Usos e sentidos no Patrimônio Cultural no Projeto Porto Maravilha, Rio de Janeiro | Leopoldo Guilherme Pio

1. Do Patrimônio cultural ao Porto Maravilha

O livro de Leopoldo Guilherme Pio se constituiu em uma contribuição importante para se pensar o patrimônio cultural, atualização e sua utilização no contexto das transformações urbanas ocorridas ao longo da última década na região central do munícipio do Rio de Janeiro.

Cabe o apontamento da situação específica desta cidade, sendo fortemente caracterizada como uma metrópole que se desenvolveu a partir de um incremento de suas potencialidades como polo de turismo e de demais eventos, neste caso, esportivos. Desta forma, buscou-se reforçar as estratégias para tornar o Rio de Janeiro como um centro atrator de negócios e atividades correlatas.

Nesta direção, o autor destacou a preocupação central de sua proposta que consistiu em compreender como a memória, contida nos patrimônios históricos, foi utilizada como recurso no contexto da estratégia de revitalização e modernização da região, a partir da proposta de desenvolvimento do Rio de Janeiro.

Tal processo ocorreu a partir da atribuição a cultura e ao patrimônio novas competências para revitalizar áreas degradadas, promovendo uma melhor qualidade de vida. Posteriormente, decidiu-se pelo foco na utilização da categoria patrimônio cultural como um instrumento de promoção do desenvolvimento econômico no interior da proposta do Porto Maravilha.

Para obter este intento, Pio (2017) se utilizou da categoria Patrimônio Cultural como elemento constituinte do patrimônio, presente na cidade do Rio de Janeiro desde os anos 1990, seja, por meio do o projeto do Corredor Cultural, seja com a proposta de 1 instalação do Museu Guggenheim, já sinalizando para o atual 2 momento, mesmo que timidamente. Neste ponto, Pio (2017) considera em seu livro, os termos “usos e sentidos” funcionando como ferramentas que classificam “os principais significados do patrimônio: o patrimônio como oportunidade econômica; como capital de inovação; como instrumento de gestão do espaço público e como símbolo de harmonia social e qualidade de vida”. (PIO, 2017, p.6)

O emprego do patrimônio como ferramenta para se pensar a imagem da cidade como elemento a ser comercializado, inseriu em uma dinâmica de mercado ao destacar pontos positivos e omitindo os negativos. No caso em questão, serão desenvolvidos os pontos positivos que passaram a ser valorizados nesta nova lógica de utilização do espaço urbano.

Tal processo é compreendido pelo autor como “patrimonialização, ou seja, a produção de processos que criam patrimônios, neste caso, na região em que se localiza o Porto Maravilha, em que se destaca o Circuito Histórico Arqueológico de Celebração da Cultura Africana, como representante deste processo.

O próprio autor salienta que a “organização do patrimônio como ramo fundamental da indústria de lugares e do turismo é um indicador desta mudança de paradigma … que se constituiu em mais um legado do que de recuperação de uma herança”. (PIO, 2017, p.59).

Este posicionamento ressaltou a presentificação do patrimônio e da patrimonialização acabando por conectar patrimônio e “marketing das cidades”.

Tal conexão permitiu perceber a aplicação do patrimônio como instrumento que pode funcionar como um “atrativo locacional” (CICCOLELLA, 1996), ou seja, um potencial a ser explorado, neste caso, o patrimônio histórico como uma oportunidade de negócios, como defende Pio (2017).

A partir das linhas gerais do autor, é possível salientar dois pontos relevantes como a implementação de uma proposta de city marketing, termo defendido por Vainer (1999) e Sanchez (2001) e a ênfase em um patrimônio, associado as classes populares, que adquire uma nova funcionalidade.

A primeira delas explica-se pelo fato destes projetos serem elaborados a partir de premissas do city marketing, ou seja, baseado na proposta que adotou o desenvolvimento econômico a partir da valorização de atrativos locacionais que uma cidade possua. No caso carioca, a área a ser “revitalizada”, ou utilizando os próprios termos de Pio (2017), a receber novos “usos” como parte da região portuária do Rio que convencionou-se denominar como Porto Maravilha.

Como pontos a serem desenvolvidos a partir da reflexão de Pio (2017), podemos desenvolver uma intensificação do city marketing e uma “revitalização” que explora uma área “marginal” que compõe uma região mais ampla que possui um projeto com uma perspectiva mais global.

A primeira delas consiste em uma adaptação do “city marketing” para uma área periférica da região central, discutida por Pio (2017) de forma inovadora no seu foco na dinâmica cultural como indutor de desenvolvimento na região do Porto Maravilha.

Esta linha pode ser um caminho valioso, mesmo ao ser aplicado em uma área que possui forte tradição associada a cultura negra como a Pequena Àfrica que passaram a se revalorizados, 3 evidenciando a possibilidade de estimular outras culturas e/ou grupos sociais que não possuem voz, a destoarem dos projetos de city marketing que predominantemente valorizam cultura erudita ou o setor de negócios.

Nesta direção, a discussão de Pio (2017) sinaliza para o reforço na valorização da cultura, neste caso, popular como caminho para se pensar estratégias alternativas para discutir formas de estímulo ao desenvolvimento econômico.

Já o segundo ponto, pensado de forma complementar ao primeiro, trata da revitalização de uma área periférica do centro carioca, suscitando duas questões: o termo “revitalização”, colocado como se não existe vida anteriormente e que daquele momento em diante, tivesse “recuperado” a vida, ou como destacou ABREU (1998), pretendeu-se valorizar uma memória urbana, por meio da “valorização atual do passado” como observado na reflexão de Pio (2017).

Assim, a busca por valorizar o passado, representado na memória urbana, defendida por Abreu(1998), como forma de reforçar uma identidade, neste caso, aquela relacionada a cultura negra, que hoje, por exemplo, instalou-se nos bairros em questão, Saúde, Gamboa e Santo Cristo, como locais símbolos de uma cultura negra que foi recuperado, mas não se criou uma vida nova, mas reforçar a memória urbana relacionado a cultura negra que hoje se tornou um 4 local de valorização e de resistência deste grupo.

Desta forma, a reflexão de Pio (2017) contribui consideravelmente tanto por se referir a oferta de questões quanto na proposição de novos caminhos para discutir o patrimônio, sua re-elaboração e em sua inserção de uma lógica de “comércio” das cidades e de seus espaços diversos.

Notas

1 Consistiu em um conjunto de iniciativas, criadas na região central carioca no decorrer dos anos 1980 até o início dos anos 1990, em que foi incentivada a revitalização desta por meio da utilização de seu patrimônio artísticos, arquitetônico e cultural.

2 Foi uma proposta de revitalização da região portuária da cidade, criada no final dos anos 1990, por meio da implementação de equipamentos culturais como museus, centros culturais e congêneres que sejam indutores de desenvolvimento no entorno da região em que são instalados.

3Esta área foi uma área que possui uma tradicional ocupação de população negra a partir do século XVIII e que continuou no bairro, mas sem valorizar esta tradição, sendo está recuperada nas duas últimas décadas, pela ação do movimento negro.

4 Representado por um passado, que vai desde um local de chegada de escravos negros até locais de interação e de resistência de negros e de sua cultura.

Referências

ABREU, Maurício. Sobre a memória das cidades in Revista da Faculdade de Letras – Geografia, 1 ª série, volume XIV, Porto, p.77-97, 1998.

CICOLLELA, Pablo. Las metrópoles latino-americanas en el contexto de la globalizacion: las mutaciones de las áreas centrais in Para Onde – UFRGS, Porto Alegre, 9 (1), p.01-09, janeiro – julho de 2015.

SANCHEZ, Fernanda. A reinvenção das cidades na virada do século: agentes, estratégias e escalas de ação política in Revista Sociologia e Política, Curitiba, 16, p.31-49, junho de 2001.

