Posts com a Tag ‘Vale do Paraíba’
Geografia da escravidão no Vale do Paraíba cafeeiro: Bananal 1850-1888 | Mrco Aurélio dos Santos
Geografia da escravidão no Vale do Paraíba cafeeiro: Bananal, 1850-1888, do historiador Marco Aurélio dos Santos, é mais uma das recentes contribuições para a historiografia brasileira que estuda a escravidão. Originário da tese de doutorado do autor, defendida no ano de 2014 no Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo, o trabalho revisita temas clássicos do debate acerca do passado escravista brasileiro. Autonomia escrava, roças cultivadas pelos cativos, formação de comunidades solidárias que uniam escravizados na luta contra as agruras do cativeiro e, em sentido mais geral, a oposição entre possibilidades e constrangimentos estruturais para a agência escrava são alguns dos aspectos retomados pelo historiador e que perpassam o texto.
O município de Bananal já foi bastante estudado, visto que se constituiu em um dos principais produtores de café do Brasil das primeiras décadas do século XIX.[1] No decênio de 1850 a localidade passou a ser a maior produtora de café da província de São Paulo, tendo alcançado o ápice de sua produção na década seguinte. A participação dos escravizados na composição total da população da localidade foi a maior entre os principais municípios do Vale do Paraíba Paulista, alcançando percentual de 53% (p. 35-37). Dessa forma, a chegada da rubiácea na região alterou profundamente a demografia da localidade. As relações sociais e políticas, pautadas pelas assimetrias características do escravismo, também sofreram mudanças drásticas em curto espaço de tempo. Isso sem mencionar toda a carga cultural trazida pelas levas de africanos introduzidos abruptamente na região via tráfico internacional ou interno de escravos.
O recorte cronológico privilegiado pelo autor é outro ponto bastante recorrente na historiografia da escravidão, na medida em que suas balizas marcam dois momentos centrais do passado escravista brasileiro. O livro aborda o intervalo temporal compreendido entre o final do tráfico internacional de escravos (1850) e o colapso da escravidão no Brasil (1888).
Se os pontos acima destacados, recortes geográfico e cronológico, não são propriamente inovadores, Marco Aurélio dos Santos agrega ao debate sobre escravidão e resistência cativa o estudo do elemento espaço. Mais precisamente, o autor estuda a espacialidade das fazendas cafeeiras escravistas. Por espacialidade entende a soma da cultura material (espaço material), das relações sociais (espaço social) e das interpretações e apropriações dos espaços (espaço cognitivo). (p. 26-28).
Subsidiado pela concepção acima, o argumento central que o autor sustenta é que, a um só tempo, o espaço agrário das zonas de produção cafeeira constituiu-se tanto em instrumento de dominação senhorial como em estratégia para resistência escrava. No primeiro sentido os senhores escravistas pensaram e utilizaram a espacialidade como mecanismo de imposição e de facilitação da ordem. No segundo viés os espaços foram ressignificados pelos cativos, que fizeram usos alternativos diferentes daqueles para os quais foram projetados. É fundamental para o entendimento do argumento a concepção, explicitada desde a introdução do trabalho e frequentemente retomada pelo autor, de que os espaços não são estáticos nem neutros. Muito pelo contrário, ganham sentido e significado por meio dos usos que os seres humanos fazem deles. Dessa forma, a espacialidade é entendida como somatória dos diversos espaços e como campo de ação. No caso em questão das fazendas de produção cafeeira de Bananal, puderam servir tanto para dominar quanto para resistir, a depender das intencionalidades dos indivíduos que atuaram e que interagiram com os espaços (p.21-28).
Marco Aurélio dos Santos construiu seu objeto de pesquisa proposto – a utilização plural dos espaços agrários de Bananal – primordialmente por via de uma série de processos criminais que envolveram cativos, independentemente da forma como apareceram: réus, vítimas, informantes ou testemunhas. Foram utilizados 146 processos distribuídos de forma desigual pelas décadas contempladas, com prejuízo para o decênio 1850, com apenas 4 processos.[2] Embora tenha trabalhado com documentação criminal, os crimes propriamente ditos não foram o aspecto central objeto da atenção do autor. A leitura e análise das fontes focou a interação dos personagens com a espacialidade: “A criminalidade de escravos e homens livres terá interesse apenas circunstancial. Partindo do par de conceitos controle/resistência, realizou-se uma leitura das fontes documentais que priorizou a análise da ação dos sujeitos no espaço” (p. 24).
