sobre capacidades e intenções dos interesses adversários através dos recursos que lhe estão disponíveis e legitimados pelo exercício soberano e exclusivo do monopólio da força física.
Portanto, considerando a elasticidade e ambiguidade do conceito, optamos por dividir o dossiê em três partes. Os três capítulos iniciais (Enrique Padrós, João Roberto Martins Filho, e Suzeley Mathias e Fabiana Andrade) abordam a segurança nacional a partir da perspectiva da violência e do sistema institucional de repressão. Os dois capítulos seguintes, elaborados por Alessandra Carvalho e Maria Celina de Araújo, abordam o tema da segurança nacional pela perspectiva política, seja no período da ditadura, seja no presente. Os dois capítulos finais (David Mares e David Pion-Berlin) enfatizam tanto as relações civis-militares e a questão da segurança nacional (agora a partir de uma nova lógica interpretativa, não mais vinculada à Doutrina de Segurança Nacional) que perpassam todos os textos, quanto às possibilidades de emprego e uso político dos militares. Neste caso, os dois autores, além de consideram o recente contexto histórico, fornecem sugestões sobre o aperfeiçoamento do emprego das forças armadas na América Latina.
De forma detalhada e abrindo os trabalhos, Enrique Padrós, no texto A ditadura civil-militar uruguaia: doutrina e segurança nacional, realiza uma análise da interpretação que os militares uruguaios fizeram da Doutrina de Segurança Nacional. Para o autor, a doutrina foi o fator basilar da política repressiva estatal que colocou a proteção da segurança nacional como premissa principal, justificadora e legitimadora da disseminação do chamado terrorismo de Estado (TDE). As interpretações sobre conceitos fundamentais da doutrina permitiram aos militares uruguaios instrumentalizar a atuação repressiva junto à sociedade civil.
João Roberto Martins Filho também elabora uma discussão relacionada à Doutrina de Segurança Nacional e procura identificar quais matizes teóricos teriam orientado a política de repressão brasileira durante a ditadura. Para o autor, ao contrário das premissas estabelecidas por vários autores brasileiros e por importantes latino-americanistas, de que os estadunidenses teriam ofertado a maior parte das orientações doutrinárias da nossa política repressiva, a doutrina de guerra revolucionária francesa teria sido ainda mais importante que a dos Estados Unidos em países como Brasil, Chile e Argentina. O trabalho procura acompanhar com detalhe a evolução e aplicação deste ideal no seio das Forças Armadas brasileiras entre 1959 e 1975.
Ainda pensando a política repressiva durante a recente ditadura brasileira, Suzeley Kallil Mathias e Fabiana de Oliveira Andrade, no texto O Serviço de Informações e a cultura do segredo, revisitam a literatura relacionada à criação e desenvolvimento dos serviços de informações brasileiros até o auge da repressão, entendido aqui como a primeira metade da década de 1970, momento de desarticulação da Guerrilha do Araguaia. As autoras analisam o contexto histórico de desarticulação da guerrilha a partir da terceira campanha, conhecida como Campanha Marajoara, e avaliam como a mudança de estratégia castrense no âmbito interno permitiu que a comunidade de informações agisse de forma paralela ao comando hierárquico, mas neste caso, em particular, sem mesmo o conhecimento e anuência dos comandantes regionais. Argumentam que a mudança do modus operandi, favorecida pela capacidade de adaptação à cultura do segredo, teria sido um fator decisivo para que os militares alcançassem, definitivamente, seus interesses.
Entrando na esfera da relação comportamento político e segurança nacional, Alessandra Carvalho. em “Democracia e desenvolvimento” versus “Segurança e desenvolvimento”: as eleições de 1974 e a construção de uma ação oposicionista pelo MDB na década de 1970, analisa a elaboração de uma ação oposicionista pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB) no decorrer da década de 1970, tendo como ponto de inflexão as eleições de 1974 para o poder legislativo federal. A autora avalia como que, para obter o crescimento e a projeção desejada e alcançar seus interesses, foi preciso elaborar um discurso que rompesse com a ênfase no binômio segurança e desenvolvimento defendida pela elite econômica e pelos militares, orientando o discurso para aspectos relacionados ao fortalecimento de instituições democráticas.
Já Maria Celina D´Araújo, em O estável poder de veto Forças Armadas sobre o tema da anistia política no Brasil, demonstra como há um determinado nível de continuum em relação ao poder político dos militares desde a ditadura. Neste sentido, a autora afirma que os militares brasileiros detém um poder estável de veto player, que vem sendo incisivamente aplicado em relação ao tema da anistia. Esta capacidade seria fruto da autonomia militar antes, durante e depois da ditadura, da permanência dos baixos níveis de respeito aos direitos humanos na sociedade brasileira, e do baixo interesse do Congresso e do governo em geral pelo tema das Forças Armadas.
Transitando do tema política e segurança nacional para o tema relações civis-militares e segurança nacional, David Mares, em seu artigo Por que os latino-americanos continuam a se ameaçar: o uso da força militar nas relações intra latino-americanas, analisa a recorrente presença do emprego de um baixo nível de força militar na resolução de tensões, no contexto histórico latino americano do século XX e início do século XXI. Contrariando a máxima observada de forma simplista, de que a América Latina é um continente de paz, o autor identifica a ocorrência da militarização dos países latino-americanos e o emprego das forças armadas não apenas na resolução de disputas inter-regionais, mas também no nível interno, no âmbito da segurança doméstica. Enfoque importante é dado à capacidade e interesse de intervenção na região nos últimos anos por parte dos organismos internacionais responsáveis por arbitrarem / mediarem estes conflitos. O argumento do autor é que, em relação à arquitetura de segurança da América Latina, tem havido um crescente incentivo para a militarização das ações, o que não lhes imprime, necessariamente, eficiência.
Por fim, também no âmbito da temática segurança nacional e relações civis-militares, David Pion-Berlin, em Cumprimento de missões militares na América Latina, ao analisar a correlação de forças e interesses entre poder político e militares na América Latina nos últimos anos, identifica questões que, historicamente, têm provocado o cumprimento ou não-cumprimento dos militares em relação às missões que lhes tem sido atribuídas. Fatores como natureza da missão, experiência, treinamento e compatibilidade de funções, associados aos incentivos e desincentivos morais para sua ação, têm pesado como questões fundamentais para a decisão dos militares de aceitarem tais tarefas. A atuação em torno das ações de manutenção da paz, de ação cívica e de missões de destruição de drogas têm sido historicamente mais aceitas do que as missões anti-crimes e de manutenção da ordem pública, com algum grau de possibilidade de negociação no que tange às ações de contra-insurgência.
Agradecendo cada um dos autores pelas generosas contribuições, e certa de que com este segundo Dossiê Vária História 2012 estamos contribuindo para as pesquisa sobre os temas de segurança, defesa e inteligência no país, convido a todos a desfrutar da leitura.
Notas
[Numeração indisponível no corpo do texto original]1.OLIVEIRA, Eliézzer Rizzo de. Forças Armadas, política e ideologia no Brasil, 1964-1969. Petrópolis, RJ: Vozes, 1976. [ Links ]
2. MARTINS FILHO, João Roberto. O palácio e a caserna, 1964-1969. São Carlos, SP: Editora da UFSCar, 1995. [ Links ]
3. ZAVERUCHA, Jorge. Rumor de sabres: controle civil ou tutela militar? Estudo comparativo das transições democráticas no Brasil, na Argentina e na Espanha. São Paulo: Ática, 1994. [ Links ]
4. D´ARAÚJO, Maria Celina, CASTRO, Celso e SOARES Gláucio Ary Dilon. Visões do golpe: a memória militar sobre 1964. Rio de Janeiro: Relume Dumara, 1994; [ Links ] SOARES Gláucio Ary Dilon, D´ARAÚJO, Maria Celina e CASTRO, Celso. [ Links ] Os anos de chumbo: a memória militar sobre a repressão. Rio de Janeiro: Relume Dumara, 1994; SOARES Gláucio Ary Dilon, D´ARAÚJO, Maria Celina e CASTRO, Celso. [ Links ] A volta aos quartéis: a memória militar sobre a abertura. Rio de Janeiro: Relume Dumara, 1995.
5. BRANDÃO, Priscila. Serviços secretos e democracia no Cone Sul. Niterói: Editora Impetus, 2010, p.23. [ Links ]
6. CEPIK, Marco. Espionagem e democracia. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 2003, p.63. [ Links ]
Priscila Brandão – Organizadora. Departamento de História, UFMG. E-mail: priscilahis@gmail.com
BRANDÃO, Priscila. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.28, n.48, jul. / dez., 2012. Acessar publicação original [DR]
História e Inteligência / Varia História / 2012
O presente Dossiê História e Inteligência é dedicado ao estudo de temas vinculados à atividade de inteligência, a qual lentamente vem sendo reconhecida como legítima e necessária por grande parte das sociedades, inclusive daquelas que emergiram recentemente de ditaduras civis e / ou militares. Tal reconhecimento tem impulsionado uma ampla gama de pesquisas, permitindo que os Estudos de Inteligência constituam-se em uma área acadêmica multidisciplinar, cada vez mais reconhecida internacionalmente.
A pesquisa sobre a atividade de inteligência desenvolveu-se nas últimas décadas principalmente por meio da discussão sobre a reforma institucional dos serviços de inteligência em contextos políticos pós-autoritários, sobre a constituição de organismos internacionais de cooperação no contexto pós-guerra fria, de análises institucionais sobre a distribuição de poder entre civis e militares, bem como dos debates em torno do acesso à informação.
No país, o número de pesquisas historiográficas relacionadas ao tema ainda é muito pequeno. Nesse sentido, o Dossiê ora apresentado é constituído de uma diversidade de temas correlatos à atividade, cujo recorte cronológico marcadamente recente expõe faces da incipiente emergência do tema enquanto esfera de pesquisa acadêmica no Brasil, ainda fortemente impactada pela produção de cientistas políticos.
Diante da diversidade dos artigos, optamos por dividi-los de acordo com os temas. Nesse sentido, os dois primeiros abordam questões vinculadas à história da atividade de inteligência no Brasil de pontos de vista distintos. O primeiro enquanto evento, uma ditadura militar caracterizada pelo processo de institucionalização do seu sistema repressivo, e o segundo enquanto análise dos produtos desse mesmo evento, dos registros da violência presentes nos acervos documentais produzidos no período.
De forma mais detalhada, o trabalho de Samantha Viz Quadrat, A preparação dos agentes de informação e a ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985), aborda o processo de formação e capacitação dos agentes responsáveis pelo desenvolvimento da atividade de inteligência no país durante a recente ditadura militar. Eles, aqui compreendidos como um dos principais atores no desenvolvimento da repressão política no Brasil. Para tanto, a autora discorre sobre o conceito de segurança nacional e os impactos que a Doutrina de Segurança Nacional (DSN) produziu na própria forma de se perceber a missão militar, bem como analisa a influência que o conceito de guerra revolucionária, desenvolvido pelos franceses após a derrota na Guerra da Indochina, acarretaria para o processo repressivo brasileiro. Essa análise é elaborada, sobretudo, amparada nos manuais elaborados pela Escola Superior de Guerra (ESG), desde um período que precede a própria ditadura militar.
O investimento no binômio informação-repressão analisado por Samantha durante a ditadura teve como consequência, além da institucionalização do uso da violência por parte das Forças Armadas no campo interno, uma gigantesca produção de arquivos sobre ações, suspeitos e análises sobre o comportamento daqueles pejorativamente qualificados como subversivos e terroristas, cuja dimensão de papéis reflete uma tradição caracteristicamente cartorial do comportamento das Forças Armadas. Nesse sentido, em seu artigo, História do Tempo Presente, eventos traumáticos e documentos sensíveis: o caso brasileiro, Carlos Fico realiza uma análise sobre a existência e o desafio de acesso aos fundos documentais produzidos por esse sistema repressivo, considerando o enfoque da História do Tempo Presente e os dilemas enfrentados pelos historiadores nos campos metodológicos e epistemológicos, cuja pesquisa muitas vezes pode acarretar na invasão da privacidade e intimidade das pessoas – tensão que permeia todo o debate em torno desse acesso – , além da intervenção do historiador na sociedade, a partir do momento que ainda predomina um anseio de sua parte pelo direito à verdade. A tensão entre estado e cidadão no acesso à informação constitui ponto crucial do debate.
No terceiro artigo é realizado um debate sobre como no período pós Guerra Fria, o Estado tem que gerenciar sua produção de informação, não mais como forma de construir verdades sobre sua atuação, mas como modo de potencializar a administração de informações sensíveis em um contexto de pretensa liderança regional. Assim, em seu trabalho Estado Informacional: implicações para as políticas de informação e de Inteligência no limiar do século XXI, Marta Kerr analisa o processo de transformação do estado burocrático, característico dos séculos XIX e XX, em um chamado “estado informacional”. A ênfase recai sobre o desenvolvimento das novas Tecnologias de Informação (TI’s), e como essas demandam mudanças em relação às políticas de informação praticadas nos anos de 1960 e 1970. Mais especificamente, como essa emergência, associada à nova dinâmica da globalização e da distribuição multipolar do poder, tem demandado eficácia à atividade de inteligência, essencial não apenas para a segurança, como também para viabilizar a competitividade das estruturas econômicas e o desenvolvimento de diferentes nações, em um contexto mundial regido pelo paradigma técnico e econômico das TI’s, fortemente marcado pelo crescimento das rivalidades econômicas.
Já no quarto artigo os autores procuram identificar padrões de comportamento institucionais e políticos que têm conduzido as falhas e ineficácia da atividade de inteligência desde a Guerra Fria. No trabalho Explicando falhas da inteligência governamental, Marco Cepik e Christiano Ambos procuram identificar, nos estudos de caso narrados pela literatura de inteligência, padrões de comportamento que obstruíram um desempenho eficaz da atividade em distintos países, em diferentes momentos. As análises consideram desde a Crise dos Mísseis em Cuba, na década de 1960, até os ruidosos fracassos do começo do século XXI, como a avaliação realizada pelos EUA que o conduziram à invasão do Iraque, aos atentados à Madrid e à Rússia em 2004. A ênfase recai tanto sobre as distorções cognitivas produzidas pelos analistas de inteligência no processo de produção de inteligência, quanto na interação produtor e consumidor desta mesma inteligência.
Encerrando o Dossiê, o conjunto dos últimos três artigos leva em consideração análises regionais. Peter Gill, em seu artigo Alguns aspectos da reforma da inteligência na América Latina, procura identificar as principais características da reforma no setor de inteligência de segurança na América Latina, considerando as relações ente o estado e outros atores relacionados à área de segurança. No desenvolvimento de sua análise, o autor dialoga com a literatura relacionada às relações civis militares, aos legados autoritários, e aos processos de transição e consolidação democrática, sendo que sua ênfase recai sobre os casos brasileiro e argentino.
Também trabalhando com a América Latina, José Manuel Ugarte, em seu artigo El ámbito normativo de la inteligencia interior en América Latina, além de estabelecer um debate conceitual sobre o termo domestic intelligence analisa, de forma comparada, a legislação criada para regular a atividade de inteligência interna após os atentados às Torres Gêmeas, em 11 de setembro de 2001. Apesar de o foco do trabalho recair sobre a América Latina, sua análise considera modelos de países os quais identifica como “de significativa evolução institucional”, tais como EUA, Canadá, Itália e Reino Unido, de modo a estabelecer parâmetros de comparação. O objetivo do autor é verificar se a expansão do setor de inteligência interna promovida após os atentados foi ou não acompanhada do fortalecimento dos mecanismos de controle, estabelecidos para resguardar a população do próprio país.
Encerrando o Dossiê, com seu artigo Evolución de la Cooperación Europea em Inteligencia, Antonio Diaz analisa a evolução do processo que tem conduzido à cooperação europeia em termos de inteligência, cujo início remonta à década de 1970, em resposta ao crescimento de ameaças tais como o narcotráfico e o terrorismo. O autor enfatiza como essa cooperação influenciou e foi influenciada pelas mudanças institucionais produzidas no âmbito da inteligência em vários países europeus, as quais, inclusive, fomentaram a institucionalização da atividade de inteligência no campo da segurança pública. Os desafios da instrumentalização dos órgãos, da classificação da informação (a questão do “secretismo”), as dificuldades de interoperabilidade e compartilhamento são aspectos essenciais do debate abordado pelo autor.
Enfim, na expectativa de que o Dossiê História e Inteligência contribua para incrementar no país os estudos relativos à atividade de inteligência, sobretudo no campo da História, agradeço a participação de cada um dos autores e convido os leitores a desfrutarem dos resultados de pesquisa ora produzidos.
Belo Horizonte, abril de 2012.
Priscila Brandão – Organizadora. Departamento de História, UFMG. E-mail: priscilahis@gmail.com
BRANDÃO, Priscila. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.28, n.47, jan. / jun., 2012. Acessar publicação original [DR]
Elementos materiais da cultura e do patrimônio / Varia História / 2011
Pensar sobre a materialidade e não apenas
a cultura material é um bom ponto de partida.
Arjun Appadurai[1]
As coisas existem e exigem gestos. O homem as inventa, as torna úteis e elas participam de sua sobrevivência e atendem às suas necessidades. Elas são por ele manipuladas como instrumentos de vivência, mas dele requerem gestos artesanais: as técnicas. As coisas conformam a materialidade da cultura, mas, também, são conformadas por significados que vão além de sua concretude. Elementos materiais de nossa cultura e a relevância de seus significados identitários são os objetos de reflexão do presente Dossiê. Se campo ou abordagem, se domínio ou enfoque, se plataforma ou subdisciplina, a tradicionalmente denominada cultura material é objeto importante da história e aqui é tratada como fundamental perspectiva de análise da história social da cultura em uma dimensão pluridisciplinar que articula materialidade, imaginário, simbologia, gestualidade, identidade.
O presente Dossiê, Elementos materiais da cultura e patrimônio, além de tudo, busca focar os elementos materiais da cultura como documentos de realidades sociais, não como reflexos destes, mas integrados à sua construção. Os objetos, assim, não são apenas fetiches ou simples detentores de sentidos sociais deslocados de seus usos. Como quer Vânia Carvalho,
o artefato, como qualquer documento, deve ser compreendido na sua intertextualidade, ou seja, dentro de um conjunto amplo de enunciados que dão sentido, valor, induzem e instrumentalizam as práticas.[2]
Temáticas ligadas à cultura material têm sido recorrentes no campo da História, a cada tempo e em cada lugar privilegiando temas vinculados à arte, às técnicas, aos significados sociais do cotidiano, à domesticidade ou à vida privada, às condutas comerciais, aos processos alimentares, aos consumos do homem etc. Embora não haja efetividade na busca de propostas definitivas de conceituação do termo, ele sempre aparece como uma nova possibilidade do fazer historiográfico. Optando pela obviedade (parâmetro que não pode ser negligenciado na temática da materialidade da cultura), resumiríamos que cultura material é o complexo e dinâmico repertório do que os homens são capazes de produzir, fazer circular e consumir. Tais dimensões das ações não apenas sinalizam a(s) funcionalidade(s) da criação humana, como também denotam os diferentes significados atribuídos a um dado artefato por uma comunidade e / ou sociedade ao longo do tempo.
O conjunto de textos deste dossiê busca subsidiar as reflexões sobre a temática e objetiva mostrar a amplitude de suas perspectivas nos estudos históricos. Tem como objeto os elementos materiais da cultura – expressão mais condizente com uma proposta de que o homem, ao construir culturas, faz coisas concretas e essas são dignas de serem historiadas, oferecendo possibilidades de construírem-se como manifestações sociais identitárias que nomeamos de patrimônio cultural – material e imaterial. Essa última expressão vem nomeando os valores, os símbolos, os modos de fazer e as técnicas decorrentes dessa materialidade da vida. A nosso ver, no entanto, não podem ser dissociados dela. Não há, a rigor, uma cultura que se possa cindir entre o material e o imaterial. O chamado patrimônio imaterial é, sendo mais rigoroso, patrimônio vivencial ou experencial.
Partimos do pressuposto de que os historiadores podem tomar os elementos concretos da cultura, em si mesmos, como expressão social, na dinâmica dos interesses econômicos, das convicções ideológicas; como representações sociais de valores e de símbolos de relevâncias humanas. Cada um deles pode ser compreendido no bojo das relações sociais que os produzem. Concebidos, pois, como matéria da História, os elementos materiais da cultura tornam-se objeto de estudo e análise histórica, ou seja, permitem ao historiador compreendê-los e explicá-los integrados e conformados nas relações sócio-culturais de uma dada realidade histórica.
A recorrência da temática no campo da história e das outras ciências sociais permite novos e enriquecedores enfoques, mas, apenas para ficarmos no último século, nos remete aos trabalhos de Fernand Braudel, Sérgio Buarque de Holanda, Giovanni Levi, Daniel Roche e tantos outros e, mais recentemente, aos estudos acerca do crescente e dinâmico consumo de produtos pelas sociedades a partir do século XVII, sem esquecer que consumos nos indicam, também, gostos, distinções sociais, estratégias de sociabilidade e de poder, como são exemplos os textos de John Brewer, Roy Porter, Lorna Weatherill, Woodruff D. Smith, Jan de Vries, Mary Douglas, Marshall Sahlins, Colin Campbell, Deyan Sudjic, Daniel Miller, Pierre Bourdier e Arjun Appadurai, só para citar alguns.[3]
Como nos atenta Daniel Roche, lembrando a reflexão de Karl Gottlob Schelle ao buscar “reconciliar a filosofia com o cotidiano”, é preciso especular sobre “os objetos da vida” e buscar a compreensão das nossas relações com as coisas e de nossas mediações com os objetos e com o mundo.[4] Para o autor, a noção de cultura material, pouco definida, “permite aos historiadores de qualquer período e de qualquer área cultural relacionar um conjunto de fatos marginais em relação ao essencial, o político, o religioso, o social, o econômico”, possibilitando perceber as “adaptações” que os homens fazem ao viver, “através das quais o natural se revela fundamentalmente cultural”.[5]
As coisas e os objetos da fatura humana não podem ser dissociados das realidades vividas.[6] Na História, teóricos marxistas construíram as primeiras tentativas conceituais para expressar tal relação como cultura material. Tentaram delimitar seu campo para a história posicionando seus limites nos meios de trabalho (o homem e os utensílios), no objeto do trabalho (as riquezas materiais, as matérias primas), na experiência humana nos processos de produção (as técnicas), na utilização dos produtos materiais (o consumo), como se posicionou Henri Dunajewski. Também firmaram outra percepção, simplificando esse esquema anterior e restringindo o campo da cultura material, às condições naturais e às modificações que o homem imprime ao meio, gerando produtos, como definiu Jerzy Kulczyski.[7] Ao pensar elementos materiais na construção das culturas não podemos nos restringir ao campo das técnicas, mesmo entendendo a expressão braudeliana de que “tudo é técnica”.[8] As relações humanas nos usos de seus objetos de sobrevivência e de produção, são mais que os artifícios técnicos. Como quer André Leroi-Gourhan, “Nunca se tinha pensado que quem possui o fuso conhece também o movimento circular alternado e que quem utiliza a roda de fiar utiliza também o moinho e o torno do oleiro”.[9] Diríamos, parafraseando Braudel, que tudo é ação humana e que as técnicas são indissociáveis das ações / relações. Ele próprio completa a sua conclusão anterior exprimindo que “A técnica nunca anda só”.[10]
Podemos distinguir a materialidade da cultura das representações mentais e do pensamento religioso, político, filosófico, artístico, da construção linguística etc, mas não podemos separá-los, tratá-los na individualidade redutiva. Advém dessa premissa, evitarmos a expressão cultura material e adotarmos elementos materiais da cultura, do mesmo modo que estranhamos acima a ideia de uma cultura material e de uma cultura imaterial, separadas em didatismo simplificador. No processo de vivência, ou de outra forma, na dinâmica das experiências humanas ao viver, tudo é cultura, intrinsecamente compondo repertórios de construções de realidades.
Nesses termos, a pesquisa histórica objetiva, não apenas a descrição dos objetos e das técnicas em um processo temporal de mudanças e de permanências, mas a interpretação de realidades sociais que os usam, distintas no tempo. Como quer Daniel Roche:
Os objetos, as relações físicas ou humanas que eles criam não podem se reduzir a uma simples materialidade, nem a simples instrumentos de comunicação ou de distinção social. Eles não pertencem apenas ao porão ou ao sótão, ou então simultaneamente aos dois, e devemos recolocá-los em redes de abstração e sensibilidade essenciais à compreensão dos fatos sociais.[11]
A compreensão dos fatos sociais a partir de sua materialidade é, enfim, o objeto de reflexão dos textos aqui apresentados.
Os elementos materiais de qualquer cultura denotam a construção cotidiana da vida e, assim, têm sido objetos da história do cotidiano. Não apenas os hábitos de consumo e os produtos e serviços feitos e consumidos, mas os significados atribuídos a todas as ações do ser humano e aos instrumentais por ele inventados na relação com o mundo natural, na busca da sobrevivência, no atendimento das suas necessidades, na construção dos gostos, na edificação do repertório de sua cultura. Materialidade e imaterialidade são inseparáveis na análise desse repertório, mesmo que distinguíveis entre si.
O aumento da gama de produtos a que a população tem acesso a partir do processo de contato globalizado da modernidade tem estimulado, no âmbito dos estudos históricos, as reflexões temáticas sobre os elementos materiais da cultura. No entanto, a materialidade de períodos históricos anteriores, também, motiva estudos em perspectivas e enfoques novos.[12]
Esses artefatos da vida são cada vez mais numerosos, complexos e produzidos em velocidade cada vez mais acelerada. A conservação desses objetos no tempo – através do uso e da guarda memorialística, associada aos significados e aos valores a eles atribuídos, evidenciando formas de viver, de manifestar saberes e fazeres, de memorizar sentidos e condutas que não se querem esquecidas, enfim, um acervo de coisas e de gestos, de vivências -, configura patrimônios e formas de patrimonialização, a outra vertente, neste Dossiê, de nosso olhar sobre a materialidade da cultura.
Vivemos um tempo de padronizações de processos interpretativos da cultura que culminam em pasteurizações empobrecedoras da diversidade cultural. Paradoxalmente, os registros do dito patrimônio imaterial suscitam a ampliação do conceito de patrimônio cultural, mas, por outro lado, estimulam um esquadrinhamento didático que reduz a visão sobre a complexidade dinâmica das culturas. Linguagens interpretativas e museológicas tornam-se, assim, um campo de saber exigente e requerem criatividade que ressalte tal dinamicidade e diversidade. Legislações de salvaguarda e práticas educativas exigem igual criatividade. Caso contrário, teremos um gestual interpretativo das manifestações de cultura a negar tal diversidade. No caso da preservação de patrimônios urbanos o risco de homogeneidade é claro e já mensurável e, como critica Henri-Pierre Jeudy segue a mesma fórmula de patrimonialização, estetização, espetacularização, padronização e gentrificação.[13] No Brasil temos exemplos dessa “globalização” empobrecedora, onde as singularidades locais foram extintas, em nome de uma estética urbana uniformizada que atende a um gosto equilibrado / massificado.
As contribuições textuais a este Dossiê, a cujos dedicados autores agradecemos, são exemplos claros dessa diversidade de olhares sobre a materialidade de nossas vivências na história. Em um eixo que traça um percurso de reflexões teóricas e temáticas e que objetiva pensar objetos como bens materiais e identitários e suas formas de constituir riquezas, saberes, consumos, gostos, técnicas e, também, memórias, os textos promovem um diálogo essencial, na medida em que suas leituras ajustam sintonias e promovem embates de pensamentos diversos.
Os artigos dos convidados percorrem um eixo que integra padrões metodológicos e narrativas interpretativas, com problemáticas muito presentes na atualidade: a construção de riquezas familiares, as práticas alimentares, a domesticidade, os processos interpretativos do patrimônio e de musealização, os saberes tradicionais, os usos da água, a educação patrimonial e a leitura documental do historiador. Todos eles discutem a investigação temática e os problemas frente às fontes da materialidade da cultura ou as linguagens memorialísticas do processo de patrimonialização e de musealização.
Em sequência, Legados de um passado escravista: cultura material e riqueza em Minas Gerais, de Cláudia Eliane Parreira Marques Martinez, associa a investigação sobre a materialidade e a riqueza, como estratégia para a compreensão da sociedade escravista diante do fim da escravidão. O problema investigado é a re-organização da riqueza e dos padrões materiais no pós-1888. Seguindo os passos de Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses, a autora lê os Inventários post mortem como possibilidades de “inflexão no circuito da vida social do artefato”.
