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Jerusalém colonial – VAINFAS (VH)
VAINFAS, Ronaldo. Jerusalém colonial. Judeus portugueses no Brasil holandês. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, 376 p. Resenha de: FEITLER, Bruno. Varia História. Belo Horizonte, v. 28, no. 47, Jan./Jun. 2012.
Nesse livro, que é dos últimos resultados da sua importante produção historiográfica, Ronaldo Vainfas se mantém dentro da temática dos estudos sociorreligiosos, seguindo um veio que iniciou com seu Trópico dos pecados (1989). Vainfas estuda desde então fenômenos vários de desvios religiosos no mundo católico português. Esse prisma na verdade diz muitas vezes mais sobre as instituições e as culturas dominantes do que os estudos a elas diretamente dedicados. Essa história sociológica, voltada para as rupturas e as descontinuidades à la Foucault, e que Vainfas domina com uma extrema sensibilidade e familiaridade, é uma importante contribuição para a compreensão do Brasil colônia e também um estímulo metodológico para os historiadores brasileiros.
Em seu livro, Jerusalém colonial. Judeus portugueses no Brasil holandês, mais do que apenas estudar a estrutura e o funcionamento da comunidade sefaradita local (o que não deixa de fazer), Vainfas continua a tratar daqueles comportamentos e personagens heterodoxos. Contudo, não lhe interessa estudar ritos e cerimônias religiosas, mas sim o comportamento social e os dilemas identitários dos seus personagens, tratando assim de uma questão que não deixa de ser de uma extrema atualidade. Com todos os cuidados necessários, ele abre uma janela para as ligações existentes entre religião, cultura, origem geográfica e identidade no mundo português, no qual esses judeus estavam inseridos muitas vezes com extremo gosto, e a despeito da rejeição que sofriam de parte dos “bons” católicos.
Essa leitura sociológica da (curta) história da comunidade judaico-nordestina (1636-1654) tem assim origem no próprio percurso de Vainfas. Mas ela também deve muito à mais recente produção historiográfica sobre a diáspora sefaradita, como ele claramente frisa desde a sua introdução, sobretudo nos trabalhos de Yosef Kaplan e com seu conceito de “judeu-novo”.
Esses judeus, descendentes daqueles convertidos à força no Portugal de 1497, em seguida estigmatizados pelo epíteto de “cristãos-novos”, sofreriam, por sua origem judaica e por uma vivência católica por vezes secular, “dramas de consciência” (p. 15). Assim, Vainfas faz uma história geral da comunidade judaica do Recife de Israel (Kahal Kadosh Tsur Israel), cuidadosamente reconstituindo o percurso da comunidade mãe de Amsterdã, e retomando de José Antônio Gonsalves de Mello, sua principal inspiração, temas como a importância dos sefaraditas para a economia da empresa comercial da Companhia das Índias Ocidentais no Brasil, concentrando-se na questão identitária. Vainfas intencionalmente quis se manter livre de adotar qualquer conceituação mais ampla de um “espírito judaico” ou sefaradita, como fizeram muitos dos seus predecessores no estudo da diáspora judaico-portuguesa. Ele quer assim evitar reduzir a análise da religiosidade dessas pessoas a algo de unívoco, desviando-se do caminho seguido pelos inquisidores (“Melhor não imitá-los”, p.278), e pondo em causa autores mais recentes como Nathan Wachtel, que defendem a ideia de uma “essência judaica” generalizada dos cristãos-novos ibéricos (p.41). Nosso autor contudo sucumbe, ao meu ver, a uma certa generalização, ao afirmar que “a ambivalência dos judeus novos era, portanto, inerente à identidade cultural – e individual – da maioria deles” (p.75). Mas essa pequena nota não diminui em nada a importância do seu livro. Vainfas aplica ao caso brasileiro, no seu estilo instigante e inconfundível, as mais recentes interpretações historiográficas sobre o judaísmo sefaradita, que até agora permaneceram restritas a limitadas publicações acadêmicas.
Jerusalém colonial também traz novidades. Vainfas revê de modo surpreendente, entre outras questões (a origem recifense do judaísmo de Nova York, a figura do jesuíta Antônio Vieira, as divisões no seio da comunidade judaica, etc.), a personagem de Isaac de Castro Tartas. Preso na Bahia em nome da Inquisição em 1644, e queimado vivo em seguimento ao auto-da-fé lisboeta de 1647, ele foi transformado num verdadeiro mártir do judaísmo pela comunidade de Amsterdã. Vainfas desfaz o mito do erudito e corajoso rapazola que de Recife teria passado a Salvador para proselitizar cristãos-novos, mostrando a trágica indefinição identitária de Isaac.
O autor também consegue, retomando uma documentação de certo modo já surrada, encontrar novas e interessantes leituras da estrutura social da comunidade judaica do Pernambuco holandês. Vainfas mostra que Tsur Israel foi monopolizada por homens vindos da Europa. Ele fala primeiramente de “Uma nova diáspora. Diáspora colonial” para se referir à comunidade pernambucana, tendo em vista a sua intrínseca ligação com a empresa da Companhia das Índias Ocidentais (p.160-161). Mas em seguida mostra que essa colonialidade também pode ser flagrada na preponderância numérica que os “retornados” na Europa tinham sobre os que se tornaram judeus professos no Brasil. Para crescer, a comunidade dependeu sobretudo da imigração. Finalmente, essa preponderância europeia também era social. “Os judeus convertidos no Recife acabaram relegados à condição de judeus de segunda categoria. Judeus incertos. Judeus coloniais” (p.188). É sem dúvida isso que explica que alguns desses judeus-novos tenham escolhido ir para Amsterdã para se fazer circuncidar, em vez de utilizar os serviços dos mohelim locais.1
Já a escolha de uma estrela de seis pontas para ilustrar a capa do livro parece ser um anacronismo editorial, já que a chamada estrela de Davi só se tornou um símbolo especificamente judaico durante o século XVIII, a partir do mundo askenazi.2
Em todo caso, é o trabalho uma grande contribuição aos estudos dos judeus no Brasil, sobretudo em tempos de redefinições identitário-religiosas.
1 Lisboa. Arquivos Nacionais da Torre do Tombo (ANTT). Inquisição de Lisboa (IL). Processo 11562. Processo contra Pedro de Almeida.
2 Ver SCHOLEM, Gershom. L’étoile de David: histoire d’un symbole. In: Le messianisme juif… Paris, 1992, p.367-395. [ Links ]
Bruno Feitler – Departamento de História – Unifesp. Estrada do Caminho Velho, 333. 07252-312. Guarulhos, S.P. feitler@unifesp.br.