Geografia da Escravidão está organizado em 3 capítulos, muito bem demarcados e antecedidos por uma consistente introdução na qual o autor apresenta e discute seus pressupostos teóricos, suas fontes e metodologia, com as ressalvas feitas acima, seus objetivos e argumentos centrais e específicos. Finaliza a introdução um breve histórico da localidade de Bananal no período selecionado, justificando os recortes temporais e espaciais da pesquisa.
No primeiro capítulo Marco Aurélio dos Santos se dedica ao estudo da espacialidade pelo viés dos proprietários escravistas, a geografia senhorial. Toda a constituição da arquitetura das fazendas cafeiculturas fora pensada com o intuito de favorecer o controle, a ordem, a otimização da produção, a fiscalização e a redução da mobilidade dos cativos. O livro traz no capítulo imagens e fotografias que contribuem para a argumentação do autor. Via de regra, as fazendas eram projetadas em quadriláteros funcionais que objetivavam o controle sobre o interior do quadrado. Todos os edifícios (senzalas, casas de vivenda e espaços de armazenamento e beneficiamento da produção) ficavam dispostos em quadra. Os demais espaços que as fazendas continham também seguiam o mesmo propósito de controle e disciplina: a enfermaria sempre trancada e de acesso restrito, o portão da fazenda que delimitava o espaço de mobilidade dos escravizados, o sino que disciplinava o tempo, as roupas que caracterizavam a condição cativa, os investimentos dos senhores sobre o corpo dos escravos (ferros no pescoço, por exemplo) contribuíram para a composição da geografia senhorial. O autor argumenta ainda que nos espaços públicos fora das fazendas, a movimentação e o tempo dos escravos eram disciplinados pelos Códigos de Posturas Municipais. A mecânica do funcionamento de todo este aparato foi percebida nos processos criminais utilizados.
No segundo capítulo, Marco Aurélio dos Santos destaca a noção de vizinhança como espaço social paulatinamente construído e como ação social articulada em espaço mais amplo, para além das fazendas. Importante também a abordagem ampliada sobre as redes de relacionamentos constituídas pelos escravizados. Durante muito tempo vistas pela historiografia como sinônimo de solidariedade, Marco Aurélio dos Santos amplia o olhar sobre as redes de relacionamentos entre os escravos. A solidariedade poderia ser apenas uma das possibilidades. No entanto, não raramente, as redes congregavam elementos contraditórios e foram também potencialmente conflituosas. O autor cita eventos que ilustram as possibilidades de mobilidade dos escravos, algumas consentidas pelos senhores, outras não. Constituíam assim redes de relacionamentos com escravizados de outros plantéis, passavam por caminhos que cruzavam outras fazendas e se relacionavam com homens livres, alforriados, comerciantes e demais personagens do mundo agrário e urbano da localidade de Bananal no período analisado.
No último capítulo de Geografia da Escravidão, Marco Aurélio dos Santos lança mão de forma mais abundante da documentação para estudar a “geografia dos escravos”, composta de usos alternativos dos espaços de plantação e do tempo. São vários os casos relatados de escravos que se apropriaram de uma espacialidade aparentemente hostil para encontrar alternativas para suavizar, resistir e até mesmo questionar a condição servil. Bastante elucidativo é o caso do escravo Constantino, cativo de Braz Barboza da Silva. Constantino foi libertado pelo Fundo de Emancipação em 1883. Porém, o senhor omitiu-lhe a informação. O detalhe interessante é que Constantino tinha mobilidade consentida para fora dos limites da fazenda para realizar tarefas demandas por seu senhor. Em uma dessas andanças ficou sabendo da própria ao entrar em contato com um indivíduo livre. O caso exemplifica uma das formas de lidar com a espacialidade projetada para controle e disciplina. Nas palavras do autor “Malgrado o funcionamento rotineiro da mecânica do poder senhorial, foi possível perceber que os escravos construíram uma geografia própria a partir dos conhecimentos de suas movimentações autorizadas para além do espaço de plantação” (p.30). O capítulo ainda aborda as fugas do cativeiro, definindo-as como o momento mais emblemático dos usos alternativos dos espaços de plantação. Não obstante a eficácia da geografia senhorial por todos os seus aparatos disciplinares, o capítulo demonstra claramente que os recursos para controlar e disciplinar os cativos não foram suficientes para conter movimentações e usos alternativos pelos próprios cativos.