Cultura material, espaço doméstico e musealização, de Vânia Carneiro de Carvalho, é um estudo das dimensões materiais da vida social e suas formas de expressão no processo curatorial no museu histórico. O museu é visto pela autora como um instrumento estratégico para fomentar as investigações sobre o espaço doméstico e este é tomado “como um lugar fértil para a incorporação das formas de distinção social e de gênero por meio do uso de objetos”.
Em Cultura, história, valores patrimoniais e museus (Culture, histoire, valeurs patrimoniales et musées), Dominique Poulot reflete sobre as diferentes formas de apropriação da ideia de patrimônio no mundo moderno, a partir do século XVIII. Para o autor, o termo patrimônio tem, na atualidade, grande poder de evocação e os museus de história são lugares onde essa evocação parece acompanhar o fluxo da produção contemporânea de artefatos. O museu, lugar exemplar de interpretação histórica e formal específica, conforma diferentes formas de problematizar o passado material, onde a materialidade e a inteligibilidade de seu contexto andam juntas.
Maria Eliza Linhares Borges nos apresenta em Cultura dos ofícios: patrimônio, história e memória, um ethos fundado em formas artesanais de produção e em suas estratégias de regulação, transmissão de saberes, expressão de valores, crenças, comportamentos e sociabilidades que, frente aos modos industriais de produção, tornam-se “pitorescos” e jogados à sombra pelos museus e pela cultura visual. Para a autora, a memória dessa cultura é idealizada “porque saudosista e nostálgica”, mas reconhece que o “tempo gramatical da Cultura dos Ofícios foi mais longo do que se imagina”.
Em A patrimonialização dos saberes técnicos, entre história e memória: o caso dos depósitos de invenção na França e na Inglaterra (La patrimonialisation des savoirs techniques, entre Histoire et Mémoire: le cas des dépôts d’invention en France et Angleterre au XVIIIe siècle), Liliane Hilaire-Pérez trata da tensão entre História e Memória no processo de patrimonialização dos saberes e do papel dos “depósitos legais” que, a partir do século XVIII, inauguram nova forma de pensar o patrimônio, distinta daquela das coleções, gabinetes e museus. A autora, refletindo sobre casos concretos de uma prática nova na França e na Inglaterra, contrapõe um novo direito na economia do conhecimento e nos mercados de inovação técnica com o papel memorialístico da guarda de saberes e de sua importância como leitura das identidades de comunidades técnicas novas, mesmo com a participação das tradicionais corporações de ofícios.
Jaime Rodrigues, na linha de uma história social da alimentação que considera integrados a produção, o consumo e a construção do gosto, analisa o impacto da industrialização, da renda familiar e da propaganda na tradição alimentar paulistana no século XX. Seu texto, Uma história das práticas alimentares de trabalhadores paulistanos em dois momentos do século XX, tem como problema as relações entre culinária e memória, sobretudo no âmbito familiar, analisando-as pelos seus vestígios materiais – a materialidade dos próprios alimentos, de suas embalagens e de suas peças promocionais – e simbólicos.
O desenho e a história da técnica na Arquitetura do Brasil colonial é o texto de Marcos Tognon que propõe aos historiadores um conjunto de procedimentos para explorar os valores artísticos e técnicos dos desenhos como importantes registros documentais. Como fontes, essas “representações” são, para o autor, linguagens capazes de referenciar claramente as mais distintas realidades arquitetônicas. Assim, propõe quatro abordagens que contrapõem o plano artístico e a materialidade cotidiana das edificações.
O artigo de Jesús Raúl Navarro García, Salud y Paisaje: contribución desde el Termalismo a la revitalización de zonas rurales (El caso de Pozo Amargo, cuenca del Guadaira, España), apresenta um processo de interpretação do patrimônio paisagístico (natural) e material (cultural) ligado ao uso da água em instalações termais, onde ação governamental e cidadã se integram em projeto econômico. Historia essa materialidade integrada à paisagem, desde o século XVIII, numa tradição de ligar o ócio à “recuperação anímica” dos visitantes do lugar. O texto nos trás importante reflexão sobre o conceito de paisagem e as teorias acerca de seu papel como patrimônio histórico-cultural, contrapondo suas dimensões natural-hidrológica, cultural, utópica, arquitetônica, material. É, enfim, a interpretação histórica de uma ideia de bem-estar que harmonizava homem e paisagem, como propugnava o geógrafo anarquista Élisée Reclus.
A presença de estudantes: o encontro de museus e escola no Brasil a partir da década de 50 do século XX é o texto de Paulo Knauss que interpreta as raízes da renovação do debate sobre museus e educação a partir de experiências de 1950 e de anos anteriores, como no caso da criação do Museu Histórico Nacional, em 1922, e o do Museu Mariano Procópio, na cidade de Juiz de Fora, que se distinguem dos “museus de ciência” criados no século XIX. Knauss mostra como a questão da relação entre museus e educação contribuiu para renovar o conceito de museus e o perfil dos profissionais de museus no Brasil. As fontes de análise do autor são os textos produzidos por intelectuais do período, ligados aos museus históricos, publicados como livros ou artigos em revistas e que têm como tema a museologia como instrumento educativo da juventude. Nessa história dos museus brasileiros no século XX, o autor percebe a busca do encontro das instituições museológicas e de educação e a força crescente de um diálogo inevitável.
Os homens constroem coisas, seus nomes e gestos que as colocam como instrumentos. Além de tudo, como afirma o dito popular, se tem nome é porque a coisa existe. Inspirado nessa premissa banal articulamos no Dossiê que se apresenta a força temática e documental dos elementos materiais da cultura e do patrimônio cultural com o instrumental de memórias, imaginários, simbologias, técnicas e gestualidades. Seguimos com isso, a tradição das Ciências Humanas e temos a expectativa da crítica dos leitores.
Belo Horizonte, julho de 2011.
Notas
1.Em entrevista concedida à Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.23, n. 45, p187-198, janeiro-junho, 2010.
2.CARVALHO, Vânia Carneiro de. Gênero e cultura material: uma introdução bibliográfica. Anais do Museu Paulista, São Paulo, v.8-9, p.293-324, 306, 2000-2002. Ver também REDE, Marcelo. Estudos de cultura material: uma vertente francesa. Museu Paulista, São Paulo, v.8-9, p.281-291, 2000-2002.
3. Para citar algumas obras que nos remetem a essa perspectiva de análise histórica: BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo, séculos XV-XVIII. São Paulo: Martins Fontes, 1995. 3 vols.; HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1994; LEVI, Giovanni. A herança imaterial. Trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000; ROCHE, Daniel. História das coisas banais. Nascimento do consumo nas sociedades do século XVII ao XIX. Rio de Janeiro: Rocco, 2000; a edição organizada por BREWER, John e PORTER, Roy. (eds.) Consumptions and the world of goods. London-New York: Routledge, 1994, com textos de Jean-Christophe Agnew, Joyce Appleby, T.H. Breen, John Brewer, Peter Burke, Colin Campbell, Patricia Cline Cohen, David Cressy, Jan de Vries, Cissie Fairchilds, C.Y. Ferdinand, Iaroslav Isaievych, Sidney Mintz, John Money, Chandra Mukerji, Jeremy D. Popkin, Roy Porter e Simon Schaffer; WEATHERILL, Lorna. Consumer behaviour and material culture in Britain, 1660-1760. New York: Routledge, 1996; SMITH, Woodruff D. Consumption and the making of respectability. 1600-1800. New York: Routledge, 2002; DE VRIES, Jan. The industrious revolution: consumer behavior and the household economy, 1650 to the Present. Cambridge: Cambridge University Press, 2008; APPADURAI, Arjun. (org.) A vida social das coisas. Niterói: EdUFF, 2008.
4. ROCHE, Daniel. História das coisas banais. Nascimento do consumo nas sociedades do século XVII ao XIX. Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p.11.
5. ROCHE, Daniel. História das coisas banais, p.12-13.
6. PESEZ, Jean-Marie. História da cultura material. In: LE GOFF, Jacques. A História Nova. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p.177-213, 186.
7. PESEZ, Jean-Marie. História da cultura material, p.188.
8. BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo, p.303.
9. LEROI-GOURHAN. Cf. PESEZ, Jean Marie. A história da cultura material. In: LE GOFF, Jacques, CHARTIER, Roger e REVEL, Jacques. A Nova História, p.124.
10. BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo, p.397.
11. ROCHE, Daniel. História das coisas banais, p.13.
12. Como por exemplo, estudos sobre alimentação, família e patrimônio no mundo antigo e medieval, como, dentre outros, podemos citar REDE, Marcelo. Família e patrimônio na antiga Mesopotâmia. Rio de Janeiro: Editora Mauad X, 2007.
13. JEUDY, Henri-Pierre. Espelho das cidades. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005. Este livro traduz e conjuga dois estudos do autor: La machinarie patrimoniale e Critique de l’esthetique urbaine. Embora contextualizado em uma realidade europeia da última década do século XX e primeira do XXI, as reflexões têm validade para a problemática das políticas de patrimonialização no Brasil.
José Newton Coelho Meneses – Departamento de História. UFMG. E-mail: jnmeneses@uol.com.br. Organizador
MENESES, José Newton Coelho. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.27, n.46, jul. / dez., 2011. Acessar publicação original [DR]
Republicanismo no Brasil do século XIX / Varia História / 2011
É conhecida a afirmação de Frei Vicente do Salvador, feita em seu livro História do Brasil, em 1627, sobre a cena pública da América portuguesa: “Nenhum homem nessa terra é republico, nem zela ou trata do bem comum, senão cada um do particular”. A frase famosa parece apontar para um déficit na origem da comunidade política – entre nós existiria uma permanente inconsistência e uma insuficiência de princípios, práticas e valores próprios à tópica republicana que ainda hoje permitiriam medir a fragilidade de uma República inconclusa, sempre por fazer-se, alimentada por um desejo continuamente postergado de encenar sua fundação política.
O mal-estar na República que nossa imaginação histórica denuncia permite medir a fragilidade das instituições republicanas na contemporaneidade. É certo que, no caso brasileiro, o conceito “República” não traduziu a possibilidade histórica da sua afirmação na vida política do País após 1889. A ideia de um Estado que não consegue firmar-se, impor-se como instância capaz de dar expressão pública e canais de resolução próprios às manifestações e aos conflitos projetados pela vida social e política viria a marcar e a se desdobrar nos períodos subsequentes da nossa história republicana.
Contudo, o recente resgate historiográfico da recepção das ideias próprias à tradição republicana, de seus procedimentos de absorção e de seu impacto na vida pública brasileira aponta um novo terreno para o estudo do republicanismo no País. Esse resgate tem indicado que, no nosso caso, República e republicanismo trazem pelo menos dois estoques de referências: são ideias arregimentadoras, “ideias que produzem eventos”, que concedem grande valor à política e à vida ativa; ambos forjaram, entre nós, um condensado de cultura política e um vocabulário adequado à conservação de valores do mundo público – como cidadania ativa, soberania, federalismo, direitos, virtude cívica e representação política.
O propósito deste Dossiê, que se intitula Republicanismo no Brasil do século XIX, é registrar um momento importante de consolidação dos processos de recepção das ideias do republicanismo no País. Embora a história do conceito de República no Brasil aponte para o seu registro já a partir do final do século XVII, foi principalmente durante o século XIX que a tópica republicana se afirmou entre nós como um dos lugares de modelagem de ideias em conflito pelos quais girava a agenda política do País.
Os artigos de Marcello Basile, Sílvia Fonseca, Valdei Lopes e Weder da Silva compartilham de um mesmo esforço analítico: cada um a seu modo, os autores trataram de identificar e examinar a linguagem política republicana que circulava no Rio de Janeiro, em Pernambuco e em Minas Gerais. No seu conjunto, os artigos apontam para duas questões importantes. Na primeira, indicam que o republicanismo no Brasil não atuou isoladamente no tempo, mas, ao contrário, dispôs de continuidade temática e de uma perspectiva de interpretação do País. Na segunda questão, esses artigos apontam tanto para a importância de determinados conceitos – o caso exemplar do federalismo – quanto para o esforço de certos personagens – Ezequiel Correia dos Santos, Frei Caneca e Teófilo Ottoni – no processo de acolhimento e de enraizamento do republicanismo durante a primeira metade do Oitocentos brasileiro.
O período final do Primeiro Reinado indica o aparecimento de uma nova cultura política fundamentada na emergência de uma incipiente, porém ativa, vida pública, capaz de desenvolver mecanismos ainda informais de sociabilidade e de ação política. Nesse contexto, a imprensa, os movimentos de contestação de rua e as associações de natureza política e / ou culturais assumiram uma característica peculiar, constituindo espaços informais de participação na cena pública do País – e os artigos de Marcelo Basille e de Valdei Lopes e Weder da Silva enfatizam a importância dos jornais Nova Luz Brasileira e Sentinella do Serro como canais de intervenção política republicana próprios a esse contexto.
Já as últimas décadas do século XIX e o início do século XX assistiram ao surgimento de uma combinação muitíssimo eficiente para a formação pública de opiniões: música e política. O artigo de Martha Abreu e Carolina Dantas sustenta essa combinação na explosiva conexão entre liberdade, princípios igualitários e abolicionismo. Aplicado à pauta do debate do republicanismo, o tema da abolição é sempre decisivo, seja por sua disposição em estruturar a linguagem pública dos direitos, seja por seu propósito de expandir a cidadania para um grande contingente de excluídos da vida pública nacional.
Não por acaso, o artigo de Maria Tereza Mello põe em cena a associação entre as ideias de República e Democracia presente no imaginário político brasileiro, sobretudo a partir da década de 1880. Foi em torno da noção de Igualdade que se construiu essa associação – obra de um grupo de letrados, mas também de setores políticos radicais engajados na tarefa de difundir uma cultura pública de viés democrático em uma sociedade ansiosa por reformas. A compreensão do fracasso dessa associação permite compreender, ao menos em parte, o desencanto com uma República recém-criada, cujo tipo de governo não correspondia aos ideais republicanos.
A década de 1860 aponta para o encerramento de um ciclo. O artigo de José Murilo de Carvalho demonstra que a progressiva radicalização do debate político dos anos 1860, até a formação do Clube Radical, em 1868, carregou os radicais liberais para o centro da vida pública nacional. A presença política dos radicais significou principalmente a discussão de um amplo programa de reformas que incluía, entre outros temas, a extensão dos direitos políticos, dos direitos civis da liberdade de ensino e culto e a abolição.
Porém a transformação do radicalismo liberal em republicanismo, a partir do Manifesto Republicano de 1870, provocou um retrocesso conservador: o debate em torno do melhor regime não trouxe à tona a formação de instituições marcadas pelos valores do republicanismo; tampouco enfrentou a variedade e a profundidade do programa de reformas propostas durante a década de 1860. Esse é o paradoxo da nossa experiência republicana que o artigo de José Murilo de Carvalho revela: a República que emergiu da cena do debate operado após o Manifesto de 1870 não era apenas uma forma de governo conservadora e sem nenhuma sensibilidade para a questão social – ela não correspondia aos ideais republicanos.
Ao pretender trazer contribuições para a recepção, no Brasil, de ideias, conceitos, práticas e sensibilidades políticas que formam a tradição republicana em suas matrizes modernas – a norte-americana e a francesa -, este Dossiê pretende amarrar duas pontas: uma, a referência ao conjunto de valores que permite a cada um de nós agirmos em um mundo muitas vezes difícil de ser compreendido – o repertório das famosas virtudes e princípios republicanos que visam ao bem agir no mundo público. A outra, a ponta que nos permite reencontrar no nosso passado histórico a dinâmica das ideias: a maneira como essas ideias são recebidas em um contexto determinado e apropriadas de maneira seletiva, em um processo que inclui deslocamento e transferência; e inclui, igualmente, supressão, modificação e recriação. Amarrar pontas não deixa de ser também parte de um trabalho de memória – cabe, bem, ao ofício do historiador.
Belo Horizonte, junho de 2011.
Heloisa Maria Murgel Starling – Professora do Departamento de História
Coordenadora do Projeto República / UFMG. Organizadora. E-mail: starling@fafich.ufmg.br
STARLING, Heloisa Maria Murgel. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.27, n.45, jan. / jun., 2011. Acessar publicação original [DR]
História, Assistência e Saúde / Varia História / 2010
Os artigos reunidos no Dossiê História, Assistência e Saúde foram originalmente expostos no Seminário Internacional Estado, Assistência e Filantropia, ocorrido no Rio de Janeiro, em novembro de 2009[1]. O objetivo central desse evento foi promover o debate sobre as tendências atuais da historiografia consagrada à questão da assistência, contemplando a diversidade de perspectivas e abordagens relacionadas ao tema.
É frequente que os debates acerca do socorro, da assistência e da proteção à saúde estejam referidos na historiografia por – particularmente naquela que trata da emergência da saúde pública por – como uma dimensão do Estado de bem-estar social e sua relação com os modelos tradicionais de assistência pública e privada. Nessa perspectiva, também se alinham os estudos relacionados à profissionalização da assistência e do cuidado, uma vez que a nova configuração da assistência à saúde foi propícia à emergência de novas profissões (médicos sanitaristas, enfermeiras de saúde pública, educadoras sanitárias, assistentes sociais) e à redefinição da atuação das tradicionais profissões de saúde. Mais recentemente o gênero, a etnia e as chamadas idades de vida (infância, juventude e velhice) também se tornaram variáveis fundamentais para o entendimento das formas modernas de assistência e bem-estar social.
Para os estudos acerca dos valores religiosos, científicos, profissionais ou filosóficos que orientam as ações que visam promover formas, compromissos e pactos de solidariedade e de ajuda mútua entre diferentes grupos e classes sociais, os temas da assistência e proteção dos corpos (e das almas) também são tópicos obrigatórios. Enquanto prática cultural historicamente situada, a assistência é responsável pela criação de recursos materiais e simbólicos próprios que se tornam bastante evidentes em ocasiões extraordinárias, como em tempos de epidemia, catástrofes naturais e guerras. Nesses momentos de desorganização e anomia social as práticas de assistências tornam-se essenciais para a preservação da vida.
Finalmente a história da assistência à saúde também sugere a reflexão sobre um tipo especial de cultura material traduzida em instalações e edificações (hospitais, asilos, clínicas, habitações) especialmente concebidas para tais fins, estabelecendo um vínculo entre a arquitetura e o urbanismo e valores religiosos, conhecimentos científicos ou ideologias políticas que orientam as práticas de assistência envolvidas.
Os artigos selecionados para compor o Dossiê História, Assistência e Saúde são representativos das tendências aqui sintetizadas ao examinar esses temas sob abordagens inventivas e saudavelmente heterodoxas.
Laurinda Abreu propõe uma nova abordagem do processo de construção do sistema assistencial português entre os séculos XVI e XVIII, orquestrado pela Coroa portuguesa, com o apoio da elites locais, mas, ao demonstrar como a Coroa portuguesa pôs em funcionamento uma rede formal de instituições e de serviços assistenciais, a autora amplia a discussão sobre a responsabilidade do Estado moderno português na promoção e na profissionalização da assistência à saúde, extrapolando sua ação tradicionalmente considerada restrita ao controle das epidemias. Considerando-se a repercussão local do paradigma assistencial português, a discussão proposta serve de ponto de referência para a leitura dos artigos deste dossiê, que tratam basicamente da construção da rede assistencial e da profissionalização da saúde.
A questão da ausência / presença do Estado no processo de institucionalização da assistência médica no Estado do Rio Grande do Sul, abordado com originalidade no artigo de Beatriz Weber, leva a uma perspectiva diferente da organização da assistência médica no início do século XX, vista pelo prisma da competição entre diferentes tipos de “artes de curar”. Inspirada nos preceitos políticos do positivismo, a constituição republicana gaúcha de 1892 previa a liberdade de atuação no âmbito das “artes de curar”. A chave de leitura proposta pela autora permite pensar que, no contexto específico do Rio Grande do Sul, a organização da assistência médica passava pela conquista por parte dos médicos gaúchos do monopólio das “artes de curar” em oposição à liberdade de atuação de curandeiros, benzedeiras e parteiras. Nesse caso, caberia ao Estado garantir a liberdade profissional no âmbito da prestação de serviços de assistência à saúde.
Para relativizar o papel hegemônico dos médicos na prestação da assistência, Verônica Pimenta Velloso explora o associativismo profissional dos farmacêuticos do Rio de Janeiro imperial. O artigo chama atenção para o papel desempenhado pelos farmacêuticos na prestação de assistência à saúde da população, não resumida tão somente à arte de formulação dos remédios, mas também abrangendo a prestação de outros serviços, como prescrição de medicamentos por – atribuição tecnicamente restrita aos médicos por – e aplicação de determinados tipos de terapêuticas. A sobreposição de práticas profissionais entre farmacêuticos, médicos e outros praticantes das “artes de curar” na prestação de serviços de assistência gerava alianças e conflitos que exigiam a intervenção do Estado no sentido do estabelecimento de legislação profissional e sanitária que garantisse aos farmacêuticos autonomia frente aos médicos e predomínio frente aos leigos.
Tomando como eixo condutor a análise das trajetórias profissional e acadêmica de Antonio Fernandes Figueira e Luiz Barbosa, Gisele Sanglard e Luiz Otávio Ferreira desvendam em seu artigo o processo de institucionalização da pediatria e da assistência à infância no Rio de Janeiro da Primeira República. A análise explora a associação entre os médicos e a elite carioca, revelando a rede de relações pessoais, políticas e institucionais que envolvia a questão do ensino da pediatria na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e a criação de uma rede de assistência à infância. Para os autores, ao mesmo tempo em que esses médicos se legitimavam como especialistas em doenças de crianças, promovia-se uma ressignificação do papel da filantropia laica na assistência, com a construção de novos espaços de atendimento à saúde. A abordagem singular de Sanglard e Ferreira permite, portanto, desvendar a associação visceral entre a institucionalização da pediatria e da assistência à infância, sem ignorar disputas e conflitos que marcaram esse processo.
O artigo de Márcia Barros da Silva retoma a discussão da repercussão local do modelo assistencial português ao tratar da assistência médica oferecida no hospital da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, nas últimas décadas do século XIX e começo do XX. Mediante consistente análise de dados sobre origem, gênero e faixa etária dos doentes e acerca das instituições que os encaminham, bem como sobre a origem da receita do hospital, a autora identifica a inauguração do novo hospital, em 1885, como marco na condução da atenção médica à população do Estado de São Paulo. Ao longo de seu texto, pode-se perceber claramente o entrelaçamento entre o público e o privado, no que tange ao direcionamento e organização do atendimento médico clínico, relacionando-o às transformações urbanas da cidade e à reconfiguração da prática médica.
A organização deste Dossiê, ao abranger contextos culturais diversos e larga periodização, pretende suscitar questionamentos ao leitor acerca das formas modernas de assistência e bem-estar social, bem como divulgar os trabalhos do grupo de pesquisa História da assistência à saúde e ampliar os debates sobre o tema. É esse convite que fazemos a vocês neste momento. Boa leitura!
Belo Horizonte, Junho de 2010.
Nota
1 O Seminário Internacional Estado, Assistência e Filantropia foi realizado no Rio de Janeiro entre os dias 16 e 19 de novembro de 2009 e contou com o apoio da Capes e da Faperj.
Gisele Sanglard
Luiz Otávio Ferreira
Maria Martha de Luna Freire
Maria Renilda Nery Barreto
Tânia Salgado Pimenta
(Organizadores)
SANGLARD, Gisele et al. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.26, n.44, jul. / dez., 2010. Acessar publicação original [DR]
História Medieval: Fontes e Historiografia / Varia História / 2010
O interesse pelos estudos medievais tem crescido nas últimas décadas no Brasil. O prestígio que a historiografia medieval adquiriu, principalmente com as contribuições vinculadas à escola dos Annales e a chamada Nova História, proporcionou a ampliação do espaço dado à História Medieval no âmbito das nossas Universidades. A consolidação desse interesse tem permitido a tradução para a nossa língua de diversas obras importantes sobre o assunto e o aparecimento de uma crescente produção nacional no setor. A extensão deste interesse também se materializou na criação de grupos de estudos dedicados à pesquisa e à divulgação de temas medievais, como o Laboratório de Estudos Medievais – LEME – que agrupa professores e alunos de História da USP, UNICAMP, UNIFESP, UFMG e UFG. Criado em 2005, o LEME tem o objetivo principal de congregar professores, pesquisadores e estudantes para o desenvolvimento de estudos e de atividades na área de História Medieval, bem como estabelecer a interlocução com centros de estudos estrangeiros. Este dossiê é uma realização do LEME e manifesta a intenção de buscar novos espaços de discussão e estabelecer interlocução com colegas nacionais e estrangeiros. Assim, publicam no dossiê os medievalistas Néri de Barros Almeida (LEME / UNICAMP); Marcelo Cândido da Silva (LEME / USP); Dulce Amarante O. dos Santos (UFG), Sylvie Joye (Université de Reims) e Patrick Gilli (Université de Montpellier III).
O dossiê propõe uma reflexão sobre as relações dos medievalistas com suas fontes à luz da crise dos paradigmas e da interdisciplinaridade. Refletir sobre essas relações é fundamental já que o estudo do passado se realiza de forma mediada através dos vestígios da atividade humana. A crise que afetou as humanidades durante as últimas décadas, em grande parte devido ao declínio das ideologias, levou os historiadores a questionarem os vestígios do passado. Os debates historiográficos, sob a influência das tendências modernas e pósmodernas, colocaram em foco o uso das fontes históricas e o ofício do historiador. O próprio termo “fonte” foi colocado em questão, já que poderia sugerir que os vestígios eram meros reflexos do passado e que bastava sua análise para reencontrar esse passado, reconstruir a história. Enfatizou-se a necessidade de se reconhecer a dinâmica da produção, transmissão e interpretação dos documentos históricos. Destacou-se, no ofício do historiador, a crítica das fontes e isso significava, entre outras coisas, verificar se o documento realmente pertencia à determinada época e que não havia sido falsificado, se quem disponibilizava o documento era confiável e, também, a finalidade e a intenção do documento, atentando para o momento e o lugar em que foi elaborado. Assim, a crítica das fontes muitas vezes se limitava às questões de datação, de autoridade, de revisão, de autenticidade, de transmissão e de comparação por períodos ou regiões. O medievalista continua realizando essa crítica, mas hoje o que está em foco nos estudos medievais são as novas perspectivas sobre fontes já conhecidas, sejam textos escritos ou elementos da cultura material.
A releitura e reconsideração das fontes, somado ao aprofundamento de uma perspectiva interdisciplinar, tem proporcionado uma profunda renovação do conhecimento das sociedades medievais. Da observação dessa renovação operada a partir de releituras das fontes e de discussões historiográficas, surgiu o tema do dossiê: História medieval: fontes e historiografia, e nele se enquadram os cinco artigos aqui reunidos. Dulce Amarante dos Santos discute as Velhas e novas relações entre os medievalistas e suas fontes, enfocando, entre outros assuntos, os desafios e as dificuldades enfrentadas, em particular, por aqueles interessados em temáticas interdisciplinares relacionadas à história social da medicina da Idade Média. Marcelo Cândido da Silva, em “Público” e “privado” nos textos jurídicos francos, discute a dicotomia “público” e “privado” e demonstra que a mesma é inviável para a compreensão do mundo franco da Alta Idade Média. Desvela as conexões estabelecidas entre a Idade Média e o mundo moderno, apresentando, em oposição às teses das origens medievais do Estado moderno e do Brasil, como uma releitura das fontes pode sustentar a idéia da originalidade da Alta Idade Média. Néri de Barros Almeida, em A Idade Média entre “poder público” e “centralização política”: itinerários de uma construção historiográfica, coloca em questão o paradigma da violência, discutindo a validade teórica das análises da Idade Média que tomam por base a associação entre descentralização política e desgoverno, privatização, ausência de poder público. A autora recorre às fontes para apresentar o ponto de vista dos historiadores medievais a respeito da violência que registram e para afirmar a possibilidade de reconhecimento nas sociedades medievais de instâncias públicas de poder reconhecido e atuante dentro de critérios particulares de ação. Sylvie Joye, em Prática social e armadilhas das fontes: as fontes historiográficas e normativas sobre o casamento por rapto na Alta Idade Média, demonstra como uma releitura das fontes normativas e narrativas pode revelar os equívocos interpretativos da historiografia sobre o casamento por rapto. Revela que a releitura e a crítica das fontes podem sustentar novas interpretações sobre as práticas nas sociedades da Alta Idade Média, cuja história é profundamente marcada por paradigmas estabelecidos no século XIX e início do XX. Patrick Gilli, em As fontes do espaço político: técnicas eleitorais e práticas deliberativas nas cidades italianas (séculos XII-XIV), apresenta o mundo das comunas italianas dos séculos XII a XIV como um laboratório privilegiado de observação, nas práticas ordinárias da Idade Média, dos vestígios de um espaço de mediação política. Examina as fontes estatutárias para investigar as modalidades de representação, as técnicas eleitorais e deliberativas, e, entre outras abordagens, discutir a possível singularidade do caso italiano.
