Usos do passado, ética e negacionismos/Fronteiras – Revista Catarinense de História/2023

Introdução

A questão dos usos públicos e políticos do passado, a dimensão ética do discurso histórico e a proliferação dos negacionismos históricos são temas que vêm ocupando cada vez mais espaço na agenda de investigação no campo historiográfico contemporâneo. A maior atenção dada a essas temáticas é motivada por fatores diversos e interligados. A digitalização da vida social, que favorece a apropriação episódica de elementos do passado (em detrimento de abordagens mais processuais que caracterizam a historiografia disciplinar), somada ao acirramento das guerras culturais (ROCHA, 2021) que são alimentadas, em larga medida, pela disseminação de narrativas históricas que contestam consensos estabelecidos em nome da defesa de posições político-ideológicas, tem produzido efeitos cada vez mais sensíveis na vida social e política no Brasil e em outros países do globo. Leia Mais

Religiosidade, formas de poder e usos do passado: perspectivas integradoras de abordagem do Mediterrâneo Antigo/Revista de História da UEG/2023

Apresentação

A escrita da História da Antiguidade tem buscado superar barreiras contíguas às do campo do conhecimento científico da História. Superar categorias eurocêntricas que buscavam justificar os nacionalismos e legitimar a empreitada racionalista da modernidade, no século XVIII à primeira metade do século XX. Desde a década de oitenta do século passado foi proposto um recorte que busca analisar as conexões e ressignificações a partir do Mediterrâneo. Entretanto, essa nova postura tem gerado amplo debate acadêmico e ainda não repercutiu no ambiente acadêmico e escolar. Nesse sentido esse dossiê tem o objetivo de analisar as diversas manifestações religiosas no mediterrâneo. Para isso é importante descontruir perspectivas atuais que turvaram a análise dessas sociedades, sobretudo dentro dos estudos históricos sobre religião e a começar pela substituição de “religião” por “religiosidades”. Deste modo, partimos de G.W Bowersock (Hellenism in Late Antiquity, 1990, p. 15) e sua afirmação de que nem cristãos ou judeus detiveram o monopólio da crença no sagrado durante a antiguidade: existiam devoções diferentes. Nesse sentido, compartilhamos com Daniel Boyarin (Border lines, 2007, p. 30-56), que à noção de religião atual, é uma categoria que surge com o cristianismo, o que não implica a inexistência de elementos religiosos nas culturas. Para se firmar como religião, os Cristianismos precisaram demarcar as diferenças religiosas, criando assim as falsas religiões. Mark Humphries para o Blackwell’s Companion to Ancient History (2012, p. 309-311), argumenta que: devemos evitar a racionalização pejorativa e preconceituosamente moderna que simplifica as performances e os rituais religiosos entre os antigos como supersticiosos, infantis ou manipulações das elites de uma época. Ela também ressalta a diversidade da experiência religiosa entre os antigos, sua pluralidade e seu sincretismo característicos. Nos interessa compreender como as memórias e as experiências diversamente documentadas desse passado histórico são vividas, significadas, de quais maneiras podem se vincular às formas como o poder é exercido, seja em cidades-estados, impérios, comunidades provinciais, regiões de fronteira ou em todos esses loci ao mesmo tempo. Esses múltiplos contatos, permitidos por uma rede de conectividade presente desde a Idade do Bronze, também designou novos sentidos a traços culturais já consagrados em determinadas culturas. Leia Mais

Cavaleiros de cola, papel e plástico: sobre os usos do passado medieval na contemporaneidade | Carlile Lanziere Júnior

Adolf Hitler numa propaganda nazista vestido com uma armadura e empunhando um estandarte com a suástica, manifestantes conservadores armados com escudos e espadas nos Estados Unidos, um cavaleiro com trajes que remetem à Idade Média e falas em latim convocando para atos contra o Supremo Tribunal Federal (STF) no Brasil. Percorrendo décadas de usos (e abusos) da Idade Média por movimentos políticos dos séculos XX e XXI, Cavaleiros de cola, papel e plástico: sobre os usos do passado medieval na contemporaneidade (2021) é expressão da atualidade e, quiçá, urgência dos estudos medievais no mundo contemporâneo, em especial no Brasil.