Traição: um jesuíta a serviço do Brasil holandês processado pela Inquisição / Ronaldo Vainfas
A chamada microstoria – versão italiana onde nascera este movimento nos anos 1970-80 – já deitou suas raízes no Brasil, definitivamente. Seus defensores, em distintas partes do mundo acadêmico ocidental, nos principais centros científicos de produção em História e nas Ciências Sociais deixaram delineadas as linhas-mestras da arrojada perspectiva da mudança de escala nas análises sociais e da rejeição aos aportes macroanalíticos que se pretendiam unívocos e inflexíveis; enfim, mesmo que de forma variada, a micro-história e seus defensores “se esforçam para dar à experiência dos atores sociais (o ‘cotidiano’ dos historiadores alemães, o ‘vivido’ de seus homólogos italianos) uma significação e uma importância frente ao jogo das estruturas e à eficácia dos processos sociais maciços, anônimos, inconscientes” [2]; que, por muito tempo, pareciam ser os únicos a chamar a atenção dos pesquisadores.
É no âmago dessa discussão, no Brasil, que o trabalho de Ronaldo Vainfas – professor titular do departamento de História da Universidade Federal Fluminense – com o sugestivo título “Traição: um jesuíta a serviço do Brasil holandês processado pela Inquisição” deve ser apreciado. Aliás, este autor já havia deixado claro, em momentos anteriores, a sua simpatia e abertura teórico-metodológica para o microssocial [3].
Traição desvenda a história de uma biografia nada comum, mas nem por isso inverossímil em um império lusófono de um território entrecortado por mares e oceanos e ainda em processo definitivo de integração sob o governo de um único rei pós- Restauração portuguesa (1580-1640). O protagonista desta história é Manoel de Moraes, mameluco nascido em São Paulo de Piratininga, filho de um outro mameluco “destro na arte da canoagem” e irmão de bandeirantes apresadores de índios. Teria pelo ambiente onde nascera o destino de seus parentes, se não fosse a outra faceta do mundo colonial brasílico a lhe arrebatar desde criança: a religiosidade católica. Com isso, fez votos solenes no Colégio da Bahia, tornando-se jesuíta professo de três votos, em 1623.
Por pouco não convivera com o mais ilustre filho do colégio jesuítico baiano, padre Antônio Vieira.
O livro, diga-se de passagem, sem introdução, é desenvolvido ao longo de quarenta capítulos com títulos bem sugestivos e que parece indicar de forma clara a intenção do autor em demonstrar a fluidez e a dinâmica das identidades: “Mameluco de São Paulo” (cap. 2); “Jesuíta na Bahia” (cap. 3); “Missionário em Pernambuco” (cap 4); “Capitão do gentio” (cap. 6); “Soberba do padre” (cap. 8); “A traição do jesuíta” (cap. 10); “O fantasma de Manoel” (cap. 13); “A vanglória do traidor” (cap. 14); “A serviço da WIC” (cap. 15); “Licenciado em Leiden” (cap. 16); “Paixões flamengas” (cap. 18); “Manoel calvinista” (cap. 19); “De volta a Pernambuco” (cap. 26); “Manoel brasileiro” (cap. 27); “Regresso ao catolicismo” (cap. 29); “Capelão da guerra divina” (cap. 30); “Manoel delator” (cap. 32); “Manoel pertinaz” (cap. 35); “Manoel valentão” (cap. 39); “Réquiem para Manoel” (cap. 40).
Mas, o que parecia ser o início de uma vida ascética trabalhando entre os índios como missionário e “língua” – ofício de tradutor que, sem dúvida, era uma das heranças de sua família mameluca – logo se mostrou apenas o princípio de uma vida conturbada; pois ela fora vivida dilacerada entre o desejo de acumular riquezas através de mercês régias e a ortodoxia de sua religião que simplesmente não deixava espaços para qualquer tipo de heresia.
Ainda jesuíta em Pernambuco, Manoel de Moraes foi um dos missionários da Companhia de Jesus que logo aceitara a convocação do governador, Matias de Albuquerque, para a defesa das capitanias do Norte contra o iminente ataque holandês.
Os cronistas da guerra o chamavam “capitão de emboscada”, liderando até mesmo as forças indígenas de Antônio Felipe Camarão – seu antigo neófito na aldeia de Meritibi – no Arraial do Bom Jesus, um dos baluartes da resistência após a derrocada do Recife, em 1630. Mas o padre guerreiro, “capitão do gentio” (cap. 6), nunca poderia ter sido um capitão oficial de guerra, pois era então jesuíta, deixando perplexos e enciumados pela sua ação os outros oficiais militares da restauração pernambucana, entre eles, o conhecido personagem dos pesquisadores da história cearense, Martim Soares Moreno, também ele comandante de forças potiguaras.
Ronaldo Vainfas descortina, a meu ver, um dos aspectos da guerra pernambucana ainda pouco discutido na historiografia: as rivalidades entre os oficiais (cap. 7 e 8). Da relação entre o capitão jesuíta e o capitão por ofício, “não seria absurdo dizer, sobre Manoel e Martim, que um era o espelho do outro” (p. 52). Entretanto, Soares Moreno era por ofício o capitão do jesuíta comandante de índios, sendo que aquele “tornar-se-ia, na verdade, inimigo figadal de Manoel de Moraes. O pior de todos” (p. 53). Com a conquista da Paraíba, em 1634, Manoel de Moraes se entregara as forças holandesas, sendo acusado por traição pelos oficiais militares luso-portugueses; em sua defesa no Tribunal do Santo Ofício, as rivalidades ganharam uma nova ressonância, ao afirmar ele que Martim Soares Moreno o havia abandonado à própria sorte em uma das mais importantes batalhas na Paraíba: “Martim Soares não tolerava o jesuíta metido a capitão” (cap. 9, p. 67).
A conquista da Paraíba, como diz o autor, trouxera uma inflexão não apenas quanto à dominação holandesa no andamento dos recontros, mas também na vida de muitos, entre eles, o jesuíta comandante de índios. Manoel de Moraes de prisioneiro de guerra, logo passou a informante precioso, nomeando todas as aldeias de índios e suas respectivas lideranças, uma das mais relevantes informações naquele contexto de batalhas. Mas não apenas isso. Em Recife, chegou mesmo a lutar ao lado dos holandeses contra os filhos da terra, vestido como “flamengo” em “traje de gente militar”, portando um “vistoso uniforme escarlate dos soldados holandeses”. Na mudança dos trajes – o que não era pouca coisa naquele mundo instavelmente perigoso – a partir de então o ex-jesuíta havia mudado mesmo de identidade: “Garboso e cheio de si, Manoel não trazia mais a tonsura que sempre tinha usado, mesmo quando lutava contra os holandeses na defesa da capitania, senão cabelo comprido e barba crescida” (cap. 10, p. 75).
