ArteCidade / Urbana / 2019

Em consonância com o escopo da Revista Urbana, o dossiê ArteCidade amplia suas reflexões – sobre a produção do universo urbano em perspectiva histórica – enfocando desta vez produções e manifestações artísticas que florescem no meio urbano e tensionam suas ordenações.

Se Argan viu a “história da arte como história da cidade”, procuramos ver aqui como a arte tem se relacionado com a cidade, tem transformado o significado de seus espaços, e tem sido suporte para narrativas as mais diversas. Seria a arte que produz narrativas de cidade ou a cidade que produz arte? Da arte intrinsecamente urbana à arte desterritorializada-reterritorializada na cidade, podemos nos esquivar, como em um jogo de corpo de capoeira, dos cânones da história da arte, já amplamente difundidos ou mesmo repetidos, buscando nos concentrar na ginga sempre mutante das mais diversas manifestações artísticas, possibilitadas, inspiradas, cultivadas, provocadas pela atmosfera citadina. Falamos de arte intimamente relacionada com a cidade, que se cria a partir de brechas e das condições de possibilidade de muitas existências, de outras estéticas. Seja na estática de um edifício ou no movimento de um corpo, se há manifestação de posicionamento artístico e / ou ênfase poética, ambos entendem da necessidade-arte da viração na cidade. Das artes faladas, cantadas e escritas às artes caladas pelo cinza da tinta – ou por uma nova norma de uso do espaço público –, este dossiê vem difundir trabalhos textuais, no entanto, sem abrir mão dos referenciais imagéticos, sonoros, [olfativos, táteis] que, nas tensões das múltiplas linguagens, dialogam entre si evidenciando as interações da ArteCidade. O diálogo pode se dar ainda entre diferentes cidades, ou entre diversas formas de se abordar o mundo urbano; material, virtual, imagético.

As possibilidades de diálogos e conexões são muitas e foram aqui incentivadas, assim como as dinâmicas criativas do universo da fabulação, o qual comporta todas as categorias de expressão artística. Por isso, convidamos pesquisadoras / es que se interessam pelas composições da arte urbana, considerando suas dimensões subjetivas, simbólicas e materiais. Com suas inquietações fomos percorrendo outros caminhos, desvios da norma, pontos incomuns, subterrâneos, periferias e margens estilhaçadas. Paredes, muros e becos. Ruas, multidões, grafias e sonoridades. Cidades nas margens do Rio Paraná em Rosário, Argentina, nas paredes de Cachoeira no Recôncavo Baiano, no punk de São Paulo, nas muitas periferias cantadas no rap nacional, e em outras tantas margens – margem do mar, margem do mapa, margem feita de gente – são invocadas aqui.

A Entrevista realizada por Cristina Martins Tavelin com Felipe Marcondes da Costa, inicia o dossiê e nos apresenta um sujeito errante que concebe suas obras na interseção EM OBRAS / EM RUÍNAS. Os trabalhos realizados com Dulcineia e o coletivo paulistano que publica livros cartoneros em conjunto com uma cooperativa de catadoras de papelão, incentiva Felipe a realizar ações literárias em espaços públicos para “quem não tinha o hábito ler”. A partir de suas intervenções poéticas percebemos como os trabalhos coletivos instauram desejos de ações artísticas pela cidade. Incorporando um “espírito amador”, dois caras, “um levando seu corpo e o outro levando sua câmera”, se atiram “pra rua num projeto que é também de formação de público.” Perguntando e pensando sobre as experiências de Felipe, Cristina nos leva a questionar as fronteiras entre os corpos, as artes e as cidades. No centro da cidade de São Paulo, as performances instauram outros encontros além da normalidade — “nunca ouvi tanta gente me lendo em voz alta. É lindo ver um texto acontecendo assim! Quando as pessoas começaram a me abordar e chegaram a deitar comigo ali no chão então, aí foi incrível.” A potência política extravasa da obra e envolve as pessoas para atuarem junto, configurando a potência estética da ruína.

Continuando nesse caminho, Germana Konrath e Paulo Reyes notam e analisam a aproximação até a quase indistinção entre política e estética na obra de Francis Alÿs. Em um texto-ode à espacialização da / na obra do artista, Konrath e Reyes convocam Michel de Certeau, Jacques Rancière e a dupla Deleuze e Guattari para compor o corpo conceitual que explicita o caráter subversivo de ações propostas pelo artista. Este lança à comunidade a proposta de ação e é a partir e somente com a apropriação da comunidade pelo proposto que se configura a obra. A base é o impensável. Segundo Alÿs, dizem os autores, trata-se de “um presente a ser continuado.” Desse método, nascem alguns trabalhos em que a linha reta é subvertida em espaço público, campo da ação político-estética. E o espaço público de montes e mares e mesmo de ruas é subvertido pela linha reta proposta, mas, sobretudo, pela ação que se faz dela. Konrath e Reyes focalizam nas condições de possibilidade criadas e poetisam um texto declaradamente elogioso à obra de Francis Alÿs. “Suas ações simples e seus registros sempre porosos e parciais ajudam a compor diversas narrativas abertas, que atravessam o tempo como um mito que se alastra, operando taticamente tanto no presente quanto no pensamento projetivo de futuro e na memória que inventa passados.”

A interferência do artista e seu uso no / do cotidiano fazem da sua ação uma tática de guerra. A resistência a um ideário de cidade luminosa, espetacular, é o tema do ensaio Cartografia como narrativa, onde o autor delineia a figura de dois artistas como trapeiros contemporâneos, visto que se valem dos restos da vida comum e cotidiana nas cidades para constituir a matéria prima do seu trabalho. Os artistas-trapeiros são os argentinos Guillermo Kuitca e Jorge Macchi, o autor-ensaísta é Ricardo Luis Silva. Este nos põe em contato com as obras de base cartográfica daqueles artistas em um texto que faz um passeio entre algumas das principais referências que tratam das formas de resistência à cidade moderna como modelo de vida. Outros modos de vida não só são possíveis como deixam seus rastros e restos onde quer que queiramos ver. Para ver de perto, um dos trapeiros utilizou-se de um método de desenho de roteiro turístico completamente baseado no acaso: “Macchi coloca um painel de vidro transparente sobre um mapa de Buenos Aires e o alveja com um martelo, gerando uma série de rachaduras.” As rachaduras traçam os percursos a serem visitados e propõem ao leitor da obra uma experiência da cidade de Buenos Aires fora de todos os ditames do mercado de espetáculos urbanos.

Mirando essas rachaduras da cidade, Andre Abreu da Silva nos mostra os assombros da cidade punk de São Paulo. Vasculhando o Acervo Punk preservado no Centro de Documentação e Informação Científica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (CEDIC / PUC), o autor remonta as narrativas sobre o espaço urbano criado a partir das experiências raivosas de jovens adeptos ao movimento punk. A atenção às sensibilidades tramadas naquela prática político cultural, provoca uma leitura que valoriza suas produções. Essa postura errante, que veio se popularizar nas últimas décadas do século XX, via indústria cultural de massa, como punk rock, guarda entre suas performances a herança das / os insubmissas / os revoltadas / os que, em pequenas ações sub-reptícias, desviantes e insurgentes, ou em grandes movimentos coletivos de cólera, abalavam a ordem imposta com sua fúria ressentida. Sua movimentação errante pelos escombros e reconstruções nas grandes cidades revelam as profundas camadas de nossas história de dominação dos corpos. Por isso, concordamos com a sugestão de André de que “Numa incorporação histórica, os punks representariam uma das últimas formas de resistência aos ímpetos da modernidade avassaladora. Modelo de pretensões civilizatórias que devastara a cultura e os modos de vida dos habitantes antepassados da cidade, e que tem levado, sistematicamente, os seus poucos sobreviventes para as margens do espaço urbano.”

Nessa mesma direção, ouvindo ritmos e poesias, Roberto Camargos, investe em uma investigação sobre o campo de valores e modo de vida instaurado nas tensões das grandes cidades. Por meio das práticas culturais que envolvem o hip-hop, que transitaram com as diásporas modernas e nas tramas da sociedade globalizada, o autor, enfatizando as palavras e as batidas do RAP, nos leva a perceber uma abordagem crítica que nasce nos conflitos urbanos. Inseridos nas rimas daquele universo entendemos que: “ao aportarem justamente nos lugares em que a crise social e econômica e as transformações urbanas apresentavam contornos mais perversos, jovens marginalizados introduziram naquele contexto urbano práticas novas que, em alguma medida, mostravam sua interface com as questões que afetavam diretamente a vida da população mais pobre.” De suas experiências arrancaram representações que apontassem criticamente as mazelas sociais, mas que também valorizassem seu território de saber e as heranças de suas ancestralidades, compondo desta forma com uma narrativa em que “cidade, o espaço público, o direito à cidade e seus equipamentos públicos viraram fronts permanentes de batalhas em que as representações da periferia viraram objeto de intensa disputa”.

Seguimos os caminhos de Milene Migliano e Jessica Santana Bruno para lermos as intervenções feministas interseccionais nas paredes de Cachoeira, no Recôncavo Baiano, marcando a presença da diversidade de sujeitos na cidade. As narrativas e indagações de artistas, em sua maioria mulheres, que ocupam as atenções do meio urbano tensionando as linguagens artísticas, com lambes, graffiti, stencil e outras pinturas em muros e construções. Nesses diálogos públicos, “colocam o corpo feminino como foco principal, pondo em evidência o sagrado, a magia, a força e a potência que pulsa nestes corpos.” Além das intervenções, percebemos as produções artísticas gestadas no trânsito e nas trocas entre movimentos feministas no território brasileiro. Mulheres de São Paulo que intercambiam com amigas do Recôncavo Baiano e promovem uma narrativa interseccional na cidade.

Através das inscrições públicas, voamos do Recôncavo para as ruas do centro da cidade de Araraquara, no interior do Estado de São Paulo, onde Lucas Barbosa de Santana e Rafael Alves Orsia notam os efeitos estéticos e desdobramentos políticos dos grafites no centro histórico desta cidade média. Com os olhos atentos as mensagens gráficas nas paredes, os autores apontam para as contradições e disputas políticas no espaço urbano. Eles mostram como “o grafite além de não ser bem vindo, também é inviabilizado nessas áreas da cidade, já que apenas algumas poucas áreas estão realmente dispostas de grafite.” Entendemos no texto que nesse campo de disputas os ataques pintados nas paredes, também são frutos de negociações e acordos tácitos entre narrativas no tecido urbano. Nas ruínas dos lugares de memória e esquecimento, alguns transeuntes consideram aquele lugar um espaço de arte, nas paredes lemos: “A cidade é minha tela”. As tensões da mensagem, escondem os acordos, revelados pelos autores, entre o poder público e os agentes do aerossol com tintas.

As ressignificações das obras de arte pelo convívio [com o] público são observadas no texto escrito pelo grupo de pesquisadoras da Universidade do Estado da Bahia, Ana Clara Sousa e Silva, Beatriz Santos Alves Lopes Boaventura, Isaura Oliveira Figueiredo e Matheus Silva Nascimento, revelando as dinâmicas de interação entre cidade, arte e subjetividades. A partir de um exercício de alinhar diferentes perspectivas teóricas e contrastá-las com obras de artes dispostas na cidade de Salvador / BA, as autoras defendem “a arte para além de uma forma imposta” e percebem que a apropriação da arte na e pela cidade “não nasce no cartesianismo moderno, mas nas demandas subjetivas da contemporaneidade”. Pensando as relações tramadas no espaço urbano e nas tensões em torno das manifestações artísticas “material ou imaterial, numa área predominantemente residencial, comercial ou até mesmo numa zona de interesse artístico e cultural”, elas apresentam as “diferentes leituras da função social da arte e sua relação com o espaço”. Com esse grupo de intelectuais, revisitamos os lugares que compõem as obras: “ A Mãe Baiana” de autoria de Carybé, “As meninas do Brasil” de Eliana Kertész e o Largo de Santana ao Mariquita no Bairro do Rio Vermelho e descobrimos os múltiplos sentidos que tramam Salvador / BA.

Ainda em Salvador, Maria Emília Regina e Erica Checcucci observam como as possibilidades de expressão cultural nas Festas de Largo da capital da Bahia – através da produção das barracas de comidas e bebidas – são estrategicamente apropriadas pelas normas que visam a sua padronização. Estrategicamente, porque visam a ampla atuação do poder público na organização e controle das Festas, conduzindo a sua exploração comercial, e restringindo cada vez mais a participação dos chamados “barraqueiros” na composição do evento. Diferentes marcos regulatórios vão interferir no que é entendido pelas autoras como “sistemas dinâmicos instáveis”: as Festas de Largo de Salvador. Elas analisam especialmente os marcos ocorridos entre 1989 e 2018 e tecem uma crítica propositiva no que concerne ao engessamento padronizador provocado pela regulamentação na produção dos “artefatos culturais”, como são entendidas as barracas que se constituem no principal elemento do cenário das Festas de Largo. Assim, constroem “uma narrativa histórica das intervenções municipais (eventos) nas Festas de Largo, com vistas a entender a perda da expressão artística na construção das barracas”.

Em outra região do cone sul da América Latina, percorremos com Sabastián Godoy as ruas da cidade portuária de Rosário, na Argentina, e topamos com uma série de repertórios de ação artística ativadas naquele espaço. Voltando à década de 1980 e 1990, Godoy apresenta a formação de grupos de artivistas – ARTE&VIDA – que se engajaram em manifestações e insurgências que provocaram intensas transformações na vida urbana. Passamos a conhecer o coletivo Arte en la Kalle que ocupava, com murgas e performances carnavalescas, as marchas do dia 24 de Março – evento fúnebre que se preocupa em lembrar a Ditadura Militar. Lemos o ressoar dos grupos de murga argentina e suas provocações sonoras como os Los Bichicome y Caídos del Puente. Deparamos com as criações circense e as ocupações da cultura punk no Galpón Okupa. E, por fim, a articulação entre três grupos com outros participantes, tais como os organismos e militantes de agrupação “Hijos e Hijas por la Identidad y la Justicia contra el Olvido y el Silencio (HIJOS)”, vizinhos de bairro e advogados cujo objetivo era “poder alertar y ofrecer herramientas de defensa a los menores de edad, las principales víctimas del incremento de la violencia policial. El colectivo de artistas ideó una suerte de “campaña publicitaria”. Os desvios subjetivos narrados pelo autor, lembram os traços de desordenação das produções juvenis intermináveis nas metrópoles comunicacionais, anotadas por Massimo Canevacci em “Culturas Extremas: Mutações juvenis nos corpos das metrópoles” (2018). Por outra via de interpretação, Godoy reconstitui as desordens das revoltas ressentidas a partir das espacialidades tramadas entre, o que ele chama de: a performática, a contecimentação e a paisagem do eventual. Essa composição se materializam, seguindo suas observações, como uma série de possibilidades tramadas entre os corpos, as representações, os imaginários, as subjetividades, os objetos e as relações espaciais que transitam e transformam as dinâmicas no espaço.

A proposta lançada na chamada do dossiê foi ganhando corpo à medida que recebíamos as provocações de autoras / es de diferentes experiências de ArteCidades. As escolhas para integrar o material final demandou tempo, dedicação e a contribuição de nossas / os colaboradoras / es. Após construirmos o diálogo entre os artigos e suas / seus respectivas / os autoras / es, convidamos o artista João Costa para desafiarmos as linguagens convencionais das revistas acadêmicas e produzirmos, estimulados pelas provocações que surgiram no dossiê, um outro material gráfico que pudesse circular e divulgar por outros meios essa arte coletiva. Por isso, além da versão online disponível no site da Revista Urbana, temos uma versão impressa inspirada no formato de FANZINE – uma pequena revista produzida de forma livre e alternativa, criada (na década de 1970) nos meios urbanos por pessoas que não dispunham de recursos técnicos e financeiros para divulgarem suas artes, mas que, seguindo a filosofia do “faça você mesmo”, difundida nos meios underground, criaram táticas para disseminarem seus pensamentos. Partindo dessas ideias, assumimos uma forma que dialogasse com o conteúdo e que tornasse possível a circulação desse material para além das redes da internet. Assim, brindamos nossas / os leitoras / es com uma versão que pode ser baixada e impressa para o formato de FANZINE. Nosso desejo é que possamos usar essas ARTES para ocupar nossas CIDADES, como também usar as CIDADES para compor nossas ARTES.

Este percurso entre diferentes ArteCidades pretende-se apenas o começo ou o pedaço de um amplo território experienciado por essas pessoas que buscam arte na cidade, ou a cidade na arte. Que continuemos percorrendo, mesmo que imageticamente, as nossas ArteCidades, nos colocando disponíveis às suas interpelações estéticas, éticas, poéticas, políticas.

Parte desta edição da Revista Urbana foi feita no contexto da pandemia do coronavírus [2020], agravado pelo descaso do poder público federal e por seu aguçado desejo de morte. Por isso, dedicamos essa ação coletiva às vidas humanas que anseiam por arte e por condições de vida urbana. Que o pós-pandemia seja contaminado de sensibilidade às diversas formas de expressão da vida na ArteCidade.

João Augusto Neves – Universidade Estadual de Campinas. E-mail: prof.joaoneves@gmail.com

Maria Isabel Costa Menezes da Rocha – Universidade Estadual de Campinas. E-mail: bel.cmr@gmail.com


NEVES, João Augusto; ROCHA, Maria Isabel Costa Menezes da. Editorial. Urbana. Campinas, v.11, n.3, set / dez, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Suburbanización en América Latina / Urbana / 2019

Una de las características identitarias de las áreas de expansión latinoamericanas son los procesos de urbanización intersticial, producto de un crecimiento discontinuo, que no se dio de forma pareja -ni espacial ni temporalmente- sino de manera fragmentaria, avanzando en torno a pueblos de campaña, canales, caminos rurales, rutas o trazas de FFCC, industrias, que a lo largo del tiempo contribuyeron a organizar la urbanización. En esa línea, las periferias actuales, esas áreas de “entre-ciudad”, que se extienden entre ciudades consolidades y zonas rurales resultan de múltiples acciones individuales, de excepciones a la normativa, de desplazamientos y superposiciones. En ese marco incierto, se busca aportar al conocimiento del crecimiento urbano de las ciudades, revisitando perspectivas de análisis que despliegan los estudios desde la historia, desde la geografía, los estudios sociales y los objetos que construyen, pues se trata de dar cuenta de las transformaciones materiales del territorio pero también de los actores y factores que estuvieron por detrás.

Cabe precisar que, miramos al pasado a partir de las cuestiones que nos inquietan en el presente. Así resulta casi obvio señalar, que los temas relacionados a la expansión, se reposicionan en la agenda desde fines del siglo XX, atravesados por las reconfiguraciones territoriales que resultan de los cambios estructurales. En el campo de los estudios urbanos, un creciente número de textos apuntó a caracterizar y comprender las diversas manifestaciones contemporáneas de los procesos de urbanización ( Secchi, 1999; Corboz, 1983; Gorelik, 2009; Indovina, 1990; Novick, 2015), que resuenan en la literatura sobre América Latina.

Uno de los primeros debates que es necesario rescatar remite a “las palabras y las cosas”, “palabras clave”, “le mots de la ville” que examinaron las designaciones acerca de las áreas de expansión urbana. Estas voces, cuyos significados parecen inextricablemente ligados a los problemas para cuya discusión se utilizan, remiten a los debates y a los cambios de paradigma.

En los artículos del dossier existe cierto consenso sobre la imposibilidad de hablar del “suburbio”, o de la “expansión”, en singular, pues se trata de redefiniciones plurales y permanentes. En ese sentido, se buscan figuras, definiciones, que por más amplias que sean, visibilizan ciertas cuestiones, ocultando otras. En efecto, algunas investigaciones se inscriben dentro de ese campo fértil que fuera inaugurado por las “aventuras de las palabras” (TOPALOV; COUDROY DE LILLE; et al , 2010) a través de los tiempos y las geografías y en el cual los estudios urbanos continúan indagando. (HIERNAUX y LINDÓN, 2004).

Un segundo debate a rescatar, es el de las escalas de abordaje. Los artículos presentados no escapan a una discusión historiográfica de larga data, que discurre entre “lo macro” y “lo micro”, representado en las investigaciones de los años del desarrollismo por las teorías de la dependencia, la búsqueda de explicaciones generalizables a los procesos de urbanización de América Latina, seguidas en los años ochenta por el advenimiento de la microhistoria y el influjo de las historias culturales que dieron lugar a los análisis de caso particulares, a las “historias mínimas”… De algun modo, la actualización de estos debates se lee en las visiones polarizadas entre lo local y lo global, el crecimiento de la urbanización entre lo iformal o los grandes emprendimientos inmobiliarios. En esta perspectiva, se reconocen aportes muy valiosos que resaltan la ventajas de la perspectiva histórica y situadada, que parte del propio objeto para luego proponer explicaciones que bien pueden o no encajar en los análisis macro. Si desde la historia, Revel ( 1996) y Lepetit (1988) ya habían trabajado sobre “lo que se juega en las escalas”, también en el campo de los arquitectos, se puso de manifiesto la necesidad de promover un análisis multi-escalar del territorio ( SOLÀ-MORALES, 1997)(HIDALGO; ROSAS; ESTRABUCHi , 2011). Así, las intervenciones y las diversas formas de crecimiento se analizan en sí mismas pero son puestas en relación a un soporte más amplio que permite entender sus detalles y relaciones entre las partes y la totalidad. Dichos cruces, están marcados, a su vez, por las diversas temporalidades. Como lo plantearon los estudios de la geografía histórica es interesante estudiar el surgimiento de los suburbios y las periferias, ya que –si bien de manera no lineal- pueden entenderse como construcción rudimentaria de la ciudad futura. Observar sus temporalidades, los continuos procesos de transformación, se torna imprescindible, pues lo que nació nuevo, en el curso de dos o tres generaciones se fue consolidando, atravesado por renovados dilemas.

Ahora bien, teniendo en cuenta las perspectivas de análisis que adoptan los textos escogidos, podemos reconocer tres grupos principales, un texto más amplio que tiene que ver con las palabras y los procesos; la morfología y en análisis de los los tejidos urbanos y sus actores y por último, las representaciones culturales.

El primer texto, en el marco de lo que podríamos considerar como “Palabras y Procesos”, contribuye a plantear un nivel de reflexión más general acerca de los alcances de los suburbios, los bordes y las fronteras, planteando interrogantes historiográficos acerca de los alcances de las historias y de la dispersión de las fuentes documentales. ¿Cómo construir una nueva historia que supere los estudios más generalizados sin caer en los relatos anecdóticos?, en esas “historias de barrio” jamás incluida en las revisiones académicas.

En el artículo de Alicia Novick y Graciela Favelukes : “Los bordes de la región Metropolitana”, se centran en analizar los bordes “inestables” que marcan los márgenes de la urbanización de Buenos Aires. Desde una perspectiva histórica se analizan procesos que permiten restituir algunos de los múltiples hilos que se entrecruzan y se superponen, más que se suceden- en el territorio. En cuanto a la pregunta acerca de las condiciones de posibilidad de una historia de los bordes, intentan referirse a los territorios suburbanos en sus propios términos, cambiando una óptica que mira la periferia desde el centro, en un itinerario de larga duración (donde lo “difuso” es un término clave), a lo largo del cual es posible ver la mutación de los primeros bordes en áreas consolidadas, el abandono de otros, en un proceso poco lineal.

Un segundo conjunto de textos, “Formas y planos”, apunta a contribuir a una historia de los bordes desde los análisis morfológicos. Sin dejar de lado la reflexión entorno a las palabras, el mayor desafio es cartografiar las relaciones espaciales, procesos o estructuras de un determinado territorio – a partir de la información proveniente de distintas fuentes primarias, secundarias e incluso de descripciones de la ciudad registradas en diversos textos, documentos históricos y geográficos- y producir una visión de conjunto que incluya a los artifices de esos cambios, “para acercarse a conocer con detalles el fenómeno de una realidad ausente”(HIDALGO; ROSAS; ESTRABUCHi, 2011).

En el artículo de Erika Alcantar García y Héctor Quiroz Rothe “Reflexiones sobre la historiografía del suburbio en la ciudad de México”, el foco se coloca en relación a dos temáticas: la inestabilidad de las designaciones de suburbio o suburbanización, que sólo consideran posible aplicar a sectores precisos y reducidos de la periferia residencial. Y en el análisis de cinco casos de estudio: Santa María La Ribera, Lomas de Chapultepec, La colonia Hipódromo, Jardines del Pedregal y Ciudad Satélite. A través de los mismos, el artículo ilumina la heterogeneidad morfológica y social que lejos está de referenciarse en el suburbio residencial anglosajón. Allí es posible identificar edificios residenciales de alta densidad, barrios populares con distintos grados de consolidación, pueblos conurbados y por supuesto, fraccionamientos formales para familias de altos ingresos. La investigación despliega hábilmente una complejidad de tramas, en la que se vinculan aspectos legales, prácticas de expertos, modalidades de gestión en sus diferentes escalas y estrategias inmobiliarias que están por detrás de las formas de esos enclaves.

El texto de Ana Gómez Pintus : “Formación y transformación de las áreas residenciales de baja densidad. Tejidos identitarios de la expansión del GBA. 1920-1970” analiza los procesos urbanización a partir de la lectura de su morfología. Se trata de reconocer los elementos, tales como tejidos, redes que constituyen la estructura urbana y la fueron transformando. Las formas -en un sentido amplio- son contempladas como prisma para dar cuenta de una serie de procesos y de ideas que están por detrás de la urbanización. Cómo se ordenan las cosas en el territorio o cuáles son los criterios que guían la expansión son preguntas que provienen del área de los estudios morfo-tipológicos y que permiten iluminar algunas de las aristas materiales de la expansión.

Un tercer grupo de estudios “Representaciones” cambia la perspectiva disciplinar y examina las tensiones que se generan cuando se reflexiona sobre la matererialidad de la ciudad o sus suburbios, sus proyectos, planes y sus representaciones simbólicas y construcción de imaginarios.

María Paula Albernaz , en “La Suburbanización carioca. Reflejos de la identidad construida en la configuración de Engenho Novo” propone una reflexión sobre la construcción de las identidades barriales (suburbanas) de la metrópolis de Rio de Janeiro, asumiendo –desde un enfoque estructuralista- que la dimensión espacial condiciona las dinámicas urbanas impidiendo o promoviendo acciones humanas. Desde este ángulo, se estudian los procesos de formación de nuevos sectores, seleccionando momentos claves de estructuración metropolitana. Retomando los debates sobre circulación de ideas, el análisis del Barrio Ingenio Nuevo –el primero de suburbios metropolitanos- se inscribe en la consideración de una nueva categoría de “suburbios Cariocas”, que tiene una especificidad que los diferencia de los procesos de suburbanización de sectores de altos ingresos y de los alcances, propios de la tradicional definición geográfica de los suburbios anglosajones.

En correlato, en un estudio de caso en profundidad.

Diego Roldán y Anahí Pagnoni en “Configuraciones, devenires y multiplicidades del suburbio. El barrio saladillo de Rosario, Argentina” construye su aporte en una combinación de enfoques y materiales. Desde la historia urbana: identifica planos, planes y actores –privados y públicos- dando cuenta de que en los diferentes modelos de suburbanización que atravesó Saladillo -actualmente parte de la conurbación de Rosario, Argentina- a lo largo de más de un siglo. De la villa veraniega decimonónica, pasando por el pueblo de los frigoríficos, el barrio obrero modelo y llega a los asentamientos informales del siglo XXI. Mientras que desde la historia social y cultural, fotografías, publicidades y declaraciones de las compañías urbanizadoras sirven para rastrear los discursos que acompañaron a los procesos de urbanización mencionados y que han sido capaces de organizarse en torno a figuras, imaginarios que en cada momento recuperan -o esconden- momentos de la configuración siempre inestable de Saladillo.

