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Palavras viajeiras: circulação do conhecimento pedagógico em manuais escolares (Brasil / Portugal, de meados do século XIX a meados do século XX) / Revista Brasileira de História da Educação / 2013
Os textos aqui reunidos nasceram de múltiplos encontros que tematizam, particularizam e formalizam processos de circulação de ideias educacionais. Seus autores participam do Projeto de Pesquisa “História da Escola Primária no Brasil: investigação em perspectiva comparada em âmbito nacional (1930-1961)”, que fomentou a confluência de análises, o compartilhamento de fontes documentais e o intercâmbio de pessoas e experiências acadêmicas entre o Brasil e Portugal. Num desses encontros, o IX Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação: Rituais, Espaços & Patrimónios Escolares, realizado em Lisboa em julho de 2012, foram apresentados estudos que atestaram a coerência metodológica e as múltiplas possibilidades interpretativas com um mesmo conjunto de fontes. Daí resultou a presente publicação, cujo intento é apresentar análises de um conjunto de manuais escolares que circularam na Escola Normal brasileira e portuguesa entre meados do século XIX e meados do século XX, a partir de diferentes olhares, reeditando em outra chave o processo original de circulação de ideias entre Brasil e Portugal no qual esses materiais se inserem.
O trabalho foi iniciado por meio do levantamento de estudos (devidamente referenciados nos artigos) que investigaram manuais didáticos publicados nos dois países, cuja listagem serviu de guia para a busca nos seguintes acervos: Biblioteca do Livro Didático da Faculdade de Educação da USP / São Paulo; Biblioteca Nacional / Rio de Janeiro; Biblioteca da Universidade do Estado de Santa Catarina, Biblioteca Nacional / Lisboa; Biblioteca da Escola Superior de Educação / Lisboa e Biblioteca da Casa Pia / Lisboa. Por meio desses procedimentos, foram localizados cerca de dez manuais que, comprovadamente, circularam nos dois países, e foram selecionados aqueles cujo conteúdo abordava a formação profissional docente em maior amplitude (função social da escola primária, métodos e conteúdos de ensino, processos avaliativos, provimento material da escola); excluíram-se, por exemplo, aqueles voltados especificamente para questões próprias da Psicologia. As discussões metodológicas preliminares buscaram estabelecer um corpus empírico que possibilitasse o diálogo entre os diferentes enfoques e evidenciasse a fertilidade das fontes, e, por meio desses procedimentos, foi definido o seguinte conjunto de manuais didáticos: Elementos de Pedagogia, de Affreixo e Freire (1870); Curso Prático de Pedagogia Destinado aos Alunos-Mestres das Escolas Normaes Primarias e aos Instituidores em Exercício, de Daligault (1874); Lições de Pedagogia Geral e de História da Educação, de Pimentel Filho (1875); Lições de Pedologia e Pedagogia Experimental, de Faria de Vasconcelos (1910); Lições de Metodologia, de Fonseca Lage (1920); A arte da leitura, de Mário Gonçalves Viana (1949); e Lições de Pedagogia, de Aquiles Archêro Junior (1955).
Os pesquisadores utilizam diferentes lentes para tecer suas análises, e cada um, segundo sua especialidade de pesquisa, aprofunda aspectos que, juntos, compõem um painel interpretativo sobre o processo de escolarização e seus espaços; a normatização do trabalho docente; os princípios que nortearam a seleção cultural para a escola primária; a constituição de modos e métodos de ensino para realizar os objetivos educacionais; e especificidade que assumem os materiais e o ensino da leitura e da escrita. Todas as análises reiteram a importância dos impressos na consolidação da escola primária portuguesa e brasileira, notadamente no que se refere às prescrições feitas nos manuais escolares que, em trânsito, configuramse como palavras viajeiras.
Nessa perspectiva, o artigo “A função social da escola e a constituição da forma escolar (Brasil e Portugal, 1870-1932)”, de Vera Teresa Valdemarin, contribui para a compreensão da consolidação da forma escolar entre os séculos XIX e XX, pois, nas proposições conceituais e teóricas presentes nos diferentes manuais, não são percebidas alterações na função que a instituição adquiriu nas sociedades modernas. No entanto, houve profundas transformações nos procedimentos pedagógicos, tributários de mudanças científicas, sociais e econômicas ocorridas entre a publicação dos textos. Essa transformações refletem a complexidade da cultura composta por acréscimos, desusos, empréstimos e embates que sofreram alterações mediante o enraizamento em continuidades práticas nas quais o processo de escolarização se ampara.