Talvez caibam duas ponderações sobre a forma como Marco Aurélio dos Santos apresenta as fontes selecionadas. A primeira, de ordem metodológica e a segunda, de estética. A documentação utilizada não é alvo de uma apreciação crítica, visto que o autor não discute seus limites e possibilidades. Algumas reflexões seriam pertinentes. Por exemplo: quais os contextos de produção da documentação? Os escravos falam por si mesmo ou têm representantes? Quem eles seriam e quais suas intencionalidades? Em que medida tomar a utilização da espacialidade por meio dos processos criminais é representativo do cenário que o autor buscou retratar? Trazer para o texto essas e outras questões, que muito provavelmente acometeram o autor em algum momento da pesquisa, não invalidariam de forma nenhuma os resultados do trabalho. Somente lançariam luz sobre os limites e as possibilidades que o historiador encontra na relação com o passado e com seu objeto de pesquisa, além de esclarecer os métodos empregados.
Outra ponderação importante diz respeito à organização do trabalho. A forma como Marco Aurélio dos Santos optou por estruturar a narrativa deixa os capítulos compartimentados, talvez excessivamente esquemáticos. As partes acabaram por ser tornar demasiadamente estanques. O primeiro capítulo trata da espacialidade do ponto de vista senhorial, ao passo que o terceiro o faz da perspectiva dos cativos. Caso o autor tivesse feito uma opção mais dialógica, o texto se tornaria mais fluído, dinâmico e, principalmente, mais condizente com a realidade dialética que se propôs abordar, visto que os embates entre a geografia senhorial e a geografia escrava se davam de forma imbricada e emaranhada, não em tempos e formas separadas. Por mais que tenha sido uma opção didática perfeitamente compreensível, a organização do livro torna os capítulos 1 e 3 completamente independentes um do outro.
Um último ponto que causa estranheza no texto de Marco Aurélio dos Santos é a ausência de uma discussão que tem sido bastante recorrente e profícua entre os pesquisadores da escravidão que tomam por base o trabalho de Dale Tomich.[3] Este autor considera que a escravidão e o tráfico atlântico do século XIX não foram meras continuidades dos séculos anteriores. Nos Oitocentos assumiram características diversas, constituindo na verdade uma Segunda Escravidão. O trabalho cativo teria se reconfigurado de modo ainda mais potente, em alinhamento com a nova fase de desenvolvimento da economia mundial, sob égide da hegemonia britânica. Algumas das características apontadas por Tomich nessa nova fase das relações escravistas guardam íntima relação com o objeto de pesquisa proposto em Geografia da Escravidão. Entre outros elementos, a dinâmica peculiar do século XIX foi trazida pela expansão de zonas produtoras de artigos tropicais que tinham elevada e crescente demanda nos países centrais da Europa e nos EUA: o café (com grande participação da produção brasileira), o algodão e o açúcar. Ao negligenciar estranhamente esta discussão, visto que o autor dialoga frequentemente com historiadores que levam em conta as formulações de Tomich [4], o livro deixa de incorporar e conectar seu objeto de pesquisa com dinâmicas mais amplas da política e das relações internacionais, exercício recente e profícuo entre os pesquisadores da escravidão.
No entanto, transcorridas as páginas de Geografia da Escravidão, fica a certeza de que o autor cumpriu muito bem a árdua tarefa de trazer novos e originais elementos para um dos mais ricos debates da historiografia brasileira.
Notas
1. Marco Aurélio dos Santos dialoga com vários trabalhos sobre a localidade. A título de exemplo da produção historiográfica que privilegiou o recorte espacial de Bananal, somente no âmbito da história demográfica dois importantes trabalhos que abordaram a localidade em diferentes momentos do desenvolvimento da lavoura cafeeira foram: MOTTA, José Flávio. Corpos escravos, vontades livres: posse de cativos e família escrava no Brasil (1801-1829). São Paulo: Fapesp, Annablume, 1999. MORENO, Breno Aparecido Servidone. Demografia e trabalho escravo nas propriedades rurais cafeeiras de Bananal, 1830-1860. Dissertação (Mestrado em História Social) FFLCH/USP, São Paulo, 2013.