VAINER, Carlos. Pátria, mercado e mercadorias – notas sobre a estratégia discursivas do planejamento estratégico urbano in Anais dos VIII Encontro Nacional da ANPUR, Natal, 1999.

Fábio Peixoto – Instituto Federal do Sudeste de Minas Gerais. E-mail: fabiocope@gmail.com


PIO, Leopoldo Guilherme. Usos e sentidos no Patrimônio Cultural no Projeto Porto Maravilha, Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Gramma, 2017. Resenha de: PEIXOTO, Fábio. O patrimônio cultural no âmbito do porto maravilha: novos usos de “antigos” lugares. Urbana. Campinas, v.12, 2020. Acessar publicação original [DR]

 

La ciudad horizontal. Urbanismo y resistencia en un barrio de casas baratas de Barcelona | Stefano Portelli

¿Qué es Bon Pastor? Pregúntale al polvo…

Portelli, 2015, p. 11

La ciudad horizontal… deconstruye la conformación de un espacio barrial periférico atravesado por las prácticas sociales cotidianas y combativas de los sectores populares. La resistencia de los vecinos de Bon Pastor a la demolición de sus hogares en 2007, se concatena con una larga historia de luchas sociales por la defensa de su lugar en la ciudad.

Las Casas Baratas eran un conjunto de cuatro complejos de viviendas sociales unifamiliares, ubicados en la periferia industrial de Barcelona. A partir de los años noventa, los planes de transformación urbana del denominado “modelo Barcelona” consideraron pertinente “poner en valor” una serie de espacios públicos en desuso y antiguas áreas industriales. En esta reconfiguración urbana, Bon Pastor, un barrio pobre y deprimido de una ciudad en transformación, se consideró un espacio propicio para la inversión del capital privado destinada a compradores e inquilinos de clase media. Así, su ubicación estratégica en la nueva trama urbana produjo su valorización inmobiliaria, en paralelo, a la elaboración de un proyecto de viviendas en altura que lo suplantaría. En el caso de las Casas Baratas, o de otros barrios  pobres, la gentrificación (SMITH, 2013) o recualificación urbana posibilita una baja inversión inicial y altas ganancias, una vez concluido el proceso. Es decir, en el capitalismo la urbanización se emplea para resolver los problemas de excedente de capital (HARVEY, 2008). El mercado incorpora grandes excedentes de capital, mientras, los activos inmobiliarios suben su precio. Además, se potencia el mercado interno de servicios y bienes de consumo.

Por esto, el ayuntamiento acordó con capitales privados el traslado de la población a nuevos edificios donde cada familia recibiría un departamento en propiedad. La tentadora propuesta generó una división de opiniones entre los vecinos del barrio. Mientras, los más jóvenes veían en ella el acceso a la casa propia, los más viejos no se encontraban dispuestos a abandonar su “casa” de toda la vida. Estas disidencias movilizaron a una parte de los residentes que se organizaron para enfrentar los desalojos. A pesar de las manifestaciones de resistencia barrial, a partir del 2007, el municipio comenzó con la primera etapa de demolición.

Stefano Portelli, junto al grupo multidisciplinar del Instituto de Antropología de Cataluña, se contactó con los locatarios de Bon Pastor con las primeras noticias de la remodelación barrial en 2004. Su experiencia como observador, paulatinamente se transformó en una experiencia militante, o en sus propias palabras: “a medio camino entre la investigación y el activismo político” (PORTELLI, 2015:12). En efecto, su apoyo a las acciones de los vecinos en 2007, provocó el replanteo del rumbo político que la investigación había adquirido. Como consecuencia de ello, en lugar de desdeñar esta arista se articuló una estrategia metodológica que la incorporara. Así, la etnografía se postula en este trabajo como una herramienta para enfrentar la planificación urbanística contemporánea, y así evidenciar, la cara oculta de estos procesos globales en consecuencias humanas. En otras palabras, La ciudad horizontal compone un relato etnográfico revanchista (SMITH,1996) que complejiza el lugar del investigador revalorizando su condición de sujeto social. Es decir, su agencia y sus intervenciones se asumen como parte del proceso de investigación.

Al recorrer las calles de Bon Pastor, Portelli se preguntaba acerca de la “horizontalidad relacional” que produjo el diseño arquitectónico de las Casas Baratas (viviendas unifamiliares, dispuestas en hileras, formando manzanas). La vivienda como dispositivo arquitectónico aislado ocluye los vínculos con el espacio que configuran dichas prácticas sociales. Como en otros barrios periféricos, las relaciones vecinales configuraron un espacio comunitario donde se desdibuja la distinción entre lo público y lo privado. La puerta, las ventanas y las veredas, abandonan su condición de murallas para convertirse en puentes. El hábitat periférico contempla al barrio como parte del dispositivo habitacional. En el emplazamiento de Bon Pastor, las viviendas a pie de calle colaboraron con una apropiación colectiva de los espacios comunes. Por esto a través de la etnografía, el autor (re)construye desde adentro la historia de la vida cotidiana del barrio y sus habitantes. Minuciosamente, se reseñan las biografías de los vecinos para desandar la “legitimidad territorial” que ellos obtuvieron a través de sus vidas allí.

La memoria de los locatarios es, en parte, la memoria del barrio, y en su yuxtaposición se compone el relato de legitimación territorial. El complejo de Casas Baratas de Bon Pastor se construyó en 1929 durante la Exposición Universal de Barcelona. Después de la primera guerra mundial, se aceleró la inmigración sureña a esta ciudad como resultado de su desarrollo industrial. En 1911 se sancionó la primera ley de las Casas Baratas. Aunque recién en 1924, durante el gobierno de Primo de Rivera, se promulgaron los decretos que obligaban a los ayuntamientos a edificar complejos públicos-privados de vivienda social. En vísperas de la Exposición, este proyecto fundió la solución a dos problemas: la revalorización inmobiliaria del centro y el traslado de los trabajadores a los márgenes urbanos. Carente de asistencia estatal y atravesada por las trayectorias de luchas obreras barcelonesas del último siglo, Bon Pastor configuró una identidad barrial fuerte y combativa.

De la misma manera que el relato de los vecinos compone una estrategia de legitimación territorial, las experiencias combativas son resignificadas para justificar las diversas acciones de resistencia al desalojo. Entre ellas, las persecuciones franquistas a los obreros anarquistas fueron sólo el comienzo. Luego de la guerra, la lucha contra el hambre y la reconstrucción de las zonas afectadas por la contienda impulsó la primera organización de vecinos de Bon Pastor. Asimismo, el régimen autoritario y la presencia de la iglesia en barrio obligaron a los vecinos a unirse para defenderse de ciertos abusos. Nuevamente, la expansión de la droga, en los años ochenta, unió a los vecinos para combatir su erradicación del barrio porque este flagelo afectaba a los más jóvenes de la comunidad. Y ahora, era la resistencia al desalojo, lo que los volvía a unir.

Entre sus experiencias militantes y sus historias de vida se percibe una trama relacional que sobrepasaba lo espacial y se reflejaba en el plano familiar. Para Portelli, esta era la historia de una gran familia. La ubicación de las casas de los entrevistados demuestra que la “horizontalidad relacional” se reforzaba con vínculos familiares. Varias generaciones de una misma familia habitaban en las Casas Baratas. Por esto, el referéndum del año 2004 a favor de las reformas barriales simbolizó una ruptura al interior de la comunidad, y a vez, de las tramas parentales. Por primera vez, vecinos y familias dividieron sus opiniones y no actuaron en bloque.