Ao renegar a tonsura sacerdotal – marca característica dos inacianos – e vestir os trajes do vencedor, Manoel de Moraes aumentou a fúria que já lhe era devida pelos militares e religiosos. Para os primeiros, ele era mais um traidor à sombra de Calabar, “patriarca dos traidores” (cap.11), para os últimos, todavia, um herege que merecia a fogueira expiatória. A bem da verdade, nem um nem outro o deixaria em paz por essa afronta pública naquele mundo brasílico.
Ainda em 1635, o provincial da Companhia de Jesus, padre Domingos Coelho toma as providências para a expulsão de Moraes que, à época, mesmo antes de passar ao lado dos holandeses, diziam alguns, “já andava de chamego com as índias”. Acusado de fornicação, apostasia, heresia, e ainda por cima, de traidor dos portugueses, em junho deste ano, Manoel de Moraes fora avisado de sua expulsão dos quadros da Companhia de Jesus. A essa altura, contudo, o destino lhe traçara uma nova vida e, porque não dizer, uma nova identidade: no mesmo mês de 1635, Manoel de Moraes estava na Holanda, vivendo como consultor da Companhia das Índias Ocidentais (WIC).
Nos oito anos em que vivera nos Países Baixos calvinistas, entre 1635 e 1643, o ex-jesuíta casou duas vezes, contraindo as segundas núpcias à moda de Calvino após enviuvar-se. Protegido do humanista Joannes de Laet – renomado intelectual e diretor da WIC – a quem auxiliava em seus escritos sobre o Brasil, conseguiu entrar na prestigiada Universidade de Leiden e obter o grau de Licenciado em Teologia (cap. 16).
Dentre as suas produções, a mais importante foi um “plano para o bom governo dos índios”, documento desconhecido, mas citado em uma carta dos Dezenove Senhores ao Conselho Político do Recife, em 1635. Nela se previa o reconhecimento das lideranças indígenas leais e o reforço do trabalho dos missionários calvinistas e, como atentou o autor, tratava-se de “um modelo de catequese calvinista com metodologia inaciana” (p.121).
O Manoel ex-jesuíta não esquecera, como nunca esqueceria ao longo da vida, sua vinculação católica. A repercussão dessa maneira holandesa de governar com os índios pode ser constatada na troca de correspondência entre Pedro Poti e Felipe Camarão, índios potiguaras que defendiam lados distintos na guerra, já bem conhecida dos pesquisadores do Brasil colonial (cap.7 – Imbróglio indígena).
Mas o lado brasileiro de Manoel de Moraes não o deixava sossegado, sua ânsia era voltar ao Brasil. Contraiu um empréstimo com a WIC e voltou a Pernambuco, em 1643, onde se tornou um explorador de pau-brasil. Juntou cabedal e logo se tornou senhor escravista, auxiliado por uma feitora: a negra Beatriz. Logo, a luxúria do exjesuíta, aliás, esse era seu único pecado como sustentará por algum tempo no Tribunal da Inquisição, novamente era aflorada e Beatriz passa a ser sua amante. Vainfas, mais uma vez, sintetiza em poucas linhas os meandros da vida de seu biografado: “Manoel tornou-se um senhor de escravos como tantos outros, tinha escrava em casa, sua mulher estava na Holanda, e de padre ele já não tinha nem o hábito” (p. 233).
Em Recife, o ex-jesuíta e então ex-calvinista passa a freqüentar as igrejas e capelas; afinal, seu passado era católico e mesmo sob a pecha de traidor lhe era movido um sentimento de se reconciliar com a Igreja, quem sabe defender-se no próprio Tribunal do Santo Ofício, em Lisboa, que nos idos de 1642 já o havia queimado em estátua pelos agravos públicos de 1635. Seja como for, “Manoel vivia com a consciência pesada. Identidade fragmentada”. (p. 245).
Para o leitor absorvido na intrigante vida dessa personagem, o ponto alto do livro Traição é, sem dúvida, a luta de Manoel de Moraes diante dos inquisidores. Sua intenção antecipada de se reconciliar com a Igreja e sua participação na “guerra da liberdade divina”, novamente empossado como capelão de tropa por ninguém menos que o general da restauração pernambucana, João Fernandes Vieira, não foi impeditivo para ele ser preso e remetido a Lisboa, a dar conta de sua vida ao Santo Ofício. (Cf. cap. 30 e 31).
A partir da documentação inquisitorial, Ronaldo Vainfas vai pouco a pouco desvendando os enredos construídos entre os acusadores e o réu. Para os inquisidores do Tribunal, traição e heresia eram lados da mesma moeda, por isso a relutância de Manoel de Moraes em esconder tanto quanto possível sua vida de traidor no ano de 1635.
Acusado de heresia pelo tempo em que vivera na Holanda, onde contraiu dois casamentos à moda calvinista, o réu insistirá que não conhecia nem mesmo a língua de seus anfitriões, e que casara apenas por luxúria, ou seja, pecado grave, mas que fugia da alçada da inquisição, preocupada com os crimes de fé: “Por causa da luxúria, era sua alma que arderia eternamente no inferno. Por causa da heresia, ele mesmo poderia arder na fogueira” (p. 287).
Entre 13 de abril e 23 de outubro de 1646, Manoel de Moraes preso nos cárceres de Lisboa, sustentará sua versão “catolicizante” de que, no Brasil e na Holanda, dera provas de sua identidade católica. Mas nada disso parecia reter um palmo sequer a convicção de seus acusadores. Sem confessar o que queriam ouvir os ministros do Tribunal, o ex-jesuíta foi mandado ao suplício na “sala do tormento” (cap.36), com o fim de ser içado pelos pulsos até o teto e de lá ser despencado ao chão numa polé.
Diante do instrumento de tortura, o bravo “capitão de emboscada” tremeu, e a imaginar o tempo de sua reclusão naquela atmosfera de ser queimado vivo, não viu outra alternativa e confessou.
Em Traição, o autor consegue realizar aquilo que se considera mais importante numa biografia ao estilo da micro-história: ajudar seus leitores a compreender um pouco melhor um mundo distanciado pelo tempo cronológico, mas trazido a tona percorrendo as pegadas de uma única vida jogada entre as estruturas e as conjunturas de um tempo historio pretérito4.
Aqui, peço licença ao leitor para usar uma das sutilezas argumentativas do escritor-historiador Ronaldo Vainfas que insiste em deixar para o próximo capítulo aquilo que procura demonstrar no anterior. No mais, os dois últimos capítulos de Traição nos apontam o destino dessa personagem excepcional. Contudo, na parte da cronologia, ao final do livro, há uma pista instigante e bem ao estilo do autor: “1651. Manoel de Moraes morre, provavelmente em Lisboa. Amém” (p. 342).