Los tres conjuntos de trabajos, los que se centran en problemáticas de larga duración, lo que ponen el foco en las formas así como los que dan cuenta de fragmentos y casos, al tiempo que iluminan problemáticas y situaciones indican la necesidad de ampliar la mirada. Tal vez, sumando otros países, otras ciudades, otros sectores sea posible acercarse a la particular situación de los bordes e intersticios en América Latina…Pero, probablemente, la multiplicidad de situaciones, nos muestre un panorama tan heterogéneo, tan incierto, y tan difícil de aprehender como el de los bordes e intersticios…

Referências

CORBOZ, André (2004 [1983]). El territorio como palimpsesto. En Ramos, M.A (comp.) Lo Urbano en 20 Autores Contemporáneos. Barcelona: Ediciones UPC.

GORELIK, Adrián (2009). Roles de la periferia. Buenos Aires: de ciudad expansiva a ciudad archipiélago, en Peripheries: Decentering Urban Theory. International Conference, U.C. Berkeley.

HIDALGO, Germán; ROSAS, José; ESTRABUCHI, Wren (2011). La representación cartografica como producción de conocimiento. En ARQ 80, Chile.

HIERNAUX, Daniel; LINDÓN, Alicia (2004). La periferia: voz y sentido en los estudios urbanos. Papeles de Población [en linea] 2004, 10 (octubre-diciembre): Fecha de consulta: 6 de mayo de 2019. Disponible en: http: / / www.redalyc.org / articulo.oa?id=11204205

INDOVINA, Francesco (2004 [1990]). La Ciudad Difusa, En Ramos, M.A (comp.) Lo Urbano en 20 Autores Contemporáneos. Barcelona: Ediciones UPC.

LEPETIT, Bernard (1988). Les villes dans la France moderne (1740-1840 ). Francia: Editor Bardet Jean-Pierre.

NOVICK, Alicia (2015). Configuraciones metropolitanas: palabras, problemas e instrumentos. Habitabilidad y Políticas de vivienda en México y América Latina. En Congreso Nacional de Vivienda. 2 Congreso Latinoamericano de Estudios Urbanos, México, 2015.

REVEL, Jaques (2015 [1996]). Juegos de escalas. (dir). Buenos Aires: UNSAM.

RIVIÈRE D’ARC, Hélène (2014). Pode-se falar, nestes anos 2000, de um modelo latino-americano de cidade ou metrópole? Ponto de vista de uma europeia. São Paulo: Cad. Metrop. v. 16, n. 31. Disponible en: http: / / dx.doi.org / 10.1590 / 2236-9996.2014-3106

SECCHI, Bernardo (2004 (1999]). Ciudad moderna, ciudad contemporánea y sus futuros. En Ramos, M.A (comp.) Lo Urbano en 20 Autores Contemporáneos. Barcelona: Ediciones UPC.

SOLÀ-MORALES, Manuel (1997). Las formas de crecimiento urbano . Barcelona: Ediciones UPC.

TOPALOV, Christian; COUDROY DE LILLE, Laurent; DEPAULE, Jean-Claude; MARIN, Brigitte (sous la direction de) (2010). L’aventure des mots de la ville a travers le temps, les langues, les sociétés. Paris: Laffont.

WILLIAMS, Raymond (2003). Palabras clave. Un vocabulario de la cultura y la sociedad. Buenos Aires: Ed. Nueva Visión.

Ana Helena Gomez Pintus


PINTUS, Ana Helena Gomez. Editorial. Urbana. Campinas, v.11, n.1, jan / abr, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Brasília (II) / Urbana / 2018

Os artigos deste segundo volume do dossiê Brasília expandem a análise acerca das representações sociais da cidade a partir de fontes diversas: memórias e depoimentos orais, filmes, registros críticos e literários, revistas, fotografias etc. As fontes provêm de grupos ou indivíduos também muito diversos: além dos protagonistas políticos da época da fundação, intelectuais, escritores e artistas, há moradores de áreas periféricas da capital, prostitutas e travestis. As análises tratam, por um lado, de revisitar a cidade recém-construída e sua peculiar paisagem, cedo marcada por conflitos e contradições. Por outro lado, muitos dos artigos reunidos neste dossiê dedicam-se à metrópole contemporânea, onde emergem os imaginários e universos simbólicos daqueles que a vivenciam no cotidiano e recorrem a táticas para ocupar ou habitar seus disputados espaços. Em vários artigos, as representações dos habitantes de Brasília levam a contradizer lugares-comuns da crítica à cidade modernista e revelam experiências muito distintas do que fora preconizado à época da concepção da capital. O amplo território de Brasília é lugar de práticas de segregação espacial e especulação imobiliária similares ao que se observa em outras metrópoles brasileiras; ainda assim, a reflexão a esse respeito não se encerra em constatar que a capital se tornou “uma cidade como outra qualquer”, conforme já desabafou o arquiteto Oscar Niemeyer em entrevista [1]. Em vez disso, os artigos aqui reunidos enfrentam a complexidade urbano-territorial de Brasília e mostram que os usos e apropriações da cidade dão novos significados a seus espaços e criam narrativas alternativas sobre ela.

O artigo inicial de Hugo Segawa abarca o impacto da capital e as transformações no modo de percebê-la desde os tempos do canteiro de obras até o cinquentenário, destacando como o suspense dominante na primeira década foi sucedido por atitudes de suspeição, crítica, resgate e, mais tarde, pelo deparar-se com a realidade. Nessa trajetória, o autor observa a passagem de um mito da modernização para a realidade dos paradoxos e das desigualdades, mas também leva a ver uma cidade em permanente reinvenção, o que exige, conforme alerta, também o reinventar das análises a seu respeito na historiografia da arquitetura e do urbanismo. A produção de um dos fotógrafos mencionados por Hugo Segawa, o francês Marcel Gautherot, é retomada, no artigo seguinte, de autoria de Heliana Angotti-Salgueiro. A autora faz uma análise da trajetória inicial de Gautherot e em seguida mostra como o trabalho dele em Brasília foi além da mera documentação, vindo representar a arquitetura por meio de imagens abstratas e experimentais ou dotadas de caráter escultórico. Dada a ampla circulação dessas imagens, a fotografia assumiu papel essencial no conhecimento e na difusão do modernismo extra-europeu.

Ainda enfatizando o período inicial de concepção e construção de Brasília, Fernanda Reis Ribeiro e Ana Elisabete de Almeida Medeiros abordam o tema pouco explorado do transporte ferroviário na capital. Embora as medidas para estabelecer a ligação férrea com Brasília tenham sido feitas antes mesmo que o Plano Piloto de Lucio Costa tivesse sido escolhido, logo a ferrovia foi suplantada pela ênfase no rodoviarismo. Mesmo assim, como mostram as autoras, as instalações ferroviárias da capital atuaram de forma a estruturar memórias e, ressaltam, merecem específica abordagem do ponto de vista patrimonial.

Os ideais de modernização subjacentes à construção de Brasília e suas expressões na concepção urbana e territorial permanecem fundamentais na problemática dos artigos seguintes. Vê-se neles um interesse compartilhado por trazer à luz os usos, apropriações e configurações de outros espaços do próprio Plano Piloto – além do seu core monumental ou das suas espaçosas superquadras – assim como de núcleos periféricos – as denominadas regiões administrativas. Marcelo Augusto de Almeida Teixeira articula teoria queer, sociologia, geografia das sexualidades e arquitetura numa análise sobre as dinâmicas de estruturação de paisagens sócio-sexuais no Plano Piloto. Ao se deter no caso da avenida W3 Norte, o autor mostra as específicas relações entre a configuração daqueles espaços e sua utilização para moradia e trabalho de profissionais do sexo. O artigo seguinte, de autoria de Angelica Peixoto de Paiva Freitas, analisa representações de Brasília expressas em reportagens da revista mensal Traços e na série de mini-documentários Distrito Cultural. A autora mostra como a revista e a série apontam uma mudança do imaginário da cidade-monumento-patrimônio para uma cidade-apropriada-vivida, onde fervilham manifestações culturais e produções artísticas.

Os dois artigos finais focalizam representações emanadas de regiões administrativas periféricas ao Plano Piloto. O artigo de Mariana Lucas Setubal trata de Brasília a partir da análise de dois longa-metragens do cineasta Adirley Queiros – A Cidade é uma só? (2011) e Branco sai, preto fica (2014) – ambos tendo como lugar privilegiado para elaboração de suas narrativas a Ceilândia. Com base em uma discussão introdutória a respeito do modo como se deu o planejamento Brasília, a autora reflete sobre problemas relativos à questão territorial, situando-a no cerne da crítica desenvolvida nos filmes. Já o artigo de Jorge Artur Caetano Lopes dos Santos trata do modo como o processo de aquisição de lotes no Recanto das Emas foi relatado em memórias de suas moradoras, atentando tanto para o que é dito como para “o que é mal dito ou nem dito”. Em sua análise, as narrativas das moradoras revelam um imaginário acerca da relação com importantes figuras políticas da capital, assim como táticas e estratégias empreendidas por elas e seus parentes na busca de um espaço para morar.

Neste conjunto de artigos, Brasília aparece, enfim, como cidade narrada e vivenciada por grupos muito diversos, que tem de lidar com a peculiar configuração urbana da capital e contribuem, de modos distintos, para dar-lhe vida e recriá-la. As análises densas e bem fundamentadas desenvolvidas em cada um dos artigos estimulam a renovação das problemáticas sobre Brasília e têm o mérito adicional de sugerir caminhos para outras interpretações a respeito da história e das representações da capital. Brasília revisitada, conforme escreveu Lucio Costa, mas também reapropriada e recontada.

Nota

1 MACIEL, Pedro. Entrevista a Oscar Niemeyer: «O Voo do arquiteto». Caliban. [sem data] Disponível em Acesso em: 5 fev. 2019.

Maria Fernanda Derntl – Universidade de Brasília. E-mail: mariafernanda_d@yahoo.com.br


DERNTL, Maria Fernanda. Editorial. Urbana. Campinas, v.10, n.3, set / dez, 2018. Acessar publicação original [DR]

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Brasília (II) / Urbana / 2018

Os artigos deste segundo volume do dossiê Brasília expandem a análise acerca das representações sociais da cidade a partir de fontes diversas: memórias e depoimentos orais, filmes, registros críticos e literários, revistas, fotografias etc. As fontes provêm de grupos ou indivíduos também muito diversos: além dos protagonistas políticos da época da fundação, intelectuais, escritores e artistas, há moradores de áreas periféricas da capital, prostitutas e travestis. As análises tratam, por um lado, de revisitar a cidade recém-construída e sua peculiar paisagem, cedo marcada por conflitos e contradições. Por outro lado, muitos dos artigos reunidos neste dossiê dedicam-se à metrópole contemporânea, onde emergem os imaginários e universos simbólicos daqueles que a vivenciam no cotidiano e recorrem a táticas para ocupar ou habitar seus disputados espaços. Em vários artigos, as representações dos habitantes de Brasília levam a contradizer lugares-comuns da crítica à cidade modernista e revelam experiências muito distintas do que fora preconizado à época da concepção da capital. O amplo território de Brasília é lugar de práticas de segregação espacial e especulação imobiliária similares ao que se observa em outras metrópoles brasileiras; ainda assim, a reflexão a esse respeito não se encerra em constatar que a capital se tornou “uma cidade como outra qualquer”, conforme já desabafou o arquiteto Oscar Niemeyer em entrevista [1]. Em vez disso, os artigos aqui reunidos enfrentam a complexidade urbano-territorial de Brasília e mostram que os usos e apropriações da cidade dão novos significados a seus espaços e criam narrativas alternativas sobre ela.

O artigo inicial de Hugo Segawa abarca o impacto da capital e as transformações no modo de percebê-la desde os tempos do canteiro de obras até o cinquentenário, destacando como o suspense dominante na primeira década foi sucedido por atitudes de suspeição, crítica, resgate e, mais tarde, pelo deparar-se com a realidade. Nessa trajetória, o autor observa a passagem de um mito da modernização para a realidade dos paradoxos e das desigualdades, mas também leva a ver uma cidade em permanente reinvenção, o que exige, conforme alerta, também o reinventar das análises a seu respeito na historiografia da arquitetura e do urbanismo. A produção de um dos fotógrafos mencionados por Hugo Segawa, o francês Marcel Gautherot, é retomada, no artigo seguinte, de autoria de Heliana Angotti-Salgueiro. A autora faz uma análise da trajetória inicial de Gautherot e em seguida mostra como o trabalho dele em Brasília foi além da mera documentação, vindo representar a arquitetura por meio de imagens abstratas e experimentais ou dotadas de caráter escultórico. Dada a ampla circulação dessas imagens, a fotografia assumiu papel essencial no conhecimento e na difusão do modernismo extra-europeu.

Ainda enfatizando o período inicial de concepção e construção de Brasília, Fernanda Reis Ribeiro e Ana Elisabete de Almeida Medeiros abordam o tema pouco explorado do transporte ferroviário na capital. Embora as medidas para estabelecer a ligação férrea com Brasília tenham sido feitas antes mesmo que o Plano Piloto de Lucio Costa tivesse sido escolhido, logo a ferrovia foi suplantada pela ênfase no rodoviarismo. Mesmo assim, como mostram as autoras, as instalações ferroviárias da capital atuaram de forma a estruturar memórias e, ressaltam, merecem específica abordagem do ponto de vista patrimonial.

Os ideais de modernização subjacentes à construção de Brasília e suas expressões na concepção urbana e territorial permanecem fundamentais na problemática dos artigos seguintes. Vê-se neles um interesse compartilhado por trazer à luz os usos, apropriações e configurações de outros espaços do próprio Plano Piloto – além do seu core monumental ou das suas espaçosas superquadras – assim como de núcleos periféricos – as denominadas regiões administrativas. Marcelo Augusto de Almeida Teixeira articula teoria queer, sociologia, geografia das sexualidades e arquitetura numa análise sobre as dinâmicas de estruturação de paisagens sócio-sexuais no Plano Piloto. Ao se deter no caso da avenida W3 Norte, o autor mostra as específicas relações entre a configuração daqueles espaços e sua utilização para moradia e trabalho de profissionais do sexo. O artigo seguinte, de autoria de Angelica Peixoto de Paiva Freitas, analisa representações de Brasília expressas em reportagens da revista mensal Traços e na série de mini-documentários Distrito Cultural. A autora mostra como a revista e a série apontam uma mudança do imaginário da cidade-monumento-patrimônio para uma cidade-apropriada-vivida, onde fervilham manifestações culturais e produções artísticas.

Os dois artigos finais focalizam representações emanadas de regiões administrativas periféricas ao Plano Piloto. O artigo de Mariana Lucas Setubal trata de Brasília a partir da análise de dois longa-metragens do cineasta Adirley Queiros – A Cidade é uma só? (2011) e Branco sai, preto fica (2014) – ambos tendo como lugar privilegiado para elaboração de suas narrativas a Ceilândia. Com base em uma discussão introdutória a respeito do modo como se deu o planejamento Brasília, a autora reflete sobre problemas relativos à questão territorial, situando-a no cerne da crítica desenvolvida nos filmes. Já o artigo de Jorge Artur Caetano Lopes dos Santos trata do modo como o processo de aquisição de lotes no Recanto das Emas foi relatado em memórias de suas moradoras, atentando tanto para o que é dito como para “o que é mal dito ou nem dito”. Em sua análise, as narrativas das moradoras revelam um imaginário acerca da relação com importantes figuras políticas da capital, assim como táticas e estratégias empreendidas por elas e seus parentes na busca de um espaço para morar.

Neste conjunto de artigos, Brasília aparece, enfim, como cidade narrada e vivenciada por grupos muito diversos, que tem de lidar com a peculiar configuração urbana da capital e contribuem, de modos distintos, para dar-lhe vida e recriá-la. As análises densas e bem fundamentadas desenvolvidas em cada um dos artigos estimulam a renovação das problemáticas sobre Brasília e têm o mérito adicional de sugerir caminhos para outras interpretações a respeito da história e das representações da capital. Brasília revisitada, conforme escreveu Lucio Costa, mas também reapropriada e recontada.

Nota

1 MACIEL, Pedro. Entrevista a Oscar Niemeyer: «O Voo do arquiteto». Caliban. [sem data] Disponível em Acesso em: 5 fev. 2019.

Maria Fernanda Derntl – Universidade de Brasília. E-mail: mariafernanda_d@yahoo.com.br


DERNTL, Maria Fernanda. Editorial. Urbana. Campinas, v.10, n.3, set. / dez., 2018. Acessar publicação original [DR]

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Brasília (I) / Urbana / 2018

A construção de Brasília não foi apenas a tarefa de erguer os monumentos e superquadras que deram reconhecimento internacional ao Plano Piloto como experiência arquitetônica e urbanística. A construção da capital envolveu a urbanização de um território bem mais amplo, que já transborda os limites do Distrito Federal. Além disso, Brasília é também construção simbólica realizada por meio de imagens, narrativas e discursos produzidos em meio a ampla controvérsia. Em seus primórdios, a nova capital foi defendida como aspiração secular e corolário da afirmação de um Brasil moderno. Em contraste, mereceu, na mesma época, a condenação de críticos que a viram como expressão autoritária e epítome da falência do modernismo. Se, num certo momento, pretendeu-se afirmar uma história de Brasília, trata-se agora de problematizar os diversos processos envolvidos em sua formação urbana, que está longe de estar esclarecida e recusa-se a simplificações. Muito além da mera polarização entre defensores e detratores, na metrópole contemporânea, novas formas de vivência dos espaços e múltiplas representações desafiam as críticas tradicionais e atribuem à capital significados nunca previstos nas pranchetas de seus arquitetos ou nos discursos de seus fundadores. Estudos recentes reconhecem essa complexidade, revisitam questões aparentemente pacificadas e trazem à tona temas e problemas novos ou ainda pouco explorados.

A possibilidade de contribuir para um panorama mais arejado de discussões sobre Brasília, tal como propõe esse dossiê, é tributária de um esforço de longa data por parte de pesquisadores brasileiros e estrangeiros dedicados ao estudo histórico da capital. Sem pretender aqui uma apreciação do conjunto da historiografia, pode-se, muito brevemente, pontuar episódios marcantes nesses estudos e debates. Embora o Plano Piloto e sua icônica arquitetura tenham concentrado a maior parte das atenções, já nos anos 70 o processo de construção da cidade e a realidade da urbanização informal situada além do Plano Piloto passaram a ser objeto de investigação. Nesse aspecto, contribuições pioneiras vieram do campo da Antropologia, em trabalhos acadêmicos desenvolvidos por David Epstein (1973) e Gustavo Lins Ribeiro (1980, com publicação apenas em 2008). A cidade mereceu contínuas avaliações críticas, como se vê no conjunto de textos reunidos por Xavier e Katinsky (2012). No entanto, a discussão sobre Brasília foi tolhida pelo impacto duradouro das obras de caráter apologético e pelas implicações de abordar uma cidade que se tornara palco e símbolo da ditadura militar. Na avaliação de Vidal (2009, p.20), Brasília foi, durante quase duas décadas, assunto tabu para as ciências sociais brasileiras.

No contexto de lenta distensão política do país nos anos 80, a expansão dos estudos sobre Brasília foi parte de um novo momento na produção da pesquisa história sobre a cidade e o urbanismo no Brasil. Num panorama geral, a autonomização em relação à prática projetual e a consolidação de espaços acadêmicos específicos para a pesquisa começaram a dar forma a um campo disciplinar próprio da história das cidades, que permaneceu, porém, aberta às trocas interdisciplinares (PEREIRA, 2014; MELLO, CASTRO, 2016). Em Brasília, pode-se destacar o aparecimento de um conjunto de trabalhos de arquitetos, antropólogos, geógrafos e economistas, sob a coordenação do geógrafo Aldo Paviani, com ênfase na análise das condições estruturais do processo de urbanização no Distrito Federal. Entre os textos clássicos dessa produção, estão A metrópole terciária, de Aldo Paviani (1985) e Brasília, mitos e realidades, de Paulo Bicca (1985). Nessa época, em muitas faculdades brasileiras, a preocupação com políticas públicas e questões sociais sobrepôs-se ao estudo da forma das cidades (FERNANDES; GOMES, 2004). Os estudos realizados sobre a capital voltaram-se às condições políticas e sociais da sua construção. Mas, a configuração e a organização espacial também estiveram ao centro das preocupações, seja na análise do território metropolitano do DF, no âmbito da disciplina de geografia, seja na análise da dimensão morfológica dos espaços urbanos, com aplicações da teoria da sintaxe espacial pelo grupo liderado pelo arquiteto Frederico de Holanda.

Num panorama abrangente, após os anos 80, observa-se um esforço de pesquisadores e críticos brasileiros no sentido de superar “a ênfase em gênios isolados e heróis que marcava, então de forma quase exclusiva, a historiografia da arquitetura brasileira [do século 20]” ( ZEIN, 2018). Manifestou-se uma consciência mais clara da historicidade do moderno (GUERRA, 2011). Como parte do movimento de reavaliação da produção modernista, houve estímulo para se repensar a posição de Brasília – por vezes considerada modelo, clímax ou ocaso – numa trajetória mais complexa e multiestratificada. A crítica a Brasília e sua peculiar concepção expandiu-se.

Ainda no início dos anos 80, James Holston esteve em Brasília para o trabalho de campo que serviu de base para sua tese de doutorado, publicada em 1989 com o título The modernist city e tendo a 1ª edição brasileira em 1993. O livro permanece como referência clássica da crítica a Brasília, em sua análise de premissas e paradoxos do projeto e no exame dos modos de “abrasileiramento” da cidade construída, além de ter apontado sendas de interpretação depois aprofundadas por outros autores. No entanto, o livro de Holston (1993) também suscitou questionamentos de autores como GUERRA (2002) e GORELIK (2005) acerca dos seus métodos de análise da arquitetura moderna e também de Holanda (2010) sobre suas observações acerca de uma suposta ausência de vida urbana na cidade.

Ao lado de pesquisas feitas em centros nacionais e estrangeiros, a FAU-UnB também passou a ter contribuição mais efetiva numa renovação na historiografia e na crítica da cidade. Ainda no início dos anos 80, Sylvia Ficher iniciou prolífica carreira na UnB, desenvolvendo e orientando pesquisas pautadas pelo recurso à documentação e pela sistematização de dados, nas quais foi possível ampliar o leque dos “paradigmas” da concepção do Plano Piloto, analisar os desenvolvimentos desse projeto, apontar preexistências no território do DF e revelar a atuação de outros profissionais além dos protagonistas usuais (entre outros, FICHER, 2005, 2016; LEITÃO, FICHER, 2010; BATISTA et al , 2006). Na primeira década do século 21, como parte do movimento de expansão das universidades federais, de consolidação dos Programas de Pós-graduação e de fomento à articulação nacional e internacional de pesquisadores, configurou-se um ambiente favorável à ampliação dos trabalhos sobre Brasília. O aporte, na FAU-UnB, de novos professores voltados diretamente para a pesquisa intensificou a produção de estudos sobre a cidade tendo por base métodos e experiências obtidos em suas universidades de origem ou em estágios de pesquisa no exterior. Em paralelo, estruturaram-se em outros departamentos da Universidade núcleos e grupos de estudo dedicados à memória e história de Brasília, com evidente interesse pelas potencialidades do método de história oral.

Desde a época de sua construção, a cidade sediou encontros e seminários dedicados ao seu estudo e debate, cujos registros dão a ver mudanças nas formas de encará-la e expectativas diversas quanto ao seu crescimento. Enquanto em fins da década de 50 esteve em pauta a capital como possível expressão de uma síntese das artes, no início dos anos 70 sobressaiu a necessidade de planejar a expansão da mancha urbana e, na década de 80, avultaram as preocupações com as relações inter-regionais e a escala nacional dos seus problemas (PERPÉTUO, 2016). Nos últimos anos, discussões abertas ao público promovidas por instituições e órgãos de gestão da capital, tais como o IPHAN e a SEGETH, contribuíram para aproximar especialistas, alunos e pesquisadores e suscitaram estudos em perspectiva histórica sobre problemas diversos de preservação e planejamento. No quadro de pesquisadores de pós-graduação na FAU-UnB, há peculiar presença de servidores públicos cujo ponto de partida é a reflexão sobre seu próprio trabalho em órgãos da capital.

Ainda nos anos 80, a reorganização de acervos documentais e o apoio de instituições locais em muito facilitaram a realização de pesquisas sobre Brasília. Em meio à campanha por autonomia política do DF, depois estabelecida na Constituição de 1988, o interesse em consolidar uma memória da construção da capital levou à criação, em 1985, do Arquivo Público do Distrito Federal, principal repositório da documentação da Novacap. E, desde os anos 90, houve importantes iniciativas editoriais de divulgação de estudos até então inéditos ou de acesso limitado, além de coleções de caráter multidisciplinar lançadas pela EdUnB nas efemérides do cinquentenário da cidade.

Na produção mais recente sobre Brasília, a revisão da historiografia tradicional e dos mitos veiculados em discursos de autoridades e seus apoiadores nas décadas de 50 e 60 é uma temática fértil. Nessa direção, pode-se mencionar o livro De Nova Lisboa a Brasília, derivado da tese de doutorado de Laurent Vidal (2009) sobre os projetos políticos e planos urbanísticos aventados para a capital desde o século 19. Além de rever momentos fundacionais da capital, pesquisas provenientes de campos diversos da historiografia vem buscado desvendar as especificidades da cidade em contínua transformação, com suas variadas expressões culturais. Sem deixar de lado a documentação escrita tradicional ou os projetos e planos urbanísticos, emergiu para análise uma gama mais diversificada de fontes, provenientes não apenas de autoridades e experts, mas também de moradores do Plano Piloto ou de localidades distantes dele, migrantes de épocas diversas e observadores externos. Fotografias, revistas, filmes, músicas e poesias passaram a ser analisados como reinterpretações criativas sobre a cidade, entrecruzando discursos de autoridades e experiências cotidianas ali vivenciadas de modo subjetivo. No senso comum, as discussões sobre Brasília por vezes recaem no que Lucio Costa chamou de “jogo de gosto-não-gosto” ( COSTA, 1995, p. 323) ou na evocação nostálgica da epopeia da construção. Mas, mesmo tais posições são escrutinadas como parte das narrativas, imagens e representações produzidas sobre a cidade.

Este dossiê abre-se para algumas das muitas possibilidades de problematizar Brasília. E são muitas mesmo: por conta do alto número de submissões de qualidade recebidas e em reconhecimento da vitalidade dos estudos ora em curso, o dossiê foi dividido em dois números consecutivos. A organização em dois volumes foi possível graças à receptividade ao tema por parte da revista Urbana, cujo consistente trabalho editorial tornou-se referência no campo dos estudos históricos acerca do universo urbano moderno e contemporâneo.