La ciudad horizontal (re)valoriza la categoría antropológica de comunidad. En ciencias sociales, los espacios periféricos son asociados con resabios de la comunidad de antiguo régimen. La dinámica propia de las relaciones barriales nos devuelven una imagen de estadio primigenio de vida social (CRAVINO, 2009). Así, la comunidad se valoriza teóricamente como una categoría positiva que sigue en vigencia para estudiar las relaciones sociales contemporáneas. Portelli, recurre a ella en un doble sentido. Por un lado, la noción de comunidad le permite indagar en la historia del barrio y los vínculos entre los vecinos. Los relatos personales arman y desarman la vida de ese espacio. Y en este diálogo, un conjunto de familias de un espacio periférico se erige en una comunidad aislada desde arriba y desde afuera que refuerza sus lazos con la experiencia residencial en este lugar. Al parecer, el aislamiento espacial consolida la noción de comunidad que él propone. Por otro lado, la misma comunidad, los cimientos sólidos de su historia, conformaron un movimiento social que enfrenta con acciones concretas la resistencia en el barrio para el afuera. Aunque por momentos ambigua, la definición de comunidad del autor es el punto de quiebre de su explicación. Esta ductilidad de la categoría antropología le permitió tensionarla en un doble movimiento. De un lado, la resistencia del grupo que no acuerda con la destrucción de sus hogares, que a la vez, se fragmenta con los vecinos que aceptaron la demolición, y tensionan lo colectivo desde otra postura. Así, la comunidad se refuerza y se escinde en un mismo movimiento.

El análisis de la conformación del espacio barrial en las Casas Baratas permite un diálogo con otros casos de precariedad habitacional en espacios periféricos. Los asentamientos irregulares latinoamericanos podrían ser un ejemplo de ello [2]. En estos espacios relegados, donde la ausencia estatal es profunda, los vínculos entre vecinos son esenciales para afrontar múltiples situaciones de la vida cotidiana. Al igual que en las Casas Baratas, las experiencias compartidas producen un correlato espacial. Aunque, los asentamientos irregulares, generalmente, surgen con una situación de ocupación ilegal del espacio urbano. Esta informalidad urbana no evita su organización para reclamar por su lugar en la ciudad. Así, como en Bon Pastor, se multiplican las estrategias de resistencia para conservar sus viviendas. El sostenimiento de esas estrategias, muchas veces, refleja lo profundo de los vínculos que se habían originado en el espacio barrial.

Nota

2 Según los países: “Villa Miseria” en Argentina, “Favela” en Brasil, “Callampas” en Chile, “Barriadas o Pueblos Jóvenes” en Perú, “Cartenguiles” en Uruguay, etc. Ver, CRAVINO, María Cristina (Comp.) Repensando la ciudad informal en América Latina, Los Polvorines: Universidad Nacional General Sarmiento, 2012.

Referências

CRAVINO, María Cristina. Vivir en la villa: relatos, trayectorias y estrategias habitacionales. Los Polvorines: Univ. Nacional de General Sarmiento, 2009.

HARVEY, David. La libertad en la ciudad”. Antípoda (7), 2008, pp.15-29.

SMITH, Neil. ¿Es la gentrificación una palabrota? La nueva frontera urbana, Madrid, Traficante de Sueños, 2013.pp.73-98.

Anahí Guadalupe Pagnoni1 – La autora es Licenciada en Historia de la Facultad de Humanidades y Artes de la Universidad Nacional de Rosario. Reviste como profesora auxiliar en la Cátedra de Espacio & Sociedad de la misma institución y como investigadora en el Centro de Estudios Culturales Urbanos (CECUR) de la Universidad Nacional de Rosario. E-mail: anahipagnoni@hotmail.com


PORTELLI, Stefano. La ciudad horizontal. Urbanismo y resistencia en un barrio de casas baratas de Barcelona. Barcelona: Ediciones Bellaterra, 2015. Resenha de: PAGNONI, Anahí Guadalupe. Urbana. Campinas, v.7, n.2, p. 132-135, jul./dez. 2015. Acessar publicação original [DR]

 

La conquista de las vacaciones: breve historia del turismo en la Argentina | Elisa Pastoriza

No final dos anos 1980, quando o historiador francês Alain Corbin escreveu sobre o nascimento do desejo da beira-mar, ele demonstrou minuciosamente o quanto um hábito local é culturalmente constituído de significados que são mutantes no tempo histórico. Assim, aquilo que atualmente parece ordinário ànossa relação com as férias, como as viagens à praia, àserra ou aoutro país, advém de uma prática social construída historicamente.

Na América Latina, o tempo livre, seus usos e representações tem sido objeto de estudo no campo da antropologia e da sociologia do trabalho e do lazer. Esses temas tambémvem desvelando novas possibilidades de investigação no campo historiográfico, que tem prestigiado a investigação do objeto por meio de estudos comparativos, ressaltando e clareando o intercâmbio de práticas e saberes relacionados ao tempo livre e a história dos balneários marítimos no Cone Sul.

O livro La conquista de lasvacaciones: breve historia del turismo enla Argentina, de Elisa Pastoriza se inscreve nessa perspectiva. Seu período de investigação divide-se em três tempos: partindo do final do século XIX, com o surgimento de Mar del Plata e a instalação dos primeiros balneários, prossegue com o fenômeno democratizador e a fundação de novos balneários nos anos 1930, e finaliza com apopularização econsolidação das férias e da vilegiatura marítima nas décadas de 1940 e 1950.

Tanto na Europa quanto nos mares do Sul da América Latina, as águas marítimas foram procuradas inicialmente com finalidades terapêuticas. Neste contexto, o hábito de ir ao mar era uma prática aristocrática, que posteriormentefoi incorporado ao gostodasclasses sociais, tornando-se, inclusive, uma conquista trabalhista. Desde os primórdios até sua democratização, Mar del Plata permite uma reflexão sobre a ascensão e o progresso da sociedade argentina, quereivindicava espaços apropriados para integração e sociabilidade.

Ao que concerte este aspecto que permite uma vida atemporal junto aos espaços de descanso, os centros costeiros podem ser analisados por meio dos seus espaços de sociabilidades, como a orla marítima, arambla, o hotel, o cassino e os clubes de divertimento. Esse arquétipo de balneário europeu teve expressão na América Latina, que ao reconhecer a necessidade do ócio social, incorporou ao imaginário social a ida aos banhos de mar, criando espaços apropriados de integração durante a estação estival.

Para tal hábito, a inauguração do Hotel Bristol em 1888, marca um dos primeiros intentos de modelar a cidade balneária a exemplo dos balneários franceses e ingleses, pois Mar del Plata era o ponto de encontro preferido pela elite portenha. Estas mudanças que se operavam no modo de vida da sociedade Argentina, iam ao encontro da necessidade do ócio e a vida junto à natureza.

Muitos dos balneários surgidos na Argentina nesta primeira fase foram consolidados em terras privadas e seguiram a experiência modelar citadina, com igreja, hotel, serviços, cafeterias e transportes. Este progresso local teve visível impacto no meio ambiente, pois para edificar as cidades necessitou-se conter o movimento das areias por meio do plantio de espécies “adequadas” como pinus, alamos e tamareiras, que acabaram por homogeneizar a paisagem. Ao que concerne esta questão, a autora não contempla em sua análise algumas problemáticas relacionadas ao impacto ambiental, como a drenagem de dunas, a urbanização, a erosão costeira e a poluição, que tanto a vilegiatura marítima quantoo turismo de massa desencadearam no litoral.

As estações balneares podem ser analisadas como um negócio de investimento, que tiveramcomo personagensempresários belgas, franceses e uruguaios, cujo intento foi criar estações marítimas semelhantes aquelas de seus países. A transformação de Mar del Plata em balneário vincula-se ao projeto de modernidade periférica, que por meio de investimentos público e privado, urbanizaram um grande balneário argentino. Além disso, o auspício de Mar del Plata também está relacionado à expansão ferroviária, que apesar de ter sidoum meio de transporte para famílias abastadas, facilitava o acesso de curistas e turistas à beira-mar.