Adriana Vidotte – Laboratório de Estudos Medievais – LEME. Professora da Faculdade de História / UFG. Organizadora. E-mail: adrianavidotte@uol.com.br
VIDOTTE, Adriana. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.26, n.43, jan. / jun., 2010. Acessar publicação original [DR]
Gripe espanhola / Varia História / 2009
O alargamento da agenda histórica operado pelas transformações vividas pela disciplina da História na segunda metade do século XX e o diálogo com outras áreas – como a demografia, a antropologia, a psicologia – têm contribuído de modo significativo para a incorporação de novos temas e perspectivas de abordagem, ampliando o universo de investigação dos historiadores e transformando substancialmente o modo como investigam esses objetos. Essas mudanças foram fator fundamental para que a comunidade dos historiadores voltasse seu olhar para a experiência das sociedades em torno da saúde e das doenças. Até este período, a história das doenças e a própria história da medicina permaneceram temas marginais entre os profissionais da disciplina, tornando-se domínio praticamente exclusivo dos próprios médicos. No dizer de Charles Rosenberg, a história da medicina era uma história profissional, feita por médicos para médicos.[1]
A partir da década de 1960, observou-se no interior da História da Medicina um crescente movimento de superação das narrativas laudatórias e progressistas e a expansão não apenas do volume de pesquisas, mas também dos objetos analisados, das fontes documentais utilizadas e das opções teóricas de abordagem. Para além da evolução das práticas e teorias, das grandes descobertas e dos personagens notáveis, os novos estudos se voltaram para a percepção dos pacientes, as atitudes sociais diante da doença e da morte, a terapêutica, as interações entre ecologia e sociedade, a construção do saber acadêmico e suas relações com os saberes leigos, as articulações entre medicina-estado-sociedade, a profissionalização no campo da saúde, a história institucional, a construção do saber científico em torno do corpo, do ambiente, da saúde e da doença, e, especialmente, a forma de estruturação de determinados conhecimentos e campos de saber e como estes conhecimentos circulam entre pares e a sociedade de um modo geral.
No domínio específico da História das Doenças, a perspectiva social construtivista contribuiu para a sução de uma concepção tradicional, pautada por uma abordagem essencialmente biológica, na qual a enfermidade é tratada como fenômeno fisiopatológico – uma entidade conceitualmente específica e ontologicamente real, conformada pela sua evidência orgânica, natural e objetiva e isenta de determinações culturais ou atributos sociais. A partir de então as doenças passaram a ser vistas como objetos historicamente situados, cuja existência ultrapassa o sentido biológico, incorporando também os sentidos particulares a elas atribuídos por indivíduos e grupos, e que são elaborados no interior de um complexo conjunto de relações socioculturais.[2] Recorrendo mais uma vez a Rosenberg, podemos dizer que a doença é uma entidade híbrida esquiva e impalpável, um “amálgama que envolve tanto a sua natureza biológica como os sentidos que lhe são atribuídos” e, ao mesmo tempo, “um problema substantivo e um instrumento analítico”.[3]
Entre os diversos temas inscritos no campo da História das Doenças, podemos destacar os estudos voltados para as manifções epidêmicasEpisódios de natureza efêmera, mas intensa e arrebatadora, as epidemias têm se revelado um importante ponto de inflexão na história das sociedades, através do qual é possível examinar aspectos e dimensões variadas da vida social em uma determinada épocaInscritos na intercessão entre natureza e sociedade, os eventos epidêmicos, como as demais doenças, ultrapassam o âmbito biológico, ganhando sentido a partir do contexto humano do qual emergem, das transformações que promovem no cotidiano – seus impactos econômicos, políticos, sociais – e do modo como iluminam valores culturais de uma sociedade, aos quais dão expressãoDe modo semelhante a outras experiências sociais trágicas, como a guerra, a fome ou as catástrofes naturais, as epidemias impõem aos homens dilemas comuns: a angústia e o medo da morte e o desejo de salvar-se do perigo, as imposições das necessidades de sobrevivência, o manejo de ferramentas que contribuam para entender e explicar uma experiência que escapa às estruturas lógicas e emocionais da existência comumAlém disso, também possibilitam o estudo das diversas formas de compreensão e interpretação da doença em sção epidêmica, suas formas de contágio e proliferação, os impactos nas práticas e teorias da higiene pública, as escolhas de medidas preventivas e as medidas de ordem emergencial e reparadoras.
Como sugere a historiografia, um breve exame dos estudos dedicados ao tema em épocas e contextos diferentes aponta várias similaridades nas respostas sociais contra os impasses impostos pela crise epidêmica. A fuga dos lugares infectados, as críticas às autoridades, a tentativa de identificação e a estigmatização daqueles considerados como “culpados”, a polarização de preconceitos, a reafirmação de crenças e práticas rituais religiosas, a mobilização social no socorro às vítimas são aspectos componentes de uma estrutura narrativa que obedece a uma determinada ordem de exposição, conformando um padrão recorrente, ao qual Richard Evans chamou “a literatura da peste”.[4] Como um “episódio dramatúrgico”, a narrativa epidêmica assemelha-se a um enredo que se desenvolve através de uma seqüência de atos previsíveis: a negação e seu progressivo reconhecimento; a tentativa de explicação, envolvendo elementos morais, religiosos, científicos; as ações ou respostas elaboradas para fazer frente ao mal; e a reflexão que se constrói sobre a experiência, buscando extrair lições desse acontecimento[5].
Consideradas como construção intelectual, as representações formuladas em torno destas experiências também adquirem vitalidade, conformando novas percepções em torno de outros eventos epidêmicos. É o que se nota em relação à descrição de Tucidides sobre a peste de Atenas[6] ou a narrativa de Daniel Defoe[7] sobre a peste em LondresUm interessante exercício nesse sentido pode ser feito avaliando-se a validade e a atualidade das representações observadas em Tucidides e Defoe na abordagem de experiências mais recentes, como a AIDS, a SARS, a gripe aviária ou a presente pandemia de gripe suína.
Entretanto, apesar de todas estas recorrências, o estudo das epidemias não se resume à narração de um desastre. Essa descrição compõe apenas um dos níveis através dos quais os episódios epidêmicos podem ser analisados, havendo outras dimensões a partir das quais as epidemias podem ser abordadas pelo pesquisador. Além disso, é preciso recordar que o sentido desses eventos e suas conseqüências sociais são modulados segundo contextos que são específicos, isto é, em sociedades e tempos específicos. Essas diferentes possibilidades de abordagem e o modo como as experiências epidêmicas são conformadas por características que são próprias de determinadas sociedades são percebidos através de seis artigos presentes neste número da Revista Varia Historia. Estes textos compõem um Dossiê dedicado à terrível pandemia de influenza espanhola que assolou o mundo no ano de 1918, completando assim noventa anos. Na leitura dos artigos o leitor terá a oportunidade de observar tanto os elementos comuns como as especificidades que marcam a história deste evento epidêmico em diferentes sociedades, assim como a riqueza de problemas que podem ser perscrutados a partir de uma experiência dessa natureza. Neste ponto destaca-se uma característica dos estudos que abordam a história das ciências da saúde: os recortes bem definidos em termos temporais e espaciais, essenciais em qualquer estudo histórico, nem sempre conseguem abordar de forma satisfatória as mudanças nas formas de compreensão das doenças e das epidemiasPor um lado, faz-se necessário comparar situações, em tempos e espaços diversos, afinal o vírus circula com os movimentos de deslocamentos dos homens e acompanha as formas de vidas dos homensPor outro lado, os modos de compreensão das doenças e suas manifções epidêmicas produzem uma interpretação acerca do fenômeno, que se altera e se adapta ao longo do tempo e do espaço. Não se trata apenas de proteger uma região, trata-se de discutir o contágio e os impactos desta possibilidade em pleno século XX. Quanto tratamos de temas da história das ciências, com uma abordagem que privilegia as interações culturais, não se pode menosprezar a importância da circulação do conhecimento[8] e, no caso específico da denominada gripe espanhola, da circulação do vírus.
O artigo de José Manuel Sobral, Maria Luisa Lima, Paulo Silveira e Souza e Paula Castro revela os impactos da pandemia de influenza em Portugal, país ainda eminentemente rural e marcado pelos conflitos políticos e ideológicos em torno da organização da recente República (proclamada no ano de 1910), e em particular pelo governo de Sidónio Pais, responsável pelo golpe militar que instituiu um governo conservador e autoritário a partir de 1917Os autores abordam aspectos apresentados como estruturais – as carências sanitárias, econômicas e no campo da própria medicina portuguesa – e conjunturais – a crise econômica e social aprofundada pelo tempo de guerra e pelos conflitos políticos internos – para discutir os impactos e as respostas da sociedade portuguesa aos impasses impostos pela pandemiaTraçam uma ampla perspectiva da orgação dos serviços de saúde, enfatizando que, apesar de ser possível observar alguns avanços na fção profissional e na estruturação da assistência, estes serviços estiveram concentrados em grandes cidades, como Lisboa e Porto. Associando estes dados àqueles relativos à mortalidade atribuída à influenza, revelam como o flagelo da doença foi mais evidente nas regiões carentes de controle administrativo e de poder econômico. As instruções recomendadas pelas autoridades sanitárias portuguesas para administrar a situação imposta pela moléstia não diferem do que se tem observado em outros países: o mapeamento da expansão da doença através da notificação; a reafirmação dos meios de profilaxia individual e normas de higiene geral, na ausência de uma profilaxia específica para a moléstia; a criação de hospitais provisórios e o recrutamento de profissionais e estudantes de medicina no atendimento à população; o engajamento social e a mobilização de recursos em torno da assistência aos pobresCorroborando a perspectiva de que a crise epidêmica ultrapassa a capacidade de atuação das autoridades governamentais, o texto descreve ainda a mobilização de diferentes setores da sociedade portuguesa para fazer frente à magnitude dos impactos sociais da moléstia. Por outro lado, apesar de praticamente não ter alterado a organização da assistência à saúde no país, as alianças políticas instituídas pelo governo conservador de Sidónio Pais – na contramão de algumas mudanças inauguradas com a República – parecem ter facilitado a organização dessa mobilização beneficente, que envolvia a igreja e setores da elite conservadora.
A análise de Christiane Maria Cruz de Souza aborda a trajetória da pandemia de influenza na cidade de Salvador. Enfocando os dados divulgados pela imprensa relativos à expansão do contágio, a autora aponta como a pandemia foi um evento que atingiu um amplo espectro da sociedade baiana, ignorando distinções entre ricos e pobres – característica que estava relacionada à forma de transmissão aérea do vírus. Apesar de apresentar uma forma de transmissão considerada por muitos como mais “democrática”, as estatísticas relativas aos acometidos pela doença revelam que os impactos da pandemia foram maiores nas áreas que concentravam populações mais carentes, mais expostas ao contágio quer pelas condições de subsistência, quer pelas condições de trabalho – aqueles confinados em espaços reduzidos, como operários, presos; aqueles que precisavam expor-se ao espaço da rua e aos contatos não-controlados para garantir sua existência, como carteiros, portuários, mendigos, prostitutas. Tal afirmação é corroborada pela ausência de notificações da doença entre as freiras do Convento da Lapa. Segundo a autora, a geografia da mortalidade traçada pela influenza espanhola na capital baiana segue a mesma tendência verificada no contágio da moléstia, atingindo de modo mais expressivo a população mais carente da cidade. Além da maior exposição ao contágio, as precárias condições de existência, em especial de alimentação, também são apontadas como fatores predisponentes para um maior número de vítimas entre as camadas pobres. A análise propiciada pelos dados também contribui para revelar aspectos da ocupação espacial e da realidade cotidiana vivenciada pelos moradores da capital baiana. O texto ainda aborda aspectos da atuação das autoridades diante da moléstia – o atraso no reconhecimento da presença da epidemia, a mobilização voltada para o atendimento dos pobres, a agenda de ações (em alguns momentos contraditórias) colocada em prática pelo poder público. Além disso, expõe como a influenza interferiu em certas práticas e rituais, especialmente aquelas ligadas à morte, como os funerais ou as romarias do dia de finados.
Diversamente da maioria dos estudos dedicados à história das epidemias, e à pandemia de influenza espanhola em particular, Elisabeth Engberg focaliza sua análise sobre comunidades rurais do norte da Suécia. A autora parte do pressuposto de que as áreas urbanas estariam mais aptas a organizar medidas efetivas para fazer frente às experiências desta natureza do que áreas rurais tradicionais, onde a organização da saúde pública era menos desenvolvida, funcionando em um nível mais elementar e contando com um número reduzido de profissionais e uma organização institucional distinta. Este é um dos fatores que ajudam a explicar a relativa ausência de medidas tomadas pelas autoridades para evitar e enfrentar os dilemas impostos pela pandemia e, também, o silêncio observado nos registros municipais sobre esse episódio. Ainda que a Suécia não estivesse diretamente envolvida na Primeira Guerra Mundial, sua população também esteve submetida às privações impostas pelo conflito, o que influiu significativamente nos impactos da pandemia naquela sociedade, assim como nas possibilidades de enfrentamento da doença pelas autoridades. É interessante observar os diferentes níveis de poder envolvidos nas determinações relativas à saúde e, nesse sentido, o papel atribuído às instituições comunitárias locais, o que pode ajudar a compreender a ausência de dados sobre a pandemia na documentação municipal. Como mostra Engberg, a hesitação das autoridades sanitárias e o atraso na implementação de medidas contra a pandemia podem ser explicados pela legislação pouco clara quanto às atribuições dos diferentes níveis de poder e pela divergência entre os profissionais da medicina sobre a natureza da moléstia e o modo de combatê-la. Nessa perspectiva, a autora avalia que as medidas postas em prática pelas autoridades de saúde tiveram um caráter mais reativo que preventivo. Além disso, essas medidas revelam que boa parte das recomendações e das formulações feitas pelas autoridades nacionais em torno do combate à pandemia voltavam-se mais para a realidade urbana, estando pouco adaptadas às peculiaridades presentes nas áreas rurais. Através de sua análise, Elisabeth Engberg mostra como a vivência da pandemia em áreas rurais é diferente daquela observada no contexto urbano, conformando assim um padrão distinto de respostas sociais.
As reações populares diante da pandemia são o tema de artigo de Liane Maria Bertucci. Apresentando uma descrição sumária da expansão da influenza espanhola no Brasil e das opiniões emanadas pelas autoridades sanitárias, a autora se detém no temor que as notícias sobre a doença despertavam na população e na preocupação com que essa atmosfera de medo era avaliada pelos responsáveis pelo combate a doença. A percepção de que um espírito temeroso e intranqüilo funcionasse como um fator de desequilíbrio que predispunha o indivíduo ao contágio e ao adoecimento já era conhecida pela medicina medieval e defendida por diferentes correntes teóricas desde então. Como mostra a autora, esses preceitos de uma medicina chamada “psicossomática” foram atualizados e amplamente afirmados no decorrer da pandemia de 1918. Nesse sentido, não seria difícil entender os argumentos daqueles que aconselhavam calma à população, e mesmo a necessidade de certa dose de otimismo e de divertimento público, como observado em outros eventos epidêmicos e também apontado em outros textos apresentados nesta coletânea. Apesar da ênfase com que estes preceitos foram divulgados por todo o país, o temor gerado pela doença acabou influindo de modo significativo nas reações sociais: o isolamento, a descriminação, a fuga, a abolição de ritos e de comportamentos julgados como inadequados em tempos de ameaça epidêmica impuseram às cidades uma existência marcada, no dizer da autora, pelo “compasso da epidemia”. Além das mudanças produzidas pela influenza no ritmo da vida cotidiana, o medo da doença também levaria a uma alteração nas percepções e na sensibilidade da população, promovendo muitas vezes o embrutecimento e a indiferença entre os indivíduos. Por outro lado, a potencialização das angústias e das incertezas promovidas pelo medo também deu lugar a comportamentos opostos, como a solidariedade e a generosidade, expressos na ampla mobilização verificada em torno dos enfermos: o socorro aos adoentados, o recolhimento de donativos, a distribuição de alimentos, a ampla divulgação dos mais diversos preventivos e fórmulas caseiras encaminhados aos jornais para o combate à influenza. Essas receitas também expunham práticas e crenças em torno da doença e do adoecimento que remetiam a uma experiência secular na qual se misturavam elementos da experiência cotidiana, das crenças religiosas e de diversas teorias médicas. A proximidade entre algumas práticas sociais verificadas durante a pandemia de 1918 e aquelas relatadas em experiências da mesma natureza é um exemplo revelador do que a historiografia tem apontado como similaridades e respostas sociais comuns verificadas durante os eventos epidêmicos.
O texto de Maria Isabel Porras Gallo discute o modo como a crise sanitária imposta pela pandemia de 1918 contribuiu para iluminar os conflitos no interior das chamadas profissões sanitárias – medicina, farmácia e veterinária – e dinamizar o processo de modernização profissional vivenciado por farmacêuticos e veterinários espanhóis, durante as duas primeiras décadas do século XX. Segundo a autora, a atenção dispensada pela historiografia aos profissionais de saúde envolvidos nesse evento epidêmico na Espanha tem se voltado majoritariamente para o papel desempenhado por médicos e enfermeiros, ignorando outros atores importantes naquele contexto. O período anterior à pandemia havia sido marcado pelo consenso por parte dos médicos e de outras elites da sociedade espanhola sobre a necessidade de reformas para superar o atraso sanitário no qual o país se encontrava. No bojo deste processo inscreve-se a mobilização entre médicos, farmacêuticos e veterinários no sentido da renovação e da reorganização profissional, garantindo desta forma prestígio econômico e social. Entre os médicos essa mobilização ocorreu através de academias e sociedades científicas, da representação no parlamento além das denúncias e das propostas de solução para os problemas sanitários então identificados – soluções que enfatizavam o preparo científico da classe, fundado num discurso triunfalista embalado pelas conquistas proporcionadas pela bacteriologia. A crise epidêmica transformou-se assim em momento privilegiado para que os doutores buscassem reafirmar a sua autoridade e seu preparo, senão para debelar a doença, ao menos para identificar e sugerir medidas que minimizassem as carências responsáveis pela ampliação dos problemas acarretados pela influenza. Como mostra a autora, farmacêuticos e veterinários teriam lançado mão dos mesmos artifícios usados pelos médicos – com destaque para o apelo às possibilidades e conquistas advindas da ciência do laboratório – para afirmar sua importância profissional, demarcando e garantindo o seu lugar na nova organização sanitária que ia se conformando no país.
O último artigo da coletânea apresenta um enfoque epidemiológico que discute a gripe no Departamento de Boyacá, na Colômbia. Nessa análise sobre a pandemia de 1918, os autores Abel Fernando Martinez Martin, Juan Manoel Ospina Diaz, Fred Gustavo Manrique-Abril e Bernardo Francisco Meléndez Alvarez se estendem para além dos dados relativos à influenza espanhola, fazendo um registro do impacto da mortalidade atribuída à doença no período abarcado entre os anos de 1912 e 1927. Foram levantados 106.408 registros de óbito em 68 municípios do Departamento de Boyacá e, nesta análise ampliada sobre os impactos da moléstia naquela região, observa-se que a pandemia apresentou um comportamento relativamente distinto daquele relatado em diversas regiões do mundo. Dividindo o período analisado em pré-pandêmico (1912-1917), pandêmico (1918) e pós-pandêmico (1919-1927), os autores apontam que não se observam as três ondas de contágio verificadas especialmente nos Estados Unidos e nos países europeus, ou ainda o significativo aumento de vítimas entre os adultos jovens, que teria dado ao gráfico da mortalidade da gripe por faixas etárias uma forma distinta ao que normalmente era observado (o padrão em U, com a mortalidade concentrada nas duas faixas etárias extremas e o padrão em W, em que o impacto da mortalidade se tornava bastante expressivo também ente os adultos jovens, como foi verificado em estudos dedicados à pandemia de 1918 em diferentes países). Para a região em exame, os dados sinalizam que os grupos mais afetados pelo crescimento da mortalidade durante a pandemia continuaram sendo os indivíduos maiores de 60 e os menores de 7 anos de idade. Também é possível verificar que, diversamente do observado nos períodos pré e pós-pandemia, houve um significativo aumento na proporção de óbitos por gripe entre os adultos jovens, ainda que ele não tenha ultrapassado o crescimento verificado nas duas faixas etárias anteriormente destacadas. Apesar dessas diferenças, os dados também apontam a expressiva mortalidade causada pela doença no ano de 1918 (cerca de seis vezes maior que no período pré-pandêmico) e a concentração de óbitos no último semestre daquele ano (o que também é observado na maioria dos países, confirmando a drástica mutação do vírus em meados de 1918). Para o período pós-pandêmico, os dados sugerem ter a influenza se estabelecido como causa significativa da mortalidade entre a população, assumindo uma proporção elevada entre os óbitos registrados a qual não se verifica no período pré-pandêmico. Ao lado destes dados, os autores ainda revelam os impactos da moléstia na vida cotidiana de diferentes localidades do Departamento de Boyacá, onde também se pode observar as críticas e os limites da atuação das autoridades sanitárias, a mobilização social em torno das vítimas ou o apelo à religião e ao sobrenatural para afastar a ameaça da doença, como revelado em outros textos deste volume.
O presente Dossiê não pretende esgotar as possibilidades de abordar o tema da pandemia da gripe espanhola. Ao contrário, busca instigar, a partir da apresentação de pesquisas de diversas partes do mundo, os novos pesquisadores para o potencial de investigação da história das doenças e suas situações epidêmicas. A diversidade de perspectivas presente nos artigos ora apresentados indica, além da multiplicidade de abordagens possíveis, que há muito a ser trabalhado, pesquisado e discutido neste campo, que se constitui, por natureza, como interdisciplinar. Neste Dossiê apresentamos algumas das possibilidades de leitura e interpretação do episódio de 90 anos atrás e aguardaremos, com expectativa, que o campo de pesquisa nesta área no Brasil cresça e prolifere e, neste caso, com a mesma virulência da pandemia espanhola.
Belo Horizonte, outubro de 2009.
Notas
1.ROSENBERG, Charles E. Explaining epidemics and other studies in the History of Medicine. Cambridge: Cambridge University Press, 1992, p.2. [ Links ]
2. ROY, PorterDas tripas coração. São Paulo: Record, 2004; [ Links ] PESTRE, Dominique. Por uma nova história social e cultural das ciências: novas definições, novos objetos, novas abordagens. Cadernos IG / Unicamp, v.6, n.I, 1996. [ Links ]
3. ROSENBERG, Charles E. e GOLDEM, Janet. Framing disease: studies in Cultural History. New Brunswick: Rutgers University Press, 1997, p.XXIII. [ Links ]
4. EVANS, Death in Hamburg: society end politics in the cholera years, 1830-1910. London: Penguin Books, 1987, p.XVII. [ Links ]
5. ROSENBERG, Charles E. Explaining epidemics and other studies in the History of Medicine. [ Links ]
6. Tucidides. História da Guerra do Peloponeso. Brasília: UNB, 1987. [ Links ]
7. DEFOE, Daniel. Diário do ano da peste. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2002. [ Links ]
8. PYENSON, Lewis. Comparative history of Science. History of Science, v.XL, p.1-33, 2002. [ Links ]
Anny Jackeline Torres Silveira – Professora do Centro Pedagógico e da Pós-graduação em História – UFMG. E-mail: anejack@terra.com.br
Betânia Gonçalves Figueiredo – Professora do Departamento e da Pós-graduação em História – UFMG. E-mail: beta@ufmg.br
(Organizadoras)
TORRES, Anny Jackeline; FIGUEIREDO, Betânia Gonçalves. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.25, n.42, jul. / dez., 2009. Acessar publicação original [DR]
Imagens de escravidão e mestiçagem / Varia História / 2009
Uma imagem diz mil coisas ?? e apaga outras mil ??! É uma constatação, que deve ser estendida, também, ao observador da imagem, que seleciona e atribui significados a ela, que a (re) constrói relacionando-a uma miríade de elementos, fatores, condicionantes e operações cognitivas nem sempre claras para ele próprio. Assim procedendo, ele recorta e remodela historicidades e temporalidades das imagens observadas e por meio delas. Ora, esse movimento sem fim (pois é passível de ser reiniciado a qualquer momento no futuro) entre criado, criador e observador é, aqui, nosso eixo mestre, nosso norteador de miradas do presente sobre imagens produzidas no passado.
Se, no geral, as imagens suscitam desconfiança quando examinadas pelo historiador (como deve ocorrer com qualquer outro testemunho examinado), em particular, a iconografia sobre a escravidão e sobre as mestiçagens provocam ainda mais recebio. Como se tratam de temáticas envoltas em muitas polêmicas produzidas ao longo do tempo (algumas ainda bem vivas), com condenações e com defesas de matizes os mais distintos, essas fontes são capazes de não apenas informarem sobre realidades passadas, mesmo que através de silêncios, mas, também, de explicitarem (talvez, melhor fosse dizer escancararem …) percepções típicas de certas épocas e próprios de certos grupos. Neste caso, obviamente, inclua-se historiadores latu sensu, cronistas, intelectuais, políticos, cientistas, religiosos e, também, escravos, libertos e mestiços.
Neste Dossiê , aquela desconfiança suscitada entre os experts tornou-se o eixo de reflexão e sua motivação. A imagem foi transformada em fonte central de nosso interesse. Elas aqui são fontes, mais que belas ilustrações, ainda que os autores não atribuídos a elas o mesmo grau importância. Não obstante o trato despendido, fica claro nos textos o quanto a iconografia é importante para a renovação dos estudos históricos atuais, explicitando-se sua potencialidade especial para que a renovação da historiografia sobre escravidão e sobre as mestiçagens.
Já na capa do número da Varia Historia , a imagem inédita impacta, instiga e, creio, provoca as primeiras reflexões. Pelo menos, foi o que senti quando ao visitar despretensiosamente a exposição El sueño de um império; la colección mexicana del duque de Montpensier , no Archivo General de Indias, em Sevilla, em 2007. Não podia me conter de curiosidade e de estupefação ao ver os objetos expostos dentro de uma redoma de vidro e, principalmente, ao ler como informações contidas no pequeno cartão de identificação colocado ao lado deles: Pareja de estribos do tipo llamado ‘de cajón’ con forma de cabeza de negro. [Brasil. Siglo XVIII]. Madera. 17 x 12 cm. Archivo General de Indias. Colección duque de Montpensier. Nunca tinha visto algo parecido no Brasil ou em qualquer outra parte. Nem poderia sonhar que no meio de uma coleção um tanto misturada de objetos relacionados à arte de adestramento e à cavalaria poderia encontrar algo tão especial para meus temas de trabalho e predileção. Ledo engano! Tanto é possível encontrar essas surpresas em lugares insuspeitos, quanto esses ocorridos devem ser tomados como exemplos para pensarmos sobre a importância de transitarmos por e entre acervos aparentemente distanciados de nossos interesses mais imediatos. Sobretudo em relação às imagens, é muito importante se considerar essa última advertência.
Procurei saber, imediatamente, quem era o duque de Montpensier, como formou sua coleção, como ela veio pertencer ao Arquivo das Índias e, principalmente, como os estribos “brasileiros” foram incorporados a ela. Sobre as três primeiros indagações, pude saber mais detalhes além das informações que constavam no pequeno folheto distribuído aos visitantes. Com relação à última, infelizmente, nada consegui. Ninguém no Archivo de Indiasconhecia algo sobre a história da circulação de objetos tão específicos, nem sabia informar sequer sobre a existência ou não de documentação relativa à formação da coleção do duque. O que se sabe é que o acervo foi reunido a partir de 1854, por Antonio de Orleáns, o duque de Montpensier, em seu palácio de Castilleja de la Cuesta, Sevilla (no qual falecera Hernan Cortés, em 1547). Esse Orléans (talvez, por aí se possa explicar a presença dos objetos brasileiros, dado o parentesco com a família real brasileira, que, aliás, se estende até hoje), inclusive, aspirou ser o imperador do México, a partir da idéia de Napoleão Bonaparte de estabelecer nesse país um império francês. Assim, a coleção se formou sob a áurea imperial bonapartista, o que ajuda a explicar a paixão do duque pela equitação e pelos objetos relativos a esse universo. A coleção foi doado aoArchivo de Indias em 1933, mas, por falta de espaço adequado, foi transferido para o Museo de América, em Madrid, onde permaneceram até 2006, quando voltaram ao Archivo.