A construção urbano-territorial e a construção simbólica de Brasília são temas privilegiados do dossiê. Neste primeiro volume, o intuito de pensar a extensa aglomeração urbana num amplo arco temporal e de revelar suas lógicas peculiares fez-se presente sobretudo nos dois primeiros artigos. Sylvia Ficher retoma os preceitos da concepção de Brasília – os “genes do seu DNA” – e as decisões tomadas quando da sua implantação, apontando desdobramentos no processo de expansão metropolitana. Seu texto analisa os fatores que atuaram na constituição de um tecido urbano esgarçado e um território fragmentado, numa crítica ao modo como a metrópole vem sendo ocupada e gerida. Numa abordagem distinta, mas também atentos ao ideário modernizador na base do projeto da nova capital e a suas implicações na configuração da metrópole, Carlos Henrique Magalhães de Lima e Carolina Pescatori baseiam seu artigo no conceito de “modernização seletiva” do sociólogo Jessé Souza. Os autores tomam como mote a trajetória de Zé Bigode, personagem do filme A cidade é uma só? para refletir sobre os princípios do arranjo territorial de Brasília. Na sequência, Thiago Perpétuo trata de outro tema central para a gestão da cidade contemporânea: seu reconhecimento como patrimônio cultural. O autor investiga documentos e discussões produzidos nos momentos iniciais do processo de preservação, apontando embates e tensões entre os diversos agentes envolvidos. Sua análise vem desmistificar entendimentos usuais sobre um período que, mais tarde, viria ser evocado de modo a legitimar um modelo de preservação.

Os dois artigos finais do dossiê detém-se em interpretações e representações produzidas acerca da cidade por agentes bem distintos e em períodos também muito diferentes, mas não de todo apartadas. Fábio Franzini dedica-se à análise de um conjunto de discursos produzidos durante a segunda metade da década de 1950, no contexto da idealização, concepção, construção e inauguração de Brasília. Sem deixar de observar as nuances das várias falas, o autor faz aproximações entre textos seminais da crítica à Brasília de autores como de Gilberto Freyre, Mário Pedrosa e Milton Santos. Sua análise ressalta o modo como o passado é revisto e, sobretudo, a identificação entre a forma de Brasília e a projeção do futuro. Já no artigo de Renata Almendra, os grafites realizados em galerias subterrâneas, muros e viadutos de Brasília são reveladores de experiências e sensibilidades de uma geração que habita a metrópole e intervém em seus peculiares espaços deixando marcas territoriais. Como mostra a autora, os grafites assimilam, de modo próprio, temas do repertório heroico e monumental presentes nos discursos sobre Brasília e também evidenciam preocupações com problemas sociais e políticos recentes.

Dos planos urbanísticos e discursos iniciais aos filmes e grafites sobre Brasília, a cidade foi concebida e assimilada de muitas maneiras. Esse conjunto de textos – a que se somarão os artigos do número seguinte deste dossiê – aponta, enfim, não para uma relação unívoca entre forma material e forma simbólica, como se pretendeu outrora, mas para algumas das várias possíveis abordagens na interpretação e contínua reinvenção da cidade planejada.

Referências

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GORELIK, Adrián. Brasília, o museu da vanguarda, 1950 e 1960. In:______.Das vanguardas à Brasilia:cultura urbana e arquitetura na América Latina. Belo Horizonte: UFMG, 2005, p. 151-190.

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PERPÉTUO, Thiago Pereira. Uma cidade construída em seu processo de patrimonialização: modos de narrar, ler e preservar Brasília. Dissertação (Mestrado) – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Mestrado Profissional em Preservação do Patrimônio Cultural, Rio de Janeiro, 2016.

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VIDAL, Laurent. De nova Lisboa a Brasília: a invenção de uma capital (séculos XIX-XX). Brasília: EdUnB, 2009.

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DERNTL, Maria Fernanda. Editorial. Urbana. Campinas, v.10, n.2, maio / ago, 2018. Acessar publicação original [DR]

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Cidade do século XVIII / Urbana / 2018

Nas histórias da arte, da arquitetura e da cidade, toda denominação que se caracterize por uma identificação temporal ou estilística corre o risco de ser generalista e superficial. Assim, há algumas décadas, temos consciência dos proveitos mas também dos limites de algumas classificações como: a “cidade medieval”, a “cidade ideal”, a “cidade barroca”, a “cidade iluminista” etc., tanto pelo que resta excluído do nome quanto pelo que pode vir a residir dentro dele, quase sempre arbitrariamente. Acrescente-se, ainda, que uma denominação geralmente não oferece uma identidade semântica homogênea ou unívoca, uma concordância absoluta de entendimento para aqueles que se interessam por ela – essa cidade reificada por um epíteto ou pelo número de um século que, a bem da verdade e do rigor, só tem começo e fim nos calendários.

Advertência epistemológica necessária. Nada mais complexo e irredutível que a cidade, em que tantas são suas ciências, suas geografias, seus contextos, seus olhares. Assim, este Dossiê sobre a cidade do século XVIII buscou se esquivar daqueles lugares metodológicos tradicionais, conquanto tenham sido fundamentais para a historiografia há mais de um século. Em vez de se encerrar no nome, ilusoriamente satisfeito pela comodidade positiva de uma classificação, procuramos nos abrir para uma diversidade representativa de abordagens, abrigadas sob um arco temporal notoriamente organizacional; sobretudo em se tratando do século XVIII, um período marcado por transformações em todos os âmbitos mais relevantes da civilização: ciência, política, religião, filosofia, estética, artes, tecnologia etc., transformações essas que não começaram nem terminaram dentro de suas fronteiras temporais. Ademais, as dinâmicas constitutivas da cidade compreendem processos de longa duração, principalmente antes da modernização industrial; o que implica, muitas das vezes, ter que reconhecer e que considerar modelos, práticas e conceitos vigentes muito antes de seu tempo estrito ou que dele se tornaram contemporâneos por sua eficácia e sua adequação.

Desta feita, um dossiê sobre a cidade do século XVIII não se fez apenas oportuno, quanto também desafiador. Poucos períodos da história apresentam cidades e pensamentos sobre a arte de edificá-las tão diversos quanto o período em tela. Isto nos conduziu a uma premissa: mostrar a diversidade desse conjunto de empresas e histórias setecentistas, congregando pesquisas recentes e reflexões que nos permitissem almejar não o esgotamento de sua representação, mas a evidência de sua rica e imensa complexidade.

Nas últimas décadas, a história da cidade no século XVIII recebeu uma contribuição bastante significativa. Várias foram as circunstâncias desse crescimento, especialmente em nosso ambiente científico: o crescimento e a consolidação da pós-graduação em áreas de arquitetura e urbanismo, história, geografia etc., a realização frequente dos Seminários sobre história da cidade e do urbanismo (SHCU) desde 1990, as pesquisas sobre a arte e a cidade dita “barroca” nos anos de 1980 e 1990, impulsionadas pela Revista Barroco e também pela tradição das pesquisas do IPHAN sobre a arquitetura e as cidades coloniais, a comemoração das navegações e expansões portuguesas (SCDP), em que se empreenderam várias pesquisas e publicações individuais e coletivas, uma conexão maior e mais efetiva entre pesquisadores do Brasil, da Europa e também de outros países americanos, uma maior acessibilidade a arquivos e documentos históricos, tratados, atas, termos, ordens régias, mapas e desenhos, aqui e alhures.

Favorecidas por essas circunstâncias, muitas pesquisas recentes dialogaram com estudos anteriores sobre a urbanização setecentista luso-brasileira, como aqueles de Murillo Marx, Nestor Goulart Reis Filho, Sylvio de Vasconcellos, Paulo Santos e outros. Durante o século XX, passamos de um diagnóstico inicial de “desleixo”, “espontaneidade”, “irregularidade” e “desordem”, assim como se encontravam nas teorias de Sérgio Buarque de Holanda, Robert Smith e seguidores, para uma compreensão que não apenas reviu e apontou críticas a esses diagnósticos, como também soube reconhecer virtudes várias de conveniência, adequação, decoro, formosura, comodidade, ordem e regularidade correspondentes ao tempo mesmo daquelas cidades. E conseguimos, afinal, superar uma compreensão histórica que dependia de uma visão moderna de desenho e “planejamento urbano” assentes quase que exclusivamente em traçados geométricos estritamente retilíneos.

Assim, chegamos ao século XXI podendo confirmar virtudes de uma escola portuguesa (ou já luso-brasileira) de urbanismo que primava antes por “princípios”, nas palavras de Eduardo Horta Correia, do que por regras e modelos fixos distanciados das circunstâncias efetivas de ocupação e assentamento; uma escola povoadora de construção e participação coletivas, dinamizada por procedimentos e preceitos que eram levados a cabo por uma rica e diversa coleção de “agentes povoadores: desde letrados que haviam frequentado as aulas de arquitetura e engenharia militar na metrópole e na colônia, passando por oficiais da administração pública como governadores, vereadores, juízes, arruadores do conselho, ouvidores etc., até os mestres e artífices que compartilhavam saberes e práticas consolidados em costumes construtivos seculares – todos eles dedicados, entre outras providências públicas, ao aumento e à conservação de povoações.

Há algum tempo, a Revista Urbana vem organizando uma série de dossiês temáticos destinados a contemplar a complexidade de pensamentos, práticas, problemas, projetos e princípios que nortearam a compreensão e a construção das cidades. Um empreendimento admirável, facilitado pelo acesso eletrônico com o qual se disponibiliza a revista, que vem dando frutos importantes para a ciência do urbanismo em nossos ambientes de discussão.

Este novo dossiê traz textos diversos e muito interessantes para a compreensão das cidades no século XVIII. Há aqueles que se dedicaram a objetos urbanos muito precisos, como a povoação de Cabo Verde, no artigo de Carolina de Almeida e Renata Baesso, ou aos projetos de reforma e aumento da cidade de Madri, no texto de Concepción Aparicio; houve quem reavivasse a discussão com objetos tradicionais: historiadores, como no texto de Sabrina Melo sobre Robert Smith, ou conjuntos urbanos de fato, como no artigo de Simona Costa sobre as vilas de Minas Gerais; ou apontasse renovações metodológicas a partir de fontes primárias como as das décimas urbanas e dos censos, como na pesquisa coletiva de Beatriz Bueno, Nádia de Moura, Esdras Arraes e Diogo Borsoi, cotejando-as em várias povoações. Rodrigo Baeta recuperou a discussão sobre a cidade hispano-americana e Sérgio Fagerlande contemplou a vida urbana em torno às casas de ópera na cidade do Rio de Janeiro.

Como era nosso intuito, desde a chamada de trabalhos, o dossiê que o leitor tem agora à sua disposição é uma amostragem rica e representativa do inelutável processo de compreensão da urbanização setecentista, um dos meios possíveis de se habitar a história e também aquelas cidades. Oxalá seja o primeiro de muitos. Boa leitura!

Rodrigo Almeida Bastos – Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: rodrigobastos.arq@gmail.com


BASTOS, Rodrigo Almeida. Editorial. Urbana. Campinas, v.10, n.1, jan / abr, 2018. Acessar publicação original [DR]

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Cidade e Memória / Urbana / 2017

Andar pela cidade, perceber o traçado de suas ruas, estudar os estilos arquitetônicos de seus prédios ou o seu centro histórico nos abre a possibilidade de ver e viver a cidade em perspectivas plurais, mas que deixam ainda obscuras tantas outras possibilidades de leitura do espaço citadino. Neste número a Urbana abre espaço para discussões que nascem da preocupação em entender a cidade como um espaço que ganha contornos e formas ao sabor das memórias que a constituem. A cidade torna-se plástica, moldável, maleável às falas de seus tantos habitantes, visitantes, urbanistas, cronistas, enfim, de todos aqueles que com ela vivem ou viveram algum tipo de relação – seja de identificação ou de estranhamento.

Pensar essas narrativas ditas e escritas em diversos momentos da vida dos habitantes da cidade consiste em um desafio instigante ao pesquisador do urbano. A todo instante nos deparamos com a defesa de alguns historiadores de que a nossa narrativa deve ser marcada pela objetividade e pelo caráter de cientificidade que lhe é inerente. Parece-me bastante propositivo pensar na construção da história a partir dessa mescla entre os “desejos” do historiador e seu compromisso com aquilo que suas fontes o permitem dizer. Reconhecer a impossibilidade de atingir uma verdade “absoluta” é reconhecer a pluralidade inerente à própria história, mesmo sem perder de vista que essa pluralidade dependerá dos vestígios, dos indícios que elegemos como significativos para tal pesquisa.

A saber, como nos ensina Bloch, a história carece de uma dose imensa de escolha pessoal, e essas escolhas são fruto do lugar em que se encontra o historiador. Lidar com a impossibilidade da construção de uma narrativa objetiva e total já era uma preocupação apontada por Lucien Febvre ao afirmar que “não adianta, você nunca poderá ver tudo, haverá sempre fontes que lhe escapam” (apud DUBY, 1989, p. 37). Por isso, usando a metáfora criada por Duby, o passado se apresenta como um “tecido amarrotado, coçado, rasgado”; ao historiador jamais será possível reconstitui-lo em sua totalidade, ou sequer conhecer a extensão daquilo que está perdido. As lacunas, assim como a subjetividade, são partes inerentes ao nosso ofício. Ao historiador fica o desafio de lidar com os limites, com aquilo que o lugar de produção da história lhe permite ou lhe proíbe dizer, uma vez que

a história se define inteira por uma relação da linguagem com o corpo (social) e, portanto, também pela sua relação com os limites que o corpo impõe, seja à maneira do lugar particular de onde se fala, seja à maneira do objeto outro (passado, morto) do qual se fala (CERTEAU, 2008, p. 77).

Somente quando consideramos a importância do lugar social [1] no processo de construção da história é que perceberemos sua própria historicidade. O nãolugar impede a história de ser história e o historiador de construir o seu corpus documental. O historiador – que tem o tempo como material de análise ou como objeto específico – trabalha

de acordo com os seus métodos, os objetos físicos (papéis, pedras, imagens, sons, etc.) que distinguem, no continuum do percebido, a organização de uma sociedade e o sistema de pertinências próprias de uma ‘ciência’. Trabalha sobre um material para transforma-lo em história. (CERTEAU, 2008, p. 79)

A produção da narrativa histórica acaba voltando-se a uma postura de respeito aos interlocutores com os quais lidamos na pesquisa. Devemos ter com eles uma postura de respeito, postura expressa na necessidade de inserir cada um deles no seu lugar de autor, levando em consideração o seu arcabouço conceitual – que informa e institui as suas interpretações acerca do mundo. Estaríamos, assim, diante de “um quadro vivo resultante da recusa em bani-los de antemão ou de cristalizá-los como paradigmas; uma atitude respeitosa em relação às posições assumidas, ainda quando delas discordamos.” (BRESCIANI, 2009, p. 183) Assim, essa postura respeitosa deve ser estendida tanto aos autores com que dialogamos quanto, e talvez sobretudo, aos nossos colaboradores – que se dispuseram a narrar suas experiências, ou às narrativas memorialísticas e tudo o que constitui a(s) memória(s) citadina(s).

Compartilhando da ideia apresentada por Jeanne Marie Gagnebin no prefácio ao volume I das “Obras Escolhidas de Walter Benjamin – Magia e Técnica, Arte e Política”, em que afirma que, para Benjamin, “a reconstrução da experiência deveria ser acompanhada de uma nova forma de narratividade” (GAGNEBIN, 1994, p. 09) este número da Revista Urbana apresenta-se como espaço para discussões sobre a relação existente entre experiência, narratividade e memória como possibilidade de entendimento das trajetórias trilhadas pelos diferentes indivíduos que compõem uma coletividade e a forma como se apropriam das imagens que parecem caracterizar essa mesma coletividade a partir de duas questões principais: a relação entre a memória e a história; e o entendimento do espaço citadino a partir das memórias que o constituem.

Pensar a relação entre memória e história é deparar-se com uma complexidade de entendimentos e de procedimentos que norteiam o trabalho do historiador para quem, assim como Proust, pensa que

a vida é vagabunda, nossa memória é sedentária, ou seja, à descontinuidade das experiências ao longo do tempo, a memória, igualmente descontínua, revela a possibilidade de algo único. A memória, portanto, constrói o real, muito mais do que o resgata (SEIXAS, 2001, p. 39).

É, portanto, entender a memória como presentificação do passado, (re)elaboração, (re)construção de uma experiência vivida. A memória não traz de volta a experiência vivida, mas constrói uma elaboração, uma digressão sobre essa mesma experiência. O falar, o narrar – embora impossibilitado pela vida moderna, como afirma Benjamin – constrói uma unicidade e uma lógica cadencial para os acontecimentos que não existia no momento em que a experiência se deu. Esse “algo único” de que nos fala Jacy Seixas (2001), é essa possibilidade que a memória tem de permitir uma organização de fatos descontínuos, uma ordenação mesma da vida em torno de expectativas e de questões presentes – é o dar forma à memória pessoal, mencionado por Monique Augras.

O rememorar é, então, entendido como um ato político e intencional de formulação de uma imagem sobre o passado e sobre a experiência vivida, seja ela entendida na individualidade ou mesmo na coletividade. Um ato que não prescinde da marca do seu narrador, do seu enunciador. A narrativa traz em si “impressas as marcas do narrador como os vestígios das mãos do oleiro no vaso da argila.” (BENJAMIN, 1989, p. 107) Essa impressão remete, inclusive, a uma noção de tempo que varia de acordo com a situação vivenciada. Para Bergson, a mesma durée pode ser vivenciada de formas distintas – pode parecer interminável se vazia de significado, ou ainda, parecer um momento fugaz se plena de intensidade psicológica. (BENJAMIN, 1989)

Aqueles que são incitados a lembrar dão à sua memória contornos próprios dessa vivência, uma vez que “lembrar não é reviver, mas re-fazer. É reflexão, compreensão do agora a partir do outrora; é sentimento, reaparição do feito e do ido, não sua mera repetição”. (BOSI, 1994, p. 20) Pensar na estreita relação entre passado e presente quando se fala de memória é pensar também em como se constitui a sua dimensão temporal. Passado e presente estabelecem uma relação de reciprocidade na medida em que constituem partes integrantes do processo do rememorar. Aquilo que Bergson chama de presentificação da durée seria o processo de apropriação mesmo das lembranças e transformação dessa experiência em memória voluntária. Benjamin chega a afirmar que esse processo de presentificação seria uma forma, também, de amortização do choque das experiências vividas pela uniformização dessas experiências em uma narrativa coerente, mas que “não pode contudo evitar que nela persistam a existência de fragmentos desiguais e privilegiados.” (BENJAMIN, 1989, p. 136) Por mais coesão que se tente dar a rememoração de um fato esse processo implicará sempre em imperfeições, em lacunas que são inerentes a qualquer tipo de narratividade.

Este caráter lacunar e imperfeito da memória é, para Todorov, inerente a ela. Não há oposição entre memória e esquecimento – eles são partes de um mesmo processo.

O uso da memória como instrumento de elaboração do conhecimento histórico pressupõe mais do que conceder ao outro (ao colaborador) o direito à lembrança; é mais do que isso, Todorov lança o desafio de conceder ao nosso interlocutor o direito ao esquecimento. O processo de elaboração de uma imagem de si no presente, implica que “para comenzar a hablar, hay que poner o pasado entre parêntesis” (TODOROV, 2000, p. 27), ou seja, repensar ações, vivências, decisões e dar a elas os contornos que o momento presente lhe exige, ou lhe permite fazer. Até mesmo considerar a impossibilidade de fazê-lo, o direito de manter no esquecimento fatos imagens que não queremos mais relacionar à nossa vida, à nossa imagem. Essa complexa dinâmica, própria da memória, se amplia quando, ao ser instigado a lembrar o indivíduo se vê diante de um processo que vai conceder ao outro (geralmente um desconhecido) as interpretações sobre sua própria experiência. Abrir mão do lugar de construtor de si não é processo fácil, portanto, implica ao depoente a construção de uma imagem bem consolidada de si e que não deixe muita margem à interpretações “errôneas” sobre ele ou sua atuação num determinado momento do passado.

Bastante profícua é a ideia dessa complexidade [2] de que fala Todorov e que nos instiga a pensar os meandros da relação que se constrói entre a memória e a história. A história se coloca fora dos grupos que viveram aqueles acontecimentos e cria ligações artificiais entre eles. Há uma multiplicidade de tempos tantos quantos são os grupos que compõem a sociedade. Mas nenhuma dessas consciências coletivas de tempo se impõe a todos os outros grupos. Ou seja, não há como falar em uma memória universal, como pretende a história, pois, como afirma Benjamin ao discutir Proust

um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois.” (BENJAMIN, 1994, p. 37)

O trabalho com a memória e com a história oral implica considerar, além das subjetividades, as inúmeras temporalidades que as compõem: da experiência vivida, da experiência rememorada, do presente em que rememora, e do presente do historiador quando se dedica a estudar essa rememoração.

Ao colaborador cabe a construção e a tessitura da narrativa da forma que achar mais adequada para os contornos que quer dar à sua memória. Diferentemente dos historiadores, o colaborador não tem uma preocupação em entender ou mesmo explicar os fatos que narra ou as conexões que estabelece entre eles – essa é uma característica marcante da narrativa para Benjamin. (1989, p. 203) A riqueza da oralidade, para o historiador, está em identificar esses contornos e a importância deles para a elaboração da narrativa do colaborador. Assim, os meus interlocutores ao falarem de Brasília e da relação que estabelecem com essa cidade me concedem não apenas o conteúdo mesmo de sua narrativa memorialística, mas os silêncios e as inquietudes que vivenciam no exercício de lembrar.

Assim, pensar a cidade a partir da fala de seus moradores, das memórias de seus edificadores, gestores, enfim, daqueles que a constituem, implica refletir sobre essas várias temporalidades e subjetividades que estão envolvidas no processo de historiar. A experiência de hoje lembrar sobre um fato passado, ocorrerá mediante o estímulo de questões colocadas pelo historiador / entrevistador, de fotografias apresentadas ou mesmo de um passeio pelas ruas da cidade, no entanto, essa será uma memória perpassada pelos limites que o historiador acaba colocando para o seu colaborador [3] no momento da entrevista / pesquisa.

Entendida como um espaço plural e complexo a cidade ganha contornos a partir dos diferentes discursos que incidem sobre ela – de urbanistas, de jornalistas, de cronistas, de memorialistas e de habitantes que acabam atribuindo significados à cidade e aos usos que são feitos dela a partir de seu lugar de atuação. Neste número a Revista Urbana apresenta as discussões e perspectivas traçadas por diferentes estudiosos sobre o espaço citadino e as relações com seus habitantes.

Notas

1. Lugar social entendido a partir da proposta de Michel de Certeau quando afirma que este é caracterizado pelo lugar social, político, econômico, institucional, ideológico, etc. ocupado pelo historiador no momento de elaboração de seu texto. (CERTEAU, 2008).

2. Ver também: RICOEUR (2007); SEIXAS (2001); NORA (1993); LE GOFF (2003); BERGSON (1999); HALBWACHS (1990); BOSI (1994).

3. Pesquisadores do NEHO / USP utilizam a nomenclatura de colaborador para referirem-se aos entrevistados, por entenderem que estes não apenas narram as suas experiências individuais, mas contribuem para a elaboração e consolidação de um saber que depende da forma como eles trabalham essa memória.

Referências

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BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I – Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembrança de velhos. 3 ed. São Paulo, Companhia das Letras, 1994.

BRESCIANI, Maria Stella Martins. Um possível diálogo entre (e com) os intérpretes do Brasil. In: SOIHET, Rachel (org.). Mitos, projetos e práticas políticas: memória e historiografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, pp. 161-184.

CERTEAU, Michel de. A Operação Historiográfica. In: A Escrita da História. 2 ed. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2008, pp. 65-122.

DUBY, Georges; LARDREAU, Guy. Diálogos sobre a nova história. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1989.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. “Prefácio: Walter Benjamin ou a história aberta”. In: BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I – Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, pp. 7-20.

SEIXAS, Jacy Alves de. “Percursos de memórias em terras de história: problemáticas autais”. In: BRESCIANI, M. S. M. & NAXARA, M. (orgs.) Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Editora da Unicamp, 2001.

TODOROV, Tzvetán. Los abusos de la memoria. Buenos Aires: Paidós, 2000.

Viviane Gomes de Ceballos – Universidade Federal de Campina Grande. E-mail: vgceballos@gmail.com


CEBALLOS, Viviane Gomes de. Editorial. Urbana. Campinas, v.9, n.3, set / dez, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Cidade e cultura visual / Urbana / 2017

A Revista Urbana apresenta, em sua trajetória, uma especial atenção aos documentos visuais. Nos artigos reunidos pela revista, não é raro o uso de fotografias, cartografias, desenhos e outros suportes visuais, num diálogo muito profícuo e latente com as reflexões diretamente ligadas à cultura urbana. A própria transformação e o desenvolvimento dos debates acadêmicos expressos ao longo de seus volumes têm trajetória inerente a um diálogo com esses documentos, destacando uma ligação que acompanha a própria constituição dos saberes urbanos. Não por menos, logo em seu segundo volume, a Revista Urbana foi organizada em torno do tema ‘Cidade, Imagem, História e Interdisciplinaridade’, marcando, desde o seu início, a necessidade de se pensar a história urbana a partir de documentos visuais.

O volume publicado há uma década se insere num contexto muito específico dos estudos urbanos, mas também de um momento próprio da disciplina da história – em seu sentido alargado. Naquele momento, passava-se a incorporar os estudos visuais como um de seus problemas de investigação. Josianne Francia Cerasoli, no editorial do volume publicado em 2007, destacou que aquela publicação era fruto de reflexões que se deram em dois Simpósios Temáticos da ANPUH, sendo um deles proveniente do GT “Cultura Visual, Imagem e História”. Essa não é uma informação menor, visto que aquele GT nascera no ano de 2003. Foi, portanto, no início dos anos 2000, que os historiadores se puseram a pensar mais cuidadosamente as fontes visuais, propondo novos caminhos e sentidos para a história urbana. Não por menos, o grupo formado naquele GT se consolidou e relevantes pesquisas se estruturaram em torno de seus núcleos de pesquisas.

Vale destacar que esse interesse dos historiadores pelas imagens – com especial atenção à fotografia – vinha tomando corpo a partir de meados dos anos 1980, no Brasil, com notável desenvolvimento a partir dos anos 1990. Trabalhos de expressiva amplitude e cuidado metodológico foram publicados nesse período, onde se pode destacar o volume 6 da revista Acervo do Arquivo Nacional e o volume 5 do Boletim do Centro de Memória da Unicamp, ambos publicados em 1993; o número 27 da Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, em 1998 ou o volume 32 dos Anais do Museu Histórico Nacional; além de outras publicações como Retratos quase inocentes, de autoria de Carlos Eugênio de Moura e publicado em 1983, ou a publicação organizada por Annateresa Fabris, Fotografia: usos e funções no século XIX, publicado em 1991. Os documentos fotográficos – nesse caso – passavam a ser tratados não apenas como iconografia para a história, mas eles mesmos – documentos – passavam a ocupar o lugar central de reflexão dos historiadores.

No que se refere aos debates da cidade, da arquitetura e do patrimônio, o uso de documentos visuais também passou a ser recorrente nos trabalhos acadêmicos. Através desse interesse dos historiadores, colocou-se em debate momentos específicos da trajetória das cidades, especialmente no caso dos grandes centros urbanos que tiveram seus aspectos radicalmente transformados pelo processo de urbanização do século XX. Nesse sentido, o trabalho Fotografia e Cidade, das historiadoras Vânia Carneiro e Solange Lima, logo se estabeleceu como uma importante referência para qualquer pesquisador dedicado ao tema. O debate em torno dos mapas, proposto por Beatriz Bueno em Desenho e desígnio, também marca esse momento da produção acadêmica, interessada em pensar a formação das cidades brasileiras a partir dos documentos visuais.