Notas
1. Cf. “Apresentação”. In: REVEL, Jacques (org.). Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Tradução de Dora Rocha. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998, p. 10. Vide também o capítulo primeiro.
2. Vale a pena uma leitura demorada da discussão elaborada entre Ronaldo Vainfas e Ciro Cardoso, paradoxalmente, num mesmo livro que organizam juntos. Cf. CARDOSO, Ciro Flamarion & VAINFAS, Ronaldo. Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. Especialmente a introdução e a conclusão, na mesma obra. Ainda do autor, vide: VAINFAS, Ronaldo & SANTOS, Georgina S. & NEVES, Guilherme P. Retratos do império – trajetórias individuais no mundo português nos séculos XVI a XIX. Niterói: EdUFF, 2006.
3. Cf. LORIGA, Sabina. “A biografia como problema”. In: REVEL, Jacques (org.). Op. Cit., pp. 225-249.
Ligio José de Oliveira Maia
VAINFAS, Ronaldo. Traição: um jesuíta a serviço do Brasil holandês processado pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 384p. Resenha de: Embornal, Fortaleza, v.1, n.2, p.1-6, 2010. Acessar publicação original. [IF].
Traição: Um jesuíta a serviço do Brasil holandês processado pela Inquisição – VAINFAS (Tempo)
VAINFAS, Ronaldo. Traição: Um jesuíta a serviço do Brasil holandês processado pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 384 p. Resenha de: SANTOS, Maria Cristina dos. Lições da Traição: a redução da escala na análise histórica. Tempo v.14 no.27 Niterói 2009.
Desde a década de 1980, a quantidade de traduções e publicações acerca das discussões sobre os novos paradigmas teóricos e metodológicos da pesquisa histórica supera em muito os títulos resultantes de pesquisas que ousaram aplicar os novos paradigmas em discussão, indicação clara de que, na produção do conhecimento histórico no Brasil, muito se discute sobre como fazer, mas pouco se arrisca ao realizar uma pesquisa documenta. Esta particularidade pode ser observada no boom editorial que ocorreu nas publicações sobre a História das Mentalidades, História Cultural, de Gênero, da Vida Privada, entre outras.
Algo semelhante ocorria, até então, com a metodologia da redução da escala de análise histórica. Entre as inúmeras discussões realizadas, alguns autores tentaram vincular à metodologia da microanálise os restritos resultados de suas pesquisas locais e/ou regionais. Nada mais distante. Essas tentativas cômodas, oriundas de leituras superficiais, foram usadas para justificar pesquisas, ou melhor, recopilação de documentos, sem alcance analítico para ultrapassarem os limites locais onde foram realizadas. O impulso metodológico da microhistória não é small is beautifull; não é a pequenez do gesto, mas a análise, a escala de observação.1 Conforme Medick, é importante destacar a perspectiva de conhecimento microanalítica como um, mas de forma alguma o único, método específico de investigação. Mas só ele permite – partindo das ações, experiências e condições de vida de pessoas individuais – localizar, de uma maneira nova, seu envolvimento em redes sociais, culturais e econômicas, incluindo seus efeitos e limites nos contextos globais.2
Não foi por mera coincidência que Vainfas iniciou seu ensaio sobre Os Protagonistas Anônimos da História, apresentando de forma crítica a micro-história em meio a uma “teia de equívocos”, evidenciando, assim, o que ela “não é”.3
Entre os inúmeros debates realizados no âmbito acadêmico, Sandra Pesavento não titubeou ao afirmar: “realizar microanálise é dizer mais sobre um recorte do real a partir de um método, mas isto é dado também pela bagagem de conhecimento prévio e à parte deste recorte de escala”.4 A peremptória afirmação beira o desafio: dizer mais sobre um recorte do real. Isso pressupõe que realizar uma pesquisa documental, conforme os paradigmas conceituais e metodológicos da micro-história, não é tarefa fácil, tampouco para principiantes. Tal constatação fica demonstrada na forma, no conteúdo e nos enlaces descortinados por Vainfas na Traição.
A construção da narrativa seduz o leitor, quer pela forma, quer pelo conteúdo. Sobre a forma, cabe salientar que Vainfas subverte o formato da narrativa histórica clássica, ao começar pela descrição do ambiente das cenas finais da trama urdida por Manoel de Moraes, tal como num romance policial. A realização de uma exaustiva pesquisa histórica não é, nesse caso, justificativa para apresentar os resultados em textos longos, aborrecidos e recheados de um vocabulário hermético. As aventuras e desventuras desse protagonista, até então quase anônimo, são apresentadas numa sequência de quarenta capítulos, em sua maioria, curtos e construídos literariamente de maneira a prender o leitor e desconcertar o historiador, sobretudo aquele mais tradicional. Mas, o que parece inusitado na forma avança ainda mais no conteúdo.
Vainfas reconstituiu a história de Manoel de Moraes em uma narrativa envolvente que não abandona em nenhum momento o necessário rigor acadêmico. O prazer da leitura de um texto literariamente sedutor traz consigo vários questionamentos teóricos e metodológicos sobre a historiografia do período colonial.
Manoel de Moraes nasceu em São Paulo, tornou-se jesuíta e atuou como missionário em Pernambuco. Participou de forma ativa, junto com Felipe Camarão, das guerras entre Portugal e Holanda, na primeira metade do século XVII. No posto de Capitão do Gentio, Manoel atuou, com armas em punho e em uso, na frente de batalha. “O lado paulista de Manoel de Moraes veio à tona com força máxima nos combates contra o holandês […] na verdade, lutava e matava com garra, agindo como autêntico paulista nos matos, esquecido dos mandamentos de Deus e de suas obrigações como sacerdote”(p. 43-45). Mas, ao perceber a iminente derrota, Manoel cruza o campo de batalha e se oferece aos holandeses. O limite entre a rendição e a traição no final da guerra da Paraíba é quase invisível – o que, segundo Vainfas, dá quase no mesmo. Manoel de Moraes passou para o lado dos holandeses e levou consigo todos os índios que comandava. “No mínimo salvou a própria vida e logo vislumbrou novos horizontes”(p.65).
A partir daí, o leitor, seja alheio ao assunto ou um especialista, será levado a caminhos inimagináveis, traçados tanto pela trajetória oblíqua do personagem, como pela habilidade de Vainfas como narrador. Manoel de Moraes passa, então, a protagonizar uma sequência de traições – que estão para muito além de gregos, troianos e pernambucanos.