2. Conforme mencionado, a série de processos criminais constitui a fonte principal da pesquisa. De forma episódica foram utilizados pelo autor outras fontes: 27 inventários post-mortem, Códigos de Postura da Câmara Municipal de Bananal (1865 e 1886), livro do Fundo para Emancipação de escravos, ofícios diversos, Livro de Casamento de escravos, periódicos, relatos de viajante etc.
3. Embora o autor cite entre suas referências bibliográficas um dos trabalhos de Tomich na versão em língua inglesa e mencione o conceito na página 19 da introdução, a discussão sobre a Segunda Escravidão está ausente do texto, bem como a referência a versão em português do livro do autor. TOMICH, Dale W. Pelo Prisma da Escravidão: Trabalho, Capital e Economia Mundial. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2011.
4. Por exemplo: BERBEL, M., MARQUESE, R. B. e PARRON, T. Escravidão e política: Brasil e Cuba, 1790-1850. São Paulo: Hucitec, 2011. MARQUESE, R. B.; SALLES, (orgs.). Escravidão e Capitalismo Histórico no Século XIX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.
Referências
BERBEL, M., MARQUESE, R. B. e PARRON, T. Escravidão e política: Brasil e Cuba, 1790-1850. São Paulo: Hucitec, 2011. MARQUESE, R; B., SALLES, (orgs.). Escravidão e Capitalismo Histórico no Século XIX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.
MORENO, Breno Aparecido Servidone. Demografia e trabalho escravo nas propriedades rurais cafeeiras de Bananal,1830-1860. Dissertação (Mestrado em História Social) – FFLCH/USP, São Paulo, 2013.
MOTTA, José Flávio. Corpos escravos, vontades livres: posse de cativos e família escrava no Brasil (1801-1829). São Paulo: Fapesp, Annablume, 1999.
TOMICH, Dale W. Pelo Prisma da Escravidão: Trabalho, Capital e Economia Mundial. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2011.
Fernando Antonio Alves da Costa – Doutor em História Econômica pelo PPGHE da FFLCH-USP. E-mail: faacosta@usp.br
SANTOS, Marco Aurélio dos. Geografia da escravidão no Vale do Paraíba cafeeiro: Bananal, 1850-1888. São Paulo: Alameda Editorial, 2016. Resenha de: COSTA, Fernando Antonio Alves da. A Resistência escrava revisitada: a espacialidade como elemento central. Almanack, Guarulhos, n.18, p. 517-524, jan./abr., 2018. Acessar publicação original [DR]
Barões do café e sistema agrário escravista: Paraíba do Sul, Rio de Janeiro (1830-1888) – FRAGOSO (Topoi)
FRAGOSO, João. Barões do café e sistema agrário escravista: Paraíba do Sul, Rio de Janeiro (1830-1888). Rio de Janeiro: 7Letras, 2013. Resenha de: SANTOS, Marco Aurélio; MORENO, Breno Aparecido Servidone. A formação da economia cafeeira do vale do Paraíba. Topoi v.18 n.34 Rio de Janeiro Jan./Apr. 2017.
Nos últimos anos, as pesquisas feitas nas áreas de História Social e História Econômica vêm deslindando a complexa realidade econômica, política e social de diversas localidades brasileiras. Historiadores com diferentes abordagens, favorecidos por uma ampliação do conjunto documental acessível à pesquisa, estão conseguindo descortinar a significativa complexidade brasileira. O livro Barões do café e sistema agrário escravista: Paraíba do Sul, Rio de Janeiro (1830-1888), do historiador João Fragoso, insere-se nesse amplo corpus bibliográfico que vem, a cada ano que passa, enriquecendo a compreensão de diversos municípios do país. Em linhas gerais, Barões do café é uma versão resumida dos capítulos de história agrária de sua tese de doutorado, defendida em 1990,1 e procura investigar a estrutura e a hierarquia no sistema agrário escravista-exportador, bem como a reprodução desse sistema no município de Paraíba do Sul, situado no médio Vale do Paraíba fluminense.