Neste sentido, diferentemente do Brasil, o desenvolvimento de muitas cidades balneárias ocorreram devido à rede ferroviária, no entanto, apesar da ferrovia ser mencionada ao longo do livro, a investigação não prestigia aspectos para uma história das sensibilidades, que poderia abranger o prazer de viajar, a percepção e assimilação da paisagem mutante, a relação com os demais passageiros, ou até mesmo, o antes e o depois da viagem.

Para a maioria da população argentina, osonho de passar férias junto ao mar foi possível a partir da década de1930, quando houve a democratização dos balneários devido à implantação de uma variedade de políticas públicas. Neste período, as estações balneares experimentaram transformações significativas na paisagem social e na estrutura urbana, sendo o governo responsável pelos investimentos em estradas, parques, pavimentação, e ainiciativa privada a responsávelno cuidado com o embelezamento das vias, construção da rambla e dos hotéis. Esta democratização social dos balneários implicou em uma tensão entre a velha e a nova elite, que incorporaram o veraneio com diferentes usos sociais, diferentes daqueles dos primórdios de uma vilegiatura aristocrática.

Com a democratização dos balneários, foram criadas ao longo de uma década novas alternativas para atrair turistas a Mar del Plata e acabar com a ideia de que o veraneio era algo caro e acessível somente a quem possuía recursos financeiros. Para analisar essa questão, a autora investigou fontes diversas, como propagandas de rádio, filmes, revistas, jornais, guias, folhetos e cartões-postais. Sua analise também destaca outros meios de incentivo ao turismo, como a diminuição do valor dos bilhetes de trem, introdução da categoria de segunda classe, criação de pacotes em hotéis, colônias de férias e calendário com programação especial durante o verão.

Na medida em que o veraneio tornou-se turismo possível a todas as esferas sociais, novos lugares de descanso passaram a ser procurados pelos argentinos. Esses locais tinham uma conotação mais alternativa e estavam conectados com a natureza, sendo uma forma de contraponto ao perfil urbano e massivo que Mar del Plata havia adquirido. Assim, a paisagem da serra de Córdoba, as cataratas de Iguaçu e as novas praias solitárias, como Pinamar e Villa Gesell, “marcaram o futuro dos novos âmbitos do turismo na Argentina”.

Elisa Pastoriza sublinha que esses novos balneários se distinguiram dos anteriores devido à nova concepção do traçado urbano e pela valorização do meio natural, que até então não contemplavaespaços para passeios e praças. Como exemplo deste novo modelo de balneário está Pinamar, que surgiu em 1943, como resultado da parceria entre Jorge Bunge e Valeria Guerrero Cárdenas. Estes, por sua vez, intentaram a harmonia entre a natureza e a urbanização moderna, constituindo um espaço de ócio, que se denominava como um “lugar que se recomenda de amigo a amigo”.

O impacto e a significação social das férias se consolidaram na memória coletivadurante os anos do governo peronista, sobretudo para a classe trabalhadora. Em sua presidência, Perón colocou em prática um programa de políticas públicas que, juntamente com as iniciativas geradas desde a sociedade civil, buscava responderas demandas sociaispelo tempo livre em âmbitonacional. É diante deste marco que se apresenta a conquista das férias pagas, que já era privilégio de alguns nos anos 1930, mas que se generalizou nos primeiros anos do governo peronista. Este fator também aumentouo consumo a outros entretenimentos populares, como salas de cinema, espetáculos esportivos e, consequentemente, o crescimento do turismo.

Tal programa de ócio e turismo peronista estava ligado a um discurso político, de caráter nacional, no qual o tempo livre sugere um fomento ao amor à terra em que o indivíduo nasceu, elegeu para viver, mas que pouco conhecia. A ampliação deste “projeto de turismo social” deu-se através de uma aliança entre o governo e os sindicatos, que foram responsáveis por orientar o povo com o argumento de que “viajar, passear e fazer férias era um meio de enriquecer a cultura e conhecer outros trabalhadores”. Sobre as problemáticas e questões relacionadas as férias trabalhistas, a autora sinaliza que esta conquista não deve ser considerada uma mera reinterpretação ou réplica dos costumes da elite, carecendo um melhor cuidado por parte dos historiadores na interpretação dos fatos.

Assim, de alpargatas à beira-mar, os argentinos constituíram uma história da vilegiatura marítima em seu país, da qual a passagem da conquista do veraneio para o princípio do turismo de massa é o fio condutor apresentado por Elisa Pastoriza. A conquista das férias implicou uma nova paisagem, que corresponde a mudanças físicas no território por meio de uma série de equipamentos, como hotéis, ramblas, casinos, estradas, parques e outros, mas também transformações sociais, políticas, culturais e rituais que refletem na prática do veraneio. Este estudo permite repensar as relações entre os países da América Latina, possibilitando novas investigações que fortalecem a identidade eas histórias individuais de cada paíspor meio de um hábito comum que se repete todos os verões à beira mar.

Joana Carolina Schossler –  Programa de Pós-graduação da Universidade Estadual de Campinas.


PASTORIZA, Elisa. La conquista de las vacaciones: breve historia del turismo en la Argentina. Buenos Aires: Edhasa, 2011. Resenha de: SCHOSSLER, Joana Carolina. Urbana. Campinas, v.4, n.2, p.184-187, jul./dez. 2012.  Acessar publicação original [DR]

 

Plato and the city | Gabriele Cornelli

Sinal dos tempos de globalização, o livro Plato and the City, editado por Gabriele Cornelli, da Universidade de Brasília, e Francisco Lisi, da Universidade Carlos III de Madrid, está em inglês, recheado de citações em grego, foi publicado em 2010 na Academia Verlag de Sankt Augustin da Alemanha, sobre Platão e a cidade. Não há um urbanista no elenco, mas professores de filosofia antiga. Se queriam apenas “especialistas”, poderiam ter deixado o latim atual, a língua inglesa, e escrito o livro em grego. Sinal dos tempos: não só o intelectual brasileiro, mas também o espanhol, o italiano ou o francês que quiser dar uma contribuição para o mundo, precisa publicar em inglês. Quem escreve em português, parece estar morto de antemão para o mundo da ciência, da arte e da teoria. Não se trata aqui de bater no peito e se orgulhar da língua portuguesa. Ela resulta de uma dupla derrota e uma dupla prepotência: derrota dos povos ibéricos invadidos pelos romanos; derrota dos povos indígenas pela invasão lusitana; prepotência romana sobre as pro-víncias (regiões vencidas), prepotência senhorial lusa sobre a língua geral que se falou no Brasil até o século XVIII.

Se o livro foi publicado em inglês para um mundo dito latino, cabe examinar se ele merece o temor reverencial do neolatim da hegemonia atual. Caberá ver a que nos leva essa interiorização da dominação alheia. Está-se discutindo a questão da justiça nas relações sociais, o direito que o filósofo se atribui não só para dizer o que ela é, mas transformar sua definição em prática de governo. Está em jogo, portanto, a pretensão do filósofo de se considerar dono da verdade e formar uma casta governamental. O ponto nevrálgico disso está no Livro VII da República, conhecido como “mito da caverna”, o que leva a releitura dessa obra de trás para diante, dando prioridade ao seu “fecho de ouro”, o momento em que Sócrates desmonta todo o sistema proposto.