Depois de trair os princípios contrarreformistas do Concílio de Trento, onde havia começado sua formação religiosa, mudou-se do Brasil para a Holanda. Foi aí que se casou por duas vezes, dentro dos rituais calvinistas. O primeiro casamento foi por conveniência política e econômica; já o segundo, nosso Manoel acabou por ceder “às fraquezas da carne e aos excessos contra o sex[t]o mandamento”(p.126-154). Foi também na Holanda que ele se escondeu do primeiro processo da Inquisição portuguesa, quando foi julgado e condenado à fogueira. Na ausência do réu, uma estátua deste foi queimada em praça pública (p.180), conforme as determinações do Santo Ofício. Tornou-se um informante privilegiado dos holandeses contra os portugueses, inclusive na questão da forma de como atuar junto aos indígenas no Brasil. Entre as várias obras que produziu, elaborou um “Plano para o Bom Governo dos Índios”, utilizando o modelo jesuítico, porém sem jesuítas (p.121). Trocou uma Companhia (de Jesus) por outra (a das Índias Ocidentais), como um padre troca de batina.
A missa de Manoel, no entanto, não está nem na metade. Surpreendentemente, ele faz o caminho de volta. Atormentado pelos dramas de consciência, talvez resquícios de sua formação jesuítica, empreende uma viagem de retorno ao Brasil e ao catolicismo, porém não à vida sacerdotal strictu sensu. Nesta circunstância é que Manoel de Moraes se converte num traidor perfeito.
Traiu os jesuítas, traiu os portugueses na guerra de resistência; voltou a traí-los, prometendo servir a D. João IV em troca de mercês e perdões, enquanto arrancava dos holandeses o contrato do paubrasil; traía, ao mesmo tempo, a WIC [West International Company], oferecendo-se aos embaixadores portugueses para combater os holandeses no Brasil; traiu Adriana Smetz, não nos esqueçamos dela [e de sua beleza estonteante], ao abandoná-la com três crianças em Leiden. Não haveria de ser como brasileiro que Manoel honraria algum contrato (p.230).
De volta a Pernambuco, com um empréstimo da WIC, Manoel torna-se senhor escravista, negociante de pau-brasil, e passa a viver provavelmente amancebado à “negra Beatriz”, que desempenhava nada menos do que a função de feitora [!] (p.232). Durante seus últimos anos no Brasil, consegue algumas outras façanhas, tais como: enriquecer como negociante, passar o calote na Companhia das Índias e ainda conceber “a peculiar e absurda perspectiva de vir a ser uma espécie de predicante católico. Católico na fé, com direito a pregar e oficiar missas, mas sem o voto de obediência (exceto a militar), muito menos os de pobreza e de castidade. Uma espécie de mescla entre o predicante calvinista e o padre católico”(p.259). Tanto fez que, por fim, foi preso e levado ao Tribunal do Santo Ofício da metrópole lusitana.
Em Lisboa, encarcerado na Casa Negra do Rocio, Manoel de Moraes começa uma terceira e derradeira etapa de suas estratégias. Será durante seu segundo julgamento que as habilidades retóricas e as artimanhas mais audaciosas desse memorável personagem terão mais espaço.
Atitudes, propósitos e convicções, aparentemente contraditórias, são constantes na tortuosa vida de Manoel de Moraes. Pelo texto de Vainfas, tais contradições convertemse em luzes sobre um passado cristalizado pela historiografia tradicional, como blocos homogêneos, quase sempre antagônicos. De um lado está o Ocidente católico e civilizador; de outro, os nativos a serem cristianizados e cooptados pelas forças colonizadoras. Nesta historiografia de antagonismos, não há espaço para fraturas, para desvios de comportamento ou para qualquer exceção.
Não foi pouco o esforço teórico e metodológico que a academia empreendeu, em particular, na última década para demonstrar as diversidades internas de supostos conjuntos sócio-religiosos-econômicos e culturais dos nativos, com os quais um Ocidente se enfrentou. Vainfas apresenta muito além da vida de altos e baixos de Manoel de Moraes e ressalta a importância de uma pesquisa séria como base de uma análise histórica consistente. Por meio das traições de Manoel de Moraes, Vainfas constrói uma audaciosa trilha até então minoritária na academia. Ao longo do texto, são apontados inúmeros elementos para relativizar a suposta constância do Ocidente nas Américas. Em particular, a pretensa homogeneidade de uma instituição como a Companhia de Jesus, criada com o intuito de atuar como elemento de coesão do mundo católico ameaçado pelas fraturas provocadas pelos diversos movimentos reformistas, tais como o Luteranismo, Anglicanismo e Calvinismo.
Ao leitor leigo, as peripécias de Manoel como Capitão dos Gentios, Fantasma, Calvinista, Delator, Pertinaz e Valentão, ou entre Paixões Flamengas, despertará curiosidades e dúvidas no conhecimento sobre a América Portuguesa, o Brasil Holandês e as disputas europeias do século XVII, disseminadas no senso comum. Ao leitor acadêmico, a trajetória deste personagem, aliada ao refinamento teórico-metodológico de Vainfas, evidencia por que e como a rigorosa pesquisa documental ainda se mantém como o grande diferencial entre o pensar, fazer e escrever História e o escrever sobre História.
Todas as afirmações estão documentalmente comprovadas e a cronologia incluída no final da obra contextualiza os eventos narrados. Se para alguns leitores tais informações podem servir como bússola das intrigas na qual Manoel esteve inserido, para outros servirá também para evidenciar que o período moderno, tanto na Europa Ocidental quanto em suas ramificações coloniais, não pode ser explicado somente como a transição do feudalismo ao capitalismo, ou como a época de ouro do pensamento mesti ço. Manoel de Moraes é tudo isso e muito mais.
Ao longo do texto, no século XVII, Espanha, Portugal, Holanda e Brasil aparecem formando complexas redes de poder e de conflito que possibilitaram circunstâncias nas quais as lealdades eram naturalmente volúveis. Manoel de Moraes, com suas aventuras e dramas pessoais, é utilizado para expor os conflitos religiosos, os ambientes em que viviam os personagens e os processos de mediação cultural que desenham uma conjuntura colonial muito mais complexa do que aquelas estabelecidas pelas macroanálises.
No ofício da pesquisa, o historiador deve questionar suas fontes e estabelecer conexões, por meio do cruzamento de informações. Se o momento vivido por Manoel de Moraes assim o exige, Vainfas não se abstém de ampliar a escala de análise, demonstrando, assim, como esse exercício é fundamental na pesquisa histórica.