Vera Lucia Gaspar da Silva, no artigo “Objetos em viagem: discursos pedagógicos acerca do provimento material da escola primária (Brasil e Portugal, 1870 – 1920)”, localiza e analisa nos manuais um conjunto de prescrições indicadoras do provimento material da escola, que levam à identificação de um desenho material para a escola primária brasileira e portuguesa, num importante período de sua expansão: finais do século XX e anos iniciais do século XX. No retrato construído a partir dos discursos dos diferentes pedagogos destacam-se elaborações sobre o espaço físico, sobre os materiais para o ensino e sobre o aparato burocrático. Nesses elementos, observa-se a suavização do caráter prescritivo inicial, que vai sendo matizado por um tom mais “cientificista”; além disso, no cenário escolar esboçado, revelam-se diferentes formas de conduzir os trabalhos e de operar com os objetos num processo não linear, mas construído por meio de movimentos, de idas e vindas e da convivência de diferentes abordagens.
No artigo “O tema dos modos de ensino nos manuais de pedagogia ou em torno de um problema pedagógico”, Carlos Manique da Silva aborda os manuais na perspectiva da produção de um conhecimento científico em educação que se tornou referencial das práticas, qual seja, aquele que diz respeito aos modos de ensino. Nos manuais selecionados, o autor detecta a mudança de uma perspectiva que advoga a homogeneização da população escolar para o tratamento diferenciado do aluno, produzido pelo desenvolvimento das proposições ancoradas na Psicologia. No debate travado entre duas maneiras de conduzir a relação pedagógica explicitam-se aspectos profundos da atividade escolarizada, que dizem respeito à transmissão do conhecimento e à forma como os professores são entendidos na sua identidade profissional.
Rosa Fátima de Souza, no artigo “A formação do cidadão moderno: a seleção cultural para a escola primária nos manuais de Pedagogia (Brasil e Portugal, 1870 – 1920)”, focaliza a organização pedagógica proposta para a escola primária, tendo em vista o objetivo de ensinar muitas crianças ao mesmo tempo. Nos manuais didáticos analisados, evidencia-se a crescente preocupação com a ordenação e a distribuição do conhecimento e do tempo, que passam a ser considerados requisitos para o exercício da docência. Os conteúdos do ensino primário, resultantes de seleção cultural, tornam-se indissociáveis dos programas, da avaliação e da classificação da aprendizagem e dos procedimentos metodológicos e, juntos, atestam a racionalidade que preside a instituição escolar.
“A mão, o cérebro, o coração. Prescrições para a leitura em manuais escolares para o Curso Normal (1940 – 1960 / Brasil-Portugal)”, artigo elaborado por Maria Teresa Santos Cunha, focaliza questões referentes à escolarização da leitura e evidencia como a ação do Estado a transformou num saber escolar. Nesse processo, os manuais produzidos para uso nos cursos de formação de professores assumem função essencial, pois definem programas, comportamentos – concentração e paciência, por exemplo – e, por meio deles, transformam alunos em leitores. Aliado à escrita, o ensino da leitura atribuiu à instituição escolar importância social sem precedentes, investindo, ao mesmo tempo, na qualificação técnica e simbólica do corpo docente.
Além dos diferentes aspectos tematizados em cada um dos artigos, o conjunto dos textos evidencia a fertilidade dos manuais didáticos como documentos históricos. Indissociáveis da expansão da escola pública, esses materiais de uso cotidiano revelam os vínculos dos autores com o campo editorial e com o campo profissional e a construção do discurso pedagógico. A delimitação temporal aqui adotada possibilitou ainda detectar as modificações produzidas nesse discurso, seja pela incorporação de práticas usuais, seja pela divulgação de tendências emergentes; foram atestados também elementos que parecem resistir às mudanças e têm caracterizado a escola como instituição peculiar. Os manuais, enfim, são dispositivos privilegiados para a compreensão dos processos de circulação de ideias: de mão em mão, de país em país, viajam no tempo; estruturam saberes; e, tomados em fragmentos ou na totalidade, possibilitam o aprofundamento do que sabemos sobre o passado e sobre o presente da escola.
Vera Teresa Valdemarin
Vera Lucia Gaspar da Silva
VALDEMARIN, Vera Teresa; SILVA, Vera Lucia Gaspar da. Apresentação. Revista Brasileira de História da Educação. Maringá, v.13, n.3, set. / dez., 2013. Acessar publicação original [DR]