João Fragoso inicia o capítulo 1, “Estrutura e hierarquia no sistema agrário escravista-exportador”, lançando um conceito-chave: o de “recriação de sistemas agrários escravistas”. Segundo seu ponto de vista, esse conceito apresenta três significados. A citação, apesar de longa, merece ser reproduzida na íntegra, pois mostra o que pode ser considerado como sendo a tese central do autor. Sendo assim, “a noção de recriação de sistemas agrários escravistas {…}”
– diz respeito à continuidade de uma sociedade não capitalista, onde (sic) as relações sociais de produção identificam-se com relações sociais de subordinação, os fatores de produção (inclusive a mão de obra) se apresentam enquanto mercadorias e se verifica a hegemonia do capital mercantil (fenômeno que se traduz na preponderância da elite de comerciantes de grosso trato sobre a hierarquia econômica colonial);
– essa recriação gera demanda para as produções voltadas para o mercado interno e, com isso, permite a recorrência da formação econômico-social escravista-colonial;
– e, por último, tal movimento reitera, na fronteira, os traços gerais da sociedade escravista: a produção de mercadorias, uma hierarquia econômico-social diferenciada e a hegemonia do capital mercantil. (p. 43)
Um pouco adiante, Fragoso escreve que, nessa economia de Paraíba do Sul,
as relações de produção se confundem com as de poder, ou melhor, cuja forma de extorsão do sobretrabalho depende de elementos extraeconômicos: o trabalhador direto é homem de outro homem. Entretanto, esse fato não causa o desvio do excedente da economia. Ao contrário de outras sociedades pré-capitalistas, a recorrência das relações de poder (e, com elas, as de produção) está presa aqui ao retorno do sobretrabalho para a produção por meio dos senhores de homens. (p. 43-44)
Essa sociedade, porém, tem especificidades: “a reprodução ampliada adquire um sentido particular que tem como resultado a reiteração e o aumento do poder, sem que isso signifique que tal economia se fundamente numa lógica do lucro pelo lucro” (p. 44).
Como já foi dito, esse início de capítulo apresenta a base conceitual que dá suporte ao estudo sobre Paraíba do Sul. Nesse sentido, partindo do que Fragoso escreveu, é possível tirar as seguintes conclusões sobre o “sistema agrário escravista-exportador”: (a) esse é um sistema de agricultura mercantil-escravista; (b) o sistema baseia-se na monocultura, na agricultura extensiva e no baixo nível técnico; (c) existe a produção de lucro, com a ressalva já apontada; (d) o sistema agrário funciona numa sociedade pré-capitalista/não capitalista (os dois conceitos são usados ao longo do trabalho); (e) fatores de produção como a mão de obra “se apresentam como mercadorias”; (f) o capital mercantil é hegemônico e, por fim (g) existe produção de mercadorias (café entre outras).
Uma primeira observação a ser feita é a de que o autor associa dois conceitos que são significativamente diferentes: o de “sociedade pré-capitalista” (p. 44) e o de “sociedade não capitalista” (p. 43). Fragoso usa diversas variantes desses dois conceitos. Algumas delas são: “estrutura econômica pré-capitalista” (p. 45), “agricultura pré-capitalista” (p. 57), “mercado pré-capitalista” (p. 57) e “mercado pré-industrial” (p. 58). Todas essas classificações seriam características do “sistema agrário escravista-exportador”.
Para Fragoso, Paraíba do Sul foi uma área de “agricultura pré-capitalista altamente especializada, cuja reprodução, tanto no que concerne à geração de suas rendas como o seu abastecimento, passa pelo mercado”. Esse é mais um trecho que confirma que se trata, segundo o autor, de uma sociedade pré-capitalista produtora de mercadorias. Afinal, se as rendas e o abastecimento passam pelo mercado, então o que a sociedade produz são mercadorias para abastecer a fazenda e para garantir sua sobrevivência (reiteração/reprodução, como talvez preferisse escrever o autor).