Em seu sétimo livro, o medievalista brasileiro Carlile Lanzieri Júnior, professor da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), explora novos domínios da história e da medievalística internacional, indicando a guinada arrojada que caracteriza as suas investigações nos últimos anos. Ainda que enquadrado entre os jovens historiadores brasileiros, Lanzieri Júnior é nome reconhecido entre os medievalistas do país, com dezenas de artigos e capítulos voltados, sobretudo, ao tema da sociedade e educação na Idade Média Central, dos intelectuais medievais e do controverso Renascimento do século XII. No entanto, demonstrando a inquietude que marca os intelectuais, ao menos desde 2016 o autor vem debruçando-se sobre novas abordagens e referenciais teóricos, em especial a História Global e os estudos pós-coloniais.1 Soma-se a tais vias a preocupação recente com os usos do passado medieval nas mídias digitais e na política contemporânea, temática que orientou projeto de pesquisa realizado na UFMT2 e que tem sido explorada nos últimos artigos,3 lives e eventos nacionais. Destarte, pode-se afirmar que Cavaleiros de cola, papel e plástico foi forjado no intenso diálogo acadêmico, estando atento aos problemas do tempo presente. Leia Mais

Hacia un mapa de los usos del pasado en América Latina | Cuadernos de Historia – Serie economía y sociedad | 2021

Este dossier reúne siete trabajos sobre usos del pasado -recursos clave para comprender los procesos de legitimación del poder- que se produjeron a lo largo del siglo XX en distintos países de América Latina. Un nuevo y más amplio concepto de historiografía, entendida como práctica sociocultural, ha impulsado a la historia de la historiografía a abordar diferentes formas de historización, no sólo las profesionales.

Dentro de este vasto campo de estudios y desde una perspectiva que vincula la historia de la historiografía con la historia política, preocupada por dar cuenta de la construcción de imágenes sociales del pasado, como plantea Cattaruzza, 1 nos preguntamos por las operaciones historiográficas – en el sentido pensado por Michel De Certeau – productoras de distintas lecturas sobre el pasado, realizadas tanto por historiadores, aficionados, cronistas como por los usuarios de las mismas, conformados por diferentes actores políticos – oficialistas, opositores, militantes. Leia Mais

Usos do passado recente na América Latina | Revista Eletrônica da ANPHLAC | 2020

Se o passado sempre é uma construção, a partir das demandas do presente, esta relação é ainda mais evidente no caso de um passado recente, cujas consequências diretas têm fortes efeitos sobre o presente e cujos sentidos permanecem em disputa. Frente às violências e crimes de Estado que marcaram o século XX, a academia, impulsionada pelos coletivos afetados, assistiu a um crescimento exponencial das pesquisas que se comprometem com este passado. Tais estudos se circunscrevem na chamada história do tempo presente, imediata ou do presente, segundo as variáveis denominações nacionais. Trata-se de um campo que se consolidou na historiografia neste novo século, mas que já vinha se desenvolvendo e sendo problematizado desde a década de 1970, especialmente na ciência política e na sociologia (FRANCO, 2018).

A especificidade da história recente reside em um “regime de historicidade” (HARTOG, 2014) em que os fatos e processos do passado interpelam as sociedades contemporâneas na construção de identidades individuais e coletivas. Trata-se de um passado presente, de um “passado que não passa”. Aqui as análises perdem o “ponto fixo” e fechado de um passado do qual seria possível aproximar-se com alguma “distância”, “objetividade” e “perspectiva”, para se constituírem “em um diálogo e uma escuta atenta às demandas e interpelações que este passado formula ao presente, razão pela qual deixa de concebê-lo como fechado, finalizado” (PITTALUGA, 2010, p. 31). Este regime é relacional na medida em que confluem passado, presente e futuro (p. 31). Leia Mais

Patrimônio Cultural, lugares de memória e usos do passado/Cadernos de Pesquisa do CDHIS/2020