Em contrapartida, o Santo Ofício desconhecia completamente o que se pode alcançar noutras fontes, a exemplo das preciosas informações que Manoel dera aos holandeses logo depois de se render na Paraíba, as quais, sem dúvida, adensavam suas culpas. Se soubessem disso, ou do que Manoel tinha contado ao irlandês O’Brien em Amsterdã, em junho de 1635 (!), os inquisidores talvez estreitassem a relação entre traição e heresia, percebendo essa última já nas ações do ex-padre desde fins de 1634. Não deixa de haver, portanto, alguma semelhança entre o mameluco paulista e o irlandês aventureiro, seja na audácia das atitudes, seja no ânimo irrefreável de romper fronteiras, seja ainda na fluidez das lealdades e compromissos (p.186).
Nesta ocasião, entre outras, Vainfas evidencia as particularidades da aplicação metodológica na pesquisa, pois
é próprio do método da microhistória estabelecer esta rede de relações […] na medida em que estas relações pressupõem um in e um out com relação à escala escolhida, a micro-história seria um método que jogaria com as dimensões do geral e do específico, do todo com a parte, do particular com o geral, da regra com a anomalia, do consensual com a diferença ou ainda do texto com o contexto5 .
Portanto, seja qual for o intuito do leitor ao se aproximar da mais recente obra de Vainfas, encontrará muito mais que os caminhos da construção/compreensão das intrigas do passado, tal como já advertiu Paul Veyne, no clássico texto Como Escrever História.6 Com toda a certeza, entenderá que o mérito de o verdadeiro métier do historiador pode ser tão, ou mais, encantador que o do curioso que se apropria de temas históricos com o intuito de popularizar a História. As constantes traições cometidas por Manoel de Moraes foram utilizadas também para mostrar como a produção do conhecimento histórico tem avançado na forma e no conteúdo. É bem verdade que nosso Manoel não chegou a questionar as origens do Universo como Menocchio.7 Entre este último e Manoel de Moraes há mais de um século e um oceano que os separa. Mas, os resultados apresentados por Vainfas são exemplares para demonstrar como fazer a redução da escala de análise, constituindo-se assim, numa referência historiográfica made in Brazil. Como oposição complementar, Vainfas manteve-se fiel a sua vinculação acadêmica e transformou uma rigorosa pesquisa documental num texto sedutor. A Traição traz várias lições; basta tentar aprendê-las.
1 Brad S. Gregory, “Is small beautiful? Microhistory and the history of everday life”, History and Theory Studies, Middletown, Wesleyen University, vol. 38, nº 1, p. 100 -110, 2002. [ Links ]
2 Hans Medick, “Quo Vadis Antropologia Histórica? A pesquisa histórica entre a ciência histórica da Cultura e a Micro-História”, Aula Inaugural na Faculdade de Filosofia de Erfurt, 03 jul. 2000. Tradução René Gertz, Métis: história & cultura, Caxias do Sul, EDUCS, vol. 2, nº 3, p. 199-216, 2003, p. 209. [ Links ]
3 Ronaldo Vainfas, Micro-história: Os Protagonistas Anônimos da História, Rio de Janeiro, Campus, 2000, p. 07-51. [ Links ]
4 Sandra Jatahy Pesavento, “O corpo e a alma do mundo. A micro-história e a construção do passado”, História Unisinos. Dossiê: Teoria e metodologia da História, São Leopoldo (RS), Universidade do Vale do Rio dos Sinos, vol. 8, nº 10, 179-189, 2004. p. 180. [ Links ]
5 S. J. Pesavento, op. cit. 2004, p.183.
6 P. Veyne, Comment on écrit l’histórie, Paris, Editions du Seuil, 1971. [ Links ] Tradução portuguesa: Como escrever História, Lisboa, Edições Anos 70, 1987, p. 107-136. [ Links ]
7 Carlo Ginzburg, O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pel a Inquisição, São Paulo, Companhia das Letras, 1996. Edição original: 1976. [ Links ]
Maria Cristina dos Santos – Professora Adjunta da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. E-mail: mcstita@pucrs.br.
Os protagonistas anônimos da História: micro-história – VAINFAS (RBH)
VAINFAS, Ronaldo. Os protagonistas anônimos da História: micro-história. Rio de Janeiro: Campus, 2002. 115pp. Resenha de: GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.23, n.45, july 2003.
No Brasil, o ensino universitário de história ainda carece de boa bibliografia teórica produzida por autores nacionais, em que pese o número crescente de traduções de especialistas estrangeiros. A boa repercussão alcançada pelo livro Domínios da História (org. Ciro Flamarion Cardoso e Ronaldo Vainfas, Campus, 1997), certamente deve ter estimulado o professor Ronaldo Vainfas a fazer uma nova incursão na área de teoria e metodologia da história. Melhor dizendo, a aprofundar algumas reflexões que deixara encaminhadas ao concluir aquela obra, que nos últimos anos tornou-se referência no ensino da disciplina. Refiro-me ao recém-lançado Os protagonistas anônimos da História: micro-história, onde Vainfas examina esse gênero historiográfico surgido na Itália, a propósito da coleção dirigida por Carlo Ginzburg e Giovanni Levi, denominada Microstorie, publicada pela editora Einaudi, entre 1981 e 1988. Vale lembrar que a micro-história opera com escala de observação reduzida, exploração exaustiva de fontes, descrição etnográfica e preocupação com a narrativa literária. Neste sentido, contempla, sobretudo, temáticas ligadas ao cotidiano de comunidades específicas — referidas geográfica ou sociologicamente —, às situações-limite e às biografias ligadas à reconstituição de microcontextos ou dedicadas a personagens extremos, geralmente vultos anônimos, figuras que por certo passariam despercebidas na multidão. O certo é que essa corrente historiográfica foi muito mal compreendida, ora tomada como história cultural, ora confundida com a história das mentalidades e com a história do cotidiano. Ou, então, percebida como expressão típica de uma história descritiva, de viés marcadamente antropológico, que renunciou ao estatuto científico da disciplina, invadiu o território da literatura, rompendo de vez as fronteiras da narrativa histórica com o ficcional. Não seria exagero afirmar que ainda hoje a micro-história carrega o estigma de história menor, atacada principalmente pelos defensores dos modelos macrossociais de análise. Mas, como afirma Hans Medick, rebatendo tais críticas, se small is beautiful isto não significa banalizar a história, nem desconectá-la de contextos mais amplos.