Essa renovação em torno dos suportes documentais seguiu o momento decisivo pelo qual a historiografia brasileira da arquitetura e do urbanismo passou a partir a partir dos anos 1980. Já amplamente destacada e enfrentada em publicações organizadas pelo Dr. Abílio Guerra (2010) e pelo Dr. José Tavares Correia de Lira, através dos números 11 e 12 da revista Desígnio (2011), a revisão historiográfica da arquitetura e do urbanismo é, em grande parte, devedora dessa renovação em torno das fontes, documentos e arquivos. Desse modo, foi possível que novos objetos de investigação e novos problemas pudessem contribuir com uma transformação plural. Num movimento correspondente, Ana Claudia Veiga de Castro e a Joana Mello de Carvalho e Silva organizaram recentemente um número temático dos Anais do Museu Paulista sobre o estatuto das fontes e dos acervos nas pesquisas de história da arquitetura e da cidade, ampliando o debate especialmente no que se refere aos diferentes suportes documentais. Os arquivos e coleções passaram também a ocupar um lugar importante dentro desse movimento de renovação da historiografia.

Não por menos, identifica-se uma nova guinada nos trabalhos dos historiadores, colocando novas perguntas e novos problemas para se pensar os documentos visuais. Já no final do século XX, é possível identificar uma série de trabalhos icônicos que contribuíram de maneira singular para se pensar e produzir história com documentos visuais. De forma pioneira, Michael Baxandall constituiu uma importante contribuição sobre o Renascimento italiano, articulando de forma inovadora imagem e texto. A produção do real através de instrumentos científicos e a constituição de seus suportes visuais, numa relação imbricada com a sociedade, aparece caracterizada de forma cuidadosa no trabalho da pesquisadora Svetlana Alpers. Assinalava-se, assim, o que se denominou por Cultura Visual, um campo de saber interdisciplinar constituído “através das relações de interlocução e produção de sentidos com a história da arte, literatura, filosofia, estudos cinematográficos e de cultura de massa, sociologia, antropologia e arquitetura” (SCHIAVINATTO; COSTA, 2016). No Brasil, esse debate é recente e teve início nos trabalhos Fontes visuais, cultura visual, história visual, de Ulpiano Bezerra de Meneses; e em O desafio de fazer história com imagens, de Paulo Knauss.

A renovação historiográfica associada à cultura visual coloca, portanto, no centro de seu debate não apenas o estatuto das fontes – sua natureza – nas suas diferentes tipologias, mas também as interrelações e o lugar ocupado por elas na relação com seus temas e objetos diretamente relacionais. Isso quer dizer que pensar com imagens não significa uma associação direta com uma questão real ou objeto descrito ou ilustrado pelo documento. O documento, em si, é artefato – tem matéria – e, portanto, tem uma natureza específica que é inerente a uma dada cultura. Desse modo, é possível compreender que o documento visual funciona como elemento intrínseco e indissociável de uma dada cultura, fazendo com que certas especificidades sejam fundamentalmente importantes para a compreensão de seu lugar e relevância. A imagem que carrega uma fotografia, um filme, um livro, um mapa ou desenho é, portanto, apenas um dos elementos fundamentais para a leitura do documento. Este possui também um suporte que carrega uma imagem, valorado diferentemente em acordo com sua natureza; assim como um lugar e uma importância numa dinâmica cultural, que envolve os agentes diretamente ligados a sua produção, circulação e consumo; como também o modo como essa imagem foi produzida, sua linguagem e seus signos e instrumentos diretamente relacionados.

Foi a partir dessas avaliações que os artigos aqui reunidos foram ordenados. Primeiramente, privilegiou-se as tipologias documentais, favorecendo a futura leitura de pesquisadores interessados em determinados documentos. Assim, este número da Revista Urbana pretende servir como apoio a futuras investigações que se dediquem não apenas a um dos temas aqui tratados, mas à natureza do documento enfrentado. Para tanto, a organização deste número apresenta artigos que tratam de livros de arquitetura, produções cinematográficas, telas históricas e fotografias, como que fornecendo subsídios para que se possa acompanhar mais claramente a renovação historiográfica em curso. Paralelamente, é possível notar que os primeiros artigos se enquadram mais cuidadosamente no que se entende hoje por Cultura Visual e, neste aspecto, vale uma pequena descrição.

Em “A imagem da Cabana Primitiva no Renascimento”, Francisco Dias de Andrade apresenta um texto de grande importância para o entendimento de como a imagem da cabana primitiva foi se equacionando a partir da redescoberta do tratado De Architectura de Vitrúvio. Cuidadosamente debatido a partir de fontes, o autor demonstra como essa imagem, hoje consagrada através do trabalho de Joseph Rykwert, é fruto de disputas e tensões culturais. De maneira semelhante, Herta Franco, em seu “Cinema, Estigmatização Territorial e História Urbana”, e Flaviano Isolan, em seu “Metropolis, Trem Azul e Zumbis”, demonstram brilhantemente como a produção cinematográfica não apenas contribuem para a consolidação de significados sobre o próprio território, como no caso de Franco, mas também podem intervir no próprio campo historiográfico, mudando conceitos e sentidos sobre movimentos, como apresentado por Isolan. O cinema não é, portanto, apenas uma representação, mas ocupam uma posição ativa na formação de sentidos sobre um determinado território.

Seguindo uma reflexão cuidadosa em torno da cultura visual, Carlos Oliveira apresenta uma bela contribuição sobre o papel que a circulação de imagens teve para os debates patrimoniais. Apresentando algumas das telas produzidas por Émile Rouède, Oliveria deixa claro que os debates patrimoniais e preservacionistas, gerados pela mudança da capital de Minas Gerais no final do século XIX, guardam associações diretas com a produção visual daquele momento. De maneira semelhante, Bruno de Andrea Roma apresenta uma importante reflexão sobre o papel ocupado pela fotografia na consolidação dos debates ligados à preservação de bens culturais. Em ambos os casos, Oliveira e Roma contribuem para reforçar a importância do estatuto das fontes na relação com os debates patrimoniais, sendo que, nesse último caso, a fotografia ocupa o centro da reflexão para os debates contemporâneos ligados à preservação no Brasil.

Vera Lucia Vieria Lima e Renata de Almeida, em “Arquitetura das colônias de imigração alemã”, assim como Laura Cury, em “A imagem do Parque do Ibirapuera”, se não investem especificamente sobre os debates da cultura visual, apresentam bons contributos para se pensar a imagem na organização de uma memória. Seja sobre a cultura arquitetônica alemã ou mesmo na modernidade expressa através da arquitetura do Parque do Ibirapuera, ambos os artigos representam a natureza intrínseca dos documentos fotográficos.

A Revista Urbana apresenta, desse modo, uma mobilização renovada em torno dos debates visuais. Com este número, espera-se que os debates ligados à cultura visual possam avançar nas universidades brasileiras, renovando as perspectivas possíveis de produção intelectual ligada aos estudos urbanos.

Referências

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Eduardo Augusto Costa – Pós-doutor em história pela Unicamp (2018). Foi vencedor do XI Prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia (2010). Atualmente é Pesquisador Colaborador da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. E-mail: eduardocosta01@gmail.com


COSTA, Eduardo Augusto. Editorial. Urbana. Campinas, v.9, n.2, maio / ago, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Villas Miseria, Favelas y Asentamientos: nuevas rutas en Historia Urbana / Urbana / 2017

En años recientes ha crecido el interés académico hacia las urbanizaciones conocidas como villas miseria, favelas, cantegriles, callampas y asentamientos, como objeto de estudio, dando como resultado un importante corpus de trabajos científicos enfocados principalmente en su composición social, en las experiencias de organización de sus habitantes, en los conflictos sociales y políticos, y en las políticas públicas implementadas.[1] Los trabajos provenientes de la sociología, la antropología, la historia reciente y la ciencia política, que tienen en estos sectores de ciudad su objeto de estudio, permiten acceder al conocimiento de las cambiantes situaciones y a los conflictos de índole económica y política que atraviesan su tejido social, así como a las tensiones entre sus habitantes y la urdimbre urbana, más amplia, en que se insertan. A pesar de la importancia cualitativa y cuantitativa de estas urbanizaciones dentro del tejido urbano de ciudades como Buenos Aires, San Pablo, México, Salvador, Santiago, Montevideo, o Rio, los historiadores urbanos hemos dedicado a ellas menor atención que, por ejemplo, a la vivienda de ayuda estatal, al habitar de los sectores medios o a las casas y departamentos de las elites.

Este Dossier reúne una serie de investigaciones sobre este tipo de urbanizaciones, materializadas en tierras vacantes, principalmente tierras fiscales, que se caracterizan por formar tramas urbanas irregulares, con unidades habitacionales relativamente precarias, ausencia de algunos servicios e infraestructura pública, y con alta densidad habitacional. Estas urbanizaciones se han consolidado como la forma de habitar de los sectores sociales más humildes, en las ciudades latinoamericanas, desde la segunda mitad del siglo XX, si bien su emergencia puede datarse con anterioridad. Estas investigaciones cubren un área de vacancia temática, esencial para la comprensión de las dinámicas sociales, la construcción de identidades y las formas de habitar en las grandes urbes latinoamericanas. Sus autores asumen que la perspectiva histórica es fundamental para comprender el universo simbólico del presente de las villas y sus circunstancias. Por su parte, y consecuentemente, la mirada histórica constituye una herramienta de análisis ineludible para la articulación de respuestas a las problemáticas actuales, que contemplan la inclusión de prácticas de planeamiento participativo y políticas de urbanización que toman distancia discursiva, y muchas veces también fáctica, de las políticas preexistentes, tendientes en buena medida a la erradicación y traslado compulsivo de sus habitantes, cuando no a la simple y llana invisibilización de las mismas.

En cuanto al recorte temporal, se ha optado por cierta elasticidad, puesto que la aparición de estas urbanizaciones tuvo diferentes temporalidades, de acuerdo a las dinámicas asumidas en los diferentes países del continente. La consolidación de esta forma de habitar estuvo ligada a los procesos de concentración urbana, derivados de la modificación en los términos de intercambio, las políticas de fomento a la industrialización, vinculadas a ideas keynessianas, y la migración de trabajadores rurales hacia las ciudades. Si bien la aparición de las primeras urbanizaciones irregulares puede datarse desde fines del siglo XIX, fue para mediados del siglo XX que asumieron dimensiones hasta entonces inéditas. Fue entonces, cuando los modelos de desarrollo económico en la región promovieron la modernización de la sociedad, que pasaría de rural a urbana e industrial, con las consecuente modificación del empleo. Este modelo de desarrollo trajo aparejados problemas de distribución, a la par de cierto crecimiento económico. [2]

Desde el punto de vista urbano también hubo inconvenientes, pues la concentración poblacional en las ciudades latinoamericanas no siempre fue de la mano de un mejoramiento sustancial de las condiciones de vida de los sectores populares. Si bien un importante número de personas llegadas a las ciudades en busca de empleo logró acceder al mercado de trabajo no todos tuvieron garantizado el acceso a la vivienda, puesto que ni el mercado privado, ni tampoco el Estado, habían acompañado el ritmo de los cambios con la provisión de las viviendas necesarias. Este proceso tuvo diferentes temporalidades, de acuerdo a las dinámicas asumidas en cada uno de los países. En los casos de Brasil y de la Argentina, por ejemplo, hubo activas políticas de creación de vivienda estatal, en los años del varguismo y del peronismo, que fueron decisivos y dejaron una impronta insoslayable en las identidades sociales y políticas.[3]

Sobre todo en el caso argentino, la acción del gobierno de Juan Perón en la materia, cristalizó en identidades políticas que posteriormente tendrían impronta en las experiencias de lucha y reivindicación de los habitantes de las villas miseria frente a los intentos de erradicación de las sucesivas dictaduras, cuando los representantes de los habitantes de las urbanizaciones estuvieron en buena medida, identificados con la militancia peronista. Algunos de los trabajos reunidos en este Dossier arrojan nueva luz sobre estos temas y revisitan las experiencias asociativas y de resistencia, y sus vinculaciones con las identidades políticas de representados y representantes.

Como ha mostrado la bibliografía, las estrategias de la población que no pudo acceder a las viviendas de ayuda estatal, se inclinaron, por un lado, a alquilar habitaciones en viviendas urbanas compartidas, la mayoría de las veces en condiciones materiales deficitarias y con hacinamiento individual y colectivo. En otros casos, para quienes accedían a empleos informales, consecuentemente peor remunerados, o quienes quedaban fuera del mercado laboral, la opción fue encontrar un espacio para construir un refugio en tierras vacantes y en los márgenes de las ciudades. De acuerdo a factores como la cultura urbana, la gestión y valorización de la tierra y las características topográficas de las diferentes ciudades latinoamericanas, esas localizaciones variaron: en el alto o en tierras bajas e inundables, cerca de cursos de agua o en las colinas que rodeaban la ciudad consolidada, en tierras fiscales cercanas a los ferrocarriles, etcétera. Estos primeros asentamientos fueron entendidos inicialmente, por parte de distintos gobiernos, como un problema pasajero, que sería resuelto con el proceso de crecimiento económico y a través de las dinámicas de ascenso social.

Por su parte, la mirada higienista, que había construido discursos disciplinadores y alentado la sanción de leyes que afectaron la vivienda de los sectores más pobres (conventillos, casas de vecindad e inquilinatos) y a sus habitantes, en los diversos países latinoamericanos en el siglo XIX y las primeras décadas del siguiente,[4] pervivió, a veces de manera sutil, a lo largo del siglo XX. Para las décadas de 1950 y 1960, las reverberaciones del discurso higienista de las elites latinoamericanas fueron activadas al calor de los procesos de urbanización acelerada y se fusionaron con un conjunto de valores, ligados a la modernización cultural.

Para entonces, comenzaron a identificarse las deficitarias características de las viviendas de los pobres, con las costumbres rurales de sus pobladores, que no habrían asimilado aún, unas supuestas “pautas culturales modernas”. Esta modernidad cultural iba de la mano de un nuevo estilo de vida urbana, asentado en la familia nuclear, [5] en contraposición a la familia extendida, característica del medio rural. Los valores del modelo familiar nuclear estaban ligados a la propiedad de la vivienda, la planificación de la natalidad y el ascenso social a través del esfuerzo y la educación. El modelo incorporaba una valorización del confort a través del consumo de objetos durables provistos por los sectores industriales y promovidos por la prensa, la publicidad, el cine, las revistas y el mercado de la moda, crecientemente masificado.[6]

Una creciente estigmatización de las pautas culturales de los habitantes de las urbanizaciones y de sus prácticas de domesticidad, se consolidó a la par del proceso de industrialización en América Latina, que entre las décadas de 1940 y 1960 intensificó las dinámicas de concentración urbana. Estos procesos agudizaron la crisis de vivienda, puesto que el stock habitacional no crecía en la medida de las necesidades de la población. En este contexto, las villas miseria, favelas, callampas, cantegriles y asentamientos aumentaron su extensión y número de habitantes, mientras los gobiernos civiles y militares, que se alternaban en el continente, ensayaron diferentes respuestas que, miradas en conjunto, no lograron dar solución al déficit habitacional ni tampoco a los problemas sociales, políticos y ambientales de las urbanizaciones.

No deja de ser paradójico, que en años en que el ideal modernizador en torno de la familia nuclear (identificada como un núcleo familiar primario habitando una unidad residencial para su exclusivo uso) había impregnado los discursos y en general, las representaciones sobre la familia, algunas investigaciones sobre importantes capitales latinoamericanas, por ejemplo, la ciudad de Buenos Aires, muestren la pervivencia de la práctica de compartir viviendas entre varios núcleos familiares. En efecto, el análisis de la información censal para la capital argentina puso en evidencia que para 1960 las viviendas de la ciudad fueron compartidas entre un mayor número de personas que en la medición anterior, el Censo de 1947. En 1960, el promedio de personas por vivienda se incrementó en un 12%, sobre la totalidad de las viviendas de la ciudad y en un contexto en el cual el tamaño promedio de las familias había descendido de 3.80 a 3.14 miembros.[7] En síntesis, las familias eran más pequeñas, pero las viviendas eran compartidas por un mayor número de núcleos familiares bajo el mismo techo.

Desde principios de la década de 1960, la presencia de las urbanizaciones irregulares, y de sus habitantes, en la escena urbana, comenzó a ser objeto de reflexión por parte de las ciencias sociales. Al tiempo que en los círculos académicos se comenzó a hablar de las “urbanizaciones de la pobreza”, su aumento comenzó a llamar la atención de los diversos estados latinoamericanos, que desde fines de la década de 1950 y en la década siguiente, las percibieron como un “desorden urbano”.[8] En contextos políticos autoritarios, estas urbanizaciones fueron asimiladas a un mal descontrolado y consecuentemente, las políticas diseñadas para lidiar con este problema consistieron, lisa y llanamente, en extirpar el problema del cuerpo social. Esta mirada reforzó las barreras sociales y culturales preexistentes, y de larga data, entre las urbanizaciones y la “ciudad moderna”, que se veía a sí misma escindida de las primeras.[9] De este modo, se operó la transición, desde la invisibilización inicial, hacia un consenso social en torno a las políticas que, en un extremo, consistieron en arrasar los asentamientos, erradicar a sus ocupantes, y llevarlos a vivir a nuevas viviendas, construidas por lo general lejos del sitio original. Estas nuevas viviendas debían ser, ineludiblemente, “modernas”.

El requisito de modernidad implicaba que las nuevas viviendas fuesen concebidas como verdaderos laboratorios sociales, en los cuales los individuos y las familias operaran la transición desde sus pautas culturales de origen hacia un horizonte considerado como “civilizador”. Paralelamente, desde el campo intelectual, se estaban alumbrando las perspectivas fundacionales sobre las urbanizaciones informales. En este Dossier se discuten algunos de esos enfoques tradicionales. Para el caso de la composición social de las villas miseria en la Argentina, se revisitan las hipótesis de Gino Germani y de José Luis Romero, que abordaron la cuestión desde la sociología y desde la historia, respectivamente.[10] Ambos enfoques, habían asociado la conformación de las urbanizaciones en Buenos Aires con la etapa de desarrollo industrial y con las transformaciones acaecidas durante los primeros gobiernos peronistas. Las nociones de desintegracion social de Germani y de anomia, de Romero, son revisitadas para marcar su pervivencia en la bibliografía posterior, en la cual habrían colaborado a demarcar y reforzar las fronteras sociales preexistentes, entre los habitantes de estas urbanizaciones y el resto de la ciudad.

A lo largo de la vida de las urbanizaciones informales, en estos sectores de ciudad se produjeron transformaciones históricas que afectaron a su demografía, su organización social y la participación política y sindical de los sectores de trabajadores y desocupados que los habitaron. Estos ciudadanos, si bien carecieron de los recursos económicos para acceder al mercado formal de la vivienda, pudieron, en muchos casos, dar visibilidad a sus reclamos y negociarlos con los poderes públicos. En determinados países y escenarios históricos, los habitantes de las urbanizaciones irregulares vieron ampliados sus derechos y posibilidades de acceso a mejorar su calidad de vida, accediendo a nuevos consumos materiales y simbólicos.

Estos avances y conquistas se vieron brutalmente cercenados en otras coyunturas históricas, siendo las dictaduras militares quienes elaboraron las políticas más agresivas y violentas hacia estas urbanizaciones y sus habitantes. Sin embargo, sería una simplificación aplicar de manera taxativa una lectura sin mediaciones que identifique la democracia con un avance en los derechos de los habitantes de las urbanizaciones informales y la dictadura con la represión de los mismos. Las investigaciones recientes muestran un panorama mucho más poroso, que contradice lecturas más binarias y sin duda, más tranquilizadoras.

Algunas experiencias pioneras de proyectos participativos de vivienda de ayuda estatal, orientadas a mejorar las condiciones de vida de las urbanizaciones a través de “asociaciones para el proyecto y la ayuda mutua en la autoconstrucción” de viviendas, no tuvieron lugar bajo gobiernos democráticos. Por ejemplo, en el caso de la Villa 7 en Buenos Aires, la experiencia tuvo lugar durante el tercer ciclo de la dictadura conocida como Revolución Argentina, bajo el gobierno de facto del General Lanusse.[11] Se trató de un proyecto elaborado y ejecutado en conjunto entre los técnicos de la Comisión Municipal de la Vivienda y los habitantes de las futuras unidades habitacionales que habrían de reemplazar al asentamiento del que provenían, trasladando el barrio a un terreno lindero. Esta experiencia puede considerarse modélica desde el punto de vista socio- urbano. Debido al éxito en la ejecución, adjudicación y posterior apropiación de las viviendas, el caso de Villa 7 fue reconocido y tomado como ejemplo para muchas experiencias cooperativas posteriores, algunas de las cuales son analizadas en los artículos que integran este Dossier.

Ahora bien, si algunas de las experiencias más innovadoras no tuvieron lugar bajo gobiernos democráticamente elegidos, no es menos perturbador que algunos de los más violentos hechos represivos de las reivindicaciones sociales y políticas de los habitantes de las urbanizaciones informales y de sus referentes, hayan acaecido en ellos. Como ejemplo paradigmático de lo segundo, cabe citar los asesinatos del cura Carlos Mugica, referente del Movimiento de Sacerdotes para el Tercer Mundo [12], y activo representante de los derechos de los villeros ante la jerarquía eclesiástica, el 11 de mayo de 1974, en Buenos Aires y el de Alberto Chejolán, emblemático representante de la Villa 31 de Retiro, el 25 de marzo de 1974. Ambos fueron asesinados por miembros de la banda paraestatal conocida como Triple A, durante el tercer gobierno peronista. El líder de esta organización, el entonces Ministro José López Rega, fue un precursor a la hora de sentar los lineamientos de lo que posteriormente fue el accionar de la última dictadura militar argentina, en relación con las urbanizaciones.

La dictadura inaugurada en Argentina en marzo de 1976 llevó a cabo uno de los planes de erradicación más violentos de la historia de las ciudades latino-americanas [13]. En ese período, se demolió la mayor parte de la estructura urbana y habitacional de las villas y simultáneamente, se desmantelaron las organizaciones, asesinando y “desapareciendo” a muchos de sus referentes políticos.[14] La aplicación del Plan de Erradicación buscó expulsar de la ciudad a la totalidad de los habitantes de las villas hacia tierras de menor valor económico en los suburbios, haciendo uso de la violencia estatal. El resultado fue que mientras para 1976 la población total de las villas era de 213.823 personas, en 1980 había descendido a 34.068.[15] En el caso de la última dictadura argentina, que gobernó hasta 1983, se percibe un alto grado de cohesión entre los discursos y las prácticas estatales en torno a las urbanizaciones informales, que quedaron diezmadas y desarticuladas en su representación y capacidad organizativa.

Los casos señalados en los párrafos precedentes, que dieron como resultado los aparentes desfasajes entre los tiempos de la política, los modelos estatales y las acciones del poder político hacia las urbanizaciones informales no resultan de fácil interpretación. Intuimos determinaciones múltiples detrás de ellos. No es intención de este artículo hacer un análisis concluyente de estos fenómenos, en todo caso, nos limitamos a señalar que en el análisis de las políticas habitacionales es importante estar advertido acerca de buscar correspondencias directas entre los tiempos cortos de la política y los tiempos largos de la vida de las ciudades y de los cambios urbanos, que muchas veces obedecen a lógicas diferentes. Por los tiempos que conlleva la materialización de los cambios en el plano material de la ciudad (tiempos de proyecto, de aprobaciones de acuerdo a leyes y normas, tiempos de construcción, de adjudicación, etcétera), sucede que muchas veces, las iniciativas que tienen inicio en un contexto político determinado, son finalizadas y salen a la luz en circunstancias históricas diferentes, e inclusive antagónicas, respecto del momento inicial.

En segundo lugar, los tiempos de circulación de las ideas en los estratos intelectuales y en las elites profesionales, y su penetración en la cultura de la burocracia estatal, tampoco obedecen de manera lineal a los tiempos de la política, pues fluyen por otros carriles. Para iluminar este aspecto puede citarse la circulación, apropiación y posterior materialización de las ideas de la modernidad arquitectónica, para la vivienda de los trabajadores, en contextos económicos y políticos conservadores e inclusive, antimodernos. Ejemplo de esto son los conjuntos habitacionales de gran escala, construidos en la periferia de las grandes ciudades según ideales sociales y pautas de habitar modernas, en estilo internacional, en época de dictaduras nacionalistas y conservadoras desde el punto de vista social y cultural.

Otro ejemplo son los debates y la aplicación de las ideas de John Turner, quien fue uno de los principales críticos de las políticas de erradicación y promovió la autogestión y la autoconstrucción, a partir de su estudio de las urbanizaciones en Perú, Estados Unidos y el Reino Unido. Sus investigaciones de fines de la década de 1960 concluían que la planificación y los marcos de acción estatal habían sido insuficientes ante la crisis habitacional y proponía solucionar el problema tomando en consideración las estrategias de los sectores populares, en lugar de arrasar con ellas. En este sentido, Turner ponía de manifiesto las habilidades de los habitantes de las urbanizaciones informales para construir sus viviendas e intervenir sobre el hábitat, a pesar de contar con escaso capital económico.[16] Estas ideas, entroncadas con el pensamiento marxista e ideales autogestivos, impregnaron algunos programas de vivienda elaborados bajo gobiernos dictatoriales.

Las teorías de Turner fueron extensamente discutidas durante la década de 1970 en América Latina, especialmente su obra Vivienda, todo el poder para los usuarios, de 1976, así como los debates con sus críticos, Emilio Pradilla y Rod Burguess, que objetaban a Turner adjudicar capacidades y agencia a los sectores populares, relevando de esa responsabilidad al estado. Estos debates impregnaron el clima intelectual de los profesionales y técnicos que, en esos años, estaban elaborando políticas habitacionales en concordancia con las ideas de autoconstrucción y autogestión del hábitat popular.

Al calor de estas ideas, se gestaron intervenciones que pueden definirse como “soluciones alternativas” para el problema habitacional bajo distintos modelos estatales, en los cuales cierta porosidad permitió la coexistencia de ideas diversas, contenidas bajo el paraguas de idearios laxos de desarrollo y modernización, hallables incluso en gobiernos dictatoriales y de sesgo cultural conservador. Esta diversidad permitió que al tiempo que los estados erradicaban pobladores de las urbanizaciones informales y los trasladaban a viviendas transitorias o a grandes conjuntos habitacionales en la periferia de las ciudades, paralelamente, tuvieran lugar procesos de autoconstrucción, en los cuales los habitantes transformaban sus barrios, proveyéndose de servicios e infraestructura. Algunos de los trabajos reunidos en este Dossier enfocan este tipo de experiencias.

En la década de 1970 convivieron, entonces, programas de erradicación, que en aras del acceso a “viviendas dignas” acordaban en la necesidad de desmantelamiento de las urbanizaciones informales, a la vez que iban ganando terreno las ideas proclives al mejoramiento de las condiciones habitacionales de las villas, cantegriles, favelas y callampas, en la convicción de que “las razones del fracaso de la acción habitacional corriente —de programas y proyectos para reemplazar moradas deficientes— radicaban en la falta de concordancia entre las necesidades de la gente y las viviendas proporcionadas por las instituciones”.[17] Estas ideas fueron posteriormente recogidas desde agencias internacionales, como la Organización de Estados Americanos, que promovieron mayoritariamente la participación activa de los habitantes en la construcción. La Primera Conferencia sobre los Asentamientos Humanos de Naciones Unidas Hábitat I, realizada en Vancouver en 1976, hizo fuertes recomendaciones en este sentido.[18]

Mientras que desde algunos espacios de gobierno se defendía la intervención del estado frente a sujetos que eran concebidos como portadores de una “incapacidad” para su integración exitosa al escenario urbano, otra corriente de ideas encontró que la provisión de viviendas por el estado, en la matriz de los estados europeos, cuyo ejemplo modélico era la vivienda social construida en la República de Weimar, y que había conocido experiencias exitosas en las ciudades latinoamericanas, era insuficiente para dar respuesta a la demanda del momento. En este sentido, en un contexto de urbanización creciente, la provisión de vivienda repetitiva, planificada por el estado, para familias e individuos estandarizados, dejó de ser vista como la solución para cubrir el déficit. En ese escenario, la mirada que tomaba en consideración algún grado de participación de la población en la solución a su problema habitacional fue ganando terreno.