As duas cabeças de negros são, realmente, impressionantes e são, também, muito diferentes da maioria dos estribos usados naquele tempo. Vale lembrar que estribos são objetos utilizados para os cavaleiros, montados em seus cavalos, enfiarem os pés, alcançando estabilidade sobre o animal, passando a controlá-lo, também, a partir daí. Estribos de prata e, até de ouro, eram comuns. Estribos abertos e fechados, como os que aqui se apresentam, eram feitos em metal, couro e madeira. Certamente, os cavaleiros os utilizam como forma de distinção, o que explica uma variedade enorme de modelos e de materiais usados para produziri-los. Havia estribos de uso cotidiano e específicos de algumas ocupações e ofícios, como militares, tropeiros e negociantes, transportadores, arrieiros e vigias. Existiam estribos especiais para mulheres e, também, para serem ostentados em eventos festivos, comemorações, bodas e em cortejos fúnebres. Mas, definitivamente, o par deles, sob forma de cabeça de negro, é de difícil classificação. Quem os teria mandado fazer? Em quais momentos foram usados? Diante de quem? Teriam sido pensados, confeccionados e usados como símbolos de poder de algum proprietário de escravos, demonstrando seu domínio absoluto sobre seus cativos? Que tipo de impacto o uso dos estribos pode ter geração entre escravos e negros libertos? Todas são perguntas a serem respondidas. E para começar a responder-las, creio ser importante frisar que em documentos muito propícios ao registro desse tipo de objeto, tais como testamentos e inventários definitivamente, o par deles, sob forma de cabeça de negro, é de difícil classificação. Quem os teria mandado fazer? Em quais momentos foram usados? Diante de quem? Teriam sido pensados, confeccionados e usados como símbolos de poder de algum proprietário de escravos, demonstrando seu domínio absoluto sobre seus cativos? Que tipo de impacto o uso dos estribos pode ter geração entre escravos e negros libertos? Todas são perguntas a serem respondidas. E para começar a responder-las, creio ser importante frisar que em documentos muito propícios ao registro desse tipo de objeto, tais como testamentos e inventários definitivamente, o par deles, sob forma de cabeça de negro, é de difícil classificação. Quem os teria mandado fazer? Em quais momentos foram usados? Diante de quem? Teriam sido pensados, confeccionados e usados como símbolos de poder de algum proprietário de escravos, demonstrando seu domínio absoluto sobre seus cativos? Que tipo de impacto o uso dos estribos pode ter geração entre escravos e negros libertos? Todas são perguntas a serem respondidas. E para começar a responder-las, creio ser importante frisar que em documentos muito propícios ao registro desse tipo de objeto, tais como testamentos e inventários confeccionados e usados como símbolos de poder de algum proprietário de escravos, demonstrando seu domínio absoluto sobre seus cativos? Que tipo de impacto o uso dos estribos pode ter geração entre escravos e negros libertos? Todas são perguntas a serem respondidas. E para começar a responder-las, creio ser importante frisar que em documentos muito propícios ao registro desse tipo de objeto, tais como testamentos e inventários confeccionados e usados como símbolos de poder de algum proprietário de escravos, demonstrando seu domínio absoluto sobre seus cativos? Que tipo de impacto o uso dos estribos pode ter geração entre escravos e negros libertos? Todas são perguntas a serem respondidas. E para começar a responder-las, creio ser importante frisar que em documentos muito propícios ao registro desse tipo de objeto, tais como testamentos e inventários post-mortem, eles não aparecem associados. Depois de ler muitos documentos, durante anos de investigação nos arquivos mineiros, nunca identifiquei nada que possa se parecer com os aqui encontrados. Bom, pelo menos para as Minas Gerais Setecentistas posso dizer isso, embora, novas leituras, já com essa indagação particular, impedindo outras realidades. Embora suspeite fortemente que esses estribos podem ter sido obtidos nas Minas, dadas a quantidade enorme de escravos aí existente, a grande quantidade de artesãos que podem tê-los idealizado e a existência de peças esculpidas em madeira com feições semelhantes (ver, por exemplo, o rei mago negro – Baltazar – atribuído ao Aleijadinho, que integra o acervo do Museu da Inconfidência, Ouro Preto, e porta de oratório “afro-brasileiro”
Na verdade, uma forma de representação de negros adotada pelo (s) escultor (es) dos estribos era já muito antiga e largamente copiada na Europa e no Novo Mundo. Não era o único padrão existente, mas um sem número de imagens esculpidas, talhadas, pintadas, desenhadas e gravadas apresentavam-nos em cor preta muito forte, com olhos muito brancos, de contornos, às vezes, avermelhado, para criar contraste, e com lábios grossos, em carmim. Esse tipo de idealização tão reproduzida, ao longo de vários séculos, reforçava, especialmente, a imagem de gente estranha, bárbara e herege, aproximando-a da natureza animalesca e selvagem, associando-a, muitas vezes, a símios; e isso, desde, pelo menos, o século XV. Era imagem associada, também, aos mouros, esse personagem de multifaces, colonos negros da Mauritânia, que, ao longo do tempo, se confundiu com o Islã e se tornou sinônimo dele. Os estribos antropomorfos misturam todo esse universo de signos e de símbolos, se não em sua idealização original, pelo menos nos olhares provocados por sua singularidade e por seu ineditismo. Afinal, fontes históricas são produtos do passado e do presente no qual são observadas e indagadas. Neste sentido, assim como a História, elas são filhas do tempo – do tempo de sua preparação, assim como dos tempos de suas leituras. As duas cabeças de negros representadas sobre a madeira inspiraram, talvez, respeito e temor no passado, mas, neste Dossiê, um conjunto importante de reflexões sobre o uso das imagens pelos historiadores. Sob a inspiração de ambos, esperamos que os leitores se sintam provocados a pesquisarem sobre a temática abordada,
Escravidão e Mestiçagens são os outros dois eixos mestres deste Dossiê. Quanto ao primeiro, largamente estudado há séculos, limito-me a dizer que há muito a ser investigado ainda e que a iconografia é, sem dúvida, aliada importantíssima nessa empreitada, que parece não ter fim, felizmente. Já com relação às Mestiçagens, são necessárias várias mudanças e algumas advertências.
Inicialmente, devo esclarecer que, em nossa perspectiva, Mestiçagens são entendidas em suas dimensões biológicas e culturais, sem tomá-las entregues, a não ser para, metodologicamente, alguns privilegiaram esses aspectos em situações especiais. Portanto, nossa perspectiva encontra-se muito distanciada do racialismo científico, do eugenismo e do evolucionismo social do século XIX, associada, de forma indevida e até mesmo capciosa, à idéia de mestiçagem. Sobre isso, resta dizer que híbrido, semífero, misto / mixto, misturado, mestiço são termos que constatam cruzamentos biológicos e culturais e existem existência muito anterior ao século XIX, sendo possível voltar, pelo menos, aos primeiros anos da era cristã e encontrar registrados alguns deles. O emprego desses termos quase sempre serviu para que certa “pureza” de origem, cultural e biológica, fosse evocada e, portanto, para que os híbridos / ibridos sejam devidamente identificados e (des) classificados.
O termo mestiçagem, não obstante, parece ter surgido no século XIX, provavelmente a partir do trato cientificista dispensado à problemática da miscigenação, sobretudo nas jovens nações americanas. É essa perspectiva que provocaria no século XX, entre certos grupos de intelectuais, um grande mal-estar, sendo combatida a partir de então. É igualmente essa perspectiva evolucionista, eugênica e racialista que é evocada hoje ainda, soma vezes, quando se evoca a História das Mestiçagens, como é entendida nesta apresentação. Trata-se, obviamente, de mal entendido lamentável.
É no mesmo período Oitocentista que se alteram, também, os significados antigos encontrados ao termo híbrido (hibridismo e hibridação são variantes provavelmente inventadas no mesmo século XIX). A partir daí, eivado pela genética da época, híbrido passou a significar a mistura que não frutifica, o estéril. Essa definição foi empregada a animais e plantas e, mas, não raro, explícita e implicitamente, foi associada às mestiçagens humanas e, ainda, projetada sobre o futuro daquelas jovens nações, partidas, várias delas, de longo passado escravista e marcadas forte e indelevelmente, todas elas, pela mescla biológica e cultural. Os olhares intelectuais, científicos e políticos desses tempos condenavam passados e presentes povos povos e duvidavam de sua capacidade de “civilizar-se” no futuro. Híbrido e mestiço ligado-se, assim, sinônimo de degenerescência e de barbárie, ocupando, necessariamente, um lugar desprestigioso e perigoso na cadeia evolutiva. Os novos significados afirmam aos termos antigos e as derivações lexicais foram muito convenientes a essa conclusão equivocada.
É claro que o uso de uma infinidade de termos que evocavam como mestiçagens antes do século XIX lastreou-se na necessidade de distinguir e classificar os povos, embora não das formas empregadas no Oitocentos. Não está aí o ponto que diferencia esses momentos. São outros. Entre eles, deve-se destacar que o amplo conjunto terminológico existente e amplamente usado por todos os grupos sociais nem sempre foi imposto de “cima pra baixo”, mas foi, também, construído e inflexivelmente usado “embaixo”, isto é, entre os grupos mais pobres. É equívoco pensar que, por exemplo, entre escravos e forros não existem formas de distinção, que se reconhecem como iguais e que não há ampla aceitação e uso dos termos distintivos empregados por brancos, autoridades e senhores. Junte-se um isso que, ao longo dos séculos, o processo de hibridação foi tão acentuado nessas sociedades que muitos mestiços integravam como elites, ocupavam postos importantes e formavam (junto com muitos ex-escravos africanos, inclusive) um enorme contigente de proprietários de escravos. Portanto, até o fim do século XVIII ou início do XIX, sociedades mestiças não surgiam fadadas à degenerescência, à decadência cultural e à barbárie, pelo menos da mesma forma que se acreditou a partir de exemplo do século XIX.
Outro ponto importante de comparação entre os dois momentos refere-se aos critérios e elementos de classificação. Até divulgada do Oitocentos a definição das “qualidades”, isto é, pretos, negros, crioulos, pardos, mulatos, cabras, caboclos, etc …, variava enormemente, de região para região, de época para época e, também, de acordo com a visão e a conveniência dos que registravam essas práticas sociais. Não há, portanto, qualquer intenção “científica” nessas distinções e muito dificilmente poder-se-ía hierarquizar ortodoxamente, com aceite generalizado, cada um dos “tipos” “inferiores”, mestiços e “puros”, que compunham essas sociedades americanas.
Finalmente, é necessário explicitar aqui qual é a mestiçagem da qual estamos falando. Trata-se, arbitrária e privilegiadamente, das mestiçagens ocorridas a partir do Novo Mundo e, principalmente, das elaboradas nele. Esses processos de mestiçagem experimentaram dinâmicas novas e dimensões desconhecidas até então, produzindo novas formas, de novos ritmos, de novas cores, agentes, objetos, ritos, fomentando novas formas de viver, de pensar, de empregar os conhecimentos e de representar o mundo. As mestiçagens, a partir daí, se tornam mais completas, mais amplas, ainda mais complexas e, também, mais intensas, mais rápidas e mais impactantes. Pela primeira vez, naturais das quatro partes do mundo passavam a conviver, a coexistir e a se mesclar. As cidades mestiças americanas, mais que as cidades antigas, contavam com o elemento nativo, o “índio”, fortemente influente na re-conformação do mundo (a partir da América) e de seu próprio universo, ainda que foi complexo e dinâmico antes da chegada dos primeiros conquistadores. Esse intenso processo não ocorreria sem que um enorme deslocamento populacional, planetário e sem precedentes, se desenvolvesse. Cerca de 12.000.000 de negros africanos chegaram às Américas em menos de quatrocentos anos. Outros milhões de europeus imigraram para o mesmo destino. Asiáticos, embora em menor quantidade, também compuseram o novo crisol biológico-cultural no qual se transformou o Novo Mundo entre os séculos XV e XVIII, ampliado fortemente nos séculos XIX e XX. São as mestiçagens produzidas a partir desse quadro às quais, privilegiadamente, nos referimos aqui. São elas que geraram, nesse período, a maior população mestiça conhecida pela humanidade até então. Embora não sejam elementos dependentes entre si, nem necessariamente associados, mestiçagens e escravidão / trabalho compulsório estiveram intimamente ligados durante todo o processo histórico de formação das sociedades americanas até o século XIX. Neste caso, é possível afirmar que sem a escravidão e a servidão de índios, africanos e mestiços, a miscigenação biológica e de culturas jamais teria atingido a dimensão atingida, não teria assumido o perfil que hoje conhecemos, nem teria impactado o todo o planeta como aconteceu . mestiçagens e escravidão / trabalho compulsório estiveram intimamente ligados durante todo o processo históricos de formação das sociedades americanas até o século XIX. Neste caso, é possível afirmar que sem a escravidão e a servidão de índios, africanos e mestiços, a miscigenação biológica e de culturas jamais teria atingido a dimensão atingida, não teria assumido o perfil que hoje conhecemos, nem teria impactado o todo o planeta como aconteceu . mestiçagens e escravidão / trabalho compulsório estiveram intimamente ligados durante todo o processo históricos de formação das sociedades americanas até o século XIX. Neste caso, é possível afirmar que sem a escravidão e a servidão de índios, africanos e mestiços, a miscigenação biológica e de culturas jamais teria atingido a dimensão atingida, não teria assumido o perfil que hoje conhecemos, nem teria impactado o todo o planeta como aconteceu .
Finalmente, falemos sobre a “pureza”, o contrário “natural” da mistura. Pureza biológica, pureza cultural … ora, não é essa a nossa equação. Não falamos de mestiçagens partindo de pretensas purezas originais. Entretanto, é importante dizer que essas purezas existem! Sim, existem solidamente, claramente, comprovadamente, ainda que nas dimensões dos discursos, do imaginário e das representações são dimensões da própria realidade histórica, portanto conformam e são a própria realidade histórica! Não é recomendável olvidar-se esse aspecto importante da história, sob pena de se apartar demasiadamente dos registros do passado e mesmo do presente, além de se preparar um futuro de maneira exageradamente idealizada e artificial.
O Dossiê, a partir da imagem da capa até o último ponto, pretende contribuir para o melhor conhecimento dos temas e da potencialidade dos documentos iconográficos para esse fim. Foi importante, nesse sentido, incorporar um texto sobre a escravidão antiga, (re) vista a partir de documentos arqueológicos, pedras sepulcrais e fontes literárias, cruzadas, comparadas e postas à crítica historiográfica (Andrea Binsfeld). Impressiona como há continuidades entre a escravidão antiga e a moderna, tão distanciadas pelos historiadores de outros tempos, que podem ser evidenciadas pelos novos estudos, inclusive os que elegem a iconografia como fonte. Esses traços aparecem, várias vezes, como que exalando das descrições documentais por autora, ainda que não tenha sido sua intenção primeira. Iniciar oDossiê com esse texto e, logo depois, desembarcar no Novo Mundo não aparece aqui como procedimento roto. Ao contrário, essa seqüência corrobora a potencialidade do uso de fontes iconográficas, inclusive no sentido de facilitar a (re) aproximação de realidades indevidamente apartadas.
Representações e auto-representações convenientes parecem ter sido práticas muito comuns tanto entre senhores, quanto entre escravos, libertos e livres pobres, assim como entre escribas e artistas. Mestizos que se fazem passar por índios, índios que assumem o perfil de criollos , mulato que se torna índio, que não podia ser escravo (Joanne Rappaport). São muito fluidas as fronteiras entre essas “qualidades” (termo usado na época), o que deve levar o historiador a desconfiar, e muito, dos registros, assim como os cruzamentos feitos para a escravidão no mundo antigo acabou explicitando.
A fluidez das designações e das categorias de mestiçagens pode ser notada em toda a extensão continental americana e isso fica evidente nos trabalhos de Joanne Rappaport e de Maria Regina Celestino de Almeida. Como concluímos essa última autora, identidades plurais foram produzidas nessas sociedades e devem balizar o olhar do historiador de hoje, que, obviamente, não deve imobilizar um processo histórico que foi marcado justamente pelo contrário, isto é, por mobilidades em sentido amplo, identitária inclusiva . Novamente, surge a fragilidade de fronteiras entre índios e mestiços, mas, também, entre “selvagens” e “civilizados”, agora corroboradas pelas célebres imagens deixadas por Jean-Baptiste Debret, igualmente alardeadas por historiografia recente e cada vez mais extensa.
Mariza de Carvalho Soares recorre às imagens produzidas por Frans Post para melhor entendimento do universo dos engenhos de açúcar do século XVII, na época, o “mundo” de escravos africanos e índios. Formas de trabalho e dinâmicas de mestiçagens podem ser sugeridas por essas imagens do Brasil holandês e cruzadas, como fez a autora e como se deve sempre proceder, com a produção historiográfica já existente e com a Documentos manuscritos e impressa disponível. Esse exercício esclareceu muito sobre o ambiente e o cenário escravistas, coloniais e já fortemente mestiçados dessa região invadida no Seiscentos.
Ana Cristina Fonseca Nogueira da Silva nos oferece fotografias reveladoras da “desafricanização” promovida na colônia portuguesa de Moçambique, durante os séculos XIX e XX. Os álbuns de fotografia boletins montados para retratar a “missão civilizacional” entre os nativos “atrasados”, mestiçados e racialmente inferiores, na visão da época, atestam a tentativa de europeizar aquele universo moçambicano, o que, obviamente, malogrou. Ana Cristina aponta no texto a potencialidade comparativa entre os retratos “europeizantes” dos moçambicanos e como imagens de negros e mestiços, menos maquiadas, produzidas no Brasil setecentista e oitocentista, o que abre o espaço para estudos importantes, obrigatoriamente, mas ainda não realizado.
No texto último deste Dossiê, Ana Lúcia Araújo aborda as representações imagéticas produzidas recentemente, a partir de um conceito inexistente no passado – Rota dos Escravos -, e que busca, pedagogicamente, usar a história do tráfico atlântico de escravos aos beninenses e aos observadores que se deparam com esses grandes monumentos plantados em Ajudá. Assim, o Dossiê que se iniciou com um texto sobre escravidão na Antiguidade e que passou pelas mestiçagens ocorridas em áreas coloniais escravistas e pós-escravistas, termina com uma reflexão em torno da projeção sobre o passado de expectativas, valores e conceitos do presente, viabilizadas por imagens sob forma de esculturas e monumentos arquitetônicos.
Como de praxe, desejamos ao leitor uma excelente leitura. Mas, além disso, esperamos que ele se sinta provocado, como já foi dito antes, pela proposta do Dossiê e que se deixe seduzir pela riqueza das fontes iconográficas, assim como por sua potencialidade excepcional para se proceder a uma nova revisão da história da escravidão e das mestiçagens.
Belo Horizonte, junho de 2009.
Eduardo França Paiva – Organizador. Professor do Departamento de História e do
Programa de Pós-graduação em História-UFMG. E-mail: edupaiva@ufmg.br
PAIVA, Eduardo França. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.25, n.41, jan. / jun., 2009. Acessar publicação original [DR]
História da Arte / Varia História / 2008
O presente dossiê inserido neste número da Revista Varia História do Departamento de História da UFMG apresenta uma série de textos especializados sobre o estudo e as preocupações da história da arte, para além de inéditas reflexões sobre o objeto artístico.
Os textos aqui em questão discutem e analisam a arte sobe o ponto de vista teórico-formal, mas também apresentam uma dinâmica histórico-cultural: do universo imagético ao sentido intrínseco. Como Panofsky afirmava é fulcral atravessar o quadro; é necessário passar da iconografia à iconologia, pois para este teórico a primeira não era apenas um meio, mas a compreensão global da obra de arte. É neste sentido que as pesquisas aqui escolhidas viajam desde o universo da forma, até uma acurada análise especializada do universo invisível da arte, isto é, as importantes questões culturais e históricas que possivelmente explicam um conteúdo específico.
Neste momento o principal objetivo foi o de difundir e tornar visível o universo da história da arte em suas diferentes aparições. Apresentar este universo artístico em suas mais amplas facilidades de estudo: o aspecto visível e o universo invisível, que, mesmo fora das linhas da objetiva visibilidade, está ali como ponto complementar. Mostrar as inúmeras possibilidades e o quanto esta disciplina pode apresentar conjunturas infinitas tanto para o estudioso que inicia suas pesquisas, como para o grande investigador. Foi a tentativa de propor ao estudioso da história da arte uma reflexão, uma espécie de provocação e por isso apresenta-se aqui um mundo de diversificações, de análises e de futuros estudos.
O campo aqui escolhido é bastante amplo, mas não foi nosso intuito criar uma visão panorâmica da história da arte, mas apenas mostrar as possibilidades de investigação que esta disciplina nos fornece. Nossa preocupação não foi dar um sentido linear (de pura continuidade) na organização, pois os assuntos são muitos diferentes e não apresentam continuidades específicas. Discute-se o ver a arte, seja simplesmente no seu aspecto formal, ou em suas particularidades culturais como uma aliança do conhecimento, mas nunca a partir de uma simples obrigatoriedade. Assim, apresentam-se ao leitor tanto as probabilidades imediatas do objeto em si, como ainda as análises das suas funções e do seu sentido retórico ou persuasivo.
É fundamental dizer que a história da arte não deve ficar exclusivamente presa a uma preocupação voltada para grandes problemas ou grandes soluções de atribuição de autoria. O que mais importa é saber o que representa esta ou aquela pintura, quais são seus universos e quais são as mensagens ali caracterizadas.
Com o exercício do olhar pode-se analisar tanto uma obra de arte antiga como outra contemporânea. Penso que está é a mensagem mais importante de todos estes artigos. Neste contexto as investigações aqui apresentadas nos mostram que a história da arte procede de problemas, por tendências e por confrontos, por encontros e desencontros e nunca por cronologia, com bem salienta o historiador de arte italiano Maurizio Fagiolo.
Outro aspecto que merece referir-se diz respeito ao conjunto de artigos aqui escolhidos. Trata-se de pesquisadores oriundos do Brasil, da Colômbia, do Canadá, da Itália, da França e de Portugal. As diferentes análises permitirão ao leitor interessado no estudo da história da arte criar diferentes comodidades para se pensar as inúmeras questões pertinentes não só ao campo da arte, mas também conectadas ao universo da história.
Da importância de refletir sobre o barroco toscano nasce o texto de Fauzia Farneti, da Università degli Studi de Florença. Sua pesquisa abrange estudos originais sobre o quadraturismo (pintura de falsa arquitetura) e o universo da arte setecentista barroca florentina. Trata-se de investigação pautada não só em relação a novas atribuições, como também no real entendimento da pintura perspéctica em Florença. Sua análise e metodologia mostram um estudo apurado ao pesquisador interessado na cidade de Florença não apenas como marco do Renascimento, mas também como centro difusor de um universo barroco pouco conhecido. Acreditamos que a língua original permitiria visualização melhor de seus conteúdos e conceitos, para além do fato de criar, junto com os demais uma coerência internacional.
O artigo de Paula André, professora do ISCTE de Lisboa discute os processos específicos e fundamentais no modo de ver e conceber a obra de arte. Sua pesquisa mostra que os aspectos formais estão vivos dentro dos pintores sejam eles do presente ou do passado. As formas viajam e não se pode perder de vista o sentido de apropriação num diálogo constante entre obra e artista.
O artigo de Roberto Carvalho Magalhães, professor da Università Internacionale dell’Arte de Florença é impecável nesta discussão da arte e do artista, pois sua formação invade dois campos muito próximos: o da arte e o da museologia. Roberto Magalhães trata destas e de outras questões de modo dinâmico e nos faz pensar muito sobre as inúmeras questões relativas ao universo da história da arte onde estamos sempre vinculados a conceitos e a especificidades.
O estudo de Alexandra Gago da Câmara, na Universidade Aberta de Lisboa, abrange um amplo conjunto de inventários fotográficos do pesquisador Santos Simões e sua repercussão no estudo do patrimônio azulejar em Portugal. Percebe-se um universo geográfico gigantesco traduzido em inventário e que permitirá constituir categorias específicas para futuras pesquisas. Salienta-se aqui a envergadura deste trabalho sempre inovando com metodologias inéditas na possibilidade de trazer à luz diferentes interpretações ao universo dos azulejos luso-brasileiros.
O artigo de Márcia Cristina Leão Bonnet, professora de história da arte da Universidade Federal do Rio Grande do Sul intitulado A representação do Cristo Seráfico na igreja da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência do Rio de Janeiro contempla estudos importantes sobre questões iconográficas associadas ao estudo do culto franciscano. Esta abordagem apresenta pesquisa iconográfica franciscana medieval e seu contínuo desenvolvimento até o período setecentista, alvo específico das investigações desta pesquisadora.
Outro texto que aborda importante artista baiano, chamado Vitoriano dos Anjos Figueiroa, é o artigo de Luís Alberto Freire, professor na Escola de Belas Artes da UFBA. Trata-se de um estudo minucioso de um artista que operou em Salvador, mas que em meados do século XIX inicia atividade em Campinas, São Paulo. Um texto bem construído e de grande fôlego.
As preocupações com o estudo da perspectiva como disciplina específica nas Academias Militares é o ponto fulcral do artigo de Jorge Galindo, professor na Universidad Nacional de Colombia. Suas preocupações voltam-se para o ensino da técnica da perspectiva junto ao universo dos engenheiros militares desde os séculos XV e XVI na Academia Real de Matemática de Barcelona.
O texto intitulado Arquitectura, Esquema, Significado – Problemas de semántica de la arquitectura de Dominique Raynaud na Université Pierre-Mendès-France em Grenoble diz respeito a questões concernentes a aspectos semióticos e semânticos na arquitetura. O autor afirma que a conexão de uma forma arquitetônica com o seu significado não acontece por acaso. Suas preocupações são extremamente complexas. Como exemplo o autor coloca a idéia de ascensão vinculada a diversas arquiteturas desde as pirâmides no Egito antigo, até as construções da atualidade. Tudo como exemplo de elevação, verificado desde a subida do faraó, ou desde a conquista da luz divina na arquitetura gótica ou mesmo o alto poder econômico dos edifícios na contemporaneidade, momento máximo de uma conquista social e presa a determinações financeiras.
Outro trabalho é o de Maria Helena Flexor, professora emérita da UFBA. Seu estudo desvenda a presença do escultor Pedro Ferreira que a autora salienta como obra muito importante, pouco estudada pela historiografia na Bahia.
Luís de Moura Sobral é professor titular no Departamento de História da Arte Université de Montréal. Este artigo intitulado Uma nota sobre o ilusionismo e alegorias na pintura barroca de Salvador da Bahia contempla uma série de pinturas expostas na igreja do antigo Colégio dos Jesuítas, como ainda analisa a pintura de falsa arquitetura no teto da Antiga Biblioteca do mesmo Colégio. Sua análise é minuciosa em relação ao português Antônio Simões Ribeiro em Salvador colocando-o como o criador da chamada “Escola Baiana de pintura”
O artigo intitulado A história da arte na encruzilhada, de autoria de José Alberto Gomes Machado, professor catedrático da Universidade de Évora nos brinda com questões importantes para a análise crítica da história da arte nos tempos atuais. Para além do tema em pesquisa, o autor lança uma questão polêmica e que merece destaque: pode se falar de uma história da arte global? Assim, José Alberto instiga o leitor a ver e a rever outras questões paralelas.
Acredito que este universo de visão e de experiências artísticas apresentadas possa constituir futuros estudos e que surjam novas preocupações em relação ao objeto artístico. As formas, o desenho, as variantes cromáticas e as questões intrínsecas dos mais diferentes formatos artísticos foram tratadas e expostas como novas possibilidades, marcando um renovado percurso que culminariam num estudo sistematizado, seja a partir da simples idéia do formato e de questões técnicas, seja em questionamentos e significados histórico-culturais completando esta infinita dimensão do estudo e das investigações da história da arte.