Ronaldo Vainfas dispõe-se a desfazer essa intrincada teia de equívocos. E, de fato, alcança seu intento. Assim, no primeiro capítulo, apresenta um panorama da trajetória dos estudos históricos no século XX, detendo-se especialmente na historiografia francesa tributária do movimento de Annales. Dialoga com este quadro conceitual para demonstrar o que a micro-história não é, evidenciando as razões pelas quais a prática microanalítica não pode ser definida apenas em função dos temas de pesquisa, mas sim em relação a seus objetos e às metodologias por ela utilizadas. Desfeito didaticamente o imbroglio, o autor parte para identificar O berço da micro-história (capítulo 2), mostrando as linhagens dessa vertente historiográfica praticada por historiadores italianos, franceses, ingleses e norte-americanos, com ênfase no papel desempenhado pelos italianos e na importância da revista Quaderni Storici e da mencionada coleção Microstorie. Resgatadas as origens teóricas, o autor parte para exemplos concretos. No capítulo terceiro — A micro-história em cena, resume alguns enredos de livros emblemáticos do gênero, a começar pelo clássico O queijo e os vermes, de Carlo Ginzburg, seguindo-se de O retorno de Martin Guerre, de Natalie Zenon Davis; Atos impuros, de Judith Brown, e A herança imaterial, de Geovannni Levi. Essas breves sínteses servem de mote para o exame do modo como se opera a narrativa microanalítica e a discussão das fronteiras que a separam da narrativa ficcional. Em seguida, no capítulo quarto, sugestivamente denominado A micro-história nos bastidores, privilegia o estudo do aparato conceitual empregado pela micro-história, a escolha de temas, a problemática da redução de escala na descrição densa, bem como a delimitação dos objetos de estudo em termos de espaço e de temporalidade. Finalmente, à guisa de conclusão, o professor Vainfas aponta os contrastes entre as abordagens macrossociais e as microanalíticas, discute as possibilidades e os limites de compatibilização entre ambas, oferecendo ainda uma extensa bibliografia comentada, com tudo já que se publicou no País a respeito da microanálise, inclusive trabalhos de historiadores brasileiros que fizeram incursões no gênero.
Longe de fazer proselitismo em defesa do gênero, Vainfas aproxima-se dos encaminhamentos propostos pela historiadora norte-americana Natalie Zenon Davis, um dos ícones da micro-história. Segundo Davis, é inquestionável a natureza complementar dos dois tipos de análise. A tarefa que se impõe aos estudiosos consiste, pois, em investigar métodos de interpretação e de narrativa que possam dar conta no texto escrito do entrecruzamento e das tensões entre o pequeno e o grande, entre o social e o cultural. Ou, que venham a explorar as conexões possíveis entre esses dois níveis de experiência historiográfica, conforme sugere Georg Iggers na sua mais recente contribuição, Historiography in the twentieth century: from scientific objectivity to the postmodern challenge. Seja como for, estudantes e pesquisadores, sem dúvida, irão se beneficiar da leitura dessa obra assentada em sólida argumentação teórica, mas de exposição agradável, repleta de exemplos e de comentários bem-humorados.
Lucia Maria Paschoal Guimarães – Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
[IF]Micro-história. Os Protagonistas Anônimos da História | Ronaldo Vainfas
Em 1997, a Editora Campus lançou uma obra que reunia uma série de ensaios gerais sobre teoria e metodologia, analisando os percursos, os principais conceitos e o debate em diversos campos da prática historiográfica. O livro “Domínios da História”2 , organizado pelos professores da Universidade Federal Fluminense, Ciro Flamarion Cardoso e Ronaldo Vainfas, logo se tornou referência em cursos de Graduação e Pós-Graduação, 3 ao revelar-se um importante instrumento de trabalho para professores e pesquisadores.
Naquela obra, além da Conclusão, em que avaliava os “caminhos e descaminhos da história”, Ronaldo Vainfas foi também responsável pelo capítulo intitulado “História das Mentalidades e História Cultural”, texto no qual elaborou reflexões que, de certa forma, acabaria por retomar e ampliar neste seu “Micro-história. Os Protagonistas Anônimos da História”, lançado pela mesma Campus em 2002. Leia Mais
A Heresia dos Índios. Catolicismo e rebeldia no Brasil colonial – VAINFAS (VH)
VAINFAS, Ronaldo. A Heresia dos Índios. Catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. Resenha de: MATA, Sérgio da. Varia História, Belo Horizonte, v.12, n.16, p. 171-174, set., 1996.
O novo livro de Ronaldo Vainfas é uma grata surpresa. Finalmente a historiografia se volta para um objeto que a maior parte dos pesquisadores tem simplesmente ignorado: a história das práticas religiosas indígenas no Brasil. Infelizmente, perdura ainda em nosso meio acadêmico a opinião, inconfessa, de que o estudo das sociedades ditas primitivas “não é assunto de historiador”. Vainfas tem ainda o mérito de agregar à análise historiográfica as contribuições importantíssimas de autores como Florestan Fernandes, Maria lsaura Pereira de Oueiróz, Pierre Clastres, Hélêne Clastres e Mircea Eliade. Sua narrativa leve, bem articulada, e, antes de tudo. seu objeto e sua opção metodológica interdisciplinar, tornam esta obra tremendamente oportuna. Uma história religiosa científica e de caráter não-confessional ainda está por ser feita no Brasil. A Heresia dos Índios constitui-se, desde Já, num dos marcos deste esforço.
O tema do livro é o estudo da Santidade de Jaguaripe, formada e destruída na década de 80 do século XVI no Recôncavo baiano. As santidades eram “movimentos” religiosos orginalmente indígenas. Lideradas por xamãs denominados caraíbas, as santidades representavam a promessa e a possível materialização daquilo que o imaginário tupi pretendia ser a “Terra sem Mal”: a terra mítica onde os índios não precisariam trabalhar para comer, onde não haveria nem sofrimento e nem a própria morte.
Mas, vistos como heréticos pela Igreja e como fomentadores da desordem pelos fazendeiros, 1mpnmiu-se uma perseguição sem tréguas aos seus adeptos e líderes espirituais. O que há de surpreendente na Santidade de Jaguaripe é que ela teve Justamente num dos mais ricos senhores de engenho da Bahia, Fernão Cabral, o seu maior patrocinador Por que um membro da voraz elite latifundiária sessentista se arriscaria a tanto? Para desvendar este enigma, Vainfas empreende uma pesquisa de fôlego, a partir da qual entrevê-se não o mero estudo de caso, mas também um esforço de visualizar a interpenetração das culturas, bem como das relações de força às quais estão inevitavelmente conectadas.
Há duas questões de fundo perpassando A Heresia dos Índios: (a) o enorme preço pago pelos indígenas ao iniciar-se o processo colonizador -escravidão, epidemias, aculturação imposta, genocídio-teria ou não desempenhado papel decisivo na eclosão do “milenarismo tupi”; e (b) as Santidades seriam – e até que ponto – ou não fruto de um sincretismo cristão/xamanista? Minhas discordâncias em relação a Vainfas giram em torno das respostas que ele apresenta a estas perguntas.