O que menos se deve fazer, no entanto, é mitificar e mistificar essa alegoria estendida, essa parábola do “mito da caverna”. Assim como, em vez de fazer de Platão um monopólio de helenistas, teria sido estratégico levar em conta o que um urbanista teria a dizer quanto à visão dele sobre a cidade, não teria sido nocivo o olhar de um literato. Professores de filosofia tendem a ver em Platão apenas um filósofo, quando, antes de mais nada e sobretudo, ele é um escritor. Isso pode parecer pouco, parecer inferior, para quem afirma em alta voz que Nietzsche não é um filósofo e sim apenas um escritor. A pergunta que se impõe é o que fica aí escondido, o que não se quer que seja dito.

Isso se torna ainda mais difícil de expor numa “resenha”, da qual se espera que ela seja uma propaganda do livro, pois é isso o que impera no país. Não há mais crítica literária no Brasil. Os espaços na mídia são tomados por poucas editoras grandes, que divulgam aí seus livros, ignorando os dos concorrentes. Não há também mais crítica de cinema nem cadernos de ideias no Brasil. Estranhamente, havia mais liberdade para esse tipo de crítica nos pérfidos tempos da ditadura militar do que hoje, tempos ditos de democracia. Quando a censura foi encerrada oficialmente em 1985, ela se interiorizou na mídia e se deixou de ter a frente ampla pela liberdade de expressão que reunia intelectuais de segmentos diversos durante a ditadura, gerando nichos críticos.

Olhando a extensa bibliografia publicada no final do livro, p. 125 a 131, ficam evidentes duas ausências sintomáticas, como se não tivessem nada a dizer sobre Platão e nunca tivessem dito nada crucial: Nietzsche e Heidegger. Tratei de retomar proposições deles num capítulo sobre “a alegoria da caverna”, no livro Fundamentos da teoria literária, publicado em 2002 pela Editora da Universidade de Brasília, mas que já havia sido escrito quinze anos antes. Não se trata de vaidade, mas de retomar um ponto central, já tornado público e que desloca a discussão. Não adianta ignorar o que já foi dito e que altera de modo fundamental a temática, fazendo-se de conta que a discussão pode ser mantida nos termos da conveniência conivente. Ser professor de filosofia não é ser filósofo. Aliás, os grandes filósofos não fizeram doutorado em filosofia, não poderiam lecionar nos cursos de filosofia que deveriam estudar suas obras.

Quando se retoma um grande filósofo, a tendência dominante é diluir seus questionamentos, divinizar algumas assertivas, ser peão de seu rodeio, em vez de pegar o pião dos problemas na unha e tratar de pensá-lo adiante. As grandes obras guardam em si uma diferença, um abismo, entre o que elas puderam dizer e aquilo que elas gostariam de ter dito, mas apenas conseguiram sugerir. Se o leitor não conseguir penetrar nesse reino da diferença e recriar seu imaginário, ele não vai captar os impulsos e as pulsões que movem a obra e constituem o estatuído. Ele não vai conseguir pensar adiante, sem pensar adiante não vai conseguir chegar ao que foi pensado.

Qual é a pólis que existe dentro da caverna? Ela é um resumo da sociedade grega e de todas as sociedades de classe. Divide-se entre uma minoria de senhores ociosos e uma maioria de serviçais de dois tipos. Os ociosos são alimentados e cuidados por escravos e ficam olhando o cinema das sombras projetadas na parede a partir de uma fogueira nos fundos. Há “artistas”, titiriteiros ou bonequeiros, que movimentam figuras e imitam vozes: eles se enquadram entre os serviçais. Tanto as figuras quanto as vozes copiam entes que existem fora da caverna. Para fazer isso, os “copistas” precisariam ter saído da caverna e visto como é o mundo lá fora. Isso não é, porém, lembrado na argumentação do “filósofo”, embora esteja contido na fábula.

A fogueira deve ser alimentada provavelmente por madeira, já que não há a menor referência a uma fonte de petróleo permanente na caverna. Árvores não crescem dentro de cavernas. Os escravos precisariam sair da caverna para buscar a madeira. É muito provável que tenham de ir lá também a fim de arranjar alimentos para si e para seus senhores, pois seria absurdo que comessem apenas musgo e cogumelos.

No discurso de Sócrates, sem contradição do coroinha Glauco, é apenas entre os ociosos que há de surgir alguém que se liberte das cadeias e vá até lá fora, vendo a maravilha do sol como centro do universo (essa bobagem é postulada como verdade absoluta em contrapartida à doxa do geocentrismo). A saída necessária dos artistas e a dos escravos não é considerada. Oficialmente ela nem acontece. O filósofo só pode aí surgir entre os aristocratas, jamais entre os que trabalham. Ele quer ser aristocrata sendo filósofo, ele quer ser servido, ele quer mandar. Sabe-se o estrago que essa proposta de meritocracia fez à razão crítica ao ser implantada como estrutura da Igreja Católica.

Quando se transforma uma história em mito, ela é sacralizada, tornada tabu, não pode mais ser questionada em suas contradições, omissões, errâncias. A exegese trata de acobertá-las, fala do menor como se fosse maior, deixa o maior de fora, distorce, finge, mente. A hermenêutica filosófica deveria ser o contrário disso, mas continua presa à exegese teológica. Quem julga os juízes? Qual é o mérito do mérito?

Na República, o filósofo não é alguém que ama o saber: ele ama, antes e acima de tudo, o poder. Por isso participa da mentira. Ele finge que nem os artistas nem os que trabalham já saíram antes dele da caverna, que ele é o primeiro e único e, por isso, merece o poder. Ora, o poder ele já tinha, estava entre os que eram servidos, o que ele propõe é uma nova casta sacerdotal no poder, a dos pseudofilósofos. Não é irônico, e ainda mais eficaz, que essa proposição seja feita por Sócrates, que não tinha origem aristocrática? Por que um filósofo não pode surgir entre os que trabalham? Não foi Kant filho de um carpinteiro?

Quando Heidegger examinou o mito da caverna, insistiu muito no perigo que o filósofo corre quando se dispõe a libertar seus antigos companheiros das cadeias que os prendem. Eles não querem ser libertados. Eles preferem continuar no estado de alienação. O pressuposto é, porém, que o filósofo realmente sabe o que é a verdade, que ele está acima da doxa da plebe e dos demais contemplativos. O que ele tem por verdade é, no entanto, mais um erro, que não se corrige com a assertiva de que o sol é apenas uma estrela de quinta grandeza, já que não se conhecem todas as estrelas. Supor que a verdade seja um “desencobrimento” sugere que ela já tenha estado aí um dia, tendo apenas sido esquecida. Isso leva a fetichizar a etimologia como filosofia.

É uma grande ruptura propor aí que a maioria dos membros da oligarquia não quer nada com nada, quer apenas ficar sendo servida, gozando uma vida vegetativa. Isso significa que não vai ter mérito todo aquele que tem sangue nobre, mas que é preciso ter sangue azul para poder ter mérito. É o mesmo que Sófocles postulou na trilogia tebana, quando aparentemente ousou propor que fosse alçado ao poder alguém que mostrou ter mais mérito do que os demais, mas que acaba se revelando como filho do antigo rei. É um reformismo que nada tem de revolucionário. O erro da aristocracia não faz, todavia, com que o “povo” esteja certo, que dele emana toda a verdade: a Terra continua não sendo o centro do universo, já porque não há universo nem centro. Só não há classe baixa porque a alta não é elevada.

Se o “filósofo” nega o seu nome e não é amigo da verdade, mas como qualquer político apenas usa o discurso para chegar ao poder, ele não tem “mérito” maior, ele não representa a verdade. Por isso, é preciso desconfiar de toda a sua argumentação, mesmo quando se supõe que haja algo como um princípio de justiça, e que a justiça não se deve confundir com a vontade do mais forte. A República precisa ser relida pelo avesso. Assim como a Bíblia, ela deve ser dessacralizada para ser entendida como a ficção que ela é. Isso acaba com o tabu e o temor reverencial, mas permite estabelecer outro tipo de diálogo e reconhecer outra grandeza, a literária.

