Georges Canguilhem, a história e os historiadores / Intelligere – Revista de História Intelectual / 2016

“A obra do filósofo e médico Georges Canguilhem experimenta atualmente um extraordinário revival, que se produz tanto em escala nacional francesa quanto internacional, e com um alcance interdisciplinar, envolvendo as mais diferentes áreas. Essa ascensão do interesse pela obra de Canguilhem teve início antes de seu falecimento, e continua se manifestando através da multiplicação de colóquios sobre seu pensamento, publicações em forma de livros e revistas, traduções de seus escritos para diversos idiomas, além da organização de centros de investigação e de documentação que levam o seu nome.” [1]

Essa avaliação feita por Francisco Vázquez García tem se provado verdadeira também para o Brasil. O interesse renovado pelos textos de Georges Canguilhem (1904 – 1995), motivado pela descoberta de escritos inéditos e pela publicação das suas obras completas na França, também é verificado entre os pesquisadores brasileiros, fato que medimos pelo aumento de pesquisas de pós-graduação, livros, artigos e eventos dedicados ao seu pensamento [2]. É verdade que, graças a autores como Sérgio Arouca, Cecília Donnangelo e Ricardo Bruno Mendes Gonçalves, O normal e o patológico conhece uma prestigiosa reputação no Brasil desde os anos 70. Mas foi apenas nos últimos anos que vimos serem traduzidos os livros O conhecimento da vida e Estudos de história e de filosofia das ciências concernentes aos vivos e à vida, que apresentaram a um público mais amplo no Brasil as contribuições inovadoras de Canguilhem para a teoria e a prática da história do pensamento médico e biológico.

Pacifista engajado na juventude, a vida adulta fez de Canguilhem um combatente: membro do Comitê de Vigilância dos Intelectuais Antifascistas, Médico Tenente e Chefe do Estado-Maior político da Resistência Francesa durante a ocupação nazista. Combateu, também, pela história das ciências. Em 1983, recebeu a “Medalha George Sarton”, a mais prestigiosa honraria da área de história das ciências, concedida pela History of Science Society em reconhecimento “a uma vida de conquistas acadêmicas”. Essas conquistas estão concentradas no período entre 1955 e 1971, quando lecionou história e filosofia das ciências na Sorbonne, dirigiu o Institut d’histoire des sciences et des techniques e publicou seus textos mais conhecidos. Mas a abertura dos arquivos pessoais e de trabalho de Canguilhem, preservados no Centre d’Archives en Philosophie, Histoire et Édition des Sciences (CAPHÉS), revelou aos pesquisadores novos aspectos do seu pensamento e do seu diálogo com os historiadores.

Fomos apresentados ao “Canguilhem avant Canguilhem”, expressão de Jean-François Braunstein, já de uso corrente entre os comentadores que se dedicam aos textos produzidos entre 1926 e 1939, a partir dos quais é possível detectar o interesse precoce de Canguilhem pelos trabalhos dos historiadores de ofício. O rastreamento das leituras de Canguilhem nesse período e, principalmente, da utilização dos textos de historiadores em seus cursos de filosofia já na década de 30, permitiu que entendêssemos melhor a importância dos fundadores da revista dos Annales, dos historiadores agrupados em torno do Centre de Synthèse e dos historiadores das ideias para o desenvolvimento de uma técnica original de investigação histórica das ciências da vida e da medicina que começa a ser posta em prática já no Essai sur quelques problèmes concernant le normal et le pathologique, tese de doutorado em medicina publicada em 1943.

A compreensão renovada da problemática histórica na obra de Canguilhem também permitiu uma reavaliação dos seus débitos com a epistemologia de Gaston Bachelard, e, aparente paradoxo, fez crescer o interesse pela epistemologia histórica, hoje entendida cada vez menos como uma filosofia nacional francesa, e mais como um processo de historicização da epistemologia que repercutiu em diferentes pontos da Europa. Daí ser possível identificar, por meio de uma história intelectual comparada, um “ar de família” entre Canguilhem e o polonês Ludwik Fleck. Leituras menos preocupadas em enquadrar Canguilhem nos limites de uma suposta “escola francesa” passaram a destacar a importância de temas como a circulação das ideias, as continuidades e descontinuidades entre conceitos e mitos ou as relações entre ciência e ideologia para a concretização do seu projeto de historicização das ciências.

Pouco mais de vinte anos após a morte de Canguilhem, sua ausência é profundamente sentida por todos aqueles que ele ajudou a formar, direta ou indiretamente, através das suas lições ou dos seus livros. Não causa espanto que, diante dos problemas atualmente postos ao conhecimento da vida e da saúde, ao pensamento e à prática médica, à teoria e à prática da história das ciências da vida e da medicina, os pesquisadores continuem retornando à obra de Canguilhem em busca de respostas ou de pistas até elas. Os textos apresentados nesse dossiê são manifestações de reconhecimento da vitalidade de um pensamento que, mesmo interrompido há décadas, segue se provando original.

Notas

1. Francisco Vásquez García. “Redescubriendo a un filósofo híbrido: Georges Canguilhem”. In: Asclepio. Revista de Historia de la Medecina y de la Ciencia. 66 (2), julho-dezembro 2014.

2. O próprio Grupo de Pesquisa em História Intelectual organizou, em setembro de 2015, o colóquio “Canguilhem, a história e os historiadores” e, em abril de 2016, a mesa-redonda “Os objetos da história das ciências”, também dedicada ao pensamento de Canguilhem. Esses eventos contaram com o apoio do Departamento de História, do Laboratório de Teoria da História e Historiografia (LabTeo) e do Centro Interunidade de História da Ciência da USP.

Tiago Santos Almeida – Doutorando em História Social na Universidade de São Paulo Grupo de Pesquisa em História Intelectual (Departamento de História – USP) EXeCO – Expérience et connaissance (Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne)

Comitê organizador:

Tiago Santos Almeida (USP)

Marcos Camolezi (USP / Université Paris 1)

Iván Moya-Diez (Université Paris 1)

Matteo Vagelli (Université Paris 1)


ALMEIDA, Tiago Santos. Apresentação. Intelligere – Revista de História Intelectual. São Paulo, v. 2, n. 1, 2016. Acessar publicação original [DR]

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