Los trabajos reunidos en este Dossier, dan cuenta, en buena medida, de la compleja y cambiante interacción entre urbanizaciones informales y estado. En algunos casos, se enfoca el momento en que se conformaron las primeras organizaciones sectoriales a través de las cuales los habitantes eligieron una representación que en muchos casos fue su respuesta frente a las decisiones del poder político de erradicarlas. Los trabajos dan cuenta de la resiliencia de la población villera y de las diferentes ideologías urbanas y políticas de los profesionales actuantes en las agencias estatales encargadas del diseño de políticas habitacionales, muchos de los cuales tenían una pertenencia y una militancia política que difería del aparato estatal al que pertenecían. Estas negociaciones, luchas y procesos de avasallamiento, avance y retroceso estatal, fueron diferentes en los distintos contextos latinoamericanos. Las investigaciones enfocadas en el rol del estado como sujeto histórico y de sus agencias, no siempre homogéneas en sus concepciones, permiten adentrarnos en las fronteras sociales y materiales establecidas entre las urbanizaciones informales y el resto de la ciudad. Fronteras móviles, más permeables o más rígidas, en los diferentes contextos históricos y nacionales.

Los artículos aquí reunidos abordan las cuestiones planteadas a través de una gran diversidad de fuentes y metodologías de análisis. Una parte de ellos, toma como material de análisis la experiencia de los habitantes, que refiere directa o indirectamente a preguntas identitarias, es decir, quién es el sujeto de la experiencia desde el punto de vista social, cultural, político, de género, etcétera. El análisis de la experiencia implica, paralelamente, una toma de posición del investigador, que elige algunos aspectos identitarios por sobre otros. En este sentido, los trabajos que analizan la experiencia de los habitantes abren una gran diversidad de facetas de análisis. Si para autores como David Harvey la experiencia está condicionada por la identidad de clase, los artículos que integran el Dossier abren ventanas hacia otros aspectos identitarios, como las identidades ligadas al mundo del trabajo y las experiencias de lucha sindical, las identidades nacionales, de género, religiosas y también, el papel de las identidades políticas vinculadas, en algunos casos, a la lucha armada. Si el análisis de las prácticas permite acceder a la representación del mundo social de los individuos, también, a la luz de las investigaciones empíricas, la experiencia aparece como un proceso de construcción y deconstrucción de la vida de los individuos. Estos trabajos tienen el interés de reabrir la pregunta acerca del valor del análisis de la experiencia, desde el punto de vista historiográfico, entendiendo a la misma como representación del universo social de los sujetos y como agente de configuración de identidades individuales y colectivas.

Las diversas investigaciones reunidas en este Dossier se inscriben en las líneas de indagación de las cuales este artículo introductorio ha trazado un boceto. La mayor parte de los artículos explora las dinámicas sociales y sus conflictos en su dimensión urbana y territorial, nutriendo una línea de los estudios urbanos promisoria y fructífera, pues la dimensión de la espacialidad ha estado ausente en buena parte de los estudios pioneros sobre las urbanizaciones irregulares. En tal sentido, el trabajo de Adriana Laura Massidda aborda las disputas y negociaciones por el espacio urbano entre el estado y los habitantes de las villas La Lonja, Cildáñez y Castañares, en la Ciudad de Buenos Aires, desde una perspectiva que identifica diversas dinámicas que tensionan la apropiación del espacio, por la cual los habitantes de esas urbanizaciones debieron recurrir a diferentes mecanismos a lo largo del periodo enfocado.

Las organizaciones villeras, sus identidades políticas y la relación con el estado, en la Argentina, están en el centro de los trabajos de Eva Camelli y de Manuela Luz Alvarez. Estas miradas resultan imprescindibles a la hora de observar las acciones estatales dirigidas hacia estos espacios urbanos y el componente identitario peronista, que ha caracterizado a buena parte de la dirigencia villera argentina. El grado de autonomía y los conflictos de esos dirigentes para sostener posiciones diferentes a las del gobierno peronista inaugurado en 1974 están en el centro del trabajo de Álvarez.

Por su parte, Erika Angélica Alcántar García & Héctor Quiroz Rothe realizan un aporte a la construcción de una historiografía que tiene su objeto en el análisis de la emergencia y el proceso de conformación del tejido socioespacial de las ciudades mexicanas contemporáneas. Su trabajo se apoya en los resultados de una investigación documental y en trabajo de campo realizado por los autores como integrantes del Seminario de Historia del Urbanismo Popular del Posgrado en Urbanismo de la Universidad Nacional Autónoma de México.

También sobre los asentamientos informales de México, el trabajo de Milton Montehano Castillo analiza un caso de estudio, la llamada Ciudad Nezahualcóyotl, una urbanización de origen informal de más de un millón de habitantes y más de cincuenta años de conformación, lo que permite al autor identificar algunos elementos de diferenciación social dentro de la urbanización y el establecimiento no solo de pautas sociales de diferenciación, sino también de sectorización en el espacio urbano, en base a criterios de antigüedad de la población residente.

Retomando el tema de la segregación social y el establecimiento de fronteras sociales, el artículo de María José Bolaña sobre la construcción del discurso público acerca del cantegril montevideano, contribuye a la comprensión del modo en que las políticas gubernamentales delimitan sujetos en la ciudad, ubicándolos en el espacio simbólico y material, y delineando sus características desde determinados modelos urbanos y sociales.

Luciana Vaccotti, por su parte, ha trabajado la condición de los migrantes en las villas a través de la bibliografía sobre informalidad urbana y procesos migratorios, así como el modo en que esos discursos han construido históricamente la categoría “migrante” en tanto problema sociológico. Su artículo revisita la producción académica sobre el tema, orientada a rescatar las disputas e interacciones entre colectivos migrantes y locales, en situaciones de conflictividad social, en las cuales muchas veces los derechos de los primeros se ven vulnerados.

El recorte del colectivo inmigrante, en este caso proveniente de un país limítrofe, aparece como una de las facetas del trabajo de Leandro Daich Varela. Su artículo enfoca el caso de la Villa 31 de Retiro, la urbanización irregular de más larga data que pervive en Buenos Aires, dando cuenta del proceso de creación de cooperativas de autoconstrucción de nuevas viviendas en la periferia urbana como estrategia frente a la erradicación. Su estudio de caso es la organización de la Cooperativa Copacabana, creada durante la última dictadura militar argentina (1976-1983). A su vez, el trabajo explora las estrategias, ideas y conflictos al interior de la Cooperativa, y entre ésta y las autoridades, así como las relaciones de este grupo con la Iglesia Católica y con el Movimiento de Sacerdotes para el Tercer Mundo.

También el trabajo de las investigadoras brasileras Jimena Alejandra Veja y María Cristina da Silva Schicchi está enfocado en las erradicaciones que puso en práctica la última dictadura militar argentina. Su caso de estudio son las villas del Bajo Belgrano y de Colegiales, ambas en la Ciudad de Buenos Aires. Su artículo presenta un análisis de las estrategias y prácticas urbanísticas y su traducción en el espacio material de la ciudad, con el fin de convertirla en una “ciudad blanca”, metáfora a que apelan las autoras en referencia a una ciudad moderna y socialmente homogénea.

Por su parte, el trabajo de Valeria Snitcofsky revisita críticamente las primeras interpretaciones producidas por Jose Luis Romero y por Gino Germani, desde los campos de la historia y de la sociología, respectivamente, para analizar de modo conjunto estos dos enfoques clásicos. Su trabajo revisa las herencias actuales de las perspectivas tradicionales que, aun cuando fueron criticadas en profundidad por una rica producción historiográfica desarrollada a lo largo de las últimas décadas, permanecen vigentes.

Finalmente, la investigación de Camila Chiara, María Mercedes Di Virgilio y Florencia Aramburu sobre la aplicación de una política pública reciente, los Planes Federales de Vivienda en el Área Metropolitana de Buenos Aires, reflexiona sobre las políticas habitacionales en el Conurbano Bonaerense. El análisis está elaborado a partir de una desagregación de datos y características de los mencionados Planes Federales en los diferentes municipios, buscando iluminar las diferencias en la aplicación local de este programa que si bien tuvo alcance federal, fue de implementación por cada uno de los cuarenta municipios que integran el Área Metropolitana

Los diferentes artículos que integran este Dossier despliegan, pues, diferentes miradas, estrategias metodológicas y enfocan diferentes objetos de análisis que encuentran un punto de convergencia en la cuestión habitacional de las villas miseria, favelas, cantegriles, callampas y asentamientos, como objeto de estudio científico de las ciudades latinoamericanas. Desde el punto de vista de la economía urbana y de las disputas por la inclusión y el derecho a la ciudad, los trabajos reunidos en este Dossier arrojan luz sobre la ciudad en tanto escenario de conflictos, entre intereses de agentes posicionados de manera diferencial, según su capital social, cultural y político, dentro de la escena urbana.

Dado que la ciudad puede considerarse como materialización de un excedente de producción y, por lo tanto, su control y apropiación son susceptibles de permanentes disputas, las urbanizaciones informales expresan estas tensiones con especial intensidad, debido a su vulnerabilidad social y jurídica. El objetivo de este Dossier es el de analizar y poner en discusión una serie de trabajos de investigación recientes, que renuevan este campo historiográfico, dando cuenta del despliegue político, social y territorial de estas disputas, en el largo plazo.

Notas

1. En los diferentes países latinoamericanos, se designa como villas miseria, favelas, cantegriles o callampas, entre otras denominaciones, a las urbanizaciones no planificadas en tierra vacante, por parte de familias e individuos, a lo largo del tiempo. Coincidimos con la mirada de Cravino, quien las entiende como urbanizaciones, con vocación de integración al resto de la ciudad. M. C. Cravino, Entre el arraigo y el desalojo. La Villa 31 de Retiro. Derecho a la ciudad, capital inmobiliario y gestión urbana, Buenos Aires: Universidad Nacional de General Sarmiento y Vivir en la villa. Relatos, trayectorias y estrategias habitacionales, Buenos Aires: Universidad Nacional de General Sarmiento, ambos de 2009. En el contexto de este artículo, se utilizan las expresiones “urbanizaciones irregulares” en referencia a su trama, por oposición a las ciudades regulares de tradición hispánica y, en algunos casos “urbanizaciones informales”, por materializarse por fuera del mercado formal de la vivienda. Ambas expresiones se utilizan, de manera indistinta, a lo largo del artículo.

2. Sobre la emergencia de este tipo de urbanizaciones, véase la Tesis de Doctorado en Historia de Valeria Snitcofsky, ‘’Villas de Buenos Aires: historia, experiencia y prácticas reivindicativas de sus habitantes (1958-1983)’’. Universidad de Buenos Aires, 2015.

3. Para el caso brasilero, véase N. Bonduki, Origens da habitacao social no Brasil, San Pablo: Estacao Liberdade, 2011 y Ana Paula Koury y N. Bonduki, Os pioneiros da habitacao social. Cem anos de política pública no Brasil, San Pablo: UNESP, 2012. Para el argentino, véase A. Ballent, Las huellas de la política. Vivienda, ciudad, peronismo en Buenos. Aires, 1943-1955. Buenos Aires: Universidad de Quilmes, 2005 y R. Aboy, Viviendas para el Pueblo. Espacio urbano y sociabilidad en el Barrio Los Perales, 1946- 1955. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica- UdeSA, 2005, entre otros.

4. Al respecto véase David S. Parker & Gabriela Castillo, “Laws in Translation: Asymmetric Globality and the Dialogue between French Expert Knowledge and Chilean Social Legislation, 1889-1931”, Queen’s University, 2017 (Inédito)

5. Sobre la instauración del modelo de la familia nuclear, E. Míguez, “Familias de clase media: la formación de un modelo”. En Devoto, F y Madero, M. Historia de la vida privada en Argentina. La Argentina plural (1870-1930). Buenos Aires. Taurus, 1999. También I. Cosse, Pareja, sexualidad y familia en los años sesenta: una revolución discreta. Buenos Aires. Siglo XXI, 2010.

6. Al respecto, véase R. Fernández Wagner, “La construcción y deconstrucción histórica de lo social en el acceso a los bienes y servicios del hábitat”. En Boletín del Instituto de la Vivienda. Mayo, Vol. 10, Núm. 50, Universidad de Chile, Santiago de Chile, 2004.

7. Este análisis en R. Aboy, “Arquitecturas de la vida doméstica. Familia y vivienda en Buenos Aires, 1914- 1960”. Anuario IEHS, número 23, pp. 355- 384. ISSN 0326-9671. Tandil, 2008

8. He tomado la noción de ‘’desorden urbano” de Fernández Wagner, ob.cit.

9. Sobre la noción de “frontera social”, véase mi artículo “Ellos y nosotros. Fronteras sociales en los años del primer peronismo”. En Nuevo Mundo Mundos Nuevos, Revista electrónica editada por L’Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales. Marzo, N.° 8, ISSN 1626-0252. 2008.

10. G. Germani, “Investigación sobre los efectos sociales de la urbanización en un área obrera del Gran Buenos Aires”, en Hauser, Philipe (editor), La urbanización en América Latina, Buenos Aires: Unesco, 1961; Política y sociedad en una época de transición. De la sociedad tradicional a la sociedad de masas. Buenos Aires: Paidós, 1962. J. L. Romero, Latinoamérica, las ciudades y las ideas. Buenos Aires: Siglo XXI, 1976.

11. Ver al respecto, R. Barrios, El Plan de Realojamiento de la Villa 7 en Mataderos, en Ciudad de Buenos Aires, entre 1971 y 1975. Tesis de Maestría en Administración Pública. Buenos Aires: Facultad de Ciencias Económicas, Universidad de Buenos Aires, 2012. Tambien de la autora, “Entre la incapacidad de acción y la autonomía. Miradas sobre la participación popular en políticas de vivienda y hábitat en las décadas del 60 y 70 en argentina. Los aportes de John Turner y Víctor Pelli”. Cuaderno Urbano núm. 16; junio 2014. issn 1853 – 3655.

12. Este grupo de sacerdotes realizaba su tarea pastoral en las villas de la Ciudad de Buenos Aires en diálogo con las ideas de la Teología de la Liberación. Se había organizado en medio del clima postconciliar y proponía transformar a las villas en barrios obreros, en tanto éstas no eran consideradas como un hábitat digno. La denuncia de la estigmatización de los villeros y la tarea de los religiosos en su representación no implicaba la defensa de la existencia de urbanizaciones informales. Los curas eran proclives a su relocalización, siempre y cuando fuera llevada a cabo con el consenso de los habitantes y hacia “viviendas dignas”. L. Daich Varela, “El barrio La Asunción, relocalización de villas y autoconstrucción cooperativa en el ex municipio de General Sarmiento”. Tesis de Doctorado en curso

13. El Plan de Erradicación de Villas (PEVE) había sido inaugurado por el General Onganía, quien fue presidente de facto entre 1966 y 1970.

14. E. Blaustein, Prohibido vivir aquí: la erradicación de villas durante la dictadura. Buenos Aires: Punto de Encuentro, 2006.

15. L. Daich Varela, ob. cit. Y también L. Daich Varela, “Demandantes, autoconstructores y técnicos. Formas de resistencia en las villas de la Ciudad de Buenos Aires frente a las erradicaciones de la última dictadura militar”. Quid 16 N°6, 88-120. 2016; “Imágenes de la Cooperativa Copacabana. Un análisis sobre la erradicación de villas y la construcción de viviendas durante la última dictadura a partir de sus fotografías”. Clepsidra. Revista Interdisciplinaria de Estudios sobre Memoria Nº9, (en prensa).

16. Sobre estos temas, ver R. Barrios, “Entre la incapacidad de acción y la autonomía. Miradas sobre la participación popular en políticas de vivienda y hábitat en las décadas del 60 y 70 en Argentina. Los aportes de John Turner y Víctor Pelli”. Cuaderno Urbano 16; Junio 2014. ISSN 1666- 6186.

17. J. Turner, Libertad para construir. Mexico: Siglo XXI Editores, 1972, p. 177

18. R. Barrios analiza este tema en su artículo “Entre la incapacidad de acción y la autonomía. Miradas sobre la participación popular en políticas de vivienda y hábitat en las décadas del 60 y 70 en Argentina. Los aportes de John Turner y Víctor Pelli”, ya citado

Referências

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BARRIOS, Romina, “Entre la incapacidad de acción y la autonomía. Miradas sobre la participación popular en políticas de vivienda y hábitat en las décadas del 60 y 70 en argentina. Los aportes de John Turner y Víctor Pelli”. Cuaderno Urbano núm. 16; junio 2014. issn 1853 – 3655

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Rosa Aboy – Professora Doutora. Universidad de Buenos Aires. E-mail: rosaboy@gmail.com


ABOY, Rosa. Editorial. Urbana. Campinas, v.9, n.1, jan / abr, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Cidade latinoamericana / Urbana / 2016

Ciudad latinoamericana: teorías, actores y conflictos

A finales del siglo XIX Latinoamérica culmina el tránsito de un sistema de ordenamiento territorial basado en las ciudades-república y hereditario de los sistemas imperiales español y portugués hacia uno caracterizado por repúblicas de ciudades (Mejía, 2013). Al despuntar el siglo XX la ciudad, especialmente cuando llevaba el estatus de capital, se convertía en un espacio dinámico de circulación de personas, mercancías e ideas. Así, simultáneamente durante la primera mitad del siglo pasado, en algunas de ellas se iniciaron debates y reflexiones sobre temas similares como la puesta en marcha de proyectos de urbanismo, la construcción de medios de transporte modernos o la creación de redes de servicios públicos. La difusión de estas discusiones a través de revistas de sociedades profesionales y académicas así como la realización de los primeros congresos internacionales de municipios, o las primeras conferencias internacionales entre grupos de profesionales y expertos locales y extranjeros daban lugar a los primeros intercambios intelectuales a nivel latinoamericano cuyo objeto de estudio era la ciudad misma. Ahora bien, a pesar de las herencias compartidas y de las similitudes entre ciudades, la idea de ciudad latinoamericana surge como proyecto intelectual sólo desde la segunda mitad del siglo XX.

La ciudad latinoamericana es subsidiaria de la construcción de la propia idea de América Latina. Es decir, una noción y un nombre articulados a una doble oposición: como ´nuevo mundo´, opuesto a Europa, y como ´latina´, opuesta a la América Sajona, la del norte (Altamirano, 2005). Esa doble diferenciación es constitutiva de la idea de América Latina, nombre que en determinadas coyunturas político-intelectuales ha eclipsado otros intentos de identificación regional tales como el de Sudamérica, Hispanoamérica, Nuestra América o Iberoamérica.

La referencia a ciudades adjetivadas como latinoamericanas precisa otras consideraciones más específicas. Buenos Aires, Santiago de Chile, São Paulo, Caracas, Lima y Ciudad de México, entre otras, comparten similitudes y diferencias. Su inserción geográfica o el compartir un pasado colonial no permiten su mera identificación y unificación como ´ciudades latinoamericanas´, obviando, por ejemplo, sus dispares procesos de urbanización a lo largo del tiempo.

Una estrategia de abordaje de este asunto ha sido entender la ´ciudad latinoamericana´ como construcción cultural, cuya existencia se verifica entre los años cincuentas y setentas del siglo pasado, es decir, mientras hubo voluntad intelectual de construirla como objeto de conocimiento y acción así como actores e instituciones dispuestos a hacer efectiva esa vocación (Gorelik, 2005).

Realidad y representación, la ciudad latinoamericana comparte diversos procesos sociales, económicos, políticos y urbanos así como se construye conceptualmente a partir de diversas redes e instituciones. Uno de sus interrogantes centrales consistió en cómo abordar e intervenir sobre los procesos de urbanización en América Latina. Las respuestas ensayadas hicieron reaparecer la aludida doble oposición que signaba a la idea de América Latina, en tanto se interrogaban las diferencias respecto a procesos previos de urbanización en contextos centrales así como los eventuales aprendizajes a extraer de los mismos.

La idea de ´ciudad latinoamericana´ fue producida entre la década del cincuenta y del setenta a partir de intercambios intelectuales entre instituciones como la Sociedad Interamericana de Planificación, la Comisión Económica para América Latina, el Instituto Latinoamericano de Planificación Económica y Social, la Organización de Estados Americanos, la Organización de las Naciones Unidas, la Comisión de Desarrollo Urbano y Regional de Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, múltiples centros de estudios e investigaciones así como los nacientes organismos de planificación urbana y regional. A pesar de sus diferencias, esas organizaciones promovieron la producción de teorías e investigaciones sobre la ciudad latinoamericana a partir de conceptos desplegados en la propia región. Así, postulaban que los acelerados procesos de urbanización en América Latina tenían diversas especificidades y señalaban inconvenientes respecto a la preeminencia de teorías y herramientas provenientes de ´contextos centrales´. Sin embargo, la propia producción de la idea de ´ciudad latinoamericana´ supuso tanto el accionar de expertos latinoamericanos – muchos de los cuales habían sido formados en los Estados Unidos – como la colaboración e interlocución – a partir de financiamientos, visitas e investigaciones – con instituciones e investigadores de los Estados Unidos y, en menor medida, de Europa.

De los múltiples recorridos posibles para abordar la ´ciudad latinoamericana´, cabe destacar tres momentos protagonizados por una serie de actores (instituciones, académicos y movimientos sociales), ideas (desarrollo, modernización, dependencia) y conflictos.

Tras el fin de la Segunda Guerra Mundial, las ideas promovidas desde organismos como la Comisión Económica para América Latina (Prebisch, 1950), consolidan en América Latina la voluntad político-intelectual de aprovechar las ventajas del sub-desarrollo. Así, buscaron impulsar un “crecimiento hacia adentro” a través de una política de industrialización por substitución de importaciones que hiciera posible la modernización productiva del continente. En ese contexto, las ciudades latinoamericanas son vistas de manera ambivalente. Por un lado, son valoradas como vectores y principales promotoras de esa modernización. Por otro, son abordadas como el escenario de una serie de asincronías que impedían superar los rasgos más persistentes de la sociedad tradicional: urbanización sin industrialización, reducción de las tasas de mortalidad a la par de altos niveles de natalidad, incremento de la migración campo-ciudad sin capacidad de esta última de procesar la presión demográfica, entre otros aspectos (Germani, 1973). Estos elementos configurarían el que sería el principal rasgo de la ciudad latinoamericana: la marginalidad.

El fenómeno de la marginalidad será señalado como el principal obstáculo para el desarrollo. Por un lado, por evidenciar la incapacidad de los sistemas económicos de la región para incorporar al proceso productivo a aquellos grupos que se desempeñan en áreas de escasa cualificación y productividad (Rosenblüth, 1968). Por otro, por la amenaza política que representaba la avalancha popular sobre las urbes en los diferentes formatos de vivienda precaria (barriadas en Lima, callampas en Santiago de Chile, favelas en Río de Janeiro, villas miseria en Buenos Aires, etc.) (Rios, 1960). Asimismo, será definida como la falta de participación y pertenencia a la sociedad de un sector de la misma que queda excluido de la vida urbana moderna por la persistencia en su comportamiento de rasgos culturales rurales y tradicionales (Vekemans y Silva, 1969). La marginalidad inaugura un período pesimista en el pensamiento social de la región, en la medida que pasa a ser identificada como un anatema de la modernización. Sin embargo, al asumir que tenía un carácter transitorio se reforzaba la confianza en las políticas de reforma urbana como posible solución.

A finales de los años 60, la Teoría de la Dependencia consolidará el pesimismo intelectual al reconsiderar el sub-desarrollo y la marginalidad. Éstos ya no serán abordados como una mera etapa susceptible de ser superada, sino como elementos inherentes de la dinámica capitalista que, para su desarrollo, requiere de una división internacional del trabajo en la cual le cabe a América Latina una posición subordinada (Cardoso y Faletto, 1969). Este giro tendrá dos consecuencias para la ciudad latinoamericana: por un lado, la consolidación de una teoría regional que identifica al subcontinente como parte de la periferia capitalista; por otro lado, la comprensión de la marginalidad como un producto de las tendencias estructurales de sociedades de esa periferia dependiente. La existencia de un polo o masa marginal, afuncional para la acumulación capitalista, será el eje central de una teoría de la “Urbanización Dependiente” que buscará articular la historia del fenómeno urbano y sus correspondientes desequilibrios a las sucesivas formas de dependencia de América Latina (Quijano, 1967).

A partir de este punto, el polo marginal dejará de ser definido como masa para ser conceptualizado como un actor central de los procesos de cambio social. Así, a partir de la experiencia de los pobladores chilenos durante el gobierno de Salvador Allende, surge la categoría de “Movimientos Sociales Urbanos”, definidos como una forma novedosa y territorializada de lucha de clases (Castells, 1972). Desde otras claves teóricas y políticas, eran vistos como comunidades que proporcionan nuevas posibilidades para la reconstrucción social urbana en base a las vecindades, vínculos regionales y de parentesco, asociaciones de ayuda mutua y actividad política de pequeños grupos (Morse, 1965). Asimismo, se le atribuirá a estos grupos no solo la condición de víctimas de la expoliación urbana (Kowarick, 1979), sino además la de artífices principales de una ciudad democrática, sobre todo por las tomas y ocupaciones de terrenos que propiciaron, estableciendo lo que se consideró como una fisonomía propia de las ciudades latinoamericanas.

Desde la década del ochenta en adelante, las condiciones políticas y económicas cambian y cobran relevancia categorías alternativas a la ciudad latinoamericana. El reposicionamiento de España propicia la creciente centralidad de lo Iberoamericano, lo que implica el despliegue de nuevas redes de ciudades autodenominadas iberoamericanas – como la Unión de Ciudades Capitales Iberoamericanas o el Centro Iberoamericano de Desarrollo Estratégico Urbano – y la intensificación de la circulación de políticas urbanas promovidas por expertos catalanes, madrileños y andaluces en gran parte de América Latina.

Por otra parte, algunos de los actores que promovieron previamente la agenda de la ´ciudad latinoamericana´ abrazarían otras categorías tales como la de ´ciudades del tercer mundo´, ampliando el universo hacia ciudades de África y Asia. Posteriormente, ese desplazamiento tomará nuevas formas en términos teóricos y políticos alrededor de la idea de ´Sur Global´, deudora de aportes de las teorías poscoloniales.

Durante los años noventas, la problemática de la globalización y sus impactos sobre las ciudades de la región intensificarán la aludida deslatinoamericanización. Esto supuso una creciente focalización en otras geografías y conceptos, en tanto el destino de cada ciudad en América Latina comenzó a ser abordado en relación a actores que trascendían la región y estaban crecientemente desnacionalizados, como ser el capital trasnacional. En un marco de competencia entre ciudades, cada una de éstas buscó insertarse – aún de modo periférico – en un mapa de ciudades globales. Así, conceptos como el de “ciudad global” se deslizan desde lo descriptivo a lo normativo y son difundidos no sólo como categoría de análisis, sino también como el único e inexorable modelo capaz de garantizar la supervivencia de las ciudades en el contexto de globalización.