Com relação à primeira questão, o autor advoga que o impacto da colonização sobre as populações indígenas foi o fator decisivo no surgimento das santidades (p. 45-46, 65). A maioria dos deslocamentos de índios, tendo à frente os caraíbas, dava-se em direção ao interior, justifica ele. O que pareceria comprovar que se havia uma “Terra sem Mal”, esta estaria por certo longe da costa, onde estabelecera-se o europeu. O problema desta tese, ao meu ver, reside no próprio caso da Santidade de Jaguaripe. Se fosse tão decisivo o peso da exploração colonial, como entender que Fernão Cabral tenha convencido boa parte da santidade original a migrar rumo à sua fazenda- ou seja, rumo ao litoral? Vainfas subestima a força social do mito, pois, ao que tudo indica, a direção das migrações não interfere diretamente na estrutura deste mito. O que era essencial: chegar à “Terra sem Mal”, mesmo porque (e precisamente porque) isso significaria ignorar riscos enormes.
As santidades, sublinha Vainfas, teriam um nítido caráter “anti-colonialista”. Contudo, em 1586, quando da destruição de Jaguaripe, o autor revela-nos que os índios assistem a tudo “sem esboçar reação alguma” (p. 1 00). Teria sido tão grande o peso da “exortação à guerra” feita pelos caraíbas?
A análise seguinte, do sincretismo entre elementos da religiosidade cristã e tupi, também revela problemas. Vainfas dá provas de “hibridismo”: similitudes entre a “Terra sem Mal” e o paraíso cristão, a santidade por alguns chamada “Nova Jerusalém”, o caraíba Antônio a quem se referiam outros tantos por “papa” ou “Noé”, o “rebatismo” dos novos adeptos, cruzes e rosários, etc. A partir destas homologias, entretanto, Vainfas sente-se autorizado a concluir que a maior parte das crenças de Jaguaripe “foi gerada( … ) nos aldeamentos da Companhia de Jesus” (p. 117), e mesmo que o “ídolo” venerado pelo índios era, “por origem, uma invenção cristã” (p. 132, grifo meu).
Desta vez o historiador fluminense superestima o peso da tradição cristã nas crenças que moviam as santidades. Seria mais sensato ver no esforço dos jesuítas uma prática aculturadora relativamente limitada: no Brasil colônia, como aliás na China deste mesmo período, os jesuítas só puderam introduzir com algum sucesso suas representações religiosas na medida em que elas tivessem algum homólogo, por distante que fosse, nas culturas autócones. Assim, o Tupanaçu dos jesuítas devia tanto ao Tupã indígena quanto a doutrina do Senhor do Céu de Matteo Ricci devia à noção de “Soberano do Alto” herdada da tradição chinesa. As (re)formulações jesuíticas não constituíam realidade inteiramente nova, como parece crer Vainfas. Estavam, para usarmos os termos de Johan Huizinga, ainda “impregnadas de passado”. O modus agendi jesuíta parece ter sido basicamente este em situações históricas ou contextos nos quais a “conversão” não pôde ser garantida, antecipadamente, (de fora para dentro) pela força ou (de cima para baixo) pela adesão da chefia em sociedades de tipo “heróico” (Sahlins).
Ademais, não convém esquecer que determinados aspectos-chave do ritual das santidades pouco ou nada tinham de cristãs. Tinham, isso sim, origens distantes. Juan Schobinger mostra-nos que as sociedades Diaguitas do noroeste da Argentina utilizavam-se do fumo como alucinógeno religioso seis séculos antes da chegada do europeu. Da mesma maneira, o tugipar (“templo” da santidade) tupi, as estacas fincadas no seu centro e os “ídolos” de pedra também Já existiam entre os Diaguitas. Como ver, então, nas práticas religiosas das santidades uma “invenção cristã”?
Problemática é, igualmente, a hipótese de que teria havido sincretismo religioso ao nível dos adeptos indígenas da santidade, mas nem tanto por parte dos vários mamelucos e mesmo brancos que, segundo a Inquisição, a eles teriam se juntado (p. 158). De fato, muitos destes últimos apenas simularam crer nos caraíbas para atraí-los ao litoral, ansiosos pela mão-de-obra proporcionada pelos “bugres” de Jaguaripe. A existência de tal diferenciação interna seria perfeitamente possível de sustentar, mas somente na condição de confundirmos nível de adesão (ou de conformidade) religiosa com sincretismo propriamente d1to. O ser “mais” adepto ou “menos” adepto não interfere na natureza das crenças e representações em questão.
Duas últimas observações. Vamfas utiliza, ao longo de todo seu livro, a categoria “seita” para se referir às santidades. Não foi uma boa escolha. Revela, neste particular, absorção acrítica (em que pesem todos os cuidados tomados) da linguagem inquisitorial. Nesta, como nos meios cristãos em geral, “seita” assume um significado diverso do sociológico. Onde o senso comum eclesiástico vê “heresia”, “desvio”, “erro” (e daí a sua repressão), a soc1olog1a da religião vê um tipo de comunidade religiosa com um padrão configuracional próprio. Vale d1zer: a inflexibilidade e ngorismo das seitas (Wach), sua ênfase na “obediência literal e no radicalismo” em relação a uma dada tradição religiosa (Troeltsch) são, em certo sentido, pouco compatíveis com quaisquer sincretismos (ou hibridismos). O que permite concluir que as santidades, muito provavelmente, não eram seitas.
Creio ainda que não tenha sido devidamente formulada ou explicitada a noção de “juízo etnodemonológico” (p. 53). Em que tal manifestação constitui um caso à parte de etnocentrismo, é algo que não se chega a compreender claramente.
Sérgio da Mata – Professor de Antropologia Cultural Fundação Educacional Monsenhor Messias- Sete Lagoas.
[DR]
A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial | Ronaldo Vainfas
VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. Resenha de: BUENO, Clod0aldo. Anos 90, Porto Alegre, v.4, n.5, p.207-211, 1996.
José Rivair Macedo – Departamento de História – UFRGS Acesso apenas pelo link original
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Ideologia e escravidão – Os letrados e a sociedade escravista no Brasil colonial – VAINFAS (RBH)
VAINFAS, Ronaldo. Ideologia e escravidão – Os letrados e a sociedade escravista no Brasil colonial. Petrópolis: Vozes, 1986, 168p. Resenha de: MELLO e SOUZA, Laura. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.5, n.7, n.15, p.199-204, set.1986/fev.1987.
Laura de Melo e Souza – Departamento de História da FFLCH/USP.
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