Ora, em primeiro lugar deve-se salientar que a caracterização de Paraíba do Sul como uma sociedade pré-capitalista mostra um vínculo do autor com o trabalho de Eugene D. Genovese, The Political Economy of Slavery: Studies in the Economy and Society of the Slave South.2 Por outro lado, fica claro que muitas das caracterizações feitas por Fragoso carecem de rigor conceitual. Deve-se sublinhar, de imediato, que existe uma diferença abissal entre os conceitos de “sociedade pré-capitalista” e “sociedade não capitalista”. O prefixo “pré” significa anterioridade e um momento de transição entre uma sociedade, digamos, colonial, e outra capitalista. Já afirmar uma sociedade “não capitalista” significa conceber outro sistema ou modo de produção. Como o autor não conceitua essas expressões, é impossível associar o conceito de “sociedade não capitalista” com o de “sociedade pré-capitalista” em Paraíba do Sul. O conceito “sociedade não capitalista” permite pensar que a “sociedade em estudo {no caso Paraíba do Sul} não é capitalista”. O adjunto adverbial de negação “não” faz supor a existência de outro modo de produção. De qualquer modo, ao associar “sociedade não capitalista” e “sociedade pré-capitalista”, tem-se uma confusão conceitual que dificulta a compreensão da agricultura cafeeiro-escravista de Paraíba do Sul. Essa falta de rigor conceitual marca a obra e chama facilmente a atenção do leitor.3
De modo geral, João Fragoso é pouco cuidadoso nos procedimentos metodológicos empregados em Barões do café. O autor utilizou “mais de 400” inventários post mortem e 2.223 escrituras públicas de compra-venda e hipotecas entre os anos de 1830 e 1885 (p. 20). A partir dos inventários, os agentes coevos foram distribuídos em uma hierarquia econômica composta por três grandes grupos de fortunas (em libras esterlinas). Quanto ao corte cronológico, Fragoso não justifica a pertinência de dividi-lo em subperíodos (1830-1840; 1845-1850; 1855-1860; 1861-1865; 1870-1875; 1880-1885) e nem a razão pelo qual certos quinquênios foram excluídos da amostra. Da mesma forma, não apresenta o método de conversão do mil-réis em libras esterlinas. Por fim, não esclarece os motivos pelos quais não utilizou em todos os quadros, gráficos e tabelas que contemplam dados extraídos dos inventários, a totalidade de processos de sua amostra inicial (os 462 inventários, como se constata no Quadro 16, no capítulo 1).4 Por exemplo, o Quadro 3, na página 48, apresenta os “investimentos nas fazendas de café”. Nesse quadro, o autor utiliza-se de 224 inventários, ou seja, cerca de 49% do total pesquisado. O mesmo número de inventários (224) se repete nos Quadros 14 e 15, às páginas 70 a 72.
Deve-se destacar que, em alguns casos, a amostra de inventários é tão pequena que pode até mesmo comprometer a validade das análises de João Fragoso. Um bom exemplo do que estamos apontando pode ser observado no Quadro 24 (p. 122), que exibe a origem dos créditos dos grupos de fortuna em Paraíba do Sul entre 1840 e 1880. Nota-se que o autor utilizou pouquíssimos inventários (12 para o período 1840-1850, 33 para 1851-1871 e 10 entre 1871-1880) para determinar se o crédito era oriundo de Paraíba do Sul ou do Rio de Janeiro.