Las últimas décadas atestiguan el debilitamiento de la ciudad latinoamericana como construcción cultural y como proyecto político e intelectual. Sin embargo, algunos emprendimientos dan cuenta de su perduración aunque desde coordenadas políticas y teóricas diversas. Iniciativas de articulación regional de países, como el Mercosur, tuvieron un correlato en redes de ciudades como Mercociudades. Asimismo, se intensificó la circulación regional de variadas políticas urbanas producidas en América Latina, como ser: Porto Alegre y el presupuesto participativo; Medellín y Curitiba y las intervenciones en transporte urbano y diseño de espacios públicos; Bogotá y su modelo de ciclovías, entre otras. Desde el punto de vista académico, diferentes instituciones y redes perseveran en una interlocución regional, como serla Red Iberoamericana de investigadores sobre Globalización y Territorio y grupos de trabajo específicos del Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, a la vez que diversas iniciativas prosiguen interrogándose sobre la especificidad de la urbanización en América Latina y la necesidad de producir conocimiento en y sobre la región, tales como la Red Latinoamericana de Investigadores sobre Teoría Urbana, entre otras. Por otra parte, variados movimientos sociales articulados con sectores académicos y políticos han insistido en movilizar un imaginario latinoamericano que reivindica una cierta geopolítica de la resistencia regional ante lo que consideran como procesos de urbanización excluyentes, como ser remociones, segregación urbana y gentrificación. En esa dirección, se destaca la apropiación y circulación regional de perspectivas como las del derecho a la ciudad.

Para este número especial tenemos la oportunidad de presentar un dossier que incluye una selección de las ponencias presentadas durante la mesa “La ciudad latinoamericana: teorías actores y conflictos (Siglo XX-XXI)”, la cual tuvo lugar en el IV Congreso de la Internacional del Conocimiento en la ciudad de Santiago de Chile en octubre de 2015. Este evento se desarrolló en los locales de la Universidad de Santiago y tuvo el auspicio del Instituto de Estudios Avanzados (IDEA-USACH). El objetivo planteado en este simposio fue comprender la cuestión urbana en América Latina a partir de las teorías que buscaron pensarla, de los actores que la animaron y de los conflictos que le dieron forma.

En esta ocasión quisimos incluir artículos que abordaran desde disciplinas y perspectivas distintas elementos que permitan comprender procesos asociados a la producción y evolución de la ciudad latinoamericana. En ese sentido, los distintos artículos plantean perspectivas desde lo geográfico, lo político, lo económico, lo histórico, lo social y lo cultural.

Referências

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MEJÍA, Germán. La aventura urbana de América Latina. Madrid: Fundación Mapfre, Taurus, 2013.

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ROSENBLÜTH, Guillermo. Problemas Socio-Económicos de la Marginalidad y la Integración Urbana. Revista Paraguaya de Sociología, vol. 5, n.11, 1968, p. 11–74.

VEKEMANS, Roger; SILVA, Ismael. El Concepto de Marginalidad. En: DESAL (ed.) Marginalidad en América Latina: un ensayo de diagnóstico. Santiago de Chile: Herder, 1969, p. 15-63.

Guillermo Jajamovich – Instituto de Estudios de América Latina y El Caribe. E-mail: guillermopazjajamovich@gmail.com

Alexis Cortés – Universidad Alberto Hurtado. E-mail: cortes.alexis@gmail.com

Diego Arango López – École des Hautes Études en Sciences Sociales. E-mail: diegoarangolopez@gmail.com


JAJAMOVICH, Guillermo; CORTÉS, Alexis; LÓPEZ, Diego Arango. Editorial. Urbana. Campinas, v.8, n.3, set / dez, 2016. Acessar publicação original [DR]

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Cidade e Natureza / Urbana / 2016

Compreender a relação entre as cidades e a natureza foi tarefa imprescindível para quem se dedicou a pensar as questões urbanas. Quase sempre isso ocorreu em razão de necessidades práticas e imediatas, como garantir seu abastecimento de água, comida e energia; a dispersão das águas servidas e de outros resíduos; a defesa contra inimigos próximos ou distantes para se construir vias de comunicação ou mesmo para impulsionar o desenvolvimento econômico. Mesmo em casos extremos, quando se procurou descolar a cidade de seu lugar de nascimento, essa relação estava presente, ainda que pela negação. Os que foram mais além das necessidades imediatas, deram atenção ainda maior ao modo como as relações humanas e o mundo natural interagiam no espaço urbano, e, nunca deixaram de ver as cidades como um caminho possível para a concretização da utopia de uma sociedade livre, plena de vida, alegria, inteligência e justiça.

A cada época, a natureza e as cidades foram redescobertas por novas sensações e emoções, foram apropriadas de diferentes formas para novos usos, foram constantemente reinterpretadas por inúmeros discursos e por novos saberes. A descoberta das possibilidades de divertimento na natureza, por exemplo, esteve associada com um peso cada vez maior que a cultura conquistou sobre as sensações imediatas, o que tornaria possível a reivindicação de uma natureza idealizada para o usufruto dos moradores urbanos em seus momentos de ócio.

Note-se que em nosso tempo essa relação ficou ainda mais complexa, pois, desde fins do século XX, a humanidade se encontra diante de uma grave crise ambiental. Dessa forma, pensar a relação da cidade com o mundo natural se tornou ainda mais complexo, pois é preciso considerar fatores como as mudanças climáticas, por exemplo. Não é exagero afirmar que a superação da crise ambiental contemporânea passa pelas cidades, lugar aonde vive a maior parte da população mundial, pois, ao processarem quantidades formidáveis de trabalho, recursos naturais, energia e gerarem todo tipo de resíduos, causam forte impacto nos sistemas naturais que suportam a vida do planeta, o que atinge os seres humanos nas cidades ou fora delas.

Foi pensando nessa multiplicidade de reflexões, resultantes das relações históricas entre os processos de urbanização, o meio ambiente e as diferentes representações de natureza consolidadas por nossas sociedades, que organizamos o Seminário Cidade e Natureza, realizado em 22 de maio de 2015 na Universidade Estadual de Campinas. O evento reuniu professores e estudantes de pós-graduação de diversas áreas do conhecimento que se dedicam ao estudo das inter-relações entre os seres humanos e a natureza a partir de uma perspectiva histórica e que atuam junto ao Grupo de Trabalho em História Ambiental, da Associação Nacional de História – Seção São Paulo (ANPUH-SP). O presente Dossiê Cidade e Natureza foi organizado como forma de registro dos trabalhos apresentados no Seminário Cidade e Natureza e como continuidade das ações do Grupo de Trabalho em História Ambiental no sentido de aproximar pesquisadores e suas respectivas produções, favorecendo, assim, a promoção contínua de interações acadêmicas, diálogos interdisciplinares, trocas de experiências e divulgação científica.

Janes Jorge – Universidade Federal de São Paulo. E-mail: jjunifesp@gmail.com

Carmen Lúcia Soares – Universidade Estadual de Campinas soares. E-mail: carmenlucia@gmail.com

André Dalben – Universidade Estadual de Londrina. E-mail: andredalben@uel.br


JORGE, Janes; SOARES, Carmen Lúcia; DALBEN, André. Editorial. Urbana. Campinas, v.8, n.2, maio / ago, 2016. Acessar publicação original [DR]

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Gênero e Espaço – I / Urbana / 2015

Espaços e lugares, e nossa relação com estes, são generificados. Uma relação nem sempre evidente que ao mesmo tempo reflete e cria um efeito no modo como gênero e espaço são concebidos.

Esta intrincada relação vem recebendo atenção de pesquisadores (não por acaso, em sua maioria, pesquisadoras) há pelo menos uma década. Da reflexão de Michelle Perrot a respeito do lugar das mulheres na cidade à natureza social do espaço (que inclui, claro, gênero) da geógrafa Doreen Massey, passando por estudos que relacionam espaço e sexualidade, gênero e arquitetura, gênero e espaço doméstico: trata-se de um debate em formulação, que exige dos pesquisadores uma quebra de fronteiras disciplinares entre temas bastante consolidados.

Com isso queremos dizer que os estudos urbanos, bastante consolidados, ganham um interessante desafio quando interpelado pela literatura de gênero, especialmente aquela originada nos debates feministas. E o mesmo se pode dizer para os escritos sobre gênero, em suas múltiplas dimensões, se lembramos que as relações sociais acontecem sempre em algum lugar.

O Dossiê está em dois volumes: V.7, n.2 [11] e V.8, n. 1 [12]. Esperamos que os textos publicados contribuam com esse importante debate proposto no tema do Dossiê

Silvana Rubino – Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. E-mail: silbrubino@gmail.com


RUBINO, Silvana. Editorial. Urbana. Campinas, v.7, n.2, jul / dez, 2015. Acessar publicação original [DR]

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História Urbana: a configuração de um campo conceitual / Urbana / 2015

Ao definir o espaço de constituição do capitalismo e da modernidade, Fernand Braudel, em seu clássico Civilização Material, Economia e Capitalismo, não hesita em afirmar a cidade como o lócus de construção histórica desta modernidade. As cidades são, para este autor, como transformadores elétricos: elas aumentam as tensões, precipitam as trocas, removem a vida dos homens. São nascidas da mais revolucionária divisão do trabalho: campo de um lado, atividades urbanas do outro. A cidade é cesura, ruptura, destino do mundo. Ao surgir com a escritura ela abre as portas para a história; quando renasce na Europa no séc. XI a ascensão do continente começa, quando ela floresce na Itália, é o Renascimento. Tão importante quanto seu conceito de longa duração, muitas vezes referenciado entre historiadores e cientistas sociais, Braudel ao dar tamanha importância ao espaço e à cidade também pensou num conceito que desse conta da dinâmica que envolve a cidade e a história, a pouco citada longa dimensão. A vida da cidade está associada a um espaço de longa dimensão, de onde vêm seus homens, onde estão suas relações comerciais, cidades, vilas e mercados que aceitam os seus pesos e medidas ou suas moedas, ou que falam a sua língua dialetal (s.d.: 560- 1). De onde ela imperiosa, imperial e imperativamente tira seu sustento, sua mão-de-obra, seu exército industrial de reserva, seu poder. “No Ocidente, capitalismo e cidades, no fundo, são a mesma coisa”, afirma o historiador francês (s.d.: 586).

A cidade é um espaço de densidade teórica e temporal complexa, um objeto de saberes e de práticas que compõem imagens, memórias e ações diversas. Do ponto de vista temporal, como recorda Lepetit, ela é composta por uma complexidade e uma “pluralidade de tempos descompassados, cuja combinação gera mudança a cada instante”; além disso, os elementos de uma cidade têm idades diferentes. A rede viária é mais duradoura do que o loteamento, o lote dura mais do que as casas construídas nele, os vazios duram mais do que os cheios, as estruturas menos materiais duram mais que o construído (LEPETIT, 2001: 139). Assim como a Zaíra de Calvino, a cidade “se embebe como uma esponja dessa onda que reflui das recordações e se dilata”. Sua descrição que deveria conter todo o seu passado, entretanto, não o conta, “ela o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimões das escadas (…)” (CALVINO, 1994: 14-15). Trata-se, portanto, de uma temporalidade e uma espacialidade com múltiplas subordinações e associações, que não se esgotam na descrição de seus processos morfológicos ou de suas realizações técnicas. A cidade vista como palimpsesto, como uma superposição de técnicas construtivas, estilos arquitetônicos ou ciclos econômicos é, para Lepetit, uma solução fácil, na qual a sua “compreensão se esgotaria no achado dos vestígios antigos sobre a escrita mais recente”. Uma atividade de antiquário, na qual a história seria capaz de contribuir muito pouco. Mais do que a observação empírica das transformações concretas da cidade, trata-se de dar “aos usos sociais da cidade a mesma atenção classificatória que se dedicou às formas urbanas” (LEPETIT, 2001: 140).

É da analogia das camadas geológicas presentes na configuração do espaço e do tempo histórico da longa duração tal como formulada por Fernand Braudel que Lepetit retira sua metáfora geomorfológica da cidade, como resultado do “rearranjo permanente de falhas múltiplas”, no qual as formas antigas são “constantemente retomadas pelas sociedades em novas construções”; uma rede de “realidades sobrepostas umas às outras” na qual as mudanças espaciais se operam num “jogo de atualizações sucessivas das formas passadas em combinações territoriais novas” (LEPETIT, 2001: 146). É da extensão territorial e temporal proposta por Braudel, ao tratar todo o mundo mediterrâneo em uma escala temporal de vários séculos como seu objeto, que Lepetit propõe a sua abordagem do urbano. Por isso uma relação dialética da memória com a cidade: por um lado a memória coletiva se apoia em imagens espaciais; por outro, os grupos sociais inscrevem na cidade suas lembranças, definindo um quadro espacial. O presente é o tempo no qual a vontade individual e a norma coletiva se defrontam e se ajustam. Ao trazer a análise teórica e metodológica da história para a cidade, Lepetit não diminui a escala continental de Braudel, mas atualiza esta escala para um espaço sintético das formações sociais e econômicas; “cada escala informa um nível de explicação particular” (LEPETIT, 1989: 1321).

A cidade é central, ainda, por ser o habitat do homem, esta “pátria artificial”, este “depósito de fadigas”, de que nos fala Aldo Rossi, resultante do trabalho e do engenho humanos, além de “testemunho de valores”, “permanência e memória”. “A cidade é na sua história” (2001: 22). A historicidade da cidade consiste em sua densidade espacial, temporal, material e teórica. Rossi não nos remete apenas aos edifícios, “momentos ou partes de um todo que é a cidade” (2001: 24), mas ao seu conhecimento concreto, em sua inteireza, para além da tipologia e da função. Sendo assim, ele propõe uma “visão globalizante da cidade”, uma “compreensão de sua estrutura” e verificação de suas sínteses, reconhecendo a sua construção “como uma estrutura complexa” (2001: 160-1). Rossi propõe o método histórico como aquele mais capaz de verificar qualquer hipótese sobre a cidade, por ser ela, “por si mesma, depositária de história”, tratando-a não apenas como artefato mas como texto, não apenas em sua materialidade mas com relação à “ideia que temos da cidade como síntese de uma série de valores” que concernem à imaginação coletiva (ROSSI, 2001: 194). O método histórico seria o único positivo porque “as cidades se oferecem a nós através dos fatos urbanos determinantes, em que é preeminente o elemento histórico” (ROSSI, 2001: 193).

Objeto de medo e fascínio desde o século XIX, quando se constitui um saber específico e que se pretende científico sobre ela, o urbanismo, a cidade produziu uma série de discursos que aspiram compor saberes competentes, uma imagem globalizante para a qual Michel de Certeau utiliza a certeira imagem da Nova Iorque vista desde o alto do World Trade Center, olhar destruído por acontecimentos trágicos e recentes. A cidade panorama é, para Certeau, um simulacro teórico, portanto visual, um quadro que depende do esquecimento das práticas. O deus voyeur que cria essa ficção só conhece cadáveres, deve se abster do obscuro entrelaçamento de condutas diárias (1990: 141). É abaixo, nos limiares onde cessa a visibilidade que vivem os praticantes ordinários da cidade. Nas marchas cotidianas da cidade os passantes escrevem um texto ilegível, disfrutam de um espaço invisível para eles; têm um conhecimento desse espaço tão cego quanto o corpo-a-corpo amoroso. Os elementos escapam à legibilidade, é como se uma ilusão (cegueira) caracterizasse as práticas organizadoras da cidade habitada. O cotidiano remete a práticas do espaço, ou operações que escapam a um espaço geometrizado, geográfico, de construções teóricas e panópticas, às totalizações imaginárias do olho. Essas práticas constituem operações (maneiras de fazer), uma outra espacialidade, uma experiência antropológica, poética e mítica do espaço. “Uma cidade transumante, ou metafórica, se insinua assim nesse texto claro da cidade planificada e legível” (1990: 142). A vida urbana e cotidiana restabelece o que o projeto urbanístico exclui em seu discurso totalizante e quase mítico. Se o discurso do poder se “urbaniza”, a cidade é dominada por movimentos contraditórios que se compensam e se combinam com o poder panóptico. São combinações de poderes sem identidade legível, sem transparência racional, impossíveis de se gerir (1990: 144-5). Por isso o historiador sugere o retorno das práticas da cidade e do cotidiano para a compreensão mas também para a fruição do urbano. A cidade conceito se degrada. Talvez elas deteriorem ao mesmo tempo em que os procedimentos que as organizaram. Os ministros do saber, que sempre supuseram o universo ameaçado pelas mudanças, transformam a desgraça de suas teorias em teorias da desgraça. Quando eles querem prender o povo no pânico de seus discursos, eles terão mesmo razão? (1990: 145).

Hoje nos defrontamos com outro desafio epistemológico, o que Melvin Webber e Françoise Choay, por exemplo, denominam o fim da era das cidades, a assunção de um mundo pós-urbano. Haveria, segundo Webber, uma deficiência da linguagem e uma visão anacrônica na maneira de pensar a cidade contemporânea. Faltam-nos termos adequados para descrever uma ordem social emergente. Supomos, por exemplo, que certos problemas da cidade são “problemas urbanos”, partindo do pressuposto de que essas cidades se organizam da mesma forma que as sociedades do passado. Buscamos soluções locais a problemas que não são locais, que não podem ser resolvidos no nível municipal. Governos definidos territorialmente não podem resolver problemas cujas causas não têm relação com o território ou a geografia. Conceitos e métodos de engenharia e planificação urbana para instalações físicas unitárias não podem servir para um projeto de mudança social de uma sociedade pluralista e móvel, onde a importância da distância geográfica e do lugar estão em declínio. Até agora, a organização social coincidiu com a organização espacial. Hoje, as distâncias e as restrições espaciais diminuem. Desaparecem as diferenças culturais e de informação entre o homem urbano e o rural. Desaparece também a distinção territorial entre urbanitas e ruralitas. Os menos integrados na sociedade moderna não são mais os ruralitas, mas determinados habitantes das zonas metropolitanas (WEBBER, 2004: 15- 16).

Seguindo os passos de Webber e Choay, Paul Virilio afirma que, se a metrópole ainda possui uma posição geográfica, ela não se confunde mais com a oposição campo / cidade ou centro / periferia. A oposição intramuros / extramuros dissipou-se com a revolução dos transportes e o desenvolvimento das telecomunicações. A interface da tela (computador, televisão) cria uma representação nova: o elemento arquitetônico vive em deriva, flutua em um éter eletrônico desprovido de dimensões espaciais, mas inscrito na temporalidade única da difusão instantânea. “O protocolo de acesso da telemática sucede o do portão” (2004: 10). Não há mais separação por obstáculos físicos, com a interfachada dos monitores e telas de controle o algures começa aqui e vice-versa. O espaço é formado agora por uma topologia eletrônica na qual a imagem digital renova a noção de setor urbano. À antiga ocultação público / privado e à diferenciação de moradia e circulação sucede-se uma superexposição onde termina a separação entre próximo e distante, assim como nas distâncias a separação entre micro e macro.

As tramas da tecnologia não se inscrevem mais no espaço de um tecido construído, mas nas sequências de uma planificação do tempo, cuja interface é entre homem / máquina e não mais entre homem / fachadas dos imóveis, superfícies e loteamentos. A cidade se tornou uma unidade de lugar sem unidade de tempo, sem distinção dia e noite, no novo regime de temporalidade das tecnologias avançadas. A demarcação urbana não se refere mais a um lugar, mas a um tempo inscrito na TV e na eletrônica. A forma urbana não é mais uma demarcação entre aqui e ali, mas uma programação de um “horário”. Apesar das promessas dos arquitetos pós-modernos, a cidade se encontra privada de portas mas os limites urbanos deram origem a uma infinidade de aberturas, rupturas e fechamentos igualmente constrangedores e segregativos (2004: 12). Estamos, pergunta Virilio, numa cidade sem portas? Onde ela começa? Ou estaremos no limite de uma porta sem cidade? (2004: 15)

“Graças aos satélites, a janela catódica traz a cada um dos assinantes, com a luz de um outro dia, a presença dos antípodas. Se o espaço é aquilo que impede que tudo esteja no mesmo lugar, este confinamento brusco faz com que tudo (…) retorne a esse lugar, a esta localização sem localização… o esgotamento do relevo natural e das distâncias de tempo achata toda localização e posição. Assim como os acontecimentos retransmitidos ao vivo, os locais tornam-se intercambiáveis” (2004: 13). Onde antes havia um teatro político da pólis, com a ágora e o fórum, hoje só resta uma tela catódica onde se agitam as sombras, os espectros de uma comunidade, onde o cinematismo propaga a última aparência de urbanismo, um urbanismo sem urbanidade, onde o tato e o contato cedem lugar ao impacto televisual. O espaço construído não é exclusivamente material, mas marcado pela proliferação de efeitos especiais que afetam a consciência de tempo e das distâncias, assim como a percepção do meio. Do ponto de vista do tempo e do espaço, das relações sociais, as telecomunicações e a sua imediatez fazem aquilo que não está presente ter prioridade sobre o aquilo que está presente (VIRILIO, 2004: 73). Isso representa o declínio da unidade de vizinhança e das políticas de organização territorial; declínio de um Estado nacional dividido entre reivindicações de autonomia interna e necessidades de alianças internacionais. Como caminhar pela cidade, que práticas de cotidiano serão possíveis neste espaço não mais definido decisivamente por seus limites espaciais, pela concretude das ruas e das fachadas?

Embora a estrutura da metrópole moderna continue dominando a imaginação social, as regiões metropolitanas não se adequam mais aos modelos clássicos. Há novas demandas de polinucleamento, que não seriam resultado de falta de planejamento ou espraiamento incontrolável das cidades, segundo Edward Soja, mas resultado de novas práticas sociais. Na era pós-metrópole, como define este autor, é cada vez mais difícil escapar da cidade, da condição urbana e da cidade como forma de vida ubíqua. Isso mudou também as formas como a cidade é modelada pela classe, raça e relações de gênero, cada vez mais complexas e opacas (2000: 238). O que ele denomina Exopolis. Exopolis pode ser definida como a cidade virada do avesso, mas também para fora, uma globalização da Inner City (centro degradado da cidade), que coloca as periferias no centro, redefinindo os conceitos de Outer e Inner City. O centro de Los Angeles, exemplo clássico de uma Exopolis, concentra os empregos na pós-metrópole policêntrica. No meio dos enclaves do lado este está a zona chamada Skid Row uma área urbana pobre com tabernas, bares baratos e hotéis dilapidados frequentados por delinquentes, alcoólicos e itinerantes. Os sem-teto provavelmente superam os moradores com casa e emprego da região, apesar das tentativas de gentrificação. O centro é um arquipélago de enclaves, mas continua sendo um polo de atração e nó de dispersão. Poucos centros revelam tão bem a cidade virada do avesso, núcleo e periferia entrelaçados no mesmo espaço e tempo como o de Los Angeles (2000: 254).

O espraiamento da ação e da ocupação espacial tem levado a uma luta por justiça espacial e uma nova consciência cultural e política, que pode ser chamada de democracia regional, representada pela aliança de trabalhadores pobres chamada Bus Riders Union, para defender os interesses dos dependentes do trânsito, sobretudo imigrantes pobres do centro. Ela luta contra a discriminação destes trânsitodependentes por políticas públicas que antes favoreciam apenas aos brancos de classe média, conflito de uma atualidade desconcertante para os que habitam as grandes cidades brasileiras. Nesse movimento há uma intersecção de raça, classe e gênero, com efeito na geografia da pós-metrópole, expandindo as noções tradicionais de direitos civis para políticas espaciais mais específicas, criando novas visões de cidadania democrática e direito à cidade. Na Exopolis se formaria uma nova política cultural que trata da desigualdade não focando nas lutas políticas definidas por rígidos canais de resistência baseados em classe, raça e gênero, mas por meio de alicerces transversais e inclusivos de solidariedade, consciência coletiva e construção de coalizões. Seria um giro cultural (cultural turn), uma luta cultural que substituiria uma política socioeconômica, com o objetivo não apenas de reduzir as desigualdades mas redefinir como as desigualdades de status e poder são utilizadas para alimentar exploração econômica, dominação cultural e opressão individual (SOJA, 2000: 279).

Um caminho que não é feito sem conflitos, como recorda Tereza Caldeira em trabalho já clássico sobre a segregação em uma das cidades mais exemplares neste aspecto, a São Paulo dos muros. Com o crescente medo do crime, a intolerância com os grupos sociais diferentes aumenta e não se tem interesse em procurar soluções comuns para os problemas urbanos. A solução encontrada pelas elites e pelos poderes públicos é sempre o distanciamento social nos enclaves fortificados. Uma cidade de muros se forma na qual a qualidade do espaço público piora enquanto se consolida a democracia; quanto mais democracia mais se resiste ao seu avanço pela criação de dispositivos de controle e segurança que separam, segregam e descompõem os espaços públicos por meio de estratégias privadas. A segregação pode ser vista como uma reação à democratização, pois serve para estigmatizar, controlar e excluir aqueles que acabaram de forçar seu reconhecimento como cidadãos e seus direitos (2003: 255).

Ao pensar um dossiê sobre a História Urbana, a Revista Urbana pretende ressaltar o caráter ineludivelmente histórico da compreensão do fato urbano, o método mais eficiente para a sua compreensão, segundo Aldo Rossi; não apenas como uma recuperação historiográfica dos fatos que condicionaram o desenvolvimento dito histórico desta ou daquela cidade, a sucessão de estilos arquitetônicos, mais ou menos imbricados no espaço da cidade, o repertório de diagnósticos e projetos urbanísticos, por vezes incompletos, mas pensar a própria historicidade de nossos conceitos de cidade, de sua definição como lugar da História, onde ela se faz, se escreve, se define com um texto próprio, mais ou menos legível seguindo Certeau. Considerada sempre em sua materialidade, nos usos cotidianos, na relação do corpo neste espaço e seus deslocamentos, a Carne e a Pedra de que nos fala Sennett, sem esquecer-se das estratégias de segregação que a compõem, pois não há cidade sem divisão do trabalho, portanto, não há cidade sem desigualdade; a cidade é campo de ação de um poder, como recorda Braudel, e todo poder se exerce num espaço. Ela impõe suas comodidades mas também a sujeição. Pois como recorda o Vocabulario Portuguez e Latino de Raphael Bluteau, de 1712, a cidade além de “uma multidão de casas, distribuídas em ruas e praças, cercada de muros”, é “habitada por homens que vivem em sociedade e subordinação”.

Referências

BRAUDEL, Fernand. Civilisation matérielle, économie et capitalisme. XVe-XVIIIe siècle. V. 1. Les structures du quotidien: le possible et l’impossible. Paris: Armand Colin, s.d.

BRESCIANI, Maria Stella Martins. Metrópoles: as faces do monstro urbano (as cidades no século XIX). Revista Brasileira de História. São Paulo: ANPUH. 5(8 / 9): 35-68, set. / abr., 1984-1985.

CALDEIRA, Tereza Pires do Rio. Cidade de muros. Crime, segregação e cidadania em São Paulo. Trad. port. 2. ed. São Paulo: Edusp, 34, 2003.

CALVINO, Italo, As cidades invisíveis. Trad. port. Diogo Mainardi. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

CERTEAU, Michel de. L’invention du quotidien, v. 1, Arts de Faire. Paris: Gallimard, 1990.

CHOAY, Françoise. O Reino do Urbano e a Morte da Cidade. Projeto História. Trad. port. Eveline Bouteiller Kavakama. São Paulo: Educ, 18: 67-89, maio, 1999.

LEPETIT, Bernard. Tentons l’expérience. Annales ESC. Paris, 6: 1317-1323, nov. / dec., 1989.

__________. Por uma nova história urbana. Org. Heliana Angotti Salgueiro. Trad. port. Cely Arena. São Paulo: Edusp, 2001.

ROSSI, Aldo. A Arquitetura da Cidade. Trad. port. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

SENNET, Richard. Carne e Pedra. O Corpo e a Cidade na Civilização Ocidental. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2006.