As políticas patrimoniais no Brasil, por muito tempo, priorizaram a preservação de bens imóveis e objetos que representavam as elites e as instituições públicas e religiosas. Tal ação excluiu uma parcela significativa da população da nossa memória histórica. O que preservar e o que esquecer não é uma ação pacífica e, tão pouco, objetiva ou neutra. Nesse espaço de disputas, a história dos vencedores ditou as normas, assim, museus e outras instituições de memória priorizaram objetos que fortaleceram a representação de grupos que dominavam o cenário político. Negros, indígenas, mulheres, sertanejos, ribeirinhos, seringueiros, moradores de periferias e outros grupos foram deixados à margem da memória nacional e da preservação patrimonial. Leia Mais

Usos práticos do passado | Temporalidades | 2017

Em 1998, Carl Schorske editava pela Princeton University Press o livro que, na edição brasileira, publicada alguns anos depois, recebeu o nome de Pensando com a História. Indagações na passagem para o modernismo. O título do livro é bastante atraente e sugestivo, uma vez que Schorske não propõe pensar sobre a história. Diferentemente, a intenção dele era pensar com a história. Uma pequena mudança, mas que acaba nos conduzindo para outro tipo de reflexão. Convém, portanto, perguntar: o que vem a ser pensar com e de que maneira isto se difere de pensar sobre a história?

Ninguém melhor do que o próprio Schorske para tentar esclarecer a diferença. Segundo ele, pensar sobre a história significa um tipo de tarefa um tanto específica, realizada especialmente pelos filósofos e teóricos desta disciplina, interessados no que ele chama de “uma forma geral de produzir sentidos”.[1] Pensar com a história implica outra prática, cujo elemento central está na mobilização e emprego dos materiais do passado para nos orientarmos no presente. A palavra prática não aparece aqui por acaso. Na verdade, Schorske está se referindo, especificamente, a práticas culturais que configuram sentidos ao passado e formam imagens a partir das quais os homens se definem no presente. O universo abarcado pelos ensaios de Schorske perpassa a sociedade europeia na passagem do século XIX para o XX. Para ele, se no Oitocentos Clio esteve em ascensão, alimentando, pela reflexão histórica, as respostas dadas pelos homens daquele tempo ao processo de modernização pelo qual passavam os países europeus, no século seguinte, o modernismo propôs entender esse processo por ele mesmo, buscando-se, a partir de então, um afastamento e mesmo uma crítica ao historicismo.[2]

As reflexões trazidas por Schorske nesse livro, em especial a proposta de pensar com a história, nos remetem à compreensão do lugar da reflexão histórica numa dada cultura e às diversas maneiras pelas quais as sociedades se relacionam com o seu passado. Isso significa partir de um pressuposto que, embora possa parecer banal, é muitas vezes esquecido por nós, historiadores: o de que as representações que construímos do passado são apenas uma possibilidade dentre os variados usos e sentidos conferidos a ele numa dada sociedade. Isso significa dizer, em primeiro lugar, que o passado não é exclusivo do historiador. Sobre ele, se debruçam diversos agentes e instituições, como outros intelectuais, artistas, escritores e políticos que, de maneiras distintas, tomam o passado como referência para o presente e para a construção de projetos de futuro. Em segundo lugar, isso nos leva a problematizar a ideia de uma relação desinteressada com o passado (inclusive quando nos referimos ao passado dos historiadores), uma vez que esses usos nos apontam para interesses diversos e para o quê do passado é escolhido para ser significado pelos homens do presente.