João Fragoso reconhece que a metodologia adotada em sua pesquisa tem “uma série de problemas” (p. 22). Contudo, malgrado essa observação, o autor acredita ter alcançado o objetivo proposto ao perceber as “mudanças de uma dada hierarquia social, e a vida de seus agentes, no tempo, e portanto em meio às flutuações econômicas da sociedade” (p. 22). No entanto, seu livro não apresenta a dinâmica desse sistema na formação histórica do Brasil e não leva em conta os processos globais mais amplos da economia-mundo capitalista. Além disso, Fragoso afirma que o sistema agrário de Paraíba do Sul conserva “uma certa autonomia das flutuações da economia escravista-colonial frente às conjunturas do mercado internacional” (p. 65). Ora, sabe-se que essa autonomia nunca existiu. Esse assunto é objeto de importante debate historiográfico pelo menos desde a publicação de O arcaísmo como projeto.5
Trabalhos recentes em inventários questionam outra tese presente em Homens de grossa aventura6 e n’O arcaísmo como projeto e reproduzida em Barões do café. A noção segundo a qual a história do sistema agrário escravista é resultado de um processo global de reprodução que foi “originado de uma acumulação previamente realizada no comércio” (p. 43) é uma hipótese que pode servir para alguns casos específicos. Contudo, essa hipótese não deve ser generalizada para as demais regiões do médio Vale do Paraíba, coração da cafeicultura escravista do Oitocentos. Em Bananal – e em outras localidades do Vale do Paraíba paulista7 – a montagem da cafeicultura escravista obedeceu a outros mecanismos. A implantação e a disseminação da cultura cafeeira provocaram intensas mudanças na composição econômica dos domicílios. Os fogos que, em sua maioria, dedicavam-se à produção de mantimentos (milho, arroz, feijão e farinha de mandioca), sobretudo para a própria subsistência, no início do século XIX, logo se converteram em propriedades rurais voltadas à exportação de café para o mercado mundial. Os agricultores que não dispunham de capital para ingressar na cafeicultura adotaram a estratégia de cultivar milho e feijão entre as fileiras dos arbustos de café recém-plantados. Com isso, eles foram se deslocando paulatinamente da produção de gêneros para a atividade cafeeira, sem abdicar do cultivo de víveres para o autoconsumo.8
Por fim, cabe salientar que, apesar de questionar alguns procedimentos metodológicos utilizados para compor o livro Barões do café, Fragoso reproduz uma série de argumentos de seus trabalhos anteriores, como a noção de “autonomia”. Esses argumentos, já amplamente debatidos pela historiografia, apontam para outra direção, diferente da sustentada pelo autor. De qualquer modo, cabe salientar o esforço de Fragoso em olhar para as elites e suas estratégias empresariais e tentar compreender sua atuação no contexto do desenvolvimento da economia cafeeiro-escravista do século XIX. Malgrado as polêmicas em torno de suas teses, sua empreitada fomenta o debate historiográfico e o conhecimento da formação econômica e do Estado nacional brasileiro no Oitocentos.
1FRAGOSO, João L. R. Comerciantes, fazendeiros e formas de acumulação em uma economia escravista-exportadora no Rio de Janeiro: 1790-1888. Tese (Doutorado em História Social) — PPHS-UFF, Rio de Janeiro, 1990.
2Um exemplo desse vínculo pode ser lido no seguinte trecho: “The planters were not mere capitalists; they were precapitalist, quasi-aristocratic landowners who had to adjust their economy and ways of thinking to a capitalist world market. Their society, in its spirit and fundamental direction, represented the antithesis of capitalism, however many compromises it had to make”. GENOVESE, Eugene D. The Political Economy of Slavery: Studies in the Economy and Society of the Slave South. Middletown: Wesleyan University Press, 1989, p. 23. Para uma avaliação crítica da interpretação de Genovese, ver TOMICH, Dale W. Pelo prisma da escravidão: trabalho, capital e economia mundial. São Paulo: Edusp, 2011, p. 28-32.
3O conceito de “sociedade pré-capitalista”, com o prefixo “pré” compreendido como um momento de transição, está muito bem caracterizado no “Debate Brenner” e no debate sobre a transição do feudalismo para o capitalismo. Não é objetivo desta resenha desenvolver essa questão do conceito de sociedade pré-capitalista. Contudo, vale a pena ler a definição de R. H. Hilton para “pré-capitalista” em HILTON, R. H. Introduction. In: ASTON, T. H. & PHILPIN C. H. E. The Brenner Debate: Agrarian Class Structure and Economic Development in Pre-Industrial Europe. Cambridge: Cambridge University Press, 1985, p. 5. Ver também a definição apresentada por Robert Brenner em BRENNER, Robert. The Origins of Capitalist Development: a Critique of Neo-Smithian Marxism. New Left Review, Londres, n. 104, 1977, p. 37. Mais ainda, vale a pena considerar a proximidade entre a “sociedade pré-capitalista de Paraíba do Sul”, conforme caracterização de Fragoso (ver especialmente os itens “c”, “f” e “g” citados anteriormente), e o conceito usado por Paul M. Sweezy de “economia pré-capitalista de produção de mercadorias”. Esse conceito foi usado por Sweezy para entender “o sistema que prevaleceu na Europa ocidental durante os séculos XV e XVI”. Ver SWEEZY, Paul. O debate sobre a transição: uma crítica. In: SWEEZY, Paul et al. A transição do feudalismo para o capitalismo: um debate. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 60-63. O artigo citado de Brenner é uma apreciação crítica da caracterização de Sweezy sobre o período de transição e sobre uma sociedade que, segundo o entendimento do historiador norte-americano crítico de Maurice Dobb, não era nem feudal nem capitalista nos séculos XV e XVI.