Sócrates propõe a existência de um mundo das ideias do qual os entes reais seriam cópias, mas, no fim, quando propõe a Glauco andar pelo campo com um imenso espelho, ele sugere que existem primeiro as coisas reais e só depois o reflexo delas na mente humana. Numa obra que é basicamente uma criação ficcional, ele elogia Homero como grande poeta, para depois dizer que ele teria de ser expulso da cidade ideal, já que os artistas ficam inventando outros mundos. Ora, com isso ele acaba questionando e desconstruindo tudo o que havia proposto. Se Homero merece ser preservado, é problemática a proposição de um Estado totalitário, que não dê liberdade ao artista, em que um artista como Homero não possa ter espaço (como não tem na escola brasileira).

Questões centrais como essas aqui aventadas a título exemplificativo, pouco vi propriamente discutidas e levadas adiante pelos autores que compõem essa antologia (que é, aliás, muito boa para o relatório da CAPES e o currículo Lattes). Quando eles beiram alguma questão, em vez de pensarem por conta própria adiante, em geral recuam e tratam de ver o que o Mestre disse. Uma coisa é, porém, o que Sócrates diz, outra o que ele pensa sobre o que diz, uma terceira é o que Platão pensa sobre o que Sócrates pensa sobre o que Sócrates diz: maior é, no entanto, aquilo que o escritor Platão deixou entrever para que se pense adiante. Cada caixa maior altera a menor nela embutida. Em vez de ficar preso ao primeiro nível, teria sido melhor que os membros da antologia tivessem ousado ir para o quarto nível.

Flávio R. Kothe – Professor titular de Estética na FAU/UnB, autor de obras sobre o cânone literário brasileiro, a narrativa trivial, a teoria literária e a arte comparada, tradutor de Nietzsche, Marx, Kafka, Benjamin, Adorno, Habermas e outros, autor de poemas, contos e novelas.


CORNELLI, Gabriele; LISI, Francisco L. (Eds). Plato and the city. St. Augustin dei Bonn: Academia Verlag, 2010. Resenha de: KOTHE, Flávio R. Urbana. Campinas, v.4, n.1, p.251-255, jan./jun. 2012. Acessar publicação original [DR]

 

Pour une anthropologie de l’espace | Françoise Choay

Françoise Choay é bem conhecida do público brasileiro, por vários de seus livros e artigos já traduzidos para o português, como A regra e o modelo, ou a Alegoria do Patrimônio. Este livro, recém-publicado na França, não é exatamente uma obra nova, mas a coletânea de trabalhos esparsos e de difícil acesso, coligidos para a coleção La Couleur des Idées, da editora Seuil. Embora escritos ou publicados entre 1985 e 2005, seus textos apresentam uma incômoda atualidade.

A própria autora, em seu prefácio, chama a atenção para a heterogeneidade dos temas tratados, mas adverte, o que a leitura confirma, que seus textos possuem uma “dupla unidade de objeto e de tempo” (p. 7). Uma unidade de temas, pois para ela edifícios singulares e arquitetura, cidades e urbanismo, monumentos e conservação patrimonial, projetos icônicos e projeto político, são formas e práticas múltiplas de uma mesma e única atividade, “cujo desdobramento no espaço natural permite às sociedades humanas edificar o seu meio próprio” (pp. 7-8). E uma unidade temporal, não necessariamente de suas balizas cronológicas, que vão do século XV de Alberti ao século XXI do patrimônio mundial, mas do período no qual estão inseridos os textos escolhidos, que a autora afirma estar marcado por uma revolução eletro-telemática, ou informacional, de enorme impacto sobre a cidade, o urbanismo e o patrimônio.

O livro está dividido em quatro partes: História e Crítica, O Urbano, Patrimônio e Antropologia; ainda que sejamos advertidos que esta classificação é em parte arbitrária, e estes temas se entrecruzem constantemente. Justamente a antropologia, que dá título ao volume, dá uma unidade conceitual a estes textos aparentemente heterogêneos. A autora insiste nesta “função antropo-genética da espacialização” que, segundo ela, está totalmente ausente do debate sobre a arquitetura e o urbanismo, mesmo nos órgãos de administração ou na “praça pública”, unânimes em “celebrar o caráter lúdico e mediático de todas as ‘artes do espaço’, devotados “ao deus da moda e das finanças” (p. 10). Ou seja, Choay procura destacar o caráter não-natural da arquitetura e da produção de cidades, nos quais a política e a ação do homem são constitutivas, muito mais do que uma técnica pretensamente científica e neutra.

Sua primeira crítica é endereçada, então, a Le Corbusier, num texto que o coloca em perspectiva. Seu interesse não é tanto a obra de Le Corbusier, como um determinado aporte moderno sobre a arquitetura e a cidade, representada pelo arquiteto suíço. Tampouco são as carências técnicas de suas obras construídas, embora não deixe de apontá-las; mas demonstrar o que denomina “a dimensão retórica do funcionalismo corbusiano” (p. 16). Justamente porque esta dimensão retórica é o aspecto mais importante da obra do arquiteto, responsável pelo que Choay considera a sua incompreensão da condição antropológica da urbanização; ou mais claramente, a ausência de uma dimensão verdadeiramente urbana de seus projetos de metrópoles (p. 21). A dimensão polemista de seus textos, mais abundantes que sua obra construída, e sua recepção altamente midiática, seriam responsáveis pelo alcance de seu trabalho no pensamento urbanístico, a despeito de sua incompreensão da real dimensão da técnica na cidade, ao contrário dos esquecidos Ildefonso Cerdà, que Choay não se cansa de recuperar, e Gustavo Giovannoni, ou de Camillo Sitte, acusado pelo mesmo Jeanneret de passadista.

Apoiado numa ideologia progressista, Le Corbusier presume, assim, a universalidade das necessidades do homem, por isso a possibilidade de se construir as suas famosas “máquinas de morar” e “máquinas de habitar”; mais do que isso, “trata-se de conceber, para o homem universal, protótipos reprodutíveis de cidades e não mais apenas edifícios isolados” (p. 25). Trata-se de uma modernidade universalizante e “desumana”, destinada a um “homem teórico”, portanto inexistente (p. 36). Mas o arquiteto suíço não é o único representante desta ideologia progressista, composta de “imperativos categóricos, de paralogismos, de amálgamas terminológicos, de referências a saberes não dominados, de metáforas falaciosas”, cujos autores se instauram como “detentores e enunciadores da verdade arquitetônica e urbanística”; dos quais o mais talentoso, e midiático, é hoje Rem Koolhas (p. 115).

Falta-nos, para Choay, um discurso crítico e autocrítico, ou um “discurso epistemológico” sobre a cidade e a arquitetura, que ela encontra, por exemplo, em Alberti, daí a unidade de objeto de seu texto apesar da enorme distância temporal. Por isso a sua insistência no caráter não prescritivo do De Re Aedificatoria, cuja finalidade não é descrever os meios que permitam “realizar uma série de projetos concretos, nem de propor uma coleção de edifícios ideal-típicos, mas de fazer compreender a significação do ato construtivo” (p. 379). Tanto em Le Corbusier como em Alberti, a autora insiste em seu caráter retórico, que não significa obviamente apenas “discurso”, numa acepção de senso comum, mas de uma preceptiva do ato de construir, uma teoria da arquitetura e do urbanismo (p. 379). A diferença é que Alberti reconhece a dimensão antropológica da construção de cidades e da vida urbana.