SOJA, Edward. Postmetropolis. Critical Studies of Cities and Regions. Oxford, UK: Blackwell, 2000, pp. 233-321.

VIRILIO, Paul. O Espaço Crítico e as Perspectivas do Tempo Real. Trad. port. São Paulo: 34, 2005.

WEBER, Melvin. La Era Postciudad. In: VV. AA. Lo Urbano en 20 Autores Contemporáneos. Barcelona: ETSAB, UPC, 2004, pp. 13-23.

Amílcar Torrão Filho – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e-mail: amilcartorrao@uol.com.br


TORRÃO FILHO, Amílcar. Editorial. Urbana. Campinas, v.7, n.1, jan / jun, 2015. Acessar publicação original [DR]

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Dimensão simbólica das intervenções urbanas / Urbana / 2014

A cidade excede a representação que cada pessoa faz dela. Ela se

oferece e se retrai segundo a meneira como é apreendida. […] No ritmo de

nosso assombro, de nosso entusiasmo ou de nossa desaprovação,

construímos de forma imaginária uma diade dentro da cidade, que

temos a oportunidade de ver ou de morar nela.

Henri-Pierre Jeudy

Ao reunir reflexões sobre a representação simbólica da cidade, o sociólogo e filósofo Henry-Pierre Jeudy (2005, p.81) nos deixa pistas instigantes para analisar dois aspectos mais ou menos contraditórios, relativos à construção das cidades, simbólica ou materialmente: trata-se, de um lado, dos esforços constantes empreendidos em configurações e representações precisas ou intencionais da cidade e, por outro, da proliferação de imagens quase que inteiramente independentes dessa intencionalidade, configurada a partir de apreensões distintas e efetivamente plurais.

Parece haver uma dinâmica igualmente contraditória a orientar as leituras desse espaço ao longo de sua trajetória: aparentemente, quanto maiores os esforços em prol de uma modernização urbana ou de representações modernas da cidade, mais constantes são as reações em direção oposta, em prol de valores ou estéticas tradicionais, como se “uma certa nostalgia”, afirma Jeudy, nos fizesse acreditar que a cidade não corresponde mais a seu signo por ser vinculada excessivamente aos símbolos de sua monumentalidade exibida.

Ao tematizar as dimensões simbólicas das intervenções urbanas, este dossiê da Revista Urbana permite acompanhar claramente, em cada uma das leituras, múltiplos modos de funcionamento dessas contradições e dinâmicas que tensionam intencionalidades e percepções, rupturas e permanências. No conjunto das leituras, sobressai a noção de modernização – com seu apelo sensível às transformações entendidas como positivas, progressistas de certo modo – invariavelmente acompanhada de contradições, questionamentos ou mesmo a configuração de imagens a princípio contrárias às da cidade do progresso: idealizações do passado, reações às mudanças, segregação dos espaços, ou mesmo a dessocialização dos corpos e a indiferenciação, como analisa Haroche a partir de Simmel (PECHMAN, 2014, 143-160). Como um espelho invertido, como que “esfacelam” as representações positivas da cidade e a própria cidade, dela sempre dependente.

Trata-se de uma chave de leitura ou ainda um fio condutor talvez capaz de ajudar no entendimento de cada contribuição publicada neste Dossiê, com seus diferentes aportes temporais e espaciais, mas sempre tematizando dimensões simbólicas neles perceptíveis. Mercedes González Bracco, analisa praticamente um século de planejamento urbano em Buenos Aires, Argentina, preocupada com a construção da capital como metrópole e atenta a diversas “ideias de cidade” em pauta nesse percurso. É interessante a sugestão de uma renovação constante e afinada com o progresso ao lado de uma atitude que a autora denomina “nostálgica” e pouco afinada com o progresso, embora sem de fato questioná-lo. Pode-se dizer que essa percepção nostálgica é similar ao que Renada Rendelucci Allucci acaba por perceber ao pesquisar um espaço diametralmente oposto à metrópole argentina: a Capela das Mercês, em São Luiz do Paraitinga, interior paulista – um elemento que mobiliza sentimentos identitários e tradicionais sobretudo diante da iminência da perda.

Outras leituras inscritas no Dossiê tematizam mais especificamente alguns instrumentos ativos na configuração de certas representações e dimensões simbólicas da cidade, como Viviane Araújo, ao estudar minuciosamente o papel da fotografia, sobretudo de Marc Ferrez, nos processos de intervenção urbana no Rio de Janeiro no início do século XX. Melissa Ramos da Silva Oliveira, ao analisar a rua Treze de Maio, no centro comercial da cidade de Campinas, interior de São Paulo, utiliza várias ferramentas para problematizar as representações desse espaço – como referencial de memória, como centro de consumo e como imagem de “centralidade” – coletadas diretamente a partir de seus usuários. Nos dois casos, é possível acompanhar diferentes mecanismos atuantes nas representações simbólicas tanto do passado quando do futuro imaginado para esses espaços.

Em cada uma dessas pesquisas, nota-se a constante tensão inscrita nas intervenções e em suas representações, mas talvez o estudo de Ismael Cerqueira Vieira, investigador do Centro de Investigação Transdisciplinar “Cultura, Espaço e Memória” (Universidade do Porto), descreva de modo mais detido as situações em que a dualidade “atraso versus moderno” figure com uma inegável concretude. Ao tratar da expansão urbana e a disseminação da tuberculose em Portugal, o autor acompanha não apenas as consequências para práticas de gestão dos espaços – a questão das habitações insalubres – mas também os desdobramentos das mudanças na percepção da natureza infeciosa e social da tuberculose. Pode-se dizer que essas mudanças alteram, inclusive, as concepções de cidade em pauta desde o final do XIX.

Além da temática da “cidade simbólica”, este número da Urbana traz também a público uma série de artigos que aprofundam a discussão acerca das diferentes concepções e apreensões que norteiam as intervenções na cidade, ao menos desde o século XIX, tematizando aspectos relativos ao aforamento urbano em Natal, no Rio Grande do Norte (Gabriela Fernandes Siqueira), à presença das ferrovias em Uberlândia (Flávia Gabriella Franco Mariano), as intervenções em riachos urbanos em Maceió (Carlina Barros, Caroline Santos, Roberta Maia, Sibéria Carvalho), a questão da moradia popular em Sidrolância (Nataniél Dal Moro), as representações do progresso na revista Semana Ilustrada, no Rio de Janeiro (Renan Rivaben Pereira), as representações também do Rio a partir dos subúrbios (Elizabeth Dezouzart Cardoso), as intervenções na praça pública em João Pessoa, Paraíba (Maria da Conceição Pereira Paulino) e, por fim, reforçando as tensões que se tornaram a ênfase deste número da revista, uma análise das representações de civilidade na leitura dos cortiços em São Paulo no final do século XIX. Os editores só podem desejar uma instigante leitura.

Referências

JEUDY, Henri-Pierre. Espelho das cidades. Trad. Rejane Janowitzer. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005.

HAROCHE, Claudine. A vida mental nas grandes cidades contemporâneas diante da aceleração e do ilimitado. In: PECHMAN, Robert Moses (org.). A pretexto de Simmel: cultura e subjetividade na metrópole contemporânea. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2014.

Josianne Francia Cerasoli


CERASOLI, Josianne Francia. Apresentação. Urbana. Campinas, v.6, n.2, jul / dez, 2014. Acessar publicação original [DR]

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Cidade e Habitação na América Latina / Urbana / 2014

Este Dossiê Cidade e Habitação na América Latina está organizado a partir dos trabalhos apresentados (em Conferências e Sessões Temáticas) no III Congresso Internacional de História Urbana ocorrido em Brasília no mês de novembro de 2013 e organizado pelo Grupo de Pesquisa em História do Urbanismo e da Cidade (GPHUC-UnB / CNPq) e pelo Centro Interdisciplinar de Estudos da Cidade do IFCH-UNICAMP. A “origem” do Congresso foi a organização da coletânea “Ciudad y Vivienda en America Latina – 1930 / 1960”, coordenada por Carlos Sambricio (ETSAM / Universidad Politecnica de Madrid), publicada em 2012 pela Editora Lampreave (SAMBRICIO, 2012). A realização do livro envolveu pesquisadores de Universidades do Brasil, Cuba, Argentina, Chile, Venezuela, Colômbia e México, que elaboraram estudos sobre as cidades capitais e sobre habitação social nos seus respectivos países.

O III Congresso Internacional de História Urbana – “Cidade e Habitação na América Latina” centrou-se nas investigações históricas acerca de ações empreendidas pelos Estados Nacionais dos Países Latino-americanos no campo das problemáticas habitacionais de interesse social e de intervenção urbana-planos urbanísticos no contexto da importante urbanização e industrialização vivenciada no continente entre as décadas de 1930 e 1960. Entre os objetivos que orientaram o congresso e, consequentemente, este dossiê, vale mencionar a atualização dos debates sobre resultados de investigações, no campo dos estudos urbanos, da temática proposta para o evento: Cidade e Habitação na América Latina, 1930-1960”; a discussão, a partir de pesquisas em diferentes nacionalidades, acerca das relações entre projetos políticos, política urbana e habitação no período. Além disso, ao aprofundar o debate acadêmico sobre diferenças e aproximações entre as políticas urbanas nos países do continente americano, por meio de uma perspectiva comparada, o evento e este dossiê buscam viabilizar a continuidade e o aprofundamento das interlocuções acerca da história urbana estabelecidas, entre outros espaços, em dois congressos anteriores, organizados em 2004 e 2009.

O livro (Ciudad y Vivienda en America Latina) e o III Congresso Internacional de História Urbana apresentavam ainda uma especificidade importante: os estudos, os pesquisadores envolvidos e a estrutura proposta para realizar o evento privilegiaram investigações históricas feitas nos países da América Latina. Com a publicação do Dossiê pela URBANA, os trabalhos aprovados para o Congresso e os textos das Conferências de pesquisadores brasileiros convidados para o evento em Brasília complementam o escopo dos estudos que foram inicialmente publicados no livro em 2012, ampliando assim o acesso a pesquisas que dialogam com o tema geral, tanto no Brasil como em outros países do continente americano.

Outro aspecto relevante da proposta original do livro e que reverberou no Congresso e no Dossiê agora publicado foi o recorte temporal 1930-1960, em continuidade aos Congressos anteriores, dedicados às décadas iniciais do século XX, além de abranger debates e projetos polêmicos e significativos para a redefinição do lugar político e cultural das Américas nas relações entre as nações no período. O III Congresso buscou promover uma oportunidade de interlocução entre pesquisadores voltados à investigação de processos sociais, políticos, econômicos e culturais de singular relevância para o continente americano, particularmente para os países de colonização espanhola e o Brasil – aspecto ampliado por este Dossiê, que se abre para uma temporalidade mais larga, ampliando as relações para décadas anteriores e posteriores ao recorte 1930-1960.

Cidade e Habitação na América Latina

Ao tomar-se o próprio Brasil como exemplo para se pensar a temática no período, entre as décadas de 1930 e 1960, é possível reconhecer a proeminência do debate proposto pelo livro, norteador das sessões e conferências do III Congresso Internacional de História Urbana. Numerosos estudos têm investigado os desdobramentos de mudanças profundas e polêmicas circunscritas ao logo desses trinta anos entre 1930-1960, que em certa medida transformaram estruturalmente os processos de desenvolvimento do país, sobretudo pela relevância da reestruturação produtiva marcadamente industrial conduzida pelas duas expressivas forças políticas brasileiras, organizadas em torno de dois governos nacionais: o primeiro liderado por Getúlio Vargas (1930-1945), portanto, integralmente inserido entre o contexto de rupturas da ordem política institucional de 1930 e 1937, o segundo representado por Juscelino Kubitschek (1956-1960). Este segundo, já no âmbito da redemocratização instaurada com o final do Estado Novo e elaboração da Constituição de 1946, conhecida como Constituição Municipalista, especialmente pela sua orientação liberal, e que culminou com a inauguração de Brasília. Deve-se ressaltar ainda, considerando-se os intensos e reiterados debates em torno das expressões modernas na arquitetura, a importância que adquiriu nesse período a redefinição do lugar específico da arquitetura e do urbanismo produzidos no continente americano entre as demais expressões, ou seja, a discussão em pauta no período acerca das possibilidades de uma contribuição cultural e política singulares nas Américas. Ao lado do impulso dito “desenvolvimentista”, tal debate de fundo cultural não deixou de intervir fortemente no contexto dos debates políticos no continente, desdobrando-se em repercussões que permanecem na pauta dos estudos sobre o período por seu papel crucial – estudos do campo da História, das Ciências Sociais, da Arquitetura e Urbanismo etc.

Uma aproximação de caráter econômico, nesse caso, permite considerar que o desenvolvimento brasileiro passou por uma mudança estrutural e estruturante da base econômica profundamente agrária vigente ao longo do período imperial e da chamada primeira república (ainda que a mudança não tenha implicado na eliminação completa de formas de organizações então vigentes). Tal abordagem pode ser sintetizada, em termos abrangentes, a partir de duas tendências importantes. Antes da década de 1930 e desde o movimento republicano de 1889 [1] , pode ser caracterizada principalmente por uma “política econômica externa, de tipo liberal” (IANNI, 1971: 28) agroexportadora e baseada na produção do café [2] ; depois de 1930, é possível identificar o delineamento de uma tendência fundamentalmente industrial, mediante orientação conjuntural do planejamento econômico pela implementação de políticas direcionadas em certa medida à substituição da importação de produtos, e estruturalmente pela lógica da dependência (re)estabelecida já no final da década de 1960 em relação ao capitalismo central.

Contudo, se por um lado a industrialização, sobretudo a chamada indústria de base, pode ser considerada orientadora da política nacional de desenvolvimento desde 1930, de certa forma, até como política de Estado e não apenas da política de governo, por outro lado não pode ser analisada desvinculadamente das concepções e princípios macroeconômicos e políticos que fundamentaram os projetos e em especial os projetos de governo até 1960. Os projetos políticos construídos em torno do governo de Getúlio Vargas orientaram suas ações na “defesa de novas soluções para os problemas da sociedade nacional” (IANNI, 1971: 69). Para Octavio Ianni, essas novas soluções devem ser consideradas de tipo nacionalista, caracterizadas pela redefinição das relações do Brasil com o capitalismo mundial, nacionalizando as decisões sobre a política econômica.

Em relação às forças mobilizadas em torno do projeto governamental do presidente Juscelino Kubitschek, na década de 1950, as orientações assumidas no planejamento governamental, estruturadas no Plano de Metas, expuseram princípios distintos ao chamado nacionalismo varguista em relação ao mesmo capitalismo mundial. Segundo Fernando Rezende, ao reforçar a complementaridade dos setores que compunham o parque produtivo brasileiro, o Plano de Metas completa o ciclo de industrialização iniciado na década de 1930, promovendo a diversificação da indústria brasileira. Entretanto, afirma o autor, “ao apoiar essa nova etapa de industrialização no estreitamento das relações do capital privado nacional com o internacional, ele alterou o padrão de dependência externa, revertendo a posição nacionalista da Era Vargas” (REZENDE, 2011: 179).

É também nesse contexto de esforços para o desenvolvimento brasileiro orientado pela ação planejada do Estado –diante de opostos em seus princípios, concepções e ideologias – que o processo de concepção, construção e inauguração de Brasília, como capital do Brasil, teve papel relevante para o país. Vista nesse sentido, a inauguração da nova capital brasileira extrapola inclusive sua inserção nacional e internacional no debate intelectual e profissional no campo específico da arquitetura e urbanismo. Essa realização perpassa o próprio debate sobre o planejamento governamental brasileiro e as decisões relativas ao desenvolvimento nacional, no mesmo momento em que os outros países latino-americanos também o fazem a partir das suas experiências particulares. No caso de Brasília como fator estrutural, sua construção justificava os “investimentos no setor de transportes (rodoviários), pois as ligações do país com Brasília, assim se supunha, provocariam a integração e o desenvolvimento da hinterland” (LAFER, 2003: 35).

Ainda conforme Celso Lafer, do ponto de vista político-econômico, a opção por Brasília e sua inclusão no Plano de Metas foi resultante do conceito de ponto de germinação concebido por equipe criada pelo governo Juscelino para elaboração de programas de desenvolvimento econômico. O conceito estava pautado “no pressuposto de que a oferta de infraestrutura provocaria atividades produtivas” (LAFER, 2003). Por outro lado, o próprio Lafer entende todos os cinco setores do Plano de Metas, mas especialmente alimentação, energia e transportes – estes dois, bases estruturais para a consolidação do processo de industrialização da economia desde 1930 – como associados a outro conceito, o de ponto de estrangulamento, mapeados na existência de áreas de demanda insatisfeita de infraestrutura, consequência do desequilíbrio do desenvolvimento econômico brasileiro (LAFER, 2003).

Enquanto decisão política apoiada na orientação técnica do planejamento governamental, Brasília consubstanciou-se na complementaridade e articulação dos dois conceitos, o de estrangulamento e o de germinação, associando a necessidade de eliminação dessa demanda insatisfeita com a necessidade de oferta de infraestrutura para a expansão da economia e do desenvolvimento nacional. Nessa perspectiva, uma decisão política com duas temporalidades: a primeira relacionada à elaboração do projeto urbanístico – expressa no próprio concurso público vencido por Lucio Costa –, a segunda relacionada à construção da cidade propriamente dita, esta sim fundamental para a consolidação dos dois conceitos e seus objetivos.

Outro aspecto que envolve a decisão política por Brasília, também fundamental nesta segunda temporalidade – a construção da capital – é a consolidação do setor de transportes como base estrutural do desenvolvimento (e elemento de integração) brasileiro desde o século XIX, ainda no âmbito da economia agroexportadora. Na década de 1950, no contexto da implementação desta decisão política, esse setor já orientava a industrialização brasileira nucleada em São Paulo, particularmente pela indústria automobilística, matriz da lógica rodoviarista do desenvolvimento intramunicipal, interregional e nacional (COUTINHO, 2003: 37-57).

Por outro lado, ao considerar-se também outras leituras políticas possíveis para o período, atentas também às dimensões simbólicas não menos importantes nos debates acerca do desenvolvimento e dos projetos em pauta ao longo das décadas de 1930 a 1960, é possível ainda compreender essas transformações – efetivadas ou desejadas – como participantes ativas da construção de novos modos de compreensão do país e do continente. Brasília poderia ser vista, assim, não apenas como partícipe de um plano de desenvolvimento e um “plano de metas”, mas de um plano não material e projetivo, com funções simbólicas e mesmo identitárias importantes e de forte repercussão.

É possível perceber a redefinição do papel histórico da cidade para o país, não apenas no momento de decisão política definitiva sobre a nova capital, mas também ao longo dessas décadas, por exemplo, no segundo governo Getúlio Vargas, com a criação em 1953 da Comissão de Localização da Nova Capital. Acompanhando a pergunta de Laurent Vidal, que permite uma indagação também simbólica e profundamente política desse projeto, que função poderia ter uma cidade antes (e além) de sua existência física? Ou ainda: “A que corresponde essa imperiosa necessidade social de projetar ou fundar, mesmo no papel ou em palavras, as cidades?” (VIDAL, 2009: 11).

A consideração dessa dimensão simbólica, não apenas para o caso de Brasília ou do Brasil, mas do Continente todo e também a Europa pode abrir espaço ainda para o entendimento de mobilizações tradicionalmente compreendidas como críticas, como as vanguardas, em suas ligações mais ou menos explícitas com projetos políticos direcionados à modernização, afastados da crítica às instituições. No lugar dos posicionamentos de vanguarda clássicos, de negatividade e questionamento, abre-se possibilidades de investigação a respeito de vanguardas que propuseram a construção de uma nova ordem, de uma tradição ou “linguagem comum” (pensando o campo da arquitetura e mesmo do urbanismo no continente americano).3

Ao mesmo tempo, o debate em torno de aspectos arquitetônicos e urbanísticos na Europa naquele momento não estava, todavia, unicamente centrado nas proposições e orientações teóricas de Le Corbusier, como se fossem os únicos encaminhamentos possíveis ou desejáveis. Entre 1918 e 1934, a arquitetura vigente na Europa experimentava uma dupla preocupação ao propor um novo modelo de habitação social e ao questionar a estrutura urbana herdada do passado. O tema da habitação social provocou o debate sobre os programas de necessidades (definindo-se o conceito de existensminimum), assim como, desde a intenção de diminuir custos, abandonar os sistemas construtivos tradicionais e assumindo os critérios tayloristas para propor primeiro a estandardização e logo depois a industrialização da habitação.

Estabelecer um novo modelo urbano pressupôs refletir sobre as características do bloco edificado, analisando como sua agregação configurava a cidade moderna, o que levou a teorizar tanto sobre os espaços livres, políticas de transportes, novos equipamentos, critérios de intervenção nas áreas históricas das cidades, características dos planos municipais e planos regionais. O singular dos debates ocorridos no período entre 1918 e 1934 é que eles conseguiram persuadir os distintos governos (Alemanha de Weimar, Holanda, Áustria, França, URSS, Inglaterra, Itália e Espanha) sobre a necessidade de assumir aquelas questões como questões de Estado: uma pesquisa sobre as políticas habitacionais desses países e sobre os planos urbanísticos verificará não somente como as bases dos mesmos respondiam àquele debate, mas também como os técnicos que elaboraram os projetos o fizeram a partir de premissas formuladas por uma mais que vigente vanguarda arquitetônica.

É possível notar hoje certo consenso entre as opiniões de historiadores da arquitetura e urbanismo nesse sentido: de que os temas identificados não foram monolíticos, portanto, uma opção desinformada pretender generalizar as preocupações apresentadas pelos profissionais como se fossem todas concernentes ao “movimento moderno”. Não houve um racionalismo, mas vários, de sentido e características bem distintas, e os partidários dessas diferentes linhas de atuação enfrentaram-se no campo das ideias, o que resulta errôneo às pesquisas identificar as propostas defendidas por Le Corbusier nos Congresss Internacionais de Arquitetura Moderna, os CIAMs, com aquelas desenvolvidas em Berlin por Bruno Taut ou Martin Wagner, ou em Frankfurt por Ernest May (SAMBRICIO, 2012: 25).

São conhecidas as críticas à ortodoxia de Le Corbusier, formuladas tanto pelos que reclamaram uma Nova Objetividade como por críticos como Karel Teige, enfrentando os famosos “cinco pontos”, que entendiam como reflexo formal de um novo academicismo. Certo é que a crise econômica de 1929 transformou o panorama europeu: se até aquele momento as políticas de habitação haviam sido competência das municipalidades, sindicatos e empresas, as escalas de intervenção mudaram sensivelmente, a partir dessa crise e desde o momento em que se assumiu a política keynesiana baseada em grandes projetos de infraestrutura capazes de reativar a economia (planos municipais ou regionais, políticas de abastecimento de água, planos rodoviários ou de novas redes ferroviárias, etc.).

Isso porque, se em 1929 Ernst May organizou para o II CIAM a exposição sobre a chamada habitação mínima, em 1933, no IV CIAM, a escala é discutida em outros parâmetros. Ao mesmo tempo, se compararam os planos de crescimento urbano, proclamando os conceitos de “habitação, trabalho, lazer e transportes” como pautas, cujo resultado dos debates será a publicação, em 1942, da Carta de Atenas, na qual, depois de reivindicar o conceito funcional da arquitetura moderna e do urbanismo, manifestava-se que os problemas que enfrentariam as cidades deveriam ser solucionados mediante a segregação funcional estrita e a distribuição da população em blocos altos de apartamentos separados por amplos espaços.

A reconstrução, depois da guerra de 1939-1945, acabou por modificar a situação anterior: se os debates entre os profissionais se mantiveram, depois da guerra cada país assumiu uma política própria, descartando ou ignorando as proposições dos quem apenas poucos anos antes foram “oráculos”. De algum modo se encerrava um ciclo. Contudo, ao mesmo tempo em que a continuidade do que foi discutido nos anos de 1930 sofreria uma interrupção na Europa, ela continuaria a apresentar desdobramentos na América Latina.

Ao se abordar essas transformações sob pontos de vista da Europa, é possível notar como a natureza egocêntrica da cultura arquitetônica europeia ignorou por muito tempo o que ocorria na América Latina, pois apresentava-se convencida de sua superioridade cultural. No entanto, não apenas eram poucas as escolas de arquitetura abertas nos países da América Latina, ainda que as elites nacionais latino-americanas solicitassem insistentemente “soluções europeias” e regimes tidos como populistas, muitas vezes presididos por militares ou lideranças políticas desenvolvessem políticas abertamente repressoras.

Para uma Europa que apenas saía de totalitarismos, mostrava-se inverossímil crer que esses governos poderiam implementar tanto políticas habitacionais como planos urbanísticos para modificar suas cidades coloniais. Como consequência, inclusive da parte dos setores especializados, optou-se por ignorar as políticas, cobrando ao máximo a qualidade de certas obras arquitetônicas. Em certos casos, pode-se dizer que não interessavam as políticas fiscais nem a criação dos sistemas de financiamento que possibilitaram o acesso à habitação: interessava apenas a obra de determinados arquitetos. De certo modo, o Brasil foi identificado com a obra de Lucio Costa e Oscar Niemeyer, a Venezuela com a de Villanueva, o México com as edificações de Pani, Cuba com o papel desempenhado por Martinez Inclán e a Argentina com o trabalho de Bonet Castellana.

Uma primeira perspectiva analítica entendeu serem os governos populistas nacionais responsáveis por desenvolver políticas de habitação e políticas urbanas, ainda que, no caso brasileiro, por exemplo, as ações urbanísticas desenvolvidas no contexto municipal tivessem uma relação mais direta e institucionalizada com o Governo Federal a partir de 1964 / 1965, quando da criação do Banco Nacional de Habitação (BNH) e do Serviço Federal de Habitação e Urbanismo (SERFHAU). No contexto latino-americano hispânico, com a intenção de oferecer satisfação aos seus seguidores, realizaram um trabalho singular, tanto fomentando a construção de habitações para a classe média então em formação, como assumindo e desenvolvendo as denominadas “unidades de vizinhança”, amplos bairros com serviços, equipamentos e infraestrutura que determinaram o crescimento urbano das cidades.

O desenvolvimento dessas políticas implicou na criação dos institutos de financiamento capazes de estabelecer políticas fiscais, como a criação de bancos que possibilitassem a concessão de empréstimos para a aquisição das habitações; o que em determinados casos viabilizou a criação de institutos de ordenação do solo urbano, gabinetes de projetos e propostas de intervenção urbana. Dito de outra forma, as proposições efetivamente implementadas entre 1930 e 1960 não devem ser entendidas unicamente como resultado dos trabalhos dos bons arquitetos, mas enquadrando-as no que foram políticas de Estado.

Por fim, e como indagação para outras investigações e publicações, apresentamos a seguinte problematização: apesar da existência de políticas desenvolvidas na Argentina, Chile, Brasil, Cuba, Venezuela, Colômbia, México e em outros países do continente americano, é possível afirmar que não houve homogeneidade entre elas. Isso porque foram muitas vezes mutuamente estranhos e distintos nesses países os modos de conduzir a construção de habitação para classe média – a preocupação com as unidades habitacionais ou a definição dos processos de verticalização – e a transformação da cidade ocorreu de maneira similar. A percepção dessas aproximações e diferenças aponta de modo claro a vigente necessidade de promover pesquisas e encontros entre pesquisadores para que se possam analisar características específicas comparativamente, ou seja, que os aspectos circunscritos a cada nacionalidade sejam colocados em debate conjuntamente. O Dossiê “Cidade e Habitação na América Latina” pretende, nesse sentido, contribuir com a divulgação de estudos sobre os problemas urbanos na América Latina que de alguma forma permitam construir e percorrer caminhos cujas “portas de entrada”, muitas delas, estão ainda por abrir. Tais caminhos não podem prescindir de uma articulação interinstitucional “interna” à América Latina, inclusive como um projeto político e histórico, o que exige olharmo-nos diretamente, sem passar pelo Sena ou pela Tâmisa. De outra forma, continuaremos construindo a história urbana da América Latina a partir da Europa? E mais, como pensar a história urbana da América Latina como uma história urbana ibero-americana, ainda que isso possa significar uma (possível) contradição, já que Portugal e Espanha estão também na Europa?