O interesse por compreender as formas de dar sentido e utilidade ao passado certamente tem ocupado cada vez mais o universo de preocupações dos historiadores. Partindo de múltiplas referências teórico-historiográficas e mobilizando noções diversas – como “cultura histórica”, “usos do passado”, “passados práticos” –, os historiadores têm se debruçado, já há algumas décadas, não só sobre os produtos e procedimentos que caracterizam o seu próprio trabalho (isto é, o trato com a documentação, a narrativa, os pressupostos teóricos que conduzem as análises, o aparato conceitual mobilizado pelos historiadores profissionais quando “fabricam” história), como também têm se aberto para a compreensão das formas de divulgação, adaptação, mediação e vulgarização do passado produzidas por diversos agentes sociais e por meio de diferentes mídias. Tal movimento implicou também numa maior atenção por parte dos historiadores para os públicos que se interessam, consomem e se apropriam desses passados. Questão não menos importante, especialmente no momento atual, em que a maior facilidade de comunicação viabilizada pelas redes sociais faz com que diferentes discursos sobre o passado circulem de forma mais rápida. Discursos, em muitos casos, produzidos não por especialistas e com finalidades políticas muito claras. Tal movimento tem levado os historiadores a uma dupla interrogação: por um lado, acerca do lugar que a reflexão histórica ocupa hoje nas diversas sociedades e da capacidade que este discurso ainda tem de ensinar algo aos homens do presente. Uma velha e conhecida problemática que, a rigor, nos leva a toda a discussão acerca das transformações pelas quais passou o preceito da historia magistra vitae ao longo da Modernidade. A segunda questão pode ser sintetizada no interesse em compreender a relação (ou, talvez, as dificuldades existentes nesta relação) que os historiadores de profissão mantêm com uma audiência que extrapola o grupo dos pares universitários. [3] Como se vê, as duas interrogações se ligam, já que a constituição da história como conhecimento científico e especializado, produzido por um profissional, alterou também o público para o qual falava o historiador. Entretanto, é preciso considerar dois aspectos. Primeiramente, a constituição da história como conhecimento científico não anulou seu papel pedagógico, isto é, a ideia de que era possível aprender com a história. Além disso, o mesmo século XIX, que é reconhecido como o momento de disciplinarização do conhecimento histórico, foi também o período de emergência do historiador na “república das letras”, o que conferiu a ele um lugar de destaque na vida pública. Lugar este que certamente foi alterado e passou a ser ocupado por outros profissionais. Talvez seja por isso que essas questões estejam tão fortes hoje na agenda dos historiadores: qual a força e o impacto daquilo que produzimos para um público “geral”, de não especialistas? Como lidar com as diversas outras formas de dar sentido ao passado, existentes no vasto conjunto de uma cultura histórica, formas que, não raro, têm um alcance muito maior do que nossos trabalhos acadêmicos?

O dossiê temático Usos práticos do passado, que compõe a edição 23 da Revista Temporalidades, insere-se nesse universo de questões, reunindo artigos que debatem os usos e funções conferidos ao passado em momentos distintos e por diferentes sociedades. Como o leitor verá, este número da revista reúne análises bastante variadas, com enfoques e objetos instigantes. Subjacente a essa diversidade, há uma questão maior, que talvez sirva para alinhavar todos os trabalhos, e que diz respeito à mobilização do passado pelos múltiplos “presentes”.

O artigo de Luis Cláudio Palermo, Tempo e temporalidade: transformações semânticas modernas e alguns desdobramentos na produção do conhecimento histórico, abre o dossiê tratando de algumas noções centrais para o campo do conhecimento histórico. São elas: tempo, temporalidade e aceleração do tempo. Dividindo a análise em dois momentos, o autor pretende, inicialmente, fazer uma discussão conceitual, discutindo os novos sentidos dados a esses conceitos na Modernidade à luz das contribuições trazidas por escritores como Heidegger, Norbert Elias e Edward Thompson. Em seguida, aborda o impacto da transformação dessas noções na produção do conhecimento no campo da história.

Carmem Lúcia Druciak, no artigo A obra Songe du Vieux Pèlerin de Philippe de Mézières e sua proposta de reforma da cavalaria francesa na Baixa Idade Média, leva a discussão sobre as apropriações e sentidos dados ao passado para a Europa do século XIV. Tomando o espelho de príncipe que Philippe de Mézières, diplomata e conselheiro real, escreveu para o jovem monarca Carlos VI, a autora evidencia como aquele autor elaborou uma crítica ao estado da cavalaria de sua época e procurou entender uma sociedade em transformação, buscando nos valores do passado uma proposta de reforma para esta instituição.