Apesar de acusada, como Sitte e Giovannonni, de passadista, por sua defesa da cidade já construída e do patrimônio arquitetônico, que ela toma o cuidado de distinguir do patrimônio histórico, mais ligado aos “abusos de uma indústria mundializada e mundializante do patrimônio” (p. 319), e que não tem, necessariamente, um “estatuto antropológico” (p. 266), Choay chama a atenção para o que considera um grande anacronismo atual: denominar os espaços urbanos nos quais habitamos hoje pelo conceito arcaico de “cidade” (“Ville”: un archaïsme lexical, pp. 148-153). Deveríamos, assim, admitir o desaparecimento da cidade tradicional e interrogar-nos sobre “a natureza da urbanização e sobre a não-cidade que parece ter se tornado o destino das sociedades ocidentais avançadas” (p. 167); o que denomina, baseada em Melvin Webber, de era pós-urbana, título de um dos artigos citados deste autor (p. 200).

Para não deixar dúvidas quanto ao caráter não-passadista de sua obra, chega a sugerir até mesmo algumas demolições vistas como necessárias: da Biblioteca Nacional (ou ironicamente a Très Grand Bibliothèque), por seu “programa anacrônico, concepção anti-funcional, implantação absurda, e custo de funcionamento insano”, a Ópera da Bastilha e o Ministério das Finanças, por sua “desestruturação sem apelo do tecido circundante” e inutilidade (p. 304). Claro que, assim como Alberti, seu texto não é prescritivo, nem um manual de construção de cidades. Suas sugestões polêmicas e impossíveis, nestes casos citados, são muito mais um destaque sobre a forma como determinadas intervenções urbanas não levam em conta um conhecimento antropológico da cidade e do patrimônio e uma profunda incompreensão da significação do ato construtivo, que ela identifica na obra de Alberti. Um debate premente para o qual, infelizmente, possui poucos interlocutores.

Amilcar Torrão Filho – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.


CHOAY, Françoise. Pour une anthropologie de l’espace. Paris: Seuil, 2006. Resenha de: TORRÃO FILHO, Amilcar. Uma antropologia do espaço. Urbana. Campinas, v.2, n.1, 2007. Acessar publicação original [DR]

 

Arquitetura Metropolitana | Denise Xavier de Mendonça

“Não há como pesquisar a arquitetura metropolitana à distância. É preciso abordá-la submersa na congestão urbana, inscrita em relações dinâmicas, mensurada com escalas que se modulam em quantidade, extensão e qualidade de variáveis múltiplas. A realidade da arquitetura metropolitana só pode ser percebida em um mergulho. É necessário tornarmo-nos mais um elemento interferente nessa complexidade congestionada”. Este breve fragmento textual pinçado no livro Arquitetura Metropolitana não é somente explicitação metodológica de construção da pesquisa acadêmica realizada por Denise Xavier, mas fundamentalmente o processo inerente e consubstanciado na própria trajetória profissional da autora. Neste sentido, os processos de interpretação e pensamento sobre a arquitetura não são descolados ou indistintos dos processos de produção da sua própria arquitetura. Em ambos processos, Denise Xavier empreende um mergulho comprometido com dimensões do mundo social, que estão absolutamente associados aos denominados idealistas e ingênuos: a dimensão ética, a dimensão estética e a dimensão política.

No mergulho que cada leitor realizar pelas páginas do livro Arquitetura Metropolitana, certamente encontrará o comprometimento da autora com as premissas de um ofício profissional que está na base da estruturação física das cidades: a arquitetura, ou, como em alguns momentos surge no livro, arquiteturas. Uma estruturação determinante das relações simbólicas e de identidades que são constitutivas da vida em sociedade, da vida pública, da vida que deveria se manter repleta de urbanidade: em tudo que esta vida nas cidades aglutina de diferenças e divergências. As arquiteturas selecionadas pela autora para a compreensão do processo de construção da identidade metropolitana da cidade de São Paulo, a partir da década de 1950, estavam absolutamente integradas nesta construção.

O edifício do Jornal O Estado de São Paulo, o Copan, o edifício Itália e o Conjunto Nacional são realizações que não somente exploram qualitativamente as possibilidades formais, estruturais e espaciais específicas de cada empreendimento, mas também proporcionam e ampliam os espaços da vida pública. São arquiteturas cujas concepções não renegaram as dinâmicas urbanas, as relações entre os ambientes públicos e privados, as interações entre os sistemas de áreas livres e as áreas passíveis de edificação. A compreensão destes aspectos é o ponto nevrálgico do trabalho realizado por Denise Xavier nesse estudo: entender que as arquiteturas não estão desconectadas da cidade, que para pensar arquitetura é preciso pensar a produção da cidade – condição ainda pouco enunciada e enfrentada na historiografia da arquitetura no Brasil.

A organização do livro evidencia este entendimento entre a interpretação da produção arquitetônica e a produção da cidade. Nos dois primeiros capítulos, que em verdade entendo como sendo um único, pela problemática central que os amalgama, qual seja, a da construção da metrópole ao longo do século XX, a autora apresenta as bases urbanísticas, econômicas e políticas desta construção. São Paulo metropolitana tem suas origens instituídas na concepção de cidade pensada por Prestes Maia e Ulhoa Cintra em artigos escritos para o Boletim do Instituto de Engenharia, no ano de 1924. A década de 1950 entra no texto como recorte temporal privilegiado, ápice do processo contínuo de mudanças, sobreposições, apagamentos que reflui da dinâmica de uma cidade em movimento. Para a autora, a cidade se reconhece como metrópole, centro econômico propulsor e condensador das ações que instituem o novo, uma nova ordem urbana e uma nova ordem arquitetônica revelada especialmente nos aspecto vertical das arquiteturas analisadas no livro.

Entretanto, capítulo(s) que pouco ainda reverbera(m) a sensibilidade do olhar objetual-arquitetônico-formal da autora, em sua aguda e instigante capacidade de análise das arquiteturas selecionadas, ou melhor, de qualquer outra arquitetura. Este olhar será enunciado no capítulo dedicado à leitura dos projetos. Leitura e não análise, como está proposto na estrutura do livro. Leitura, pois, no mais puro sentido da palavra, aquele em que se lê decifrando significados construtivos e formais de cada palavra em um texto escrito. Portanto, significados construtivos e formais de cada arquitetura desde a sua concepção-representação (aquela delineada cuidadosamente no papel vegetal à nanquim), até sua instauração como elemento constitutivo das dinâmicas da metrópole em construção. No capítulo dedicado ao estudo dos projetos existe uma articulação entre cada uma das arquiteturas, cuja especificidade torna evidente o entendimento das suas relações com a cidade: a articulação pelos sistemas de circulação que articulam a cidade ao edifício em questão. Sobretudo em uma metrópole capitalista efervescente da década de 1950, os indícios de deslocamento, de movimento, estão impregnados em todos os elementos que perfazem a cidade: nos trens, nos carros, nos relógios, nas pessoas, nas ruas, nas avenidas, na infra-estrutura urbana. Os arquitetos autores dos projetos souberam compreender esta informação, esta transformação, esta incorporação no cotidiano da metrópole. Denise Xavier soube realizar uma leitura atenta à interface dos objetos com os sistemas de circulação vertical e horizontal, respectivamente, o sistema que articula as esferas privadas dedicadas ao trabalho, à moradia, ao lazer, à alimentação, com o sistema que agrega aos edifícios uma importante dimensão urbana.