4Apenas na confecção do Quadro 16 (p. 78), que apresenta dados referentes à presença de fortunas no mercado de escrituras de Paraíba do Sul, Fragoso valeu-se de todos os inventários de sua amostragem.
5A tese segundo a qual a economia colonial brasileira gozava de “autonomia” frente à economia global já havia sido desenvolvida pelo autor em O arcaísmo como projeto, redigido em parceria com Manolo Florentino. FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto. Mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia. Rio de Janeiro, c. 1790-c. 1840. 1. ed., 1993. Ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. Vale notar que esta tese também está presente em: FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). 1. ed., 1997. São Paulo: Companhia das Letras, 2010; SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. Na encruzilhada do império: hierarquias sociais e conjunturas econômicas no Rio de Janeiro (c. 1650-c. 1750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003. Para um contraponto ver, entre outros, os seguintes estudos: MARQUESE, Rafael; TOMICH, Dale. O Vale do Paraíba escravista e a formação do mercado mundial do café no século XIX. In: SALLES, Ricardo; GRINBERG, Keila (Org.). O Brasil imperial (1808-1889). Volume II (1831-1871). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 345-347. TOMICH, Dale. A “Segunda Escravidão”. In:______. Pelo prisma da escravidão: trabalho, capital e economia mundial. São Paulo: Edusp, 2011, p. 81-97. MARQUESE, Rafael. As desventuras de um conceito: capitalismo histórico e a historiografia sobre a escravidão brasileira. Revista de História (USP), v. 169, p. 223-253, 2013. MARIUTTI, Eduardo; NOGUERÓL, Luiz Paulo; DANIELI NETO, Mário. Mercado interno colonial e grau de autonomia: crítica às propostas de João Luís Fragoso e Manolo Florentino. Estudos Econômicos: IPE-USP, São Paulo, v. 31, n. 2, p. 369-393, abr./jun. 2001. MORENO, Breno Aparecido Servidone. A formação da cafeicultura em Bananal, 1790-1830. In: MUAZE, Mariana; SALLES, Ricardo (Org.). O Vale do Paraíba e o Império do Brasil nos quadros da Segunda Escravidão. Rio de Janeiro: 7Letras, 2015, p. 328-350.
6Cf. FRAGOSO, João. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992.
7Cf. MOTTA, José Flávio. Corpos escravos, vontades livres: estrutura da posse de cativos e família escrava em um núcleo cafeeiro (Bananal, 1801-1829). São Paulo: Annablume/Fapesp, 1999. LUNA, Francisco; KLEIN, Herbert. Evolução da sociedade e economia escravista de São Paulo, de 1750 a 1850. São Paulo: Edusp, 2005.
8Cf. MORENO, Breno Aparecido Servidone. A formação da cafeicultura em Bananal, 1790-1830, op. cit. Ver também o livro de Maria Luíza Marcílio, resultado de sua tese de livre-docência apresentada junto ao Departamento de História da Universidade de São Paulo em 1974. Nessa pesquisa, Marcílio procurou investigar como “a infraestrutura ou o suporte humano, material e social sobre o qual se instituiu a economia cafeeira teve formação anterior a ela e não apenas concomitante”. MARCÍLIO, Maria Luiza. Crescimento demográfico e evolução agrária paulista: 1700-1836. São Paulo: Hucitec/Edusp, 2000, p. 16.
Marco Aurélio dos Santos – Doutor em História Social pela FFLCH-USP, Universidade de São Paulo – São Paulo, SP, Brasil. E-mail: marcoholtz@uol.com.br.
Breno Aparecido Servidone Moreno – Centro de Estudos Migratórios – São Paulo, SP, Brasil. Mestre e doutorando em História Social pela FFLCH-USP. E-mail: berenomor@yahoo.com.br.