O artigo La figura del Dr. Francia en la historiografía paraguaya posbélica: la batalla por los héroes, de Bárbara Natalia Gómez, nos conduz ao Paraguai de fins do século XIX para compreender o debate em torno de quais personagens deveriam ser escolhidos para compor o panteão dos heróis nacionais, uma discussão que envolveu os intelectuais, e que ocorreu em um momento central de reconstrução do país após a guerra contra a Tríplice Aliança. A batalha mencionada no título do artigo se deu entre dois historiadores, Manuel Dominguez e Blas Garay, e em torno da figura de Gaspar Rodrigues de Francia, ditador da República paraguaia entre 1814 e 1840 e um dos participantes do movimento que levou à independência do país em 1811. O artigo, além de tratar de algumas questões próprias ao processo de conformação da disciplina histórica no país latino-americano, aponta para as profundas disputas que envolvem a narrativa em torno da independência paraguaia e os valores que seus heróis deveriam representar. Além disso, o artigo de Bárbara Gómez evidencia as intricadas relações tecidas entre o trabalho do historiador e os interesses políticos subjacentes à construção das identidades nacionais.

As íntimas relações entre memória e história e as disputas em torno da memória nacional também constituem pontos centrais do artigo seguinte, Memórias conflituosas no Oeste estadunidense, de Lucas Henrique dos Reis. O espaço estudado desloca-se para o Oeste dos EUA, lugar de intensos conflitos territoriais. Dialogando com os trabalhos de Michel Pollak, o autor parte do memorial construído em uma das famosas montanhas das Black Hills, entendendo-o como representante por excelência de uma memória oficial enaltecedora da Revolução Americana e da Guerra Civil. Entretanto, como mostra Reis, essa memória oficial, alimentada pelas interpretações formuladas por intelectuais e políticos, não anula (e mesmo se choca com) as memórias ditas “periféricas”, ou subterrâneas, produzidas por outros grupos, que, nas palavras de Pollak, “teimam em venerar justamente aquilo que os enquadradores de uma memória coletiva em um nível mais global se esforçam por minimizar ou eliminar”.[4]

A dimensão da memória nacional também está presente no artigo de Thiago de Souza Júnior, Dimensões raciais e políticas educacionais: usos do passado na conformação dos valores estadonovistas. Entretanto, dessa vez o olhar se volta para a dimensão do ensino e para um objeto bastante especial, o livro didático, que ganha relevo na análise. Entendendo a escola como espaço central para a realização dos projetos políticos e culturais do Estado Novo, o autor circula pelos campos dos estudos da memória e do ensino de história, evidenciando o papel ocupado pela história como disciplina escolar na promoção de um discurso identitário, cujo principal veículo de divulgação eram livros didáticos como História do Brasil, de Basílio de Magalhães. Assim, o livro didático de história é tomado aqui como um suporte a partir do qual se difunde uma interpretação acerca do passado, bem como valores característicos de certos projetos políticos.

Em seguida, temos o artigo Repetir para inventar: A recepção dos clássicos na França Ocupada, de Rafael Guimarães Tavares Silva. Aqui, o autor se vale do conceito de falsificação, entendendo-o na sua multiplicidade de sentidos, para pensar como, em uma circunstância histórica específica, escritores franceses como Sartre, Camus, Simone de Beauvoir, Paul Valéry e Jean Anouilh retomaram textos e figuras da Antiguidade Clássica, apropriando-se deles. Isso em um período especialmente crítico, quando a França foi ocupada pelos alemães durante a Segunda Guerra Mundial.

Encerramos o dossiê com o artigo Black Mirror e a cegueira moral da Modernidade, de Maria Visconti. Por meio dele, o leitor, seja conhecedor ou não da série televisiva que dá título ao texto, vai se deparar com uma análise do episódio “Engenharia reversa”, exibido na 3ª temporada da produção. Lançando mão das ideias apresentadas por Hannah Arendt e Zygmunt Bauman, a autora se interroga sobre as lições promovidas por episódios traumáticos do século XX, como o Holocausto, e até que ponto estaríamos, hoje, livres de outro acontecimento como esse. Mas o texto vai além, nos levando a pensar como uma série de grande sucesso, como é Black Mirror, apropria-se de elementos do passado para chamar a responsabilidade dos homens do presente para com o futuro.