Não poderia deixar de manifestar o meu agradecimento aos convidados que aqui participaram e deram o seu contributo histórico na confecção deste dossiê. Agradeço ainda a antiga editora da revista, Prof.ª Júnia Furtado e a atual editora, Prof.ª Adalgisa Arantes Campos; finalmente, ao bolsista da FAPEMIG Mateus Alves Silva, que nos ajudou com toda a disposição no remate final e na organização dos textos apresentados no dossiê.
Belo Horizonte, Dezembro de 2008.
Magno Moraes Mello – Organizador do dossiê. Departamento de História / UFMG. E-mail:
magno@fafich.ufmg.br
MELLO, Magno Moraes. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.24, n.40, jul. / dez., 2008. Acessar publicação original [DR]
História Ambiental e Cultura da Natureza / Varia História / 2008
História ambiental e cultura da natureza. Quais relações se constituem entre tais termos? Entre história e natureza, ambiente e cultura, é possível delinear inúmeras tramas urdidas entre as sociedades humanas, o tempo histórico, a produção cultural da natureza e de suas representações, mas também as condições naturais nas quais o homem continuamente reinventa sua trajetória sobre o planeta.
Privilegiando esse campo de investigação, o volume que o leitor tem em mãos investe-se de significado duplamente especial. Em primeiro lugar, constrói-se em continuidade com dois outros organizados anteriormente. Em 2002, História e Natureza veiculou artigos estimulantes, assim como ocorreu em História Ambiental (feita) na América Latina, de 2005. História ambiental e cultura da natureza visa uma nova incursão à temática, inegavelmente decisiva na pauta historiográfica contemporânea. Em seu conjunto, tais dossiês formam um conjunto de vinte textos assinados por vinte e um autores pertencentes a diferentes instituições do Brasil, Chile, Colômbia, Cuba, Estados Unidos, México e Panamá. Apresentam-se como uma trilogia que merece tornar-se bibliografia obrigatória entre os pesquisadores dedicados ao tema da história ambiental na América Latina.
Em segundo lugar, esta publicação surge no interior das atividades relativas à organização do IV Simpósio da Sociedade Latino-americana e Caribenha de História Ambiental (SOLCHA), entre os dias 28 e 30 de maio de 2008, na Universidade Federal de Minas Gerais. Desde um primeiro encontro no Chile (2003), a sistematização dos esforços em Cuba (2004), a concretização da fundação da SOLCHA em Carmona (2006) e o quarto encontro desses pesquisadores a ser realizado no Brasil, a Varia História tem se oferecido como um rico canal de debate e divulgação de um conhecimento histórico sob a perspectiva ambiental. Atenta às possibilidades do diálogo entre várias disciplinas, assume um caráter pioneiro nos meios acadêmicos brasileiros, incentivando o contato e a troca de conhecimentos entre os pesquisadores de diversos países que têm freqüentado nossas páginas através de seus artigos. Os três dossiês apresentam-se, indiscutivelmente, ligados à trajetória primordial dessa sociedade científica internacional e ao desenvolvimento de um campo relativamente recente do saber histórico.
El papel del derecho en el cambio material y simbólico del paisaje Colombiano, 1850-1930, de Germán Palacio, é uma análise situada na interface entre a história do direito, o estudo da questão fundiária na Colômbia e a construção histórica das paisagens. Explorando o processo de regulamentação e codificação da propriedade privada da terra, o autor ressalta as dimensões simbólicas do direito na transformação ambiental.
John Soluri, em Consumo de massas, biodiversidade e fitomelhoramento da banana de exportação, 1920 a 1980, apresenta um quadro dinâmico do mercado de bananas e da demanda global de estoques genéticos diversificados, em franca contradição com a homogeneização crescente dos cultivos. Seu artigo evidencia relações entre agricultura, ciência, economia de mercados, e as condições sócio-ambientais no Novo Mundo.
Em A geografia histórico-cultural da Escola de Berkeley: um precursor ao surgimento da história ambiental, Mathewson e Seemann analisam uma tradição de pensamento, inaugurada por Carl Sauer, especialmente afinada à história ambiental contemporânea. Tal corrente combate o pensamento determinista, focaliza o contexto histórico-cultural das paisagens, reinterpreta características das sociedades pré-colombianas e postula a mudança das atitudes e valores das sociedades ocidentais.
Stuart McCook, em Crônica de uma praga anunciada: epidemias agrícolas e história ambiental do café nas Américas, realiza um estudo no qual se evidenciam as possibilidades da abordagem global e transnacional de problemas ambientais. Sem desconsiderar os vários fatores envolvidos na história ambiental do café, as pragas agrícolas apresentam-se como um ponto de vista privilegiado, envolvendo análises sobre agricultura, sociedade, ciência e economia global.
Substantivismo econômico e história florestal da América portuguesa, de Diogo Cabral, traz estimulante reflexão de um jovem pesquisador brasileiro sobre os caminhos abertos pelos diálogos entre a história ambiental, a história econômica (sob uma perspectiva dos atores e das redes de solidariedade social) e uma história social em que a natureza não é apenas uma paisagem geo-bio-física mas também um campo de batalha.
Dora Shellard questiona a naturalização de paisagens fronteiriças, como se nelas não houvesse a marca da interferência cultural de várias populações, legitimando sua ocupação. A partir de relatos de expedições, Descrições de paisagens: construindo vazios humanos e territórios indígenas na capitania de São Paulo ao final do século XVIII dirige-se a um debate contemporâneo sobre a justiça social e equilíbrio ambiental em torno das unidades de conservação e terras indígenas.
Rios e governos no estado do Paraná: pontes, ‘força hidráulica’ e a era das barragens (1853-1940), de Gilmar Arruda, enfoca o processo de transformações presentes nas ações governamentais, assim como nas condições tecnológicas em torno do aproveitamento econômico dos rios. Destaca-se como estudo da construção das pontes e do surgimento da ‘era das barragens’, mesclando abordagens sob as perspectivas da geografia histórica e da história social dos rios.
Espindola e Wendling constroem sua analise na confluência entre a história e a agronomia, discutindo o avanço do capim-colonião sobre as terras antes cobertas pela floresta da região do médio rio Doce. Entre os fatores socioeconômicos e as características biológicas dessa gramínea de origem africana, Elementos biológicos na configuração do território do rio Doce aborda aspectos da interação entre as atividades humanas e o mundo natural.
Enfim, Varia Historia apresenta, orgulhosamente, seu terceiro dossiê dedicado às relações entre a história e a natureza. Ao longo de todos os artigos, o estudo da diversidade social-histórica frente ao meio natural suscita o questionamento de vários mitos aos quais nossas sociedades têm rendido pesados tributos. Nesse sentido, nossa intenção é contribuir para despertar / alimentar uma inquietude positiva e propositiva, na qual nosso pensamento nunca se contente com respostas unívocas.
Belo Horizonte, outono de 2008
Regina Horta Duarte – Organizadora. Departamento História / UFMG. E-mail:
reginahd@uai.com.br
DUARTE, Regina Horta. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.24, n.39, jan. / jun., 2008. Acessar publicação original [DR]
História das Américas: Política e Cultura / Varia História / 2007
O presente dossiê da Varia Historia dedica-se à História das Américas, com artigos que tratam de diferentes temáticas, particularmente relacionadas às dimensões políticas e culturais do conhecimento histórico e, em grande parte dos textos, suas inter-relações. Os artigos, em seu conjunto, têm grande amplitude espacial e temporal: do sul da América do Sul aos Estados Unidos, dos séculos XVI ao XXI. Ao lado de textos que abordam temas mais diretamente relacionados à história de determinados países, o dossiê traz artigos que analisam as circulações e conexões político-culturais entre diferentes países e espaços sociais.
O dossiê expressa o crescimento, diversificação e aprofundamento dos estudos sobre a América Hispânica e os Estados Unidos no Brasil, além de ressaltar o intercâmbio cada vez maior com a produção historiográfica sobre o continente americano produzida em outros países das Américas e da Europa.
Esclarecemos que, em razão da diversidade temática, espacial e temporal, optamos por apresentar os artigos em ordem cronológica.
O dossiê inicia-se com o artigo de Serge Gruzinski, Estambul y México. O autor esteve em Belo Horizonte em junho de 2007, como pesquisador convidado pelo Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares – IEAT, da UFMG, ocasião em que proferiu várias conferências, inclusive sobre o tema do artigo publicado nesse dossiê. O autor apresenta mais um trabalho, em sua já vasta e rica produção historiográfica, em que avança nas suas reflexões em torno das “histórias conectadas” – conforme a proposição do historiador indiano Sanjay Subrahmanyam. No artigo aqui incluído, o autor analisa – em uma primeira aproximação ao tema – duas fontes extremamente interessantes que conectam a Cidade do México e Istambul, entre fins do século XVI e inícios do século XVII. O autor mostra que havia um interesse recíproco entre a Nova Espanha e a Turquia, em uma época em que, a priori, não consideraríamos a possibilidade da existência de conexões intelectuais entre o “Novo Mundo” e o Império Otomano. O autor pretende apresentar, ao abordar suas fontes, problemas teórico-metodológicos que “surgem quando se comparam duas fontes relegadas pela historiografia tradicional”.
Víctor Mínguez analisa – em seu artigo La ceremonia de jura en la Nueva España. Proclamaciones fernandinas en 1747 y 1808 – as cerimônias públicas de juramento de lealdade aos monarcas espanhóis na Nova Espanha, atual México. Essas celebrações marcavam a demonstração coletiva de fidelidade à dinastia governante e ao rei recentemente coroado. Ausentes fisicamente, os monarcas eram materializados simbolicamente, nos vicereinos, através da arte. O autor mostra como imagens, palavras e sons eram combinados habilmente para conformar esses eficazes espetáculos de propaganda da monarquia espanhola nas colônias. Mínguez compara, em seu artigo, as cerimônias de jura de 1747, a Fernando VI, no apogeu da colônia, e a de 1808, a Fernando VII, no ocaso do período colonial. O autor sustenta que, apesar de celebradas em dois momentos significativamente distintos da ordem monárquica espanhola, a cerimônia de juramento manteve sua eficácia, mesmo na conjuntura de 1808, de crise aguda, “quando a situação política da monarquia espanhola era insustentável”.
O artigo de Fabiana de Souza Fredrigo, As guerras de independência, as práticas sociais e o código de elite na América do século XIX: leituras da correspondência bolivariana, revela as contribuições do próprio Símon Bolívar na construção dos mitos em torno de sua figura. A construção do mito Bolívar começou, também, a partir dos textos escritos pelo próprio líder das guerras de independência. Nesse sentido, ganha ainda mais pertinência a análise da correspondência de Bolívar, na qual essa construção da imagem de si mesmo, para a posteridade, começou a se estabelecer. A autora analisa, em seu texto, o vasto epistolário de Simón Bolívar, produzido entre os anos de 1799 e 1830 – mais de 2800 cartas -, demonstrando os vínculos entre a escrita de cartas, a memória e a historiografia.
Stella Maris Scatena Franco dedica-se a analisar – em artigo intitulado Gertrudis Gómez de Avellaneda entre Cuba e Espanha: relatos de viagem e ambivalências em torno da questão da identidade nacional – os relatos de viagem da escritora Gertrudis Gómez de Avellaneda (1814-1873), que nasceu em Cuba, mas viveu muitos anos na Espanha. O artigo mostra as ambivalências presentes no discurso de Avellaneda em relação à sua identidade nacional. Escritora de dois mundos – o cubano / antilhano e o espanhol / europeu -, Avellaneda, como revela Stella Franco, situou-se em meio ao debate na ilha de Cuba em torno da luta pela independência. A autora analisa também os debates políticos e literários em torno da sua personagem, tanto no século XIX como em reflexões mais recentes. No caso das últimas, ganham relevo as análises que procuram compreender o lugar e as possíveis peculiaridades da escrita feminina.
O artigo de Mary Junqueira, Ciência, técnica e as expedições da marinha de guerra norte-americana, U. S. Navy, em direção à América Latina (1838- 1901), também analisa relatos de viagem do século XIX – além de relatórios -, mas de natureza distinta daqueles analisados por Stella Franco. A partir do levantamento das expedições realizadas pela U. S. Navy – a marinha de guerra dos Estados Unidos – em direção à América Latina, no século XIX, a autora faz uma análise dos objetivos e significados das doze viagens realizadas pela U.S. Navy para a América Latina entre 1838 e 1901. Mary Junqueira mostra que, no período anterior à Guerra Civil, o interesse da marinha recaiu principalmente sobre a América do Sul e o Pacífico, revelando claramente o empenho norte-americano em “conhecer, mapear e apreender as possíveis possibilidades comerciais” dos territórios visitados, isso desde a década de 1830. No caso das viagens à América Central, no período posterior à Guerra Civil, o objetivo fundamental foi a busca pelo lugar mais adequado à construção do canal interoceânico, empreitada ambiciosa que foi finalmente concluída em 1914, com o término da construção do Canal do Panamá, sob estrito controle dos Estados Unidos.
A história norte-americana também é alvo do interesse de Cecília Azevedo, no artigo Amando de olhos abertos: Emma Goldman e o dissenso político nos EUA, particularmente a trajetória de Emma Goldman – militante anarquista, pacifista e feminista nos Estados Unidos, entre fins do século XIX e as primeiras décadas do século XX. A autora recupera Emma Goldman, inserindo-a numa tradição de dissenso nos Estados Unidos. Cecília Azevedo contextualiza a trajetória de Goldman dentro do debate político norte-americano da sua época, além de analisar como a memória e o legado de Goldman foram recuperados na década de 1960 e em anos recentes, em meio à crescente oposição às intervenções norte-americanas no Vietnã e no Iraque, respectivamente. O debate sobre o lugar de Emma Goldman – lituana de família judia que escolheu o exílio como uma forma de livrar-se das perseguições do regime czarista – na história dos Estados Unidos relaciona-se, como mostra Cecília Azevedo, às disputas políticoideológicas em torno da identidade nacional norte-americana e de seus mitos fundacionais.
Andrés Kozel, por sua vez, dedica-se, em artigo intitulado En torno a la desilusión argentina, a um tema muito presente no debate intelectual argentino – principalmente na primeira metade do século XX: a discussão sobre o suposto “fracasso argentino”. O autor rediscute a bibliografia que aborda o tema e analisa obras de cinco intelectuais argentinos que endossaram a idéia do “fracasso”: Lucas Ayarragaray, Leopoldo Lugones, Benjamín Villafañe, Ezequiel Martínez Estrada y Julio Irazusta. Ao contextualizar a produção dos cinco autores, Kozel mostra como a concepção de que a Argentina havia “fracassado” foi ocupando o lugar, antes hegemônico, de uma pretensa “grandeza argentina”, denominada pelo autor de “ilusão argentina”.
O artigo de Gabriela Pellegrino Soares, Novos meridianos da produção editorial em castelhano: o papel de espanhóis exilados pela Guerra Civil na Argentina e no México, é mais um exemplo de pesquisa que procura ressaltar as circulações culturais e as histórias conectadas. A autora analisa o impacto da Guerra Civil Espanhola (1936-1939) sobre a produção editorial na Argentina e no México a partir dos últimos anos da década de 1930. O enfoque recai, principalmente, sobre as contribuições de exilados espanhóis para o incremento da indústria editorial argentina e mexicana.
Os três últimos artigos abordam períodos recentes da história latinoamericana. Priscila Antunes e Patricia Funes analisam os sistemas de inteligência das últimas ditaduras militares no continente, abordando, respectivamente, os casos chileno e argentino. Waldo Ansaldi, por sua vez, dedica-se a analisar a situação política argentina dos últimos anos.
Priscila Antunes, em seu artigo O sistema de inteligência chileno no governo Pinochet, faz, inicialmente, um histórico acerca dos serviços de informação e das comunidades de inteligência no mundo ocidental para, em seguida, debruçar-se sobre o caso chileno, durante a ditadura militar chefiada pelo general Augusto Pinochet. A autora analisa a estrutura interna da comunidade de inteligência chilena e destaca seu papel, central, nos mecanismos de controle e repressão da ditadura militar chilena (1973-1989).
O artigo de Patricia Funes, “Ingenieros del alma”. Los informes de los Servicios de Inteligencia de la dictadura militar argentina sobre América Latina: canción popular, ensayo y ciencias sociales, analisa os informes dos serviços de inteligência argentinos – em particular, aqueles contidos no arquivo da extinta Direção de Inteligência da Polícia da Província de Buenos Aires (DIPBA) – sobre a produção artística e intelectual acerca da América Latina, durante a última ditadura militar argentina (1976-1983). A autora analisa os informes dirigidos, principalmente, a controlar e censurar a produção de canções populares, ensaios e obras (livros, artigos e revistas) de cientistas sociais. Patricia Funes parte da “hipótese que o conceito ‘América Latina’ é conotado a priori como ‘subversivo’, ‘comunista’ e ‘revolucionario’ ”. Sendo assim, toda a produção cultural que se propunha a discutir e a pensar a América Latina era colocada, a princípio, sob suspeição. A autora sustenta que a força desses mecanismos repressivos contribuiu para afastar as ciências sociais argentinas da América Latina, com repercussões até o presente. E acredita que, provavelmente, algo similar teria ocorrido nos demais países da região submetidos a ditaduras militares.
As reflexões de Patricia Funes sobre o último período ditatorial na Argentina nos levam a pensar sobre a trajetória da produção intelectual brasileira sobre a América Latina. Se na década de 1960, em razão de vários fatores – entre eles, sem sombra de dúvida, o impacto político-cultural da Revolução Cubana -, foi evidente o crescimento do interesse e da produção artísticointelectual brasileira sobre a América Latina e acerca do lugar do Brasil no continente, a forte repressão desencadeada pelo regime militar a esses artistas e intelectuais, e a censura a toda essa produção, tiveram efeitos mais duradouros do que, num primeiro olhar, poderíamos reconhecer.
Waldo Ansaldi, em seu artigo Tanto andar a los mandobles para terminar a los besuqueos. Acerca de la relegitimación de los políticos argentinos, dedica-se a analisar a história política recente da Argentina, com ênfase nos últimos anos, a partir de dezembro de 2001. Ansaldi discute a crise de legitimação dos partidos e dos políticos argentinos em 2001 e a possível relegitimação nas eleições de 2003. O artigo é um competente exemplo de história do tempo presente e de análise de conjuntura, na interface da história com a ciência política.
Complementam o dossiê as resenhas dos livros, recentemente publicados, de autoria de Gabriela Pellegrino Soares, Semear horizontes: uma história da formação de leitores na Argentina e no Brasil, 1915-1954 – por Sílvia Cezar Miskulin -, e a coletânea organizada por Marcela Croce, Polémicas intelectuales en América Latina: del “meridiano intelectual” al caso Padilla (1927-1971) – por Adriane A. Vidal Costa. As obras constituem relevantes contribuições para a história cultural e intelectual da América Latina.
Esperamos ter colaborado, com esse dossiê de Varia Historia, para incrementar, ainda mais, o interesse pela História das Américas no Brasil e, também, para aprofundar o intercâmbio com pesquisadores de outros países. Agradecemos a todos os autores que nos brindaram com seus textos.
Belo Horizonte, inverno de 2007.
Kátia Gerab Baggio – Organizadora. Departamento História / UFMG. E-mail:
kgbaggio@fafich.ufmg.br
BAGGIO, Kátia Gerab. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.23, n.38, jul. / dez., 2007. Acessar publicação original [DR]
História em mapas antigos / Varia História / 2007
O estudo da cartografia não pode ser desvinculado de uma dimensão histórica e simbólica, pois não existe uma linguagem cartográfica única, universal e imutável. Todo mapa é um conjunto de signos, símbolos, que só podem ser compreendidos e decodificados a partir dos elementos da própria cultura na qual ele foi formulado. Por isto, Cartografia e História estão indissociavelmente ligadas, pois só a segunda nos permite decodificar os signos que a primeira se utilizou. Um mapa é sempre representação do real e mantém uma íntima relação com o espaço que ele que delimita, mas não é o próprio real. Se perdem esta característica de representação, os mapas deixam de ter sua função reconhecida e se tornam ininteligíveis. Um mapa é, pois, uma expressão simbólica de uma área e, ainda que nos dias atuais as imagens de satélite sejam ferramentas essenciais para a arte cartográfica, essas imagens não deixam de ser também uma forma de representação do espaço.
Cartografar um território não é pois uma operação neutra, cuja objetividade estaria assegurada pelo uso das técnicas mais aperfeiçoadas. Um mapa é sempre uma expressão de um território, o que implica que vários filtros separam o real da coisa representada. Os mapas miniaturizam o mundo, imprimindo-lhe uma dimensão gráfica que permite, pois, inúmeras leituras. Ao longo do tempo, as técnicas de desenho, impressão e gravação variaram e seu estudo fornece inúmeras informações sobre as formas de produção, reprodução e distribuição destes documentos. Outro aspecto que o estudo da cartografia permite é a análise da formação e consolidação de um território, como ele foi compreendido e ocupado ao longo do tempo, o que só pode se desvelar ao estudioso de posse de outras ferramentas de análise pertencentes a outras ciências como a História.
Todo documento humano faz parte de um sistema de comunicação e desvendar este sistema nos ajuda a compreender como estes mapas eram lidos e compreendidos na época em que foram produzidos. Os mapas contêm uma linguagem, que é necessariamente simbólica e que deve ser decodificada para que se possa melhor compreendê-la. Porém, não existe uma linguagem cartográfica única, universal e imutável. Os mapas são, pois, como um texto e têm cada um e em seu tempo uma linguagem própria. O estudo da Cartografia Histórica engendra uma série de outros elementos, tais quais o entendimento das técnicas de medição do espaço, das noções de forma e de área que expressam, dos espaços que o mapa cobre e dos que deixa em branco ou preenche com um desenho ou uma iluminura. Tudo isto compõe a forma como o homem entende e representa o mundo e exige do historiador da cartografia um esforço interdisciplinar.
Todo mapa é um conjunto de signos ou símbolos historicamente construídos. Podemos compreender os mapas produzidos no passado, como fazemos da mesma forma com os documentos outrora escritos, a partir do conhecimento dos elementos que compunham a cultura na qual eles foram formulados, ainda que não tenhamos vivido na mesma época. É aí que reside o trabalho do historiador e é aí que a Cartografia e a História se tornam indissociavelmente ligadas, pois é a partir da História que podemos mergulhar na aventura de decodificar os signos que o cartógrafo utilizou no passado, alguns intencionalmente, outros nem tanto.
Da importância da História para o estudo da Cartografia nasce o título do dossiê publicado nesse volume que, parodiando o grande historiador da cartografia do Brasil Jaime Cortesão, [1] se denomina A História nos velhos mapas. Os cinco artigos aqui reunidos se enquadram nos estudos da História da Cartografia e assim devem ser entendidos. Mary Sponberg Pedley, em O comércio de mapas na França e na Grã Bretanha durante o século XVIII, desvela o processo de produção cartográfica na transição para o Iluminismo, distinguindo as particularidades de cada um desses dois países. Entre tantos assuntos, analisa o ambiente intelectual no qual se inseria a produção de mapas, o papel dos cartógrafos, das casas de edição, o estímulo oficial e o gosto dos consumidores. Em A história da publicação do Mapa da América do Norte de John Mitchell de 1755, Mathew Edney traz a luz o contexto de edição e re-edição desse famoso mapa, comumente utilizado pelos historiadores do período colonial norte-americano, chamando atenção para o fato de que um mapa pode nos informar muito mais sobre o universo cultural do seu autor e de seu público consumidor do que sobre a área representada. Mário Clemente Ferreira, em O Mapa das Cortes e o Tratado de Madrid: a cartografia a serviço da diplomacia discute o processo de construção do Mapa das Cortes, a principal base cartográfica utilizada pelos portugueses durante as negociações do Tratado de Madrid, em 1750. A partir da desconstrução de seus elementos e identificação das fontes usadas pelo cartógrafo, o autor aponta para a intencionalidade dos erros desse mapa, viciado nas longitudes de forma a não evidenciar a extensão da colonização portuguesa em território espanhol. Jordana Dyn discute particularmente a importância dos mapas nos relatos de viagens desde o século XVI até os dias de hoje. Íris Kantor, em Usos diplomáticos da ilha Brasil: polêmicas cartográficas e historiográficas, analisa a formação do mito da ilha Brasil e suas representações na cartografia dos séculos XVI e XVII, além das formas de apropriação e reapropriação posterior desse mito com fins diplomáticos. Em “Mais calculado para enganar do que para informar”: os viajantes e o mapeamento da América Central (1821-1945) aponta para os diferentes papéis que os mapas desempenharam ao longo do tempo em relação às narrativas de viagem e apela para a necessidade de autonomia do estudo desses elementos cartográficos.
Nota
1. CORTESÃO, Jaime. História do Brasil nos velhos mapas. Rio de Janeiro: Instituto Rio Branco, 1965 / 1971. 2 v. Belo Horizonte, 2007
Júnia Ferreira Furtado – Organizadora. Departamento História / UFMG. E-mail:
juniaf@fafich.ufmg.br
FURTADO, Júnia Ferreira. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.23, n.37, jan. / jun., 2007. Acessar publicação original [DR]
Fotografia e cultura (s) urbana (s) / Varia História / 2006
Fotografia e Cultura(s) Urbana(s) é o tema central do dossiê que compõe este número de Varia História.
Fruto da cultura urbana de fins da primeira metade do século XIX, a fotografia é um dos poucos artefatos a marcar, desde então, a variedade de práticas sociais criadas e vivenciadas nos espaços, público e privado, da vida citadina. Com mais de século e meio de existência, a fotografia conta hoje com uma história que tanto permite a análise das transforma ções operadas em seu perfil técnico e estético, quanto de seus usos e suas funções sociais.
Se a dimensão analógica da fotografia faz com que muitos a vinculem ao mundo do reconhecível, ou seja, a um mundo atado a seu referente; a diversidade de estudos acerca de sua visualidade indica que ela pertence ao universo da cultura do olhar. Em outras palavras, tais análises mostram como os fotógrafos. informados por razões estéticas, comerciais, políticas e culturais, dentre outras . metamorfoseiam o real, recriam seus espaços e seus tempos sociais. Assim concebida, a fotografia deixa de ser vista como simulacro do real; torna-se um espaço cultural e intelectual afinado com os sistemas de percepção e representação concebidos e produzidos histórica e culturalmente. Mais, ainda, tem papel social ativo, podendo, pois, anular, criar e / ou reinventar memórias e identidades sociais.
É importante sublinhar, uma vez mais: embora o poder de penetração da fotografia não se restrinja às áreas urbanas, é exatamente aí que esta imagem, híbrida por natureza, encontrou e continua a encontrar território propício para o debate que mais interessa a este dossiê: compreender de que maneiras e por que as diferentes dimensões da fotografia têm participado tanto do processo de construção e mudança dos modos de vida urbanos, quanto de suas formas e seus campos de conhecimento.
Os seis artigos que compõem este dossiê, três estrangeiros e três nacionais, não apenas apresentam uma variedade de questões analíticas, como também indicam diferentes possibilidades para se pensar as relações entre Fotografia e Cultura(s) Urbana(s).
O artigo de Fernando Aguayo Hernádez, professor e pesquisador do Instituto Mora / México, Los arrebatos del corazón, nos brinda com uma primorosa análise assentada em dois pontos distintos, porém correlatos. Ancorado numa reflexão de longa duração, o autor mostra como a Plaza Mayor – “o coração da cidade” do México – tem sido um espaço de produção de identidades e disputas sociais e político-culturais. Para viabilizar a construção de seu objeto, o pesquisador descortina as conexões existentes entre a produção fotográfica sobre a praça e os usos e as funções político-sociais a ela atribuídas por diferentes segmentos da sociedade mexicana. Em meio à reflexões sobre o urbano e a fotografia, o artigo ainda reserva espaço para outra ordem de preocupação inerente ao ofício de historiador: conduz o leitor até os territórios metodológicos acerca da pesquisa com imagens visuais, sobretudo fotográficas.