O primeiro sistema estava intimamente relacionado às novas tecnologias construtivas e mecânicas, atuava e atua como elemento estruturante no processo de verticalização das cidades por possibilitar o deslocamento vertical: o elevador – elemento cuja espacialidade e produção industrializada não apresentava maiores distinções nos edifícios. O segundo sistema está associado aos aspectos instituídos de positividade que a vida urbana representava. É distinto formal-espacialmente para cada arquitetura, empreende relações particularizadas e articuladas aos edifícios em estudo com a cidade, e estrutura a inquestionável associação do objeto aos espaços livres: são passagens internas, galerias e verdadeiras ruas que adentram, intercambiam, articulam cidade e arquitetura. Talvez em menor intensidade no edifício do Jornal O Estado de São Paulo, nos outros edifícios a dinâmica urbana adentra sem barreiras, sem receios os espaços de uso coletivo dos edifícios, os “espaços urbanos das edificações”, do urbano arquitetônico. O olhar sensível da autora para a leitura da arquitetura, associado ao procedimento metodológico enunciado naquele texto pinçado do livro – que integra a parte do livro escrita em parceria com Kazuo Nakano –, especialmente quando afirma que “não há como pesquisar a arquitetura metropolitana à distância. É preciso abordá-la submersa na congestão urbana, inscrita em relações dinâmicas, mensurada com escalas que se modulam em quantidade, extensão e qualidade de variáveis múltiplas”, fazem desse capítulo de estudo dos edifícios o eixo convergente e central de todo livro, de toda a narrativa.

Uma narrativa encerrada num texto em que a autora propôs pensar o contínuo do movimento de metropolização pela contraposição destas arquiteturas analisados com edificações que representam o absoluto esvaziamento da vida urbana, da vida pública, da urbanidade: edificações destituídas de uma essência de lugar, espaços controlados, vigiados, consensuais e homogeneizados em sua abstração estéril. A própria narrativa enuncia a distinção pela oposição das experiências possíveis em cada situação. De um lado, a cidade em suas diferenças, seus agentes, suas arquiteturas, seus símbolos, cheiros, luzes, sons, ou seja, a dinâmica que perfaz a vida urbana. Uma cidade que ainda hoje não consubstancia níveis mínimos de qualidade de vida para uma grande maioria dos que nela habita. Entretanto, uma cidade que não esconde as indesejadas diferenças, pois nela estão a perscrutar suas vidas por todos os lugares, sejam praças, viadutos, calçadas, ruas, marquises e favelas.

Por outro lado, espaços que pouca apreensão permitiram aos seus interlocutores na tentativa de mergulhar em suas especificidades. Conjunturas construtivas envidraçadas, muradas e climatizadas que enunciam os novos interesses do capital na metrópole. Para estas conjunturas as cidades são vazios de interligação entre pontos de concentração financeira internacional, circundadas por um conjunto de equipamentos complementares: condomínios fechados, shoppings e aeroportos. A crítica a estas conjunturas é sensivelmente enunciada pela insensibilidade que delas emana. Preocupante é a constatação da transformação e adequação daquelas “arquiteturas metropolitanas” aos preceitos que processam a indiferença e a exclusão com os indesejados que habitam a cidade.

Opor-se a estes processos é parte daquelas três dimensões que perfazem a trajetória profissional de Denise Xavier: a dimensão ética, a dimensão estética e a dimensão política. Seu livro não é algo isolado na ação desenvolvida como arquiteta e urbanista, mas consubstancia e amplia sua inserção crítica na metrópole paulistana em contínua construção. Nesse sentido, seu livro não é sobre um conjunto de edifícios importantes para a história da arquitetura no Brasil, especialmente para a arquitetura paulista. Seu livro trata da construção da cidade, da construção da cidade de São Paulo como metrópole. Sua importante particularidade passa pela compreensão de que a arquitetura é parte da cidade, integra todo o conjunto de dinâmicas com as quais a sociedade se mantém ativa e em transformação.

Seu estudo é sobre a necessidade de retomarmos a consciência de que o esvaziamento da cidade, a negação da cidade é a negação da própria sociedade como agente transformador. Ao arquiteto cabe a responsabilidade, ou melhor, deveria caber a responsabilidade pela produção de arquiteturas comprometidas com a vida urbana em todas as suas diferenças e antagonismos. Porém, em “Arquiteturas Metropolitanas” constatamos que os processos contemporâneos de construção da cidade estão exclusivamente pautados pelos interesses do capital na (re)produção dos espaços homogêneos e consensuais cuja valorização ocorre pela indiferença ao entorno, à paisagem, à dinâmica da cidade. Uma constatação que deve gerar uma indagação autocrítica que passa primeiramente pela formação dos quadros profissionais no país: qual arquiteto estamos formando, qual arquiteto queremos formar? Certamente a despolitização do processo de formação pautado exclusivamente por sistemas técnico-informacionais contribui intensamente com o esvaziamento dos significados sociais, culturais e políticos da profissão de arquiteto e urbanista, da própria arquitetura.

Como afirmara Christian Topalov, “as ciências da racionalização urbana e das finalidades sociais são radicalmente colocadas em questão pelas ciências da celebração do mercado e da ‘revolução liberar’. Os especialistas de umas e de outras não são do mesmo mundo. Nosso saber está, aberta ou secretamente, a serviço do Estado, o deles está, sem complexos, a serviço da empresa. Quaisquer que sejam nossas inclinações políticas, nossas definições disciplinares ou nossas preferências teóricas, temos talvez algo em comum: os adversários” (TOPALOV, 1991). Em Arquiteturas Metropolitanas, Denise Xavier não se esquivou da necessária crítica aos “adversários” que ela bem sabe quais são. Convém, no entanto, enunciar uma discordância com Denise Xavier, quando afirma que “não há como pesquisar a arquitetura metropolitana à distância”. Não há como pesquisar qualquer arquitetura à distância, pois, como integrante da cidade, seria como pesquisar a cidade estando distante dela, estando deslocado dela. Aliás, o distanciamento é um dos principais instrumento utilizados pelos nossos “adversários” na desconstrução das cidades, na desconstrução da vida urbana, seja ela metropolitana ou não.

Referência

Topalov, Christian (1991). Os saberes sobre a cidade: tempos de crise? In: Espaço & Debates, Revista de Estudos Regionais e Urbanos. Ano XI, n. 34: 37.

Rodrigo Faria – Arquiteto e urbanista, Mestre e Doutor em História pelo Departamento de História do IFCH-UNICAMP, Pesquisador do Centro Interdisciplinar de Estudos da Cidade do IFCH-UNICAMP, Becário Fundación Carolina/Universidad Politécnica de Madrid.


MENDONÇA, Denise Xavier de. Arquitetura Metropolitana. São Paulo: Annablume; FAPESP, 2007. Resenha de: FARIA, Rodrigo. Arquiteturas e dinâmicas urbanas na interpretação sobre a construção metropolitana. Urbana. Campinas, v.2, n.1, 2007. Acessar publicação original [DR]

 

Urbana | Unicamp | 2006

Urbana1 Urbana

Urbana (Campinas, 2006-) é a revista eletrônica do CIEC (Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Cidade), Centro de Pesquisa vinculado ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, foi estabelecida em 2006 por iniciativa de historiadores dedicados aos estudos urbanos, Amílcar Torrão Filho, Josianne Cerasoli, Rodrigo de Faria, Viviane Ceballos, com apoio de Cristina Meneguello, Stella Bresciani e Silvana Rubino.

O periódico dedica-se à publicação de artigos baseados em pesquisas originais, de resenhas e de traduções, sempre dentro da temática ampla da história urbana. Os artigos podem versar sobre o tema do Dossiê proposto para cada edição ou podem compor a seção de artigos livres.

A revista eletrônica Urbana recebe contribuições destinadas ao público acadêmico voltadas ao estudo de temas relativos à produção do universo urbano na sociedade moderna/contemporânea, prioritariamente em perspectiva histórica, tais como: história da cidade e do urbanismo, políticas públicas, intervenções urbanas, políticas de preservação e patrimônio, avaliações críticas e reflexões sobre a cidade, cultura e linguagens urbanas, espaço político/público, saberes eruditos e especializados sobre a cidade, tensões sociais e cidadania.

Periodicidade quadrimestral.

Acesso livre.

ISSN 1982-0569.

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