Como é possível perceber, o leitor terá aqui a possibilidade de conhecer artigos (em muitos casos, frutos de pesquisas de mestrado e doutorado) que buscaram analisar as implicações políticas, sociais e identitárias de determinadas leituras do passado. Mas as contribuições trazidas pelos textos que compõem esse dossiê não me parecem ficar apenas nisso. Eles também apontam para uma questão central para os historiadores de hoje e que diz respeito a assumir que o profissional da história, ligado atualmente a uma universidade, não tem (e nunca teve) o monopólio sobre o passado, o que nos obriga a aguçar nosso olhar para outras formas de dar sentido ao passado, produzidas por agentes diversos, e que atingem a amplos públicos. Isto é, outras formas a partir das quais as sociedades pensam com a história. Certamente, há aí uma abertura interessante para análises que circulam por campos diversos, como o estudo das memórias, dos intelectuais, da história da historiografia, do ensino e da teoria de história. Os trabalhos publicados aqui são uma amostra desses caminhos.

Notas

1. SCHORSKE, Carl E. Pensando com a História. Indagações na passagem para o modernismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 13.

2. SCHORSKE, Carl E. Op. Cit. p. 13-28.

3. Duas reflexões interessantes nesse sentido foram propostas recentemente por Arthur Lima de Ávila e Jurandir Malerba. Cabe ressaltar que este último autor, ao tratar da questão da recepção para o caso da produção historiográfica, lança mão da noção de “audiência”, compreendendo que ela traria para o centro do debate o “leitor comum”, isto é, “qualquer leitor que não tenha a leitura como profissão”. MALERBA, Jurandir. Os historiadores e seus públicos: desafios ao conhecimento histórico na era digital. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.37, n. 74, 2017; ÁVILA, Arthur Lima de. (In)disciplinando a história: do passado histórico ao passado prático. Disponível em: https: | / www.academia.edu | 17902409 | _In_disciplinando_a_hist%C3%B3ria_do_passado_hist%C3%B3rico _ao_passado_pr%C3%A1tico; acessado em 28 de maio de 2017

4. POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 10.

Ana Paula Sampaio Caldeira – Departamento de História | UFMG.


CALDEIRA, Ana Paula Sampaio. Apresentação. Temporalidades. Belo Horizonte, v.9, n.1, Jan./abr. 2017. Acessar publicação original [DR]

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História, Narrativa e usos do passado / Expedições / 2015

A História seja considerada como ciência ou arte, ou algo entre uma e outra, não pode deixar de ser posta em si no tempo de sua tessitura. Malgrado diga-se que ela possua por objeto um tempo passado, cabe considera-la em todas as suas perspectivas, afinal trata-se de um sujeito que analisa no presente indícios de um passado à sua e outras temporalidades que, por sua vez, será em narrativa lida, apropriada e criticada por sujeitos em um tempo que não se fecha em si. Neste ínterim, expõe-se a complexa constituição da matriz disciplinar enunciada pelo teórico alemão Jörn Rüsen em sua Razão Histórica2. É neste caminho que se constrói este Dossiê sobre “História, narrativa e usos do passado”. Por compreender a história como problematizadora de uma série de questões, em diferentes tempos e espaços; por entender a necessidade de refletir sobre sua escrita e os sujeitos envolvidos; por compreender com Rüsen, na obra citada, que o cotidiano do historiador é a base para reflexão do seu exercício; por compreender a estreita relação entre a História e a vida prática das pessoas; por compreender, enfim, as diversas possibilidades de escrita e de usos que podem ser feitos do passado.