Em El retrato fotográfico en la Buenos Aires decimonómica: la burguesia se representa a si misma, Andréa Cuarterolo – historiadora e pesquisadora do Centro de Investigación y Nuevos Estudios sobre Cine / Buenos Aires – mostra o papel da fotografia na constituição de uma cultura urbana burguesa, comprometida com os ideais de progresso saídos da era industrial. Por estas e outras razões, os leitores encontrarão, nas páginas deste artigo, uma das características mais marcantes da história da fotografia, sobretudo do retrato, dos anos oitocentos e das primeiras décadas do século XX. Referimo-nos, em particular, à combinação entre a universalização da visualidade fotográfica, de um lado, e a busca de individualização dos sujeitos retratados, de outro. Ao combinar fontes visuais e textuais, a pesquisa desenvolvida pela autora ainda permite avaliar a atmosfera de deslumbramento, dos atores de ontem, diante de uma imagem então considerada duplicação fiel do real.
Enquanto os dois primeiros artigos enfatizam as representações de um mundo figurativo e dão ênfase aos sujeitos fotografados, o ensaio do fotógrafo e professor da Universitat Pompeu Fabra / Barcelona, Joan Fontcuberta, prioriza as relações entre os signos fotográfico e textual. Interessando em enfatizar o papel crucial exercido pela cultura do olhar na interpretação da realidade, o autor de Arqueologias del Futuro põe em questão a noção objetiva de paisagem, veiculada por aqueles que acreditaram e acreditam no estatuto de verdade documental e / ou testemunhal da fotografia. Com este objetivo, sustenta a tese de que a escrita fotográfica, trabalhada plasticamente mediante o uso de fotogramas, por exemplo, pode criar realidades imaginadas tão convincentes quanto aquelas presentes no texto de John Stathatos: El Libro de las ciudades perdidas ou no Cidades Invisíveis de Ítalo Calvino. Esta questão coloca o leitor diante da natureza representativa da fotografia.
O artigo de Maria Inez Turazzi – historiadora, doutora em arquitetura e urbanismo e pesquisadora do Museu Imperial -, Paisagem construída: fotografia e memória dos “melhoramentos urbanos” na cidade do Rio de Janeiro, insere-se, como os dois primeiros trabalhos deste dossiê, no campo da fotografia documental e / ou histórica. Dentre as particularidades da análise da autora brasileira acham-se as estreitas relações entre poder, ciência, fotografia profissional, publicidade e a noção de progresso urbano vigente entre fins do século XIX e primeiras décadas do século XX. Para destrinchar as tramas de tais vinculações, Maria Inez Turazzi parte de um aspecto pouco trabalhado pelos analistas da história da fotografia e também da história urbana do período. A partir de um cenário específico: a vida na capital federal do Brasil, a autora transporta o leitor para o mundo da fotografia de obras públicas. Mostra, com riqueza documental e apuro analítico, como as lentes de fotógrafos, estrangeiros e nacionais, participaram ativamente da construção de memórias urbanas, coletivas e individuais, acerca das grandes obras de engenharias que, em poucos anos, alteraram a paisagem do centro do Rio de Janeiro, cidade-vitrine de um país que se queria moderno.
É de autoria de Maria Beatriz R. de V. Coelho – fotógrafa, socióloga e professora do Departamento de Sociologia e Antropologia / UFMG – o artigo: O campo da fotografia profissional no Brasil. Ao privilegiar a fotografia criada pelas câmeras de profissionais, estrangeiros e nacionais, no Brasil da segunda metade do século XX em diante, a autora historiciza as combinações entre variáveis internas e externas à fotografia, para mostrar a constituição e as mudanças no campo da fotografia e na formação dos fotógrafos. Em meio às tantas novidades, este artigo, vivo e dinâmico, ainda analisa a participação da fotografia (da fotorreportagem, principalmente) nos órgãos de imprensa, públicos e privados, interessados na produção de imagens e imaginários sobre a(s) identidade(s) brasileira(s). A presença da fotografia nos museus, nas bienais e no mercado editorial brasileiro também são temas contemplados neste artigo.
Mauro Guilherme Pinheiro Koury – doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Glasgow, professor e pesquisador do Departamento de Ciências Sociais / UFPB – é o autor de O Imaginário Urbano sobre Fotografia e Morte em Belo Horizonte, MG, nos Anos Finais do Século XX. Seu artigo traz contribuições originais à temática por ele trabalhada em outro momento: os usos e sentidos da fotografia mortuária de cunho privado no Brasil. Neste trabalho, especificamente, o autor revela as particularidades do caso mineiro, na atualidade belorizontina. Para além da importância do tema pesquisado, Mauro Guilherme Pinheiro Koury lança mão da combinação, importante e pouco usual, de metodologias quantitativas e qualitativas, para dar forma às suas reflexões sócio-antropológicas e históricas acerca das re-significações hoje atribuídas a este tipo de imagem. É preciso mencionar: a conjugação dos dados analisados também instiga o leitor a pensar sobre as culturas da morte, do morrer e da solidão na contemporaneidade urbana.
Espera-se que a pertinência acadêmica dos seis artigos – três de autores estrangeiros e três de autores nacionais – que compõem este dossiê ofereça, aos leitores de Varia História, motivações e pistas interessantes para a continuidade das reflexões e pesquisas que têm a fotografia e a(s) cultura(s) urbana(s) como objeto privilegiado de análise.
Belo Horizonte, 2006
Maria Eliza Linhares Borges – Organizadora. Departamento História / UFMG. E-mail:
liliza@uai.com.br
BORGES, Maria Eliza Linhares. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.22, n.35, jan. / jun., 2006. Acessar publicação original [DR]
História intelectual e política / Varia História / 2005
A idéia de um dossiê da Revista Vária História organizado em torno da temática História Intelectual e Política origina-se de duas motivações fundamentais. De um lado alargar o horizonte de referências e, por conseguinte, de compreensão dos interessados no estudo das culturas políticas na história. De outro, destacar a contribuição da história intelectual “nas suas diferentes abordagens e perspectivas” para a análise dos fenômenos políticos, permitindo assim uma maior exploração das várias relações / interações entre a vida cultural e política. Junto aos interesses acima mencionados, este dossiê, como os demais da Vária História, visa assegurar um espaço para os debates historiográficos e o ensaio de novas idéias.
Na trilha do conceito de Direitos Humanos, sua emergência e estatuto no interior do mundo político moderno, o artigo de Lynn Hunt, O Romance e as Origens dos Direitos Humanos. Interseções entre História, Psicologia e Literatura, nos propõem a um só tempo uma reflexão criativa sobre os limites da história intelectual, e as vantagens do alargamento do seu escopo analítico. Nesta linha, a autora empreende uma arqueologia da linguagem dos direitos humanos, sem descurar dos discursos filosóficos e das disputas políticas por direitos, que tiveram como pano de fundo as Revoluções Americana, de 1776, e Francesa, de 1789, para então, via a leitura dos romances epistolares no século XVIII, encontrar na crescente autonomia individual e na noção de “empatia imaginada ” os fundamentos dos direitos humanos. Os efeitos psicológicos e emocionais provocados por esse gênero de leitura, a exemplo da conquista do self guardariam, assim, um dos segredos da ressonância dos direitos humanos.
Em História, eventos e narrativa: incidentes e cultura do quotidiano, Robert Darnton, na sua leitura do livro O Assassinato Sentimental. Amor e Loucura no século XVIII, de John Brewer, vai problematizar, com sua originalidade habitual, a emergência de uma nova história dos incidentes, surgida do interesse dos historiadores por fatos menores, mas nem por isso menos presentes na vida dos homens comuns ” à exemplo de crimes de assassinato, atrocidades, escândalos, entre outros que fazem a alegria da imprensa sensacionalista, ” bem como por sua repercussão pública e formas de apropriação e divulgação na mídia. Do acompanhamento crítico da análise de John Brewer, com seus vários meandros em torno de um crime passional na Londres do século XVIII, e de seus desdobramentos, versões e manipulações sentimentais, Darnton recupera a potencialidade da análise dos incidentes da vida cotidiana través das suas formas de comunicação midiática, o que nos é muito sugestivo para pensar os vários debates de idéias, e que, a seu ver, pode levar os historiadores a buscar e encontrar outras respostas no passado.
Por outras vias, o artigo de Christophe Prochasson, Emoções e Política: Primeiras Aproximações nos leva também aos sentimentos, em particular ao seu papel na vida política. Alinhado com a perspectiva de uma História Política que contemple, entre outras, as dimensões afetiva e simbólica, tal como possibilitada entre outros, pela aná- lise das culturas políticas, e após realizar um rico percurso historiográfico pelas novas formas de abordagem do político na História, o autor toma o pensamento político de Tocqueville como um caso exemplar a favor de uma história das emoções políticas. As emoções coletivas fundando vínculos políticos entre os indivíduos; a força das paixões, comandando a ordem política, ao lado dos mais legítimos interesses racionais; as cargas emocionais intervindo sobre os comportamentos políticos e as formas de ação; são temas que vão se perfilando na leitura instigante que o autor empreende de A Democracia na América e Lembranças de 1848.
Por seu lado Elías Palti, no seu artigo História das Idéias e História das Linguagens Políticas. Acerca do debate em torno dos usos dos termos “povo” e “povos”, revisita o tema da elaboração do conceito de nação na América Hispânica tomando como referente o discurso independentista e a utilização, no seu interior, de formas diferentes da palavra povo, seja no singular ou no plural, como chave para pensar a alteração das linguagens políticas. Em clara afinidade teórica com os estudiosos das terminologias e conceitos políticos, e em franca colisão com a antiga tradição de uma história das idéias, o autor estabelece um diálogo franco e consistente, com os aportes de uma historiografia que, ao analisar a concepção de nação conformada no discurso político latinoamericano do período da emancipação, acabou por definir uma chave de leitura baseada em antinomias, a exemplo de liberalismo / tradicionalismo, tradição / moderno, informadas pelo teor ideológico dos discursos.
No horizonte da história político-intelectual na Hispanoamérica Maria Helena Capelato, no artigo Cuadernos Hispanoamericanos: IdéiasPolíticas numa Revista de Cultura, acompanha a construção e instrumentalização de um ideal de hispanidad na trajetória de num periódico de cultura criado para circular nos países de língua hispânica, no âmbito de uma política americanista do governo espanhol definida após a segunda grande. Ponto de encontro de intelectuais e homens políticos oriundos das hostes franquistas, simpáticos ao nacionalismo, a revista ainda assim, nos mostra a autora, acolhe um múltiplo e contraditório conjunto discursivo. É justo esse aspecto que o artigo dará relevo, ao se orientar pela busca da relação texto-contexto e dos para-textos culturais, os quais conformam, na referida publicação, os padrões de uma interação das idéias com uma dinâmica político-social marcada pela emergência da Guerra Fria e pelas disputas de poder no interior do regime franquista.
A primeira grande guerra tomada como pano de fundo para uma história dos intelectuais e seus posicionamentos políticos é o tema do artigo de Yael Dagan, Civilizados, Bárbaros e Europeus. Três Homens de Letras em Face do Inimigo. 1914-1925. Nele, a autora segue os escritos e os conflitos pessoais de três importantes intelectuais franceses, a saber, André Gide, Jean Schlumberger e Jacques Rivière, em torno da mobilização patriótica durante a Primeira Guerra Mundial e no imediato pós-guerra, até 1925, período que qualifica da passagem da guerra à paz. Detendo-se nas representações do “inimigo nacional” conquanto elemento forte das representações coletivas da época, e rastreadas numa pesquisa meticulosa dos escritos desses homens, em particular seus textos na La Nouvelle Revue Française (La NRF,) e suas correspondências pessoais, a autora põe a nu os mecanismos de mobilização e de desmobilização cultural no qual esses escritores estiveram engajados, para além das suas experiências com a guerra.
O tema do engajamento, como princípio definidor da figura moderna do intelectual e de sua contrapartida, o silêncio dos intelectuais, é o fio condutor do artigo O Intelectual no “Campo” Cultural Francês: do caso Dreyfus aos Tempos Atuais, de autoria de Helenice Rodrigues. Do acompanhamento da noção de intelectual, remontando à sua origem no final do século XIX, na França . ocasião em essa categoria social faz sua aparição através da sua atuação política no espaço público . passando pelas várias concepções, formas e crises do engajamento dos intelectuais franceses ao longo da história contemporânea do século XX; e chegando ao ocaso de um modelo de representação do intelectual nos anos 80, a autora repõe a urgência de uma reavaliação da função crítica dos intelectuais. Na análise da força, no discurso engajado, de termos como verdade, valores morais, consciência crítica, liberdade; num contraste ente o intelectual engajado e o expert, um quadro vivo da cultura intelectual francesa é aqui traçado.
Diante de tal riqueza e diversidade espera-se que a organização desse Dossiê tenha cumprido seus objetivos.
Belo Horizonte, Verão de 2004 / 2005
Eliana de Freitas Dutra – Organizadora. Departamento História / UFMG. E-mail:
erdutra@terra.com.br
DUTRA, Eliana de Freitas, Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.21, n.34, jul., 2005. Acessar publicação original [DR]
História Ambiental (Feita) na América Latina / Varia História / 2005
Este dossiê traz artigos de historiadores que têm se orientado, no tratamento de seus objetos, por novos questionamentos e métodos da chamada História Ambiental. Nos últimos anos, associações e revistas norte-americanas e européias dedicaram-se à formulação de uma perspectiva histórica fundamentada na ênfase das relações entre a sociedade e a natureza. Sensível a tais tendências, a Varia História (em seu número 26 de janeiro de 2002), trouxe um primeiro dossiê sobre História e Natureza. Nele, o artigo do historiador panamenho Guillermo Castro ressaltava vários estudos já realizados sobre a história ambiental da América Latina, mas enfatizava a urgência de uma história a ser feita na América Latina, comprometida com a vida e o bem estar de nossas sociedades. A presente coletânea, cujo título alude ao referido artigo, deseja apresentar alguns trabalhos realizados por pesquisadores do Brasil, Chile, Colômbia, Cuba e México.
Ressaltamos ainda que esse dossiê é publicado no momento em que há uma promissora movimentação de profissionais de vários países em torno da fundação de uma instituição latino-americana de História Ambiental, a partir de grandes esforços coletivos que deram ensejo a um primeiro encontro realizado em Santiago do Chile, em julho de 2003, e a um recente Simpósio em Havana, em outubro de 2004, na qual se lançaram as bases da Sociedad Latinoamericana y Caribeña de Historia Ambiental (SOLCHA). Dentre os historiadores envolvidos, poderíamos citar vários autores participaram no dossiê anterior, História e Natureza (26), e neste que ora apresentamos ao leitor.
Nesse início de milênio, em que a história constitui-se ininterruptamente como uma atividade social de transformação e crítica, a História Ambiental passa a enfrentar indagações sobre seus métodos e seus pressupostos. Frente a esses desafios, se retomarmos a clássica assertiva de Nietzsche sobre a “utilidade dos estudos históricos” – segundo a qual a história servir á à vida ou não terá valor – diríamos que o vigor e a promessa dessa nova perspectiva é o fato de que ela poderá (ainda que não necessariamente, é claro) servir prioritariamente à vida e, mais que à sua mera conservação, ela poderá constituir-se em prol da afirmação de sua abundância.
O estimulante artigo de Enrique Leff oferece uma profícua reflexão metodológica e epistemológica sobre a história ambiental. Na discussão de suas vertentes, apresenta pertinentes questionamentos às análises constituídas como uma mera crônica da destruição, ou ao simplismo presente na atribuição de um caráter ambiental a tudo. Por outro lado, enfatiza o caráter precioso da ontologia antiessencialista possível na perspectiva histórica ambiental, além da positividade presente em seus enfoques prospectivos, fonte de transformação social em direção à sustentabilidade.
Maurício Folchi estuda os efeitos ambientais do processamento de minerais metálicos, exercitando um diálogo interdisciplinar que inclui a história ambiental, a história da técnica e da ciência, a química e a geologia. A análise de tais efeitos busca sua fundamentação na historicidade das relações entre as sociedades e o meio natural. O artigo assume especial interesse para os leitores brasileiros, haja vista a importância das atividades mineradoras em nossa sociedade, em diferentes lugares e variados períodos.
José Augusto Pádua investiga as conexões históricas entre a heran- ça romântica de fins do século XVIII ao XIX e o ecologismo contemporâneo. Apresenta uma visão panorâmica de tradições intelectuais francesas, alemãs, inglesas e americanas, argumentando a necessidade de reconhecer o hibridismo presente na mistura de influências românticas e iluministas. Ao fim, explora obras de alguns autores brasileiros, nas quais identifica uma crítica limitada da civilização, convidando o leitor à continuidade de pesquisas sobre essa temática.
O artigo de Stefania Gallini distingue-se pela elegância da narrativa, a densidade teórica e a propriedade com que a autora envereda-se em diálogos com a geografia, a geologia, a climatologia e a agronomia. Numa visão original e instigante sobre a cafeicultura na Guatemala, apresentanos o quadro complexo de uma perspectiva ambiental histórica em que se mesclam aspectos materiais e culturais. Um dos exemplos do vigor de sua argumentação pode ser localizado na discussão sobre os vulc ões e o que, naquela sociedade, eles representam de ameaça, força sagrada, continuum temporal e fator de fertilidade do solo.
Reinaldo Funes constrói sua análise sobre o avanço das plantações de açúcar no território cubano, na interface entre a perspectiva da história ambiental e da história econômica. Discute as transformações das paisagens, as mudanças das técnicas empregadas e das políticas do Estado em relação aos recursos florestais e sua exploração por particulares. Aborda alguns aspectos da fauna e flora da região e da diminuição da biodiversidade conseqüente do predomínio do projeto econômico agro-exportador.
José L. Franco e José Drummond analisam a trajetória do botânico José Alberto Sampaio (1881-1946), cientista do Museu Nacional. Privilegiando três de suas obras, escritas ente 1926 e 1935, discutem suas posturas pioneiras acerca da proteção à natureza, as relações entre nacionalismo e conservação naqueles anos, a preocupação com a pedagogia do homem brasileiro. Apontam ainda as complexas relações de Sampaio com a comunidade científica e intelectual de seu tempo.
Antes que o leitor siga a desbravar os vários artigos, lembraríamos a reflexão de Arturo Escobar acerca do sonho do desenvolvimentismo que tanto entusiasmou o chamado “terceiro mundo”, e rapidamente mostrouse como verdadeiro pesadelo, com o saldo da produção de maior pobreza, aumento da exploração e opressão e destruição do meio natural. Sem resvalar para uma visão ingênua de uma América Latina depositária de tradições, esse autor acena, entretanto, com o caráter promissor de algumas formas e práticas culturais que não se apresentam como um desenvolvimentismo alternativo, mas como alternativas ao desenvolvimentismo. Nesse sentido, resta-nos o desafio de sermos capazes da “invenção social de novas narrativas, novas formas de pensar e de fazer”.[1] Certamente, esse é também o desafio colocado por uma história ambiental a ser feita por nós.
Belo Horizonte, Verão de 2004 / 2005
Nota
1. Escobar, Arturo. Encountering Development. the making and unmaking of the Third World. New Jersey: Princeton University Press, 1995, p. 20. [ Links ]
Regina Horta Duarte – Organizadora. Departamento História / UFMG. E-mail:
reginahd@uai.com.br
DUARTE, Regina Horta. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.21, n.33, 2005. Acessar publicação original [DR]
História, Ciência e Saúde: práticas e saberes / Varia História / 2004
Estamos diante de um campo de pesquisa em expansão. A partir do cenário da História Cultural podemos identificar uma série de temas que se mesclam com as especificidades da História da Ciência. Desta fusão encontramos a história da ciência e suas interfaces culturais. Neste número da revista Varia História, no dossiê intitulado História, Ciência e Saúde: práticas e saberes apresentamos algumas das pesquisa que indicam as possibilidades analíticas na área.
A linha Ciência e Cultura na História, do Programa de Pós Graduação em História / UFMG, possui duas ênfases: a História Social da Ciência e a História das Idéias Científicas. Ao estabelecer essas duas ênfases de estruturação das pesquisas, não se busca conformá-las à tradicional dicotomia entre uma história interna da ciência e uma história externa da ciência. Pretende-se, através da mediação cultural, dissolver essa dicotomia, mudando o eixo do debate. Assim, a divisão dos trabalhos entre as duas ênfases complementares reflete muito mais uma dimensão metodológica do que propriamente uma perspectiva epistemológica.
As pesquisas em História Social da Ciência procuram analisar as diversas relações existentes entre a ciência e a sociedade. Os impasses entre a produção do conhecimento científico e a sociedade no seu contexto histórico é o objeto da análise. As investigações procuram refletir a construção social da ciência através de biografias, instituições, práticas, procedimentos, descobertas, rupturas.
As pesquisas em História das idéias Científicas procuram compreender, a partir das relações culturais, a formação dos conceitos e das idéias que caracterizam as teorias científicas em seus diversos contextos. Nesse sentido, não se trata de tomar idéias e conceitos científicos por eles mesmos, mas de compreender como os determinantes culturais desempenham um importante papel na formação dessas idéias e conceitos e na elaboração das teorias científicas.
Na linha de pesquisa Ciência e Cultura na História são realizados estudos que contemplam a formação e o desenvolvimento da ciência moderna, bem com, em particular, o surgimento e o desenvolvimento das ciências no Brasil.
O presente dossiê recortou como objeto a história da saúde e apresenta em seus 5 artigos um espectro bastante diversificado da produção na área.
O artigo de María Silvia Di Liscia aborda a intercessão entre a prática médica e a escola, a partir da discussão em torno da regeneração racial, no final do século XIX e primeiras décadas do século XX na Argentina. Além de apresentar a interface com a história da educação o artigo pode instigar análises comparativas entre Brasil e Argentina.
O artigo de Vera Marques Beltrão investiga um campo de análise inusitado: os manuais de divulgação de ciência, especificamente na área da saúde, no século XVIII. Está em discussão novamente a interface com a história da educação e a circulação de saberes na medida em que há uma apropriação do conhecimento acadêmico pela parcela da população distante dos espaços privilegiados de formação do saber.
A seguir o texto de Flávio Coelho Edler investiga a formação de conceitos na história da saúde, especialmente a sociologia de uma descoberta, em questão a ancilostomíase. O material de análise do autor são as publicações e os debates na área médica expressos entre os membros da Academia Imperial de Medicina e no periódico Gazeta Médica da Bahia. A investigação proposta por Edler permite vislumbrar um campo de análise promissor, mas ainda pouco explorado no Brasil.
Já o artigo de Yonissa Marmitt Wadi, de forma especial, discute o campo da psiquiatria fugindo da tradição das histórias institucionais ao privilegiar os paradoxos da vivência em uma instituição psiquiátrica. Os discursos e práticas médicas são abordados na medida que surgem não pela escrita médica (tratados, relatórios, compêndios, receituários), mas a partir da escrita da paciente que utiliza o pseudônimo de Pierina Cechini. O percurso que Yonissa Wadi nos apresenta é ao mesmo tempo fascinante e impressionante ao mesclar um relato pessoal que toca na temática das instituições asilares e suas repercussões sociais.
Encerra o dossiê o artigo de Henrique Carneiro “As plantas sagradas na história da América”. Nele o autor investiga as plantas sagradas das tradições indígenas de diferentes regiões das Américas.
História institucional, construção de conceitos na área da saúde, práticas médicas são alguns dos temas que apresentamos nesse dossiê. Como um campo em construção, novos dossiês deverão ser apresentados em breve com temáticas envolvendo a circulação do saber, a história das doenças e as concepções de corpo e saúde. Aguardamos sua colaboração.
Belo Horizonte, Julho / 2004
Betânia Gonçalves Figueiredo – Organizadora.
FIGUEIREDO, Betânia Gonçalves. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.20, n.32, jul., 2004. Acessar publicação original [DR]
Vila Rica do Pilar: reflexões sobre Minas Gerais e a Época Moderna / Varia História / 2004
O presente dossiê: Vila Rica do Pilar: Reflexões sobre Minas Gerais e a Época Moderna tem como ponto de partida a categoria metodológica paróquia e, portanto, abrange a jurisdição e a população pertinente à Freguesia de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto. É fruto da atividade conjunta dos professores Adalgisa Arantes Campos (Coordenadora do Banco de dados sobre as séries paroquiais da Freguesia de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto), Douglas Cole Libby (Diretor, Centro de Estudos Mineiros) e do pesquisador mestrando Renato Franco, responsável pela elaboração dos cruzamentos de dados.
Nosso objetivo é tornar público um material inédito, de grande utilidade à comunidade científica. Trata-se de um dos vários resultados do trabalho financiado através de recursos e bolsas de iniciação implementados por órgãos de fomento como a Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG) e o CNPq, através da Pró- reitoria de Pesquisa da UFMG.
A base de dados foi iniciada em fins de 1998, na própria Casa dos Contos de Ouro Preto, responsável pelo trabalho hercúleo de microfilmagem da documentação impressa e manuscrita das duas paróquias ouropretanas. Desta data aos dias atuais, o projeto teve membros fixos e também transitórios, envolvendo alunos e professores da graduação e da pós-graduação. Encontra-se concluída a série batismo; em andamento as séries casamento e óbito.
O Arquivo da Paróquia de Nossa Senhora do Pilar (APNSP) dispõe de definição institucional e de personalidade jurídica própria através do Museu de Arte Sacra de Ouro Preto. Seu acervo, bastante completo e preservado, resulta das atividades desempenhadas pela instituição, com a particularidade de ser um dos arquivos mais importantes do tipo paroquial sobre a colônia e o império do Brasil. Nos tipos documentais específicos da jurisdição paroquial, destacam-se os assentos de batismo, casamento e óbito, cujas séries são praticamente completas, característica que tem atraído pesquisadores.
A documentação paroquial tem sido enfocada pelas recentes tendências historiográficas, pois apresenta configuração adequada para o tratamento serial. A partir de informações retiradas de campos específicos, do cruzamento de campos diferentes ou mesmo de planilhas diferentes são detectadas a natureza do individual, das relações tecidas no âmbito da (s) família(s) e dentro daquela comunidade; o que se configura como singular e como representativo naquele período histórico preciso. A paróquia destaca-se então como uma categoria privilegiada para se recuperar as relações humanas ao nível horizontal e vertical. Ela é fechada e aberta ao exterior, funcionando como uma estrutura intermediária nos domínios político / administrativo, econômico, cultural / religioso. A paróquia fundamenta-se em um território demarcado, em um espaço de relações sociais e simbólicas. Por isso, quase sempre sustenta estudos realizados em diversas linhas de abordagem, desde a perspectiva demográfica àquela das práticas e das representações relativas ao sagrado, alvo preferencial da história das vivências religiosas e da própria história da religião católica na Época Moderna.
A relevância da documentação procedente do termo (município) de Vila Rica ajuda a compreender a concentração da historiografia colonial e provincial. Da mais tradicional até a mais recente, produziu-se vasta literatura sobre o passado mineiro levando em conta a experiência e a documentação vilarriquenhas. Entretanto, destacamos que, pela primeira vez, a Paróquia de Nossa Senhora do Pilar conta com análises desta amplitude, com um número massivo de dados que só foram viáveis depois do advento do computador pessoal.
Agradecemos os autores pela generosidade com que encararam esta contribuição e chegaram ao seu término. Os artigos aqui presentes abordam aspectos variados do conhecimento: demográficos, políticos, mentais, religiosos tiveram como ponto de partida a sobredita paróquia, apresentando certa unidade, mesmo os que não recorreram à base de dados. Contudo, o período contemplado e o fio condutor não foram perdidos.
Belo Horizonte, 09 / 2003
Adalgisa Arantes Campos – Organizadora.
CAMPOS, Adalgisa Arantes. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.20, n.31, jan., 2004. Acessar publicação original [DR]
Espaços urbanos e territórios simbólicos / Varia História / 2003
O dossiê Espaços urbanos e territórios simbólicos reúne artigos que discutem as transformações e apropriações que as cidades sofrem ou sofreram continuamente. Os atos de construção, reformulação, reapropriação e demolição são constantemente realizados pelos seus habitantes conferindo aos espaços urbanos, sempre em transformação, uma teia de novos significados. As cidades se por um lado se apresentam como uma das faces da modernidade, por outro, podem ser vistas como uma sucessão de ruínas que se acumulam no tempo.
Roberta Marx Delson, em seu artigo Versailles em Guaporé: a evidência visual do passado glorioso de Vila Bela de Goiás, discute, a partir de duas fontes iconográficas tardias, as evidências de um projeto urbanístico monumental que norteou a construção da cidade de Vila Bela no período colonial, mas que as transformações posteriores do espaço urbano apagou completamente, inclusive da memória.