Por todas estas questões, são propostas as reflexões que seguem nos artigos, cabendo, no entanto, uma salvaguarda: a de que, acerca das reflexões sobre a História, narrativa e usos do passado não se limitam ao aqui elencado, mas sim esta é uma fração pequena de áreas tão profícuas à reflexão, por parte de filósofos e historiadores e que estão ganhando espaço entre pesquisadores brasileiros e de diversos países. Feitas essas breves contextualizações, cabe iniciar pelas contribuições dos intelectuais que construíram esta miríade temática, congregando profissionais da UFMS, UniCEUMA, UNIVERSO, UDF, UnB, UFRJ, UFMA e UFPI. A iniciar por uma história que é explicada em desenvolvimento e com uma finalidade, em detrimento da realização do Espírito, portanto plena de intencionalidades em seu devir. Assim podemos perceber as formas da razão associadas à historicidade em Hegel propostas por Delmo Mattos e que denotam, no século de Hegel, uma perspectiva bastante apropriável para o Estado de Direito, logo a serviço da ordem política e de uma elite que usufrui de fato do devir da História no contexto.

Neste sentido, mas em outra linguagem, Diogo Pereira da Silva nos traz à tona a música de Mozart que, na perspectiva apresentada mostra um passado apropriado em uma ópera desejante de representar “uma alegoria velada do monarca reinante, cuja Corte havia comissionado a composição da Ópera para um determinado festejo – como Coroações, Onomásticos, Jubileus, Bodas” conforme diz o autor. Para além do exemplo em questão, o material serve de instrumento para reflexões de outras produções musicais do século XVIII dentro do mesmo gênero que se apropriaram de um passado greco-romano. No âmbito filosófico e literário, Renato Nunes Bittencourt evoca Nietzsche e Eça de Queiroz para pensar o conhecimento histórico e a consciência histórica, no sentido de suas utilidades, benefícios ou malefícios ou, como o próprio autor diz, “benefícios e malefícios decorrentes do uso do conhecimento histórico na condução da vida individual e da consciência social”. De fato, cabe pensar sobre a presença do conhecimento histórico na vida prática das pessoas e nos níveis de consciência a serem percebidos acerca do mesmo. Em uma perspectiva prática, em relação à Educação e movimentos populares, Wellington Lima Amorim e ainda Maria Aparecida Alves da Costa que mostra a própria ação de sujeitos no ato de empoderamento ao buscar definir seus papéis sociais em prol de uma Educação de qualidade. Neste sentido, a apropriação de ideias, o embate e engajamento caracterizam, no plano social, o plasmar de ações humanas no tempo e espaço que anseiam por construir sua própria história e mudar a ordem do estabelecido, criando expectativas em um horizonte de histórias não privilegiam classes subalternas.

E, nos contextos mais variados, não apenas a literatura, a música, a filosofia, a educação ou mesmo as ações humanas denotam apropriações, releituras e usos do passado. A figura do historiador não aparece imune a formas de leitura e as opções teóricas, metodológicas, perspectivas acerca das fontes históricas e construções narrativas são permeadas de concepções de verdade (entre ciência e arte), subjetividades e projeções / construções de identidades e alteridades. Neste caminho os autores Fábio Libóreo, Daniela Scheinkman Chatelard, Rita de Cássia Oliveira e Roberto Nunes Bittencourt problematizam diversas possibilidades e contribuem para uma profícua reflexão das relações entre passado e presente em diversas temporalidades com as quais trabalham os pesquisadores. Espaço aberto e palavras escritas, ficam as contribuições para problematização das áreas que dão nome a este dossiê, com o saboroso gosto de dever cumprido, concomitante à sensação de que a tarefa está incompleta. Gosto este e sensação esta que advém da consciência de que o dizer do poeta Antonio Machado, no tocante à Teoria e Metodologia da História, é uma sentença válida: “Caminante, no hay camino, se hace camino al andar.”3 Portanto, sempre haverá reflexões, caminhos, opções e temas a se tornarem objeto de interesse dos historiadores, basta que estes os construam como tais.

Notas

1. Razão histórica: teoria da história: fundamentos da ciência histórica. Brasília: EdUNB, 2001.

2. MACHADO, Antonio. Poesias Completas. Madrid: Publicaciones de la Residencia de Estudiantes, 1917.

Leandro Hecko – Doutor em História pela Universidade Federal do Paraná e Professor Adjunto do Curso de História da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, campus de Três Lagoas – MS. E-mail: leandro.hecko@gmail.com


HECKO, Leandro. História, narrativa e usos do passado. Revista Expedições, Morrinhos, n6, n.2, 2015. Acessar publicação original. [DR].

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