Nos primeiros tempos da construção de Belo Horizonte, entre 1894 e 1897, o antigo arraial do Curral De I Rei caiu por terra e a Comissão Construtora da nova capital promoveu uma verdadeira revolução urbana. O artigo de Anna Karina Castanheira Bartolomeu analisa o conjunto de fotografias realizadas na época e que constitui o acervo do Gabinete Fotográfico da Comissão Construtora. Segundo a autora, as lentes dos fotógrafos capturavam as imagens de uma cidade moderna em construção acelerada e cujas fotografias corriam o Brasil alardeando o sucesso do empreendimento.
Regina Helena Alves da Silva aborda a reatualização pelos modernistas paulistas do imaginário bandeirante associado à cidade de São Paulo. As múltiplas imagens fragmentadas que nascem de suas penas visam contrapor às novidades modernizadoras que vinham de fora uma identidade nacional a partir de valores intrínsecos à cultura brasileira, recuperando a identidade bandeirante como mola propulsora do ser nacional. Assim, a cidade de São Paulo, que então passava por várias transformações urbanas, é lida no duplo signo da tradição colonial e dos elementos do sonho moderno e civilizado.
Por fim, fechando esse dossiê sobre os espaços urbanos e seus territórios simbólicos, no artigo Segregação e artimanhas nas cidades contemporâneas, Denise Bernuzzi de Sant’Anna sugere alguns conceitos capazes de intensificar o debate e as problematizações sobre as experiências de criação em megalópoles como é o caso de São Paulo. Se de um lado, a vivência nos espaços urbanos contemporâneos tende a segregar a diferença, por outro lado, é possível identificar inúmeras experiências de resistência e criação, sem no entanto cair no risco de tornar essas experiências em templos de veneração.
Em O lugar da América na história: história natural, estado de natureza, objeto de cobiça dos homens, Vera Chacham remonta os discursos de Voltaire e de Buffon a respeito do aparecimento do homem, em particular do homem americano. Ao situar o lugar das populações americanas na história e na natureza, o discurso iluminista dos naturalistas europeus do século XVIII representa a América como um lugar inferior, propício à manifestação da superioridade européia, um antiexemplo de civilização, posto que ali se assiste a uma história da barbárie dos civilizados.
O estudo da população forra da freguesia de São José do Rio das Mortes, nos séculos XVIII e XIX, em seus aspectos quantitativos e qualitativos é o desafio dos historiadores Douglas Cole Libby e Afonso de Alencastro Graça Filho. Tomando como ponto de partida fontes seriadas, especialmente o rol dos confessados da localidade, e completando-as com outras mais esparsas, como cartas de alforrias, testamentos, registros de batizados e óbitos, cartas de sesmarias, entre outros, o artigo busca reconstruir o universo dos forros da localidade, sua composição, e as formas de acesso à liberdade. Por fim, as trajetórias individuais de duas mulheres alforriadas servem como contraponto ao conjunto massivo de dados levantados pelos autores, iluminando vários dos aspectos sugeridos pelos documentos inventariados.
Roberto Carlos dos Santos analisa as posturas municipais que acompanharam o processo de urbanização da cidade de Patos de Minas em fins do século XIX para assim desvendar o discurso higienista e moralizador das autoridades municipais. O discurso do poder, produzido de forma autoritária, tende a excluir os pobres e marginais, responsabilizando-os pela corrupção da ordem idealizada para o espaço da urbe que se modernizava.
O Fausto caipira: Joaquim Macedo Bittencourt e as faces da modernização urbana em Ribeirão Preto na Primeira República (1911-1920), de Rodrigo Ribeiro Paziani, analisa o discurso do médico e prefeito da cidade, Joaquim Macedo Bittencourt, que reflete as intervenções e projetos de modernização urbanos ocorridas no período republicano, refletindo os laços entre a política e o poder privado da elite cafeeira.
Júnia Ferreira Furtado
Regina Helena Alves da Silva
(Organizadoras)
FURTADO, Júnia Ferreira; SILVA, Regina Helena Alves da. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.19, n.30, jul., 2003. Acessar publicação original [DR]
Espaços urbanos e territórios de poder / Varia História / 2003
Segundo Lévi-Strauss, especialmente na América, as cidades não foram feitas com o intuito de durarem, mas para se renovarem na mesma rapidez com que foram edificadas.[1 ]Sua observação atenta para a capacidade de transformação dos espaços urbanos o que tem ocorrido, nos últimos tempos, de forma cada vez mais acelerada. Os sujeitos ao se apropriarem dos espaços das cidades com eles se interagem, proporcionando, mesmo às velhas paisagens européias, novos significados e valores simbólicos. Os números 29 e 30 da Varia Historia reúnem o dossiê Espaços urbanos e territórios que se desdobra em duas partes. O primeiro, que se publica nesse número 29, se intitula Espaços urbanos e territórios do poder e o segundo, a ser contemplado no número 30, se denomina Espaços urbanos e territórios simbólicos.
Esse primeiro dossiê, Espaços urbanos e territórios do poder, abarca um conjunto de estudos sobre diversas cidades em suas inter-relações com os poderes que as constituíram. Em Cidades e elites coloniais; redes de poder e negociação, Maria Fernanda Bicalho analisa o papel das câmaras municipais como centro articulador entre o poder local e o poder real. Parte das interpretações historiográficas do tema, especialmente a obra de Charles Boxer e a de Evaldo Cabral de Mello, para propor uma nova abordagem. A partir do estudo do papel da Câmara Municipal no Rio de Janeiro na década de 1640, logo após a aclamação de Dom João IV como rei de Portugal, a autora enfoca o papel das redes de poder local e sua inserção na política mais geral do império, particularmente no que diz respeito aos negócios e interesses dessa elite no complexo mercado do Atlântico sul.
O artigo de Cláudia Damasceno Fonseca aborda a concessão de títulos de vila e cidade na capitania de Minas Gerais no decorrer do século XVIII. Usualmente, os estudos tradicionais salientam as questões políticas decorrentes das disputas de poder envolvidas nestas contendas, atribuindo ao rigor metropolitano a escassez de títulos concedidos aos núcleos urbanos mineiros. Numa outra vertente, a autora analisa as representações de cidades e dos núcleos urbanos que transparecem nos discursos coevos que salientam os aspectos que enobrecem as localidades tais como: a ordem dos assentamentos, a fidelidade dos moradores à Coroa, o papel defensivo e / ou estratégico da povoação, entre outros. Tais discursos refletem os interesses e as disputas dos moradores locais pela autonomia ou não dos espaços urbanos imprimindo novos significados aos conflitos entre os colonos e o poder metropolitano.
Os relevos urbanos da cidade de Macau são desvendados a partir de uma leitura semiótica da paisagem por Isabel Marcos. A ocupação do território chinês pelos portugueses correspondeu a três etapas diferenciadas que, segundo a análise da autora, podem ser identificados em três relevos cartográficos distintos. Essa disputa pela ocupação e transformação do espaço urbano evidencia as disputas de poder entre os primitivos habitantes, e os conquistadores. Num primeiro momento, os portugueses avançaram sobre os locais simbólicos dos chineses, especialmente aqueles relativos à morte. Numa segunda etapa, assiste-se simultaneamente a um processo construtivo diferenciado empreendido em espaços concorrentes tanto da parte dos portugueses quanto da dos chineses, o que resultou em uma diversidade de interações sob a forma de grandes percursos urbanos. Já no século XVIII, ocorre a terceira etapa de apropriação do território, quando Portugal admite no território chinês grandes companhias estrangeiras e assiste-se a um processo de edificação em massa na cidade de novos bairros, praças, edificações criando um espaço diversificado e intrigante.
As transformações arquitetônicas das moradias urbanas das elites no Brasil do período colonial até o início do Republicano são abordadas no artigo História, Cultura e Patrimônio: os solares urbanos do século XIX. Chamando a atenção para o desprezo que a política de defesa do patrimônio histórico no Brasil teve em relação às moradias populares, a autora Sandra Pelegrini salienta que as transformações e singularidades dos projetos arquitetônicos dessas habitações revelam a própria organização hierárquica que caracterizou a sociedade brasileira, evidenciando as estruturações de poder no campo social. Nesse aspecto, as adaptações e as características que a cozinha tomou ao longo do tempo nas moradias brasileiras são sintomas da segregação que a mão-de-obra, especialmente a escrava, encontrava no Brasil.
No contraponto do dossiê a respeito do mundo urbano, o universo dos sertões é abordado no artigo de Márcia Amantino. O sertão, identificado como o lugar da fronteira e do vazio desde o início da ocupação portuguesa, configura-se no século XVIII em Minas Gerais como espaço de resistência de negros aquilombados e índios selvagens. Representado nos discursos como um lugar vazio, mas verdadeiramente ocupado pelo outro, esse espaço torna-se, na ótica das autoridades, terra a ser ainda conquistada e incorporada ao mundo civilizado dos brancos.
A política de controle e estímulo ao comércio local para o abastecimento dos núcleos urbanos nas Minas Gerais é estudada por Flávio Marcus da Silva. Em seu artigo, o autor analisa o papel das Câmaras municipais no sentido de estabelecer uma política que propicie a organização do mercado de víveres nos núcleos urbanos, ao mesmo tempo que estabelece uma política de repressão aos atravessadores e ao comércio ilegal. Privilegia o estudo do relacionamento entre as autoridades locais e três dos principais agentes responsáveis pelo abastecimento alimentar: os roceiros, os comissários e os atravessadores.
Em A História na “história” de José Bonifácio: fundamentos de um projeto nacional, Ana Rosa Coclet da Silva analisa a visão de história presente no pensamento político de José Bonifácio, fundamental para a compreensão de seu projeto reformista para o Brasil e para o Reino. Ancorada no duplo aspecto da continuidade- de natureza física e humana- e de ruptura- na medida que informava a especificidade das partes e de seus habitantes- , a História constituía aspecto fundamental do projeto modernizador imperial na medida em que fornecia as bases para emendar o velho Reino e criar a nova nação brasileira.
Rodrigo Patto Sá Motta e sua equipe encerram esse número com um artigo no qual se debruçam sobre o acervo documental do Departamento de Ordem Política e Social de Minas Gerais (OOPS / MG) e apresentam os resultados preliminares do estudo desse instigante acervo. Partem da discussão sobre a política de acesso aos documentos dos arquivos das agências de repressão, o que só se torna possível em um estado de direito e que se associa à luta por um estado em consonância com os interesses comuns da população e subordinado ao poder público, ponto de convergência com a própria temática republicana. Num segundo momento, abordam a regulamentação e o aparelhamento dos órgãos de repressão, aspecto necessário para a organização e a compreensão da própria documentação levantada, compondo um quadro da trajetória institucional do órgão.
Nota
1. LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. Buenos Aires: Editorial Universitária de Buenos Aires, 1970. p.81- 82. “As cidades na América não só foram recentemente construídas como estão para renovar-se com a mesma rapidez com que foram edificadas.
Júnia Ferreira Furtado – Organizadora.
FURTADO, Júnia Ferreira. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.19, n.29, jan., 2003. Acessar publicação original [DR]
História e culturas políticas / Varia História / 2002
Dando seqüência a um formato editorial iniciado a partir do número 25, quando Varia Historia passou a ser organizada pelas linhas de pesquisa do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG, apresentamos a presente edição, cuja coordenação coube à linha “História e Culturas Políticas”.
Abre este número de Varia Historia um dossiê que reúne parte dos trabalhos apresentados no “Colóquio História e Culturas Políticas”, realizado pela linha em novembro de 2001. O evento reuniu pesquisadores da casa e convidados de outras instituições, com o objetivo de empreender esforço conjunto de discussão em torno desse campo de pesquisa que se configura instigante e inovador. De fato, nota-se vivo contraste entre a riqueza de possibilidades abertas pelo estudo das culturas políticas, que descortinam universo amplo de indagações a serem colocadas aos fenômenos políticos, e a relativa escassez de reflexões sobre o alcance- e eventuais limitações- do trabalho com essa categoria.
No dossiê, publicamos sete dos textos apresentados no Colóquio, amostra pequena mas significativa das discussões empreendidas. No texto inicial, a Prof. Eliana Regina de Freitas Dutra faz um balanço das definições e da história do conceito de cultura política, e ao mesmo passo, realiza inventário das principais tendências historiográficas que, a partir do diálogo com outras ciências sociais, têm se dedicado a esse campo de análise e pesquisa. A Prof. Carla Maria Junho Anastasia oferece algumas reflexões sobre a violência política e os motins na América portuguesa do século XVIII , além de analisar como, sob o impacto da edição da Lei da Boa Razão, que implicou o cerceamento de direitos costumeiros internalizados pelos vassalos da coroa, foram engendradas novas formas de ação coletiva.
O artigo da Prof. Kátia Gerab Baggio enfoca fenômeno político importante para compreender a América Latina contemporânea, a cultura política nacionalista. Ela privilegia os casos de México, Cuba e Porto Rico e procura apontar as representações nacionais construídas nesses países, respeitadas as nuanças e particularidades de cada situação. No seu texto, a Prof. Angela de Castro Gomes retoma o debate envolvendo as categorias populismo e trabalhismo, e apresenta interessante roteiro de análise. A proposta é pensar o populismo como um mito político, integrante do imaginário social brasileiro, e encarar o trabalhismo como uma tradição política pertencente ao campo do pensamento social / político. Compreender o “queremismo”, ou seja, o movimento que levou contingente expressivo de populares às ruas, em 1945, demandando a permanência de Vargas no poder, é o eixo do trabalho do Prof. Jorge Ferreira. Partindo da análise das crenças e valores daqueles trabalhadores, o autor procura explicar as razões da persistente popularidade do ditador que, paradoxalmente, via o regime que havia construído se esboroar.
O tema do Prof. João Trajano Sento-Sé é o brizolismo, força política preponderante no Rio de Janeiro dos anos 1980 e 1990. O argumento central do artigo é explicar a popularidade do líder gaúcho no Rio de Janeiro, que teria a ver com a capacidade do brizolismo de mobilizar certos aspectos da cultura política carioca. O Prof. José Antonio Dabdab Trabulsi, cujo texto encerra o dossiê, procura analisar as visões construídas pela historiografia européia do século XIX acerca da cidade grega antiga, mostrando como essas leituras eram informadas pela influência de culturas políticas contemporâneas como o republicanismo, o conservadorismo e o socialismo.
A revista traz ainda outros quatro artigos. O trabalho do Prof. Marcelo Cândido da Silva está centrado na análise da obra de um autor medieval, Gregório de Tours, historiador do reino Franco. A hipótese sustentada é que o texto, para além do conteúdo moralizante e religioso, pode ser usado como fonte para compreensão da história política merovíngia. Já o texto da Prof. Berenice Cavalcante tem como tema a obra política e intelectual de Afonso Arinos. Submetidos à análise da autora, os escritos do ex-Senador revelam um intelectual refinado, capaz de aliar uma notável faceta moderna à sólida formação clássica. Um confronto entre memórias de militares e militantes políticos de esquerda, atuantes nos embates dos anos 1960 e 1970, é o que nos apresenta o Prof. João Roberto Martins Filho. Do contraste entre essas falas, constata o autor a permanência do tema da tortura como pomo de discórdia entre as esquerdas e os militares. Fechando a edição, temos o artigo de Eduardo Flores Clair e Alba López Mijares, que revela faceta pouco conhecida das sociedades mineiras da Nova Espanha no século XVIII, qual seja, o cotidiano familiar e doméstico daqueles grupos sociais, em que afloram sentimentos e segredos íntimos e, também, a violência.
Rodrigo Patto Sá Motta
Heloisa Starling
(Organizadores)
MOTTA, Rodrigo Patto Sá; STARLING, Heloisa. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.18, n.28, dez., 2002. Acessar publicação original [DR]
Teoria da história e historiografia / Varia História / 2002
Este número da Varia Historia foi organizado pela linha de pesquisa da pós-graduação em história da UFMG, “Ciência e Cultura na História”. A proposta desta linha de pesquisa é fazer teoria e história da ciência, e, para fazê-lo de forma própria e densa, ela procura estar atenta às questões e discussões de teoria da história, metodologia da história e historiografia. A “história da história”, que reúne estes três aspectos, o teórico, o metodológico e o historiográfico, é o instrumento primordial de todo historiador. É a “história da história” que reconstrói e problematiza a experiência já consolidada e perscruta o horizonte das possíveis investigações. De seus estudos dependem a profundidade e a força inovadora das pesquisas históricas do presente. Este número apresenta um dossiê nesta área da “história da história”, nos campos da teoria da história e da historiografia, que oferece três interessantes artigos sobre as possibilidades atuais e os limites da ciência histórica.
O artigo “Historiografia Contemporânea – Um Ensaio de Tipologia Comparativa”, de Estevão de Rezende Martins (UNB), sustenta que a historiografia constitui fator decisivo para a cultura histórica. Seu sentido é o de oferecer o “meio ambiente” no qual o agente racional humano elabora identidade temporal própria, no contexto social em que opera sua práxis autodeterminante. Combinando o sentido do tempo e do passado nas formas tradicional, exemplar, crítica e genética da historiografia, de acordo com o pensamento de Jorn Rüsen, o autor esboça um ensaio de tipologia da historiografia.
O artigo “Em Busca de um Conceito de Historiografia – Elementos para uma Discussão”, de Jurandir Malerba, atualmente, professor visitante no Centro de Estudos Brasileiros da Universidade de Oxford, parte de algumas definições verificáveis na recente crítica brasileira, buscando contribuir para a construção de um conceito operacional de historiografia; com base na antiga caracterização da história-realidade-passada e história-conhecimento-presente, procura sugerir as potencialidades da historiografia como objeto do conhecimento das sociedades humanas.
O artigo “A Especificidade Lógica da História “, de José Carlos Reis (UFMG), discute os impasses e aporias do conhecimento histórico e considera os caminhos do “modelo nomológico” e do “modelo compreensivo” para a possível superação daqueles dilemas epistemológicos.
Fazem parte ainda do presente volume quatro artigos. Em “A construção do Brasil: projetos de integração da América portuguesa”, Cláudia Maria das Graças Chaves analisa o melhoramento dos caminhos e estradas e a abertura de canais navegáveis em Minas Gerais, no contexto das reformas ilustradas empreendidas após a vinda da família real para o Brasil. A partir do estudo do processo judicial em que a ex-senhora do escravo mina, Francisco, buscava revogar judicialmente a alforria por ela concedida anteriormente, Marcus J. de Carvalho, em “De cativo a famosos artilheiro da Confederação do Equador: o caso do africano Francisco, 1824- 1828″, analisa as vicissitudes da escravidão doméstica e as estratégias empregadas pelos escravos no Recife para construírem suas próprias noções sobre a liberdade. Por fim, no artigo ” Identidade e Arquitetura na América Latina: o transnacional e o transcultural como estratégias do Barroco e do século XXI”, Carlos Antônio Leite Brandão estuda a conquista do território brasileiro pelos portugueses e de que maneira a arquitetura barroca foi elemento constituinte para a construção da sociedade latino-americana, evidenciando o caráter artificial desta mesma identidade. Em contraponto discute o caráter da arquitetura barroca moderna e pós-moderna – o transnacional e o transcultural- que a capacita a enfrentar os desafios da globalização no século XXI.
O artigo que encerra este número da Varia Historia é “Complementaridade e Reconciliação”, de Yoav Ben-Dov, membro do Instituto Cohn de História e Filosofia da Ciência e das Idéias, da Universidade de Tei-Aviv / Israel, autor do livro Convite à Física, publicado no Brasil pela Jorge Zahar Editor. O autor esboça, em linhas gerais, a idéia de complementaridade que foi proposta por Niels Bohr, primeiramente, como uma resposta para os problemas conceituais da mecânica quântica, mas depois estendido por ele a outros domínios, tanto dentro como fora da ciência. Nessas aplicações, a idéia de complementaridade permite a aceitação de diferentes conjuntos de crenças e princípios que contradizem um ao outro, mas que possui valor intrinsecamente em seu conjunto. Em particular, essa abordagem pode ajudar a solucionar o conflito entre a perspectiva científica e as aspirações humanas.
O presente número contou com o apoio financeiro da Fundep e da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, a quem agradecemos.
José Carlos Reis – Organizador
REIS, José Carlos. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.18, n.27, jul., 2002. Acessar publicação original [DR]
História e natureza / Varia História / 2002
O presente número da revista Varia Historia conta com um dossiê organizado pela linha de pesquisa Ciência e Cultura na História, da pós-graduação em História da UFMG: “História e Natureza”.
O dossiê traz seis artigos que estabelecem diálogos entre a história e o mundo natural. Este debate, se fez presente há muitas décadas na historiografia – certamente desde os pioneiros dos Annales – encontra-se atualmente revigorado pelos estudos na área de uma nascente História Ambiental.
Os três primeiros artigos focalizam questões teórico-metodológicas de grande pertinência para os historiadores que queiram dedicar-se a esse tipo de abordagem. Em “Por que estudar a história ambiental do Brasil- ensaio temático”, José Augusto Drummond, pesquisador associado do Centro de Desenvolvimento Sustentável (UnB), discute as razões que tornam o Brasil um objeto de estudo invejável no campo da História Ambiental, indicando perspectivas de pesquisa e preciosas indicações comentadas de trabalhos contemporâneos já produzidos, tendo o Brasil como tema. Guillermo Castro, da Universidad de Panamá, autor de “História Ambiental {feita) na América Latina”, debate a relevância e a urgência de se fundar uma discussão latino-americana sobre a sua história ambiental, que tem sido prioritariamente feita com o apoio de instituições econômicas e financeiras de países do Atlântico Norte. Frente às várias conseqüências e limitações decorrentes dessa situação, o autor debate a diferença entre uma história ambiental sobre a América Latina e uma história ambiental latino-americana.
O artigo de Bernardo García Martinez, do Colegio de México, “Fronteiras Pré-Hispânicas e Ocupação da Terra: um traço básico para analisar a história ambiental do México nas épocas colonial e contemporânea”, privilegia questões e impasses na construção de um olhar historiográfico ambiental sobre a história colonial do México. Mostrando a necessidade de um redobrado cuidado na aceitação de generalizações ou paradigmas, recomenda ao historiador que se detenha na variedade e na complexidade dos fenômenos estudados, o que resultará, certamente, em análises mais pertinentes e sofisticadas das relações entre sociedade e natureza.
Christian Brannstrom, professor da Texas A&M University, realiza uma instigante discussão sobre a Mata Atlântica, introduzindo questionamentos sobre esse conceito a partir de uma minuciosa pesquisa nos inventários e processos de divisão e medição de terras no oeste paulista. Constatando a existência de um verdadeiro mosaico de vegetação, introduz um debate epistemológico da base biofísica de estudos histórico-ambientais.
O artigo de José Luiz de Andrade Franco, da União Pioneira de Integração Social (UPIS), “A Primeira Conferência Brasileira de Proteção à Natureza e a questão da Identidade Nacional”, analisa o pensamento social e as propostas formuladas naquele evento, realizado em 1934, no Rio de Janeiro, evidenciando as conexões entre a questão da proteção da natureza e uma idéia mais ampla de construção da nacionalidade.
Finalmente, no último artigo deste dossiê, Regina Horta Duarte, da UFMG, discute as relações entre homens e animais focalizando dois momentos históricos diferentes, a partir das práticas circenses no Brasil e da utilização dos animais nos espetáculos no artigo “Cavalinhos, leões e outros bichos: o circo e os animais”. A autora visa pontuar a transformação histórica de valores morais e o surgimento de novas sensibilidades, assim como compreender suas condições.
Compõem ainda este número da Varia Historia dois artigos. Em “Os cabeças e as cabeças: quilombos, liderança e degola nas Minas setecentistas”, Carlos Magno Magalhães aborda as hierarquias de poder instituídas no interior dos quilombos em Minas Gerais e as práticas de mutilação utilizadas pela sociedade colonial , expressas na degola e exposição de cabeças em praças públicas, com o objetivo de coibir a fuga de escravos e a formação de quilombos. Giselle Martins Venâncio investiga a relação entre o então editor Monteiro Lobato e o autor Oliveira Vianna em “Da Revista do Brasil ao Brasil em revista: breve análise da trajetória editorial de Oliveira Vianna “. A correspondência trocada entre os dois serve de fio condutor para compreender a consolidação da posição de Vianna no mercado editorial brasileiro e entre a intelectualidade brasileira na primeira metade do século XX.
O presente número contou com o apoio financeiro da Fundep e da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, a quem agradecemos.
Regina Horta Duarte – Organizadora.
DUARTE, Regina Horta. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.18, n.26, jan., 2002. Acessar publicação original [DR]
Mídias, leituras e viagens / Varia História / 2001
A revista do Programa, Varia Historia, redefiniu, a partir de 1999, os critérios para seu novo perfil, e iniciou sua reformulação editorial a partir do número 20, publicado no primeiro semestre daquele ano. Entre outros objetivos, pretendeu-se ampliar a participação de pesquisadores nacionais e internacionais refletindo o intercâmbio acadêmico que o Programa de Pós-graduação em História da UFMG vem solidificando. O número 25 apresenta mais uma inovação em seu projeto editorial: a organização de um dossiê temático. A opção pela confecção de dossiês se liga à estratégia de maior vinculação da revista às linhas de pesquisa que compõem o referido Programa, a saber: História e Culturas Políticas, História Social da Cultura, e Ciência e Cultura na História.
A Varia Historia vem se firmando como espaço privilegiado do debate histórico e a organização de Dossiês permitirá que as diferentes linhas explorem temas de pesquisa dentro do universo teórico de cada uma delas, envolvendo seus pesquisadores na preparação dos mesmos, em constante intercâmbio com os estudiosos de outras instituições. Os Dossiês também pretendem refletir os seminários e os debates promovidos pelas linhas no decorrer do ano acadêmico, envolvendo o corpo docente e discente e pesquisadores convidados.
O Dossiê Mídias, leituras e viagens foi uma iniciativa da linha de História Social da Cultura e reflete alguns dos temas que têm instigado os estudos no campo da cultura: a produção e a circulação dos livros, as práticas de leituras, os mecanismos de difusão e mídia, as teorias de recepção, tendo como pano de fundo o fenômeno e o movimento das viagens como espaços privilegiados para a produção de conhecimento. As viagens que nos interessam aqui são aquelas que significaram renovação do conhecimento, fruto da observação de todos aqueles, que “por meio das viagens, querem conhecer utilmente o mundo”.
O primeiro texto foi gentilmente cedido pelo Prof. Robert Darnton e discute os processos de formação e de difusão de notícias na França do Antigo Regime, tecendo instigantes questões a respeito da formação e do conceito de mídia para a época. Outra novidade que o autor apresenta é que a leitura do artigo não se esgota em si mesmo. O leitor é convidado a visitar a versão eletrônica do paper e acompanhar os caminhos e os instrumentos de investigação disponibilizados paralelamente on-line em janelas que podem ser acessadas enriquecendo a leitura e explorando as possibilidades que estes novos suportes apresentam à investigação histórica.
O texto do Prof. Miguel Benitez foi apresentado numa palestra promovida no referido programa no ano de 2001. Analisa a intersecção dos movimentos das viagens e da circulação de idéias heréticas, libertinas, muitas vezes na forma de livros ou textos proibidos, no espaço ibérico durante o período moderno.
Guiomar de Grammont no artigo “Catarse e teoria da leitura” explora as questões teóricas com que a história da literatura se debate hoje em torno das teorias da recepção, esta última reconstituída sempre como fragmento, como espaço imaginário que se caracteriza pela pluralidade e diversidade.
O tema da produção de conhecimento em relação aos fenômenos das viagens na esteira da constituição da identidade brasileira e da modernização da nação, no alvorecer do período republicano, foi o tema de estudo da Prof. Thais Velloso Cougo Pimentel. Num movimento inverso, são agora os brasileiros que se transformam em viajantes, buscando uma Europa mítica, berço de civilização, o exemplo a ser seguido, que permitirá a entrada do Brasil na modernidade.
A revista mantém sua prática de também receber contribuições espontâneas agregadas na seção Artigos. Mantendo-se como espaço referencial para os pesquisadores de diversas regiões e instituições que investigam a história de Minas Gerais, o presente número apresenta quatro artigos sobre a região entre os séculos XVIII e XIX.
Marco Antônio Silveira aborda a questão das práticas políticas utilizadas pelos diversos agentes na conformação do espaço minerador no início do século XVIII, quais sejam a conquista e a soberania. Ângelo Alves Carrara contribui para o entendimento do desenvolvimento urbano da sociedade mineira oitocentista em consonância com a pujança do setor agrário normalmente mais bem estudado. Dois artigos contribuem para desvendar o universo dos escravos que constituíram a maioria da população mineira no século XIX, tendo sido uma sociedade escravista voltada para a produção interna de produtos. Antônio Henrique Duarte Lacerda aborda o fluxo e as variáveis das alforrias concedidas em Juiz de Fora no declínio da sociedade escravocrata e Eliane Silva Guimarães analisa os crimes passionais ocorridos entre a comunidade escrava no mesmo município ao longo do século XIX.
A Varia Historia tem sido também, ao longo dos anos, espaço plural de debates sobre a história e tem recebido contribuições sobre as mais diversas temáticas. Johnni Langer e Sérgio Ferreira dos Santos apresentam um estudo sobre a criação da imagem oitocentista dos povos escandinavos, desnudando a constituições de mitos equivocados sobre a cultura e a sociedade dos povos nórdicos. Também explorando a questão da produção de mitos, Adriana Barreto de Sousa examina o processo de constituição da imagem do General Osório e do Duque de Caxias como heróis necessários à legitimação do regime republicano em seus diversos projetos, incorporando e justificando a participação dos militares na vida política brasileira.
Por fim, Jeffrey Needlle faz uma instigante resenha do livro de Kirsten Schultz, intitulado Tropical Versalles, enfatizando o aspecto inovador da abordagem que deixa de lado os lugares comuns que marcam as análises sobre a transferência da Corte portuguesa para o Brasil, salientando a forma como a monarquia redefiniu e mudou a sociedade e como estas mudanças foram percebidas pelos próprios brasileiros.
Júnia Ferreira Furtado – Organizadora.
FURTADO, Júnia Ferreira. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.17, n.25, jul., 2001. Acessar publicação original [DR]
Códice Costa Matoso / Varia História / 1999
É com grande satisfação que a Fundação João Pinheiro e a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais presenteiam pesquisadores da história colonial brasileira com este número especial da revista Varia Historia, dedicado ao Códice Costa Matoso. Este trabalho complementa o projeto Códice Costa Matoso, desenvolvido desde janeiro de 1997 pelo Centro de Estudos Históricos e Culturais da Fundação João Pinheiro.
A parceria não poderia ser mais oportuna, pois comemora a divulgação de documentos inéditos sobre a América portuguesa e sobre Minas Gerais especificamente, por intermédio de uma edição especial de uma das mais importantes revistas de divulgação de trabalhos históricos, já em seu 21º número, fato raro no país.
Esta obra só foi possível graças à colaboração de eméritos pesquisadores, ·no Brasil e no exterior, que atenderam de forma pronta e entusiasmada ao nosso convite. A contribuição de todos resultou em uma edição que tornar-se-á, decerto, de grande importância para a historiografia brasileira e referência para um grande número de estudiosos.
Iniciativas como esta demonstram que a união de forças é um dos caminhos mais proficuos para o fortalecimento das instituições de pesquisa e para a disseminação do conhecimento.
Ciro Flávio C. Bandeira de Melo – Editor da Varia Historia
João Batista Rezende – Presidente da Fundação João Pinheiro
MELO, Ciro Flávio C. Bandeira de; REZENDE, João Batista. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.15, n.21, jul., 1999. Acessar publicação original [DR]
Belo Horizonte: cem anos em cem / Varia História / 1997
Dedicamos este numero ao professor Antônio Luis Paixão, que se estivesse ainda entre nós teria gostado de participar; bem como ao professor Francisco Iglésias por seu amor a Belo horizonte e sua paixão pela Historia.
Porque Belo Horizonte: Cem anos em Cem. Nos primeiros anos pós republicanos é comum encontrarmos nos autores e políticos da República, frases como esta do governador mineiro, em 1895, falando sobre a nova capital de Minas Gerais que se construía: “a República em seis anos fez mais pelo Brasil do que a Monarquia em 70”. Juscelino, mais tarde, em campanha presidencial prometia “50 anos em 5”. Eleito construiu Brasília. Neste NUMERO ESPECIAL não pretendemos demonstrar a aceleração da Historia. Pretendemos tão somente tratar de alguns aspectos da vida de Belo Horizonte ao longo de cem anos de sua historia, cem anos medidos um a um, durante os quais, utopias foram lançadas, sonhos foram discutidos ou desfeitos, problemas sociais e urbanos surgiram e se multiplicaram, discursos esgotaram-se em si mesmos e a cidade, planejada para acolher poucos mil habitantes traz hoje para seus dois e meio milhões de pessoas, um espaço no qual o desenrolar da História, em seu tempo medido, marca a todos por seus dramas do dia a dia …
Os textos que se seguem foram divididos pelos assuntos que os, aproximavam. Não tivemos a pretensão de esgotar temas ou as épocas abordadas. Tão só os autores buscaram tratar de alguns aspectos dentro do universo que se abre em seus trabalhos. Muita coisa ficou de fora, aspectos importantes uns, curiosos outros. nada de buscar o que poderia ser o fim de uma historia.
Começamos por tratar de Curral dei Rei. Passamos em seguida para um fato pouco lembrado. No exato momento em que se construía em nome do progresso, da ordem e da civilização uma cidade eugênica, planejada e riscada na prancheta, destruía-se outra, Canudos, a ferro e fogo, nascida de um Brasil desconhecido, vitima de sua própria ucronia milenarista. Os textos seguem. Passam por projetos urbanos uns, estilos de época outro, grafite contestatorio um terceiro. Crimes, que rompem com um projeto de espaço urbano, que as utopias de momentos diferente podem aproximar, quer pelas greves na cidade que devia ser pacata, quer pelas ideologias que sempre se fazem presentes. Assim passamos pelo “flâneur”, por cronistas, por aquele que se dedicou a revista infantil ou a outros que as queriam literárias. Mas como esquecer a educação sistêmica, a política cultural, as artes aqui presente, a economia e os planejamentos políticos que buscam e buscam o controle do país como um todo? De vários aspectos tratamos um pouco; da musica, do cinema, da produção discográfica de artistas locais, até voltarmos para as utopias possíveis no milênio que se aproxima. Os trabalhos deste numero, por se tratar de um numero especial, dentro do próprio espirito de uma efeméride, apresentam uns, característica acadêmicas, outros fogem a este aspecto, outro arrola uma cronologia, mas todos trazem o interesse comum por tratarem de assuntos que tiveram por espaço o “Iocus” Belo Horizonte.
Por fim, mas não menos importante, que deixar nossos agradecimentos ao Diretor do ARQUIVO PUBLICO DA CIDADE DE BELO HORIZONTE, professor Carlos Roberto Rodrigues, bem como a Ivana Denise Parrela e Adalson de Oliveira Nascimento pesquisadora e estagiário da mesma instituição pela atenção em nos fornecerem as fotos que reproduzimos e que fazem parte, a maioria delas, da coleção do fotógrafo José Góes.
Ciro Bandeira de Melo
João Antonio de Paula
MELO, Ciro Bandeira de; PAULA, João Antonio de. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.13, n.18, nov, 1997. Acessar publicação original [DR]
Fronteiras na História / Varia História / 1992
É fato inconteste que a pesquisa histórica contemporânea tem se efetuado num quadro de renovação da problemática histórica.
A expansão ilimitada da história para fora dos seus domínios tradicionais, não só tem revelado a amplitude das suas interrelações com as outras ciências humanas como revelado um fecundo diálogo conceitual.
No passo dessa “renovação” abriu-se um estimulante espaço de controvérsia pois, afinal, a fisionomia da produção histórica caleidoscopicamente se alterou. Dada a pluralidade dos enfoques, dos referenciais teóricos, e dos constantes e novos contatos de inter- face com outras áreas do conhecimento, Impõe-se a necessidade de um exercício critico-reflexivo voltado para as Interrogações dos historiadores.
Nesse processo, ainda em aberto, de discussão e mudança dos procedimentos históricos, a História está posta em questão através de Indagações que dizem respeito ao campo de trabalho dos historiadores, aos fundamentos epistemológicos da disciplina histórica, à singularidade do oficio do historiador e às novas possibilidades analíticas e heurísticas que se descortinam.
Este número especial da Revista do Departamento de História, é constituído por artigos apresentados no seminário “Fronteiras na História”, por nós organizado enquanto um espaço, multidisciplinar e plural, aberto para o debate sobre as perspectivas atuais do labor historiográfico.
Não estão incluídos neste número os textos das conferências de Maria Rita Kehl, História e Psicanálise e os de Renato Janine Ribeiro e Laura de Mello e Souza, acerca, respectivamente, de História e Política e História e Mentalidades.
No caso de Maria Rita Kehl isto se deveu ao fato do seu texto já estar previamente comprometido com outra publicação. Quanto aos de Renato Janine e Laura M e Souza, Infelizmente, não foi possível viabilizar sua edição por razões alheias à vontade dos coordenadores.
Alguns autores preferiram manter os seus textos na forma como foram apresentados nas conferências.
Muito embora o seminário tenha se realizado em maio de 1991, só agora nos foi possível fazer chegar o presente número às mãos dos nossos leitores, entre outros motivos, pela paralisação das atividades universitárias por mais uma longa greve ocorrida ao longo daquele ano.
A discussão sobre as fronteiras na história tem no texto de Alcir Lenharo, História e Radiofonia, que aqui se publica, uma grande contribuição. Primeiramente, porque ao discutir o próprio significado do titulo do Seminário na Introdução, o autor percorre um etinerárlo importante para a compreensão do conteúdo da produção h1stonográfica atual e de suas tendências no Brasil. Num segundo momento, Lenharo se dedica à reflexão sobre a cultura de massas no Brasil dos anos 50, o que vem sendo objeto de suas pesquisas nos últimos anos.
Ao se perguntar sobre o estatuto historiográfico de um tema como a radiofonia, cuja especificidade se destaca na programação do Seminário, segundo observação do próprio autor, o expositor demonstra exemplarmente a pertinência da preocupação do historiador de hoje com temas até ontem desprezados pela cultura tradicional. Dizemos até ontem porque o texto do Prof. Alcir Lanhara não deixará dúvidas sobre a propriedade da cultura de massa como matéria prima da história.
A história nas histórias de Machado de Assis foi o tema trabalhado por Sydney Chaloub na sua conferência História e Literatura. “Infiltrando-se” no texto de Machado, já que o autor nos reaviva a memória de Helena em sua exposição, Chaloub demonstra com grande eficiência a possibilidade de se trabalhar o texto literário como documento histórico.
A grande novidade da abordagem do autor reside, a nosso ver, na perspectiva com que ele lida com a literatura: não como um produto acabado de seu tempo, mas como algo que admite, ou mesmo requer, leituras ou interpretações renovadas.
O que estimula a análise de Chaloub é sobretudo o que ele apreende das entrelinhas do texto machadiano. Dai sua constatação de que Machado tem como foco de seu romance “a lógica de dominação que era hegemônica e organizava as relações sociais no Antigo Regime”, mesmo que sua “esperteza” faça parecer que no palco da Corte a escravidão tenha papel secundário.
A visão crítica do autor sobre os trabalhos de Schwarz e Gledson, dois autores que se dedicam à análise da obra de Machado, evidencia, como se verá, a especificidade do olhar do historiador sobre o objeto literário.
Foot Hardman, com sensibilidade, nos aponta as possibilidades do uso da fotografia como fonte frágil, fragmentária e que mesmo revelando pouco e escondendo muito, ou quase tudo, é capaz de sugerir “gestos expressivos, vozes inteligíveis, paisagens e fisionomias revolvidas (…) experiências dignas de serem reescritas e transmitidas.”
Com as fotos do fotógrafo Dana Merril sobre a construção da estrada de ferro Madeira-Mamará, ele torna visível um momento da construção de uma certa história nacional, que não prescindiu das imagens fotográficas não só enquanto um registro, de autoridade, dos acontecimentos históricos da época, mas enquanto registro em si mesmo da sintonia brasileira com a modernidade.
Foot nos fala das afinidades entre a História e Imagem, a prosa narrativa, o objeto e a figura, das ilusões da fotografia e, ao mesmo tempo, da sua capacidade de se deslocar de seu lugar e de seu tempo e de restaurar espaço, temporalidades, guardando, restaurando e evocando memórias.
As fotos de Dana Merril ficaram, ele nos diz, como um fio narrativo capaz de quebrar o Silêncio em torno do drama da Madeira-Mamoré.
E é sobre “narrativa” e contra o silêncio dos historiadores acerca da sua relação com a história que Ricardo Benzaquem escreve seu artigo.
Enfrentando a discussão, sobre História-Narrativa, a partir do pressuposto do que esta não cancela “as formas mais tradicionais de se trabalhar a história”, Benzaquem situa-se nesse debate ressaltando que a preocupação trazida pela questão da narrativa deve reverter em enriquecimento da reflexão sobre os tipos de história praticada.
Nesse sentido, o caminho escolhido para a sua reflexão foi percorrido, com sagacidade e erudição, tomando como norte principal o desenvolvimento do método crítico pelos historiadores da Escola Histórica Alemã.
Ao longo do seu percurso se esclarece a relação Intrínseca entre história e narrativa e como o recurso a essa última consolidou a concepção moderna de História que, por sua vez, se firmou contra a literatura. É, portanto, para a fronteira entre a história e a literatura que o tema da narrativa, tal como abordado por Benzaquem, vai nos conduzir.
Entre caminhos e fronteiras, finalizando o volume, o texto de José Sérgio l e1te Lopes reconstrói o itinerário histórico da relação entre História e Antropologia. Dos desencontros entre ambas, onde se destacam a recusa da História tradicional e do evolucionismo pela moderna antropologia, aos encontros e convergências a partir dos anos 60, através da valorização da história cultural e sua ênfase renovada nos anos 80 nas tradições, nas mentalidades, no simbólico, na arqueologia da vida material e na cultura popular entre outras, um profícuo diálogo teórico-conceitual se sedimentou.
Na história dessa aproximação entre História e Antropologia, José Sérgio destaca, com pertinência, por um lado o papel do grupo dos Annales e dos historiadores da sua última geração e, por outro, os de Evans Pritchard e Geertz no campo da antropologia e os de Pierre Bordieu e Norbert Elias, no da sociologia.
Da sua experiência como “antropólogo de fronteira”, dedicado a estudos já considerados clássicos, sobre trabalho e vida de “grupos de operários”, José Sérgio nos mostra como numa tradição antropológica faz história social e, ao fazê-lo refaz, na prática, a trajetória dos encontros possíveis entre História e Antropologia.
Eliana Regina de Freitas Dutra
Thaís Veloso Cougo Pimentel
DUTRA, Eliana Regina de Freitas; PIMENTEL, Thaís Veloso Cougo. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.8, n.11, jul., 1992. Acessar publicação original [DR]
100 anos de República / Varia História / 1990
As datas históricas têm sido, às vezes, motivo de grandes comemorações por pa1e de governos ou de órgãos oficiais, sempre interessados em enaltecer este ou aquele feito de figuras destacadas de nossa História. Mas, em geral, nada se aproveita depois dessas comemorações, uma vez que os promotores das festividades preocupam- se, muito mais, com sua própria promoção pessoal do que com uma reflexão crítica a respeito do evento. Isto aconteceu, por exemplo com o bi- centenário da Inconfidência Mineira, onde, além de tudo, foram poucas ou quase nenhuma as comemorações por parte dos Governos Federal e Estadual. A mesma coisa pode ser dita a respeito da abolição da escravatura no Brasil. A não ser algumas festas folclóricas com muita capoeira, samba e axé, praticamente nada se fez para discutir a questão do negro na sociedade brasileira. E tem sido assim com quase todos os fatos históricos de grande relevância.
Os Cem Anos de República no Brasil não poderiam ser diferentes. Os governos, praticamente, nada fizeram. Não houve preocupação em financiar pesquisas ou trabalhos que pudessem contribuir com um conhecimento mais crítico deste nosso tão conturbado e tão longo período histórico. Mas, quem melhor soube falar sobre esta falta de visão crítica a respeito de nossa História é aquele que se insere entre os maiores nomes, se não o maior de todos, dentre os atuais historiadores brasileiros: o Professor Francisco lglésias. Em artigo publicado no jornal “O Estado de Minas”, de 16 / 08 / 89, onde comenta o livro de Carlos Guilherme Mota sobre a Revolução Francesa, ele diz: ·o bicentenário da Revolução Francesa provocou e provoca ainda centenas de livros na França: o importante é que eles são escritos em perspectiva crítica, única forma válida de comemoração de datas. Talvez haja mais volumes de contestação do movimento que de celebração – prova de maturidade nacional, de povo que não cede jamais na análise crítica, como estabeleceu no século XVII o filósofo Descartes – um dos símbolos da nacionalidade -, com a dúvida metódica. Só assim se justifica a história comemorativa, sem descambar para o badalativo, como se dá no Brasil, sempre evocando o passado em suas datas com reverência ingênua, júbilos às vezes indevidos. Entre nós, as de Minas ou do Brasil – autoridades só se lembram da História nos feriados, para louvores, em perspectiva não só ideológica como redutora de figuras ou fatos a seus interesses Foge-se da História como estudo para usá-la na defesa de situações presentes, como se viu nas poucas festas oficiais referentes à Inconfidência Mineira e decerto se verá nas referentes à República. Falta aos atuais dirigentes – autoridade para falar em tais eventos, que eles negam na prática, em geral até traindo-os”.
Pensando assim, como o Professor lglésias, é que um grupo de Professores dos Departamentos de História e Ciência Política, da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, decidiu promover um Seminário de caráter nacional para discutir e tecer considerações críticas a respeito dos cem anos de República já vividos pelo Brasil. Para a realização deste evento os dois Departamentos envolvidos fizeram uma Comissão composta pelos Professores Leônidas Prates Lafetá e Domingos Antônio Giroletti (do Departamento de Ciência Política) e Evantina P. Vieira e Douglas Cole Libby (do Departamento de História) além da funcionária Marlene de Fátima Maciel como Secretária.
O programa desenvolvido durante o Seminário teve como preocupação fundamental uma diversificação de temas. Não se pretendia ficar discutindo somente as causas ou fatores históricos que levaram à Proclamação da República no Brasil. Assim pensando, foi desenvolvido uma temática abrangente o suficiente que permitisse o convite de Professores com preocupações as mais variadas de forma a dar ao seminário e, sobretudo aos seus participantes, uma oportunidade para uma reflexão bastante crítica de todo este período histórico. O programa ficou organizado da seguinte forma:
A Abertura do Seminário 100 ANOS DE REPÚBLICA NO BRASIL foi feita de maneira solene, tendo o Professor Paulo Roberto Saturnino Figueiredo, Diretor da FAFICH, presidido a primeira sessão onde o Professor Fábio Wanderley Reis proferiu a conferência sobre AUTORITARISMO E REPÚBLICA, (dia 21 / 11); no dia seguinte, na parte da manhã, o Professor Michael Hall, da UNICAMP discorreu sobre O SINDICATO NA REPÚBLICA BRASILEIRA e teve como debatedores os Professores Michel Marie le Ven (do Departamento de Ciência Política) e Eliana Regina F. Dutra (do Departamento de História). Na parte da tarde foi a vez da Professora Maria Célia Paoli, da USP, falar sobre MOVIMENTOS SOCIAIS NA REPÚBLICA e que teve como debatedores os Professores Malori José Pompermayer (do DCP), Maria Elisa P. Unhares e Maria Auxiliadora Faria (ambas do OH); no dia 23, à tarde, o Professor Ademir Gebara, da UNICAMP, falou sobre RESQUÍCIOS ESCRAVISTAS: A TRANSIÇÃO DO REGIME DE TRABALHO NA REPÚBLICA, tendo como debatedores os Professores Douglas C. Libby e Evantina Pereira Vieira (do OH) e Vera Alice Cardoso Silva (do DCP); na manhã do dia seguinte, 24, o Professor Renato Boschi, do IUPERJ, discorreu sobre o tema REPÚBLICA NO BRASIL: MODELO PLURALISTA, MODELO CORPORATIVISTA e teve como debatedoras as Professoras Mônica Mata Machado Castro (do DCP) e Lucília de Almeida Neves Delgado (do OH); na tarde deste mesmo dia o Seminário foi encerrado com uma brilhante conferência do Professor Francisco lglésias sobre 100 ANOS DE REPÚBLICA NO BRASIL: UMA AVALIAÇÃO. Nesta, como nas outras conferências, o público pôde debater com os Professores convidados.
Alguns dos conferencistas do Seminário deixaram textos escritos para publicação neste número especial e conjunto da REVISTA DE HISTÓRIA e dos CADERNOS DO DCP. Outros artigos foram gentilmente cedidos por Professores da FAFICH para compor este número especial que, além de celebrar o centenário da República no Brasil, é, também, um evento comemorativo dos 50 anos de fundação da FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DA UFMG.
Não seria justo, da parte dos membros da Comissão Organizadora do Seminário, esquecer de pessoas e órgãos que contribuíram de maneira definitiva para o brilho dessa organização. Assim sendo, gostaríamos de deixar os nossos agradecimentos em primeiro lugar aos professores e alunos que tiveram uma participação direta no evento seja como conferencistas, seja como debatedores. Em seguida, gostaríamos de enfatizar nossos agradecimentos ao Exmo. Sr. Ministro da Cultura, Dr. José Aparecido de Oliveira, que aprovou e determinou a liberação de recursos financeiros para a realização do Seminário, através do Instituto de Promoção Cultural que teve, na pessoa de seu Diretor Executivo, Dr. José Carlos da Costa Oliveira, um grande aliado para a realização deste evento; à Pró- Reitoria de Extensão da UFMG, que administrou os recursos ao Professor Paulo Roberto Saturnino Figueiredo, Diretor da FAFICH, que colocou toda a infra-estrutura da Faculdade à disposição do Seminário, possibilitando, assim, um bom andamento dos trabalhos; à professora Rúbia Roberta Rodrigues do Departamento de Comunicação Social e Coordenadora do Setor de Criação Gráfica do Centro Audiovisual da UFMG, pelo belíssimo trabalho na criação do cartaz que divulgou o Seminário; e, finalmente, ao CNPq, cujos recursos financeiros permitiram a publicação deste número especial dos CADERNOS DO DCP e da REVISTA DO DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA.
Belo Horizonte, novembro de 1989.
Leônidas Prates Lafetá – Professor
LAFETÁ, Leônidas Prates. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.6, n.10, nov., 1990. Acessar publicação original [DR]
Trabalho livre e trabalho escravo na Antiguidade e na Idade Média e outros estudos / Varia História / 1988
Quando, em 1983, realizava-se, na Universidade Federal da Paraíba, o 1º Simpósio de História Antiga, a avalização geral da situação do ensino e da pesquisa nessa área do conhecimento no Brasil era bastante sombria, o que parece bem resumido pela Profª Vânia Leite Froes, ao afirmar: “reduzida no currículo do curso de História, praticamente eliminada do 1 º e do 2º graus pela reforma do ensino e finalmente deixada do lado pelo vestibular, onde se exige o adestramento do aluno a partir da crise do feudalismo, o papel da História Antiga no Brasil precisa ser repensado”. Palavras que podem ser aplicadas também ao domínio da História Medieval, o que provocou a proposta de que o âmbito da própria série de simpósios que então se iniciava fosse ampliado também para esse domínio, no esforço efetivo de criar os meios para repensar o papel dessas disciplinas não só nos quadros curriculares do sistema de ensino nacional, mas ainda, e principalmente, como legítimos representantes de uma esfera de produção do saber sistematicamente marginalizada desde várias décadas nas escolas, nos institutos de pesquisa e junto dos órgãos oficiais de fomento à produção científica.
Diversas propostas foram debatidas naquela ocasião, apontando para a necessidade de uma ação permanente, junto da comunidade científica e das instâncias dirigentes, o que supunha antes de tudo que os próprios professores, pesquisadores e estudantes da área se articulassem. Constatava-se como a dispersão impedia uma estratégia conjugada: professores do Aio de Janeiro desconheciam quase totalmente o que se fazia em São Paulo e vice-versa, o que fica patente, para citar um exemplo marcante, no fato, registrado nos Anais, de os primeiros ignorarem a existência, na Universidade de São Paulo, do Museu de Arqueologia e Etnologia, que conta com _um significativo acervo relativo às culturas antigas médio-orientais e clássicas. Como expressou o Prof. Ciro Flamarion Cardoso na ocasião, “a única alternativa seria que os especialistas da área se unissem em algum tipo de associação, com a finalidade de lutarem pela solução institucional (e não individual) dos problemas de sua área de atuação, entre eles o do acesso às fontes primárias e em geral aos instrumentos de pesquisa”.
O primeiro passo nesse sentido teria lugar no ano seguinte quando, por ocasião do 1º Congresso Nacional de Estudos Clássicos, promovido pela Universidade Federal de Minas Gerais, se articulou a fundação da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos, restrita não apenas a historiadores, mas englobando todos os especialistas, estudantes e estudiosos das culturas clássicas e de outras culturas com elas relacionadas. A SBEC foi fundada em 1985, iniciando um trabalho cujos frutos já se fizeram sentir desde logo. No interesse de ampliar os contatos, na busca conjunta de soluções, assumiu, quando da realização do 2ª Simpósio de História Antiga e Medieval, promovido pela Universidade Federal Fluminense, a organização do evento seguinte. Para isso, contou imediatamente com a colaboração do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais, o que tornou possível a realização, em Belo Horizonte, do programa, cujos anais constituem o corpo do presente número especial da Revista do Departamento de História.
O balanço dos acontecimentos dos cinco últimos anos pode, de fato, fazer renascer a esperança. De um lado, está em processo o almejado repensar o papel da História Antiga e Medieval no Brasil, graças aos encontros periódicos dos que atuam nessas áreas e ao contato permanente proporcionado por instituições como a SBEC. Por outro lado, como conseqüência dessa mesma articulação, os órgãos de fomento à pesquisa têm dado apoio efetivo a projetos do setor, tendo sido criados mesmo programas emergenciais, como o patrocinado pela CA· PES. Finalmente, a exemplo do que aconteceu no campo das ciências da Antigüidade, formou-se e organizou-se, durante o último Simpósio, a Sociedade Brasileira de Estudos Medievais e Renascentistas. Tudo isso tem levado a uma paulatina recuperação do espaço dos estudos antigos e medievais no contexto da comunidade científica nacional, sob a égide do debate e da avaliação permanentes, requisitos indispensáveis para o desenvolvimento de trabalhos deveras sérios e cuja contribuição seja efetivamente relevante no contexto da produção não apenas brasileira, mas internacional.
Há ainda um longo caminho pela frente. O perfil de um encontro abrangente como o 3ª Simpósio constitui um retrato do que já se obteve e do que resta por conquistar. As disparidades regionais são grandes. É urgente a questão do ensino básico e médio. A situação da transmissão e da produção de conhecimento nas Universidades exige uma ação decidida e continua. O problema da formação de profissionais competentes não pode ser descurado. Não se trata, contudo, de uma avaliação pessimista. O sentimento generalizado é de que existe um largo caminho a ser percorrido, mas que o percurso é viável. Mas ainda: de que tal percurso não poderá ser vencido isoladamente por pessoas ou instituições, mas depende de um esforço conjunto capaz de dar sentido e perenidade às realizações das pessoas e instituições. Trata-se de criar tradição de trabalho científico, de fazer escola, de caracterizar um tipo de contribuição brasileira para as ciências da Antigüidade e da Idade Média sem bairrismos, sem concessões no que respeita à qualidade e sem perda da perspectiva crítica que, felizmente, vem animando esse repensar de que o presente volume dá uma mostra.
Jacyntho Lins Brandão – Universidade Federal de Minas Gerais
BRANDÃO, Jacyntho Lins. Editorial. Varia História, Belo Horizonte, v.4, n.7, set., 1988. Acessar publicação original [DR]
Escravismo / Varia História / 1988
Varia Historia | UFMG | 1985
A Varia Historia (Belo Horizonte, 1985-) foi fundada como Revista do Departamento de História , da Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil. Em 1993, após consolidar sua importância no meio acadêmico brasileiro, a revista lançou uma nova era, com o objetivo de ampliar seu público e melhorar sua qualidade, com um novo título.
Varia Historia é uma expressão latina pela qual desejamos afirmar nossa revista como veículo para a diversidade e a variedade da historiografia contemporânea. Desde 2007, a revista é admitida pelo SciELO e vem alcançando progressivamente destaque internacional. Questões anteriores podem ser acessadas no site http://www.variahistoria.org/issues
Periodicidade quadrimestral.
Acesso livre.
ISSN 0011-5258 (Impressa)
ISSN 1678-4588 (Online)
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