O Dossiê e sua organização

A organização da edição n. 8 não mudou em relação ao projeto editorial da Revista URBANA. Apesar de manter-se organizado basicamente em duas partes principais, dossiê e artigos, pelo projeto editorial da revista a sessão artigos teria temática independente, desvinculada da sessão dossiê. Especialmente no caso da edição n. 8, Cidade e Habitação na América Latina, todos os textos seguirão a mesma temática, pois foram elaborados inicialmente para o III Congresso Internacional de História Urbana, realizado em Brasília no mês de novembro de 2013.

A única diferença entre ambas as sessões está na inclusão dos artigos resultantes das conferências realizadas por pesquisadores brasileiros convidados na sessão dossiê, reservando-se à sessão artigos os trabalhos dos pesquisadores – brasileiros e estrangeiros – aprovados para apresentação no Congresso.

Os Editores da URBANA agradecem aos autores, que desde o III Congresso Internacional de História Urbana, e agora com a publicação do Dossiê Cidade e Habitação na América Latina, contribuíram com o debate sobre a história urbana da América Latina. Agradecemos também aos pesquisadores que participaram da produção do livro “Ciudad y Vivienda em America Latina, 1930-1960”, pois está ai a origem desse importante tripé “livro-Congresso-Revista”, inclusive pela participação de todas as representações nacionais no Congresso. Desejamos uma boa leitura.

Notas

1 O ano de 1889 aqui adotado é apenas para caracterizar o corte temporal pela configuração institucional do Estado Republicano e Federativo no Brasil. Não significa desconsiderar as complexidades e importância de períodos anteriores da história do desenvolvimento nacional, por exemplo, desde a consolidação do Brasil Imperial ao longo do século XIX, tanto que algumas referências a esse período serão realizadas no decorrer do texto.

2 É necessário considerar o papel da implementação da infraestrutura territorial (ferrovias, Porto de Santos, armazéns, instituições, a própria modernização das cidades, etc.) no Estado de São Paulo para o desenvolvimento da economia cafeeira, como importante delineadora da concentração espacial da produção industrial no Brasil. Embora não seja o único elemento, podemos dizer que a economia cafeeira paulista foi fundamental na criação dos “fatores territoriais de produção” da industrialização substancialmente implementada a partir de 1930, concentrando-a na região Sudeste, especialmente no eixo Rio de Janeiro-São Paulo

Referências

COUTINHO, Luciano. O desafio urbano-regional na construção de um projeto de nação. In: GONÇALVES, Maria Flora; BRANDÃO, Carlos A; GALVÃO, Antônio C. (org.). Regiões e Cidades, Cidades e Regiões: O desafio urbano-regional. São Paulo- SP: EdUNESP / ANPUR, 2003. pp: 37-57.

GORELIK, Adrian. Das vanguardas a Brasília: cultura urbana e arquitetura na América Latina. Belo Horizonte, MG: Editora UFMG, 2005.

IANNI, Octávio. Estado e Planejamento Econômico no Brasil. São Paulo: Civilização Brasileira, 1971.

LAFER, Celso. O Planeamento no Brasil: observações sobre o Plano de Metas (1956-1961). In: MINDLIN, Betty (org.). Planejamento no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 2003 REZENDE, Fernando. Planejamento no Brasil: auge, declínio e caminhos. In: CARDOSO JR., José Celso (org.). A reinvenção do Planejamento Governamental no Brasil. Brasília: Ipea, 2011

SAMBRICIO, Carlos (org.). Ciudad y Vivienda en América Latina: 1930-1960. Madrid: Lampreave, 2012

VIDAL, Laurent. De Nova Lisboa a Brasília: a invenção de uma capital (séculos XIX-XX). Trad. Florence Marie Dravet. Brasília: UnB, 2009.

Josianne Cerasoli

Rodrigo de Faria

Carlos Sambricio


FARIA, Rodrigo de; CERASOLI, Josianne; SAMBRICIO, Carlos. Editorial. Urbana. Campinas, v.6, n.1, jan. / jun., 2014. Acessar publicação original [DR]

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Urbanistas e urbanismo: a escrita da história como campo de investigação / Urbana / 2013

FARIA, Rodrigo de; CERASOLI, Josianne. Editorial. Urbana. Campinas, v.5, n.2, jul / dez, 2013. OBS: Apresenta o mesmo editorial no volume 5, número 1 [DR]

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Urbanistas e urbanismo: a cidade como objeto de intervenção / Urbana / 2013

Urbanistas e Urbanismo no Brasil

O interesse no estudo dos profissionais passa fundamentalmente pela possibilidade de compreensão dos processos de circulação das ideias urbanísticas e sobre os problemas e desafios urbanos de um modo geral. Foram (e são) essas ideias que estruturaram (estruturam) os debates sobre melhoramentos urbanos e planos urbanísticos, planos diretores, planos regionais, o desenvolvimento social-urbano a construção-institucionalização do urbanismo no Brasil, especialmente a institucionalização do campo disciplinar do urbanismo como prática profissional de atuação nas administrações municipais para soluções dos “problemas urbanos”: neste caso especialmente pela atuação de engenheiros e urbanistas. Ao mesmo tempo, essas mesmas ideias têm papel importante, mesmo fora do campo dos especialistas, ao instruir paulatinamente as formas de apreensão e entendimento do urbano.

A institucionalização do urbanismo no âmbito das administrações municipais compreende uma conjuntura profissional e institucional em construção desde o século XIX, com as primeiras Comissões de Melhoramentos, como a do Rio de Janeiro na década de 1870; as Diretorias de Engenharia e Obras Públicas, onde uma primeira geração de engenheiros-urbanistas desenvolveu suas atividades; as Seções de Cadastro e Urbanismo, como a organizada durante a atuação do engenheiro Victor da Silva Freire em São Paulo na década de 1920; as Comissões de Planos da Cidade, já no contexto histórico do Estado Novo; ou ainda as experiências autorais individuais, tais como de Nestor de Figueiredo e seu Plano para João Pessoa.

Nessa primeira conjuntura histórica de atuação profissional no campo do urbanismo, os profissionais atuaram fundamentalmente na infraestruturação e modernização urbana, geralmente com intervenções em canalização de rios, implantação de sistemas ferroviários, de sistemas de abastecimento de água e canalização de esgoto, iluminação pública, ajardinamento de áreas livres, entre outras. Todavia, não desconsideravam os processos mais amplos, prevendo e orientando a expansão urbana, como foi o caso do Plano do Novo Arrabalde em Vitória elaborado pelo engenheiro Francisco Saturnino de Brito, publicado em 1896 .

É neste primeiro movimento de atuação profissional que o processo de construção-circulação das ideias urbanistas sobre a intervenção nas cidades adquiriu uma dimensão internacional, sobretudo nas décadas de 1910 e 1920. Nesse momento, o diálogo aberto com profissionais de outras nacionalidades é fundamental para o aprofundamento do campo conceitual e do vocabulário erudito de intervenção nas cidades (TOPALOV e DEPAULE, 2001, p. 17-38) brasileiras, principalmente os diálogos que ocorreram nos debates sobre a contratação de Alfred Agache para a elaboração do “Plano de Remodelação, Embelezamento e Extensão do Rio de Janeiro”, publicado em 1930, simultaneamente à apresentação de croquis por Le Corbusier propondo para Capital Federal uma grande estrutura urbana que articulava a paisagem natural do Rio de Janeiro (PEREIRA, 1996, p.396-376; DE FARIA, 2007).

A articulação com profissionais de diferentes nacionalidades ocorre também em outro sentido, a partir do próprio Brasil, pela interlocução profissional empreendida pelos profissionais brasileiros. Dois exemplos que não são os únicos e nem mesmo as únicas formas de articulação são ilustrativos dessa articulação: o diálogo empreendido por Victor da Silva Freire com estudos e profissionais europeus ao menos em dois importantes artigos, “Melhoramentos de São Paulo” e “Cidade Salubre” (de 1911 e 1914, respectivamente), discutindo os problemas da capital paulista em diálogo, por exemplo, com os estudos realizados por Camillo Site ainda no século XIX; e a formação como urbanista de Atílio Correia Lima na França, que no posterior retorno ao Brasil passa a atuar profissionalmente tanto no ensino na ENBA (convidado por Lucio Costa), como na atividade de projeto urbanístico (plano inicial de Goiânia).

No âmbito da institucionalização e prática urbanística nas administrações municipais brasileiras, é necessário referir-se aos Departamentos de Urbanismo no contexto da redemocratização legitimada pela Constituição Municipalista de 1946, especialmente, mas não os únicos, o Departamento de Urbanismo da Prefeitura do Rio de Janeiro organizado e dirigido inicialmente pelo engenheiro José de Oliveira Reis, e o Departamento de Urbanismo de São Paulo criado em 1947 no bojo dos debates profissionais entre os engenheiros Prestes Maia e Luiz de Anhaia Mello (FELDMAN, 2005).

Está nesse movimento pela criação contínua das instituições de urbanismo, pós1940 e ao longo das décadas de 1950 e 1960, um debate sobre o planeamento municipal, não mais limitando à atuação profissional e a própria compreensão sobre urbanismo e planejamento urbano, restrito às áreas urbanas dos municípios. Da mesma forma, estimula-se o debate profissional e institucional sobre dimensão regional do desenvolvimento, pelo que deveria considerar em termos de processos de cooperação intermunicipal para a elaboração de planos regionais, ou ainda, a cooperação interestadual, como no caso da Comissão Interestadual da Bacia Paraná- Uruguai, CIBPU (FELDMAN, 2008). E aqui outro importante momento de interlocução profissional internacional com as visitas de Pe. Lebret ao Brasil e a criação da Sociedade para Análise Gráfica e Mecanográfica Aplicada aos Complexos Sociais (SAGMACS, envolvida nos trabalhos da CIBPU) no ambiente intelectual do Movimento Economia e Humanismo (ANGELO, 2010), e suas vinculações com profissionais brasileiros, entre eles Antônio Bezerra Baltar em Recife e Antônio Delorenzo Neto em São Paulo.

Na década de 1960, especificamente na transição entre a redemocratização pós-1946 e o Golpe Militar de 1964, o processo de institucionalização do urbanismo na administração pública brasileira foi incorporado no governo federal com a criação do Serviço Federal de Habitação e Urbanismo (SERFHAU), juntamente com a criação da instituição financeira para gerir os recursos federais no âmbito das políticas urbanas, o Banco Nacional de Habitação. No caso do SERFHAU, destaca-se, sobretudo a atuação de Harry James Cole (LUCCHESE, 2009) após processo de reformulação do órgão em 1966, tendo desse processo participado e nesse contexto defendendo e divulgando a necessidade do planejamento urbano e dos planos locais integrados.

Desde a atuação nos municípios brasileiros passando pelo governo federal, muitos foram os profissionais urbanistas que durante os congressos e nas revistas especializadas apontavam a necessidade de criação de um órgão federal de urbanismo, tal como consta em artigos apresentados no I Congresso Brasileiro de Urbanismo em 1941, especialmente a proposta de criação do Departamento Nacional de Urbanismo (MARTINS, 1941, p. 128-131) feita pelo engenheiro Mario de Souza Martins, incluída como recomendação nas conclusões da Seção I – História e Divulgação, presidida por Atilio Correia Lima no I Congresso Brasileiro de Urbanismo, em 1941.

Processo histórico que passa pela criação da Comissão Nacional de Políticas Urbanas e Regiões Metropolitanas no âmbito do II PND na década de 1970, com a atuação de Jorge Franciscone e Maria Adélia de Souza, aponta a clara articulação multidisciplinar de atuação nos temas urbanos e urbanísticos, ele formado Arquiteto, ela Geógrafa, e que não pode desconsiderar o debate urbanístico ocorrido no Brasil em função do concurso para Brasília no final da década de 1950. Este debate foi claramente marcado pela interlocução dos profissionais brasileiros com as discussões realizadas no âmbito dos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna, os CIAM.

Nesse contexto histórico largo está a importância dos estudos sobre a atuação profissional de urbanistas e pensadores da “questão urbana” no Brasil – profissionais atuantes no Brasil nos séculos XIX e XX e permanecem como referências intelectuais de primeira grandeza para o contínuo processo de compreensão-intervenção nas cidades brasileiras.

Os artigos publicados neste dossiê vêm a público em dois números consecutivos da Revista Urbana (6 e 7) e tiveram origem em intensos debates realizados em torno dessas questões durante o seminário Trajetórias: urbanistas e urbanismo no Brasil, realizado em Brasília, em abril de 2013, organizado pelo Grupo de Pesquisa em História do Urbanismo e da Cidade –UnB / CNPq, pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo – UnB, pelo Centro Interdisciplinar de Estudos da Cidade – Unicamp e pela Rede Urbanismo no Brasil – USP / CNPq.

Referências

TOPALOV, C.; DEPAULE (2001). A cidade através de suas palavras. In: BRESCIANI, Maria S. Martins (org.). Palavras da Cidade. Porto Alegre: EDUFRGS.

PEREIRA, Margareth da Silva (1996). Pensando a metrópole moderna: os planos de Agache e Le Corbusier para o Rio de Janeiro. RIBEIRO, Luis C. de Q; PECHMAN, Robert (org.). Cidade, povo e nação – gênese do urbanismo moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

DE FARIA, Rodrigo Santos (2007). José de Oliveira Reis, urbanista em construção: uma trajetória profissional no processo de institucionalização do urbanismo no Brasil (1926-1965 / 1966) / Tese de Doutorado em História. Universidade Estadual de Campinas.

FELDMAN, Sarah (2005). Planejamento e Zoneamento. São Paulo: 1947- 1972. São Paulo: EDUSP / FAPESP.

FELDMAN, Sarah (2008). 1950. A década de crença no planejamento regional no Brasil. Anais do XI ENANPUR.

ANGELO, Michelly Ramos de (2010). Les développeurs Louis-Joseph Lebret e a SAGMACS na formação de um grupo de ação para o planejamento urbano no Brasil. Tese de Doutorado. Escola de Engenharia de São Carlos (EESC-USP).

LUCCHESE, Maria Cecília (2009). Em defesa do planejamento urbano ressonâncias britânicas e a trajetória de Harry James Cole. Tese de Doutorado. Escola de Engenharia de São Carlos (EESC-USP).

MARTINS, Mario de Souza (1941). Da Criação do Departamento Nacional de Urbanismo. Revista Municipal de Engenharia, PDF.

Rodrigo de Faria – Professor Doutor (UnB)

Josianne Cerasoli – Professora Doutora (Unicamp)

Editores Responsáveis pelo número


FARIA, Rodrigo de; CERASOLI, Josianne. Editorial. Urbana. Campinas, v.5, n.1, jan / jun, 2013. Acessar publicação original [DR]

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Cidades e Sociabilidades / Urbana / 2012

Em 1938, a fotógrafa suíça Hildegard Rosenthal, recém radicada no Brasil, registrou dentre suas diversas cenas urbanas a imagem intitulada “Vendedor de Frutas”. Na fotografia percebemos os espaços ocupados por diferentes camadas sociais, o consumo a partir de um vendedor de rua, as roupas, a arquitetura e parte de um espaço de sociabilidade na primeira metade do século XX.

A imagem captada por Hildegard Rosenthal nos possibilita inferir sobre as relações em torno do vendedor de frutas. Transeuntes subindo a ladeira, um grupo de homens formais que conversam, os vendedores ambientados no cenário, um homem negro que saboreia seu pedaço de fruta e uma mulher que encara a fotógrafa antes de provar o alimento. Seriam essas pessoas assíduas na banca? Conhecidas pelo vendedor por seus nomes? Discutiriam elas sobre o tempo e as questões políticas enquanto compravam frutas? Ou eram apenas cidadãos anônimos da paisagem, que cotidianamente passavam por este lugar?

Como nos fragmentos escritos por Walter Benjamin em “Rua de mão única”, onde os temas ganham significações e atenção para aquilo que é visto nos detalhes das fotografias, do cinema, do teatro, da música, dos anúncios, dos outdoors, dos selos, das cartas, dos cheiros, dos sabores, das paisagens e afins, é que talvez se saliente o punctum da imagem de Rosenthal.

Na contramão dos labirintos invisíveis e inventados entre os espaços citadinos, o número 5 da Revista Urbana apresenta algumas das contribuições recebidas para o dossiê Cidades e Sociabilidades. Entre a panóplia de estudos que tem interessado pesquisadores de diversas áreas do saber, compõe esta edição as pesquisas que abordam a interação social entre os indivíduos, em diferentes contextos que são significados e resinificados pelas experiências no espaço urbano, que se representam na vivência individual ou coletiva, nas ruas, nas festividades, nos espaços institucionais, nas associações, nos estabelecimentos comerciais, nas intrigas, entre outros lugares.

Com o texto de Adilson de Souza Moreira e Luiz Eduardo Fontoura Teixeira compreendemos as trocas socioculturais e simbólicas vivenciadas pelos indivíduos nos espaços de sociabilidade de Florianópolis, analisando as mudanças, permanências e atividades exercidas nas ruas do centro da cidade. Em outros cenários da mesma localidade, Sabrina Melo apresenta diferentes formas de sociabilidades nos cinemas, bares, cafés e teatros, destacando a vivência em espaços fechados. Carlos Alexandre Barros Trubiliano examina os embates sociais entre a elite e personagens urbanos nos espaços de modernização da cidade de Campo Grande, dando ênfase às questões da normatização e do controle social. Em Vitória, as sociabilidades são representadas pelos conflitos abordados no artigo de Fa ola Martins Bastos e Philipe Gomes Alves Pinheiro, apresentando-nos as ruas da capital na segunda metade do século XIX.

O significado das festas religiosas e a sua organização são discutidos por Mauro Dillmann Tavares, demonstrando como os cultos podem ser analisados a partir das práticas sociais em seu entorno. Sílvio Marcus de Souza Correa analisa por meio da imprensa alemã a particularidade das sociabilidades associativas na cidade portuária de Lüderitzbucht. Por fim, a s Troncon Rosa reflete sobre os espaços urbanos e a pobreza, oferecendo subsídios para investigações na área.

O presente número também é acompanhado de uma resenha sobre a história do turismo relacionada às férias e o tempo livre na Argentina, na qual a cidade balneária de Mar del Plata é analisada por Elisa Pastoriza, que demonstra historicamente as transformações sociais, políticas, culturais nesta sociabilidade veraniega. Na tradução de artigos, trouxemos um texto de Martin Jay, “The Senses in HistoryIn the Realm of the Senses: An Introduction”, oferecendo subsídios para os pesquisadores no Brasil.

Agradecemos a todas pelas contribuições enviadas ao dossiê Cidades e Sociabilidades e aos pareceristas, que colaboraram com suas avaliações acuradas para a composição deste número. Na contramão dos saberes, convidamos os leitores a apreciarem os textos e desfrutarem das sociabilidades presentes nas particularidades da história dessas cidades.

Boa leitura,

Carlos André de Moura

Joana Carolina Schossler


MOURA, Carlos André de; SCHOSSLER, Joana Carolina. Apresentação. Urbana. Campinas, v.4, n.2, jul. / dez., 2012. Acessar publicação original [DR]

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Os eruditos e a cidade / Urbana / 2012

Trajetória ou biografia? Uma ou outra seriam aproximações indistintas para estudos sobre a experiência vivida por algum personagem? Poderíamos dizer que a ideia de trajetória remete imediatamente ao aspecto profissional dessa experiência pessoal e, portanto, equivaleria à trajetória profissional? Seria a biografia justificável somente pela abordagem da experiência pessoal, por uma suposta singularidade? Ou ainda, seria possível falar em biografia profissional, como uma “entrada” híbrida, que remeteria necessariamente para a experiência profissional e pessoal, entrecruzadas? Sem eleger, de antemão, uma entre essas abordagens, a proposta do dossiê “Os eruditos e a cidade” apresenta uma oportunidade para se discutir o tema.

A opção foi favorecer o diálogo, nem sempre convergente, entre diversos campos disciplinares a partir das seus aportes conceituais, resultando em diferentes visões sobre a questão, o dossiê priorizou propostas que buscassem pensar o papel, a atuação, as proposições de representantes dos saberes em suas ações sobre a cidade. Médicos, engenheiros, urbanistas, arquitetos, artistas, entre outros personagens que de modos diversos tematizaram o urbano figuram entre aqueles que fizeram dos saberes eruditos seu referencial para problematizar e atuar na cidade, seja na construção das infra-estruturas urbanas, dos sistemas viários, dos planos para moradias e saneamento habitacional, dos planos de expansão urbana, dos planos de intervenção urbana, das obras de abastecimento de água, ou ainda na configuração de um campo profissional para se pensar a cidade, por meio de associações, conferências, instituições de ensino, na administração municipal, entre outras atuações. O interesse do Dossiê “Os Eruditos e a Cidade” é justamente perscrutar a atuação daqueles que a partir de sua formação técnica e erudita atuaram na construção do sistema urbano brasileiro ou na forma de se pensar a cidade, sobretudo pela ação direta nas municipalidades.

Perscrutar a vida de uma pessoa não é tarefa simples. A vida profissional pode ser algo fugidia ao pesquisador, sobretudo quando os vestígios da sua trajetória profissional são restritos quantitativamente, ou ainda restritos qualitativamente, quando se depara com aspectos “lacunares” dessa vida, por vezes destituídos de vestígios documentais mais amplos que propiciem uma interpretação substantiva e profunda. Cartas, ofícios, memoriais, projetos, filiações institucionais, interlocutores e tantas outras categorias documentais que viabilizariam uma interpretação mais detalhada, articulada às tramas técnicas, sociais e profissionais que cada vida consubstanciou, orientam, portanto, (e justamente pela eventual inexistência de uma documentação mais densa) uma interpretação interessada não apenas em sua trajetória, digamos, individualizada ou singularizada, mas antes ampliada para as articulações desse personagem, e dos saberes que orientam suas propostas, às questões em pauta em cada momento histórico.

A partir dessas considerações sobre as possibilidades para se pensar a atuação dos profissionais na construção das cidades, o Centro Interdisciplinar de Estudos da Cidade convida à leitura deste número da revista Urbana, manifestando a gratidão dos editores pelas importantes contribuições recebidas.

Rodrigo de Faria – Professor Doutor (UnB)

Josianne Cerasoli – Professora Doutora (Unicamp)


FARIA, Rodrigo de; CERASOLI, Josianne. Apresentação. Urbana. Campinas, v.4, n.1, jan. / jun., 2012. Acessar publicação original [DR]

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Patrimônio Industrial / Urbana / 2011

Desconhecido ou mal- compreendido há 30 anos, o tema do patrimônio industrial faz hoje parte inegável do panorama da discussão patrimonial internacional, assim como do debate dentro do Brasil. País de indiscutível riqueza em termos de remanescentes de processos de produção longevos como engenhos ou fiações ou recentes como a produção industrial pesada, o Brasil aos poucos tem encontrado no espaço acadêmico da pesquisa, no espaço institucional dos órgãos de proteção e preservação e dentro da sociedade, as formas para lidar com este patrimônio. Cresce a percepção da importância da valoração da memória do trabalho e dos trabalhadores, que nos permite conhecer técnicas e rotinas de produção e as formas de organização política e social dentro e fora do espaço de produção. Ao mesmo tempo, crescem as urgências relativas à proteção de acervos documentais, muitas vezes desmembrados e descartados e aos antigos espaços arquitetônicos de produção, que hoje ocupam áreas cobiçadas dentro das cidades e que tem, via de regra, sido demolidas ou fortemente descaracterizadas, impedindo a conservação física dos bens industriais e a compreensão ampla das redes de beneficiamento-produção-escoamento que os definia.

A Carta Patrimonial voltada ao Patrimônio Industrial, firmada em julho de 2003 na cidade russa de Nizhny Tagil culminou um longo processo de valoração do patrimônio industrial ligado em suas origens à arqueologia industrial e à atuação de órgãos como o TICCIH (The International Committee for the Conservation of the Industrial Heritage, fundado em 1978 e principal organismo internacional de preservação do patrimônio industrial). Também nos países latino-americanos a percepção da importância dos remanescentes da atividade de produção de açúcar, exploração de minas ou da atividade industrial mais geral trouxe a organização de comitês de preservação, a realização de colóquios e seminários, a elaboração de documentos que buscam tanto circunscrever o campo do patrimônio industrial quando fazer recomendações quanto a sua proteção, a prática de restauros e tombamentos de exemplares.

No Brasil, os estudos em arqueologia industrial foram pioneiros nos levantamentos e reflexões sobre o tema. O primeiro tombamento de exemplar de produção industrial, a Fábrica de Ferro Patriótica de São Julião, localizada nos arredores de Ouro Preto e fundada pelo barão de Eschwege em 1812, inscrita no livro do Tombo Histórico em 30 de junho de 1938 antecedeu em 30 anos o tombamento da Real Fábrica de Ferro São João de Ipanema (Iperó, São Paulo). Entretanto, dentro dos princípios do SPHAN do patrimônio como expressão do caráter nacional, o patrimônio industrial encontrou pouco espaço, embora suas manifestações tenham sido mais positivamente avaliadas (e protegidas) por órgãos estaduais e municipais, devido, sobretudo, à sua freqüente escala de abrangência regional. Apesar do crescente número de exemplares protegidos nestas esferas, na maior parte dos casos, as definições e recomendações propostas pelos documentos e instituições de preservação do patrimônio industrial não são levadas em conta na instituição destes bens como patrimônio. Além do distanciamento das entidades que tratam do patrimônio industrial, a ausência de envolvimento de outros setores governamentais, que não os órgãos de preservação, implica em uma tutela muitas vezes frágil e arbitrária dos bens industriais.

Parece evidente que o caminho para a valoração do patrimônio industrial não pode residir exclusivamente na atuação dos órgãos governamentais de preservação, sendo que a sociedade organizada tem igualmente envolvido- se com o tema. No mesmo ano em que foi firmada a Carta de Nizhny Tagil (alguns meses antes, no mês de março), um grupo de interessados, acadêmicos e não acadêmicos, havia se reunido em São Paulo, em uma sala da Escola de Sociologia e Política, para subscrever uma Carta Manifesto que estabelecia um “Comitê Provisório pela Preservação do Patrimônio Industrial no Brasil”, iniciativa que desembocou na criação do Comitê Brasileiro para a Preservação do Patrimônio Industrial, fundado no ano de 2004 durante um encontro na Universidade Estadual de Campinas e que conta hoje com 42 filiados.

O esforço não era novo nem inédito. Trabalhos como os de Ruy Gama sobre os engenhos, o artigo do historiador norte-americano Warren Dean ainda em 1976 sobre a fábrica São Luiz de Itu, o inventário fotográfico ainda inédito preparado por Philip Gunn e Telma Correia, os estudos sobre o cotidiano fabril de Edgar De Decca e de Maria Auxiliadora de Decca, as reflexões de Ulpiano Bezerra de Meneses e estudos como os de Odilon Nogueira de Matos e Bandeira Júnior, entre outros, vinham embasando uma metodologia e uma reflexão sobre o tema no Brasil. Assim como ocorrera com a experiência inglesa, os primeiros a perceberem a importância desse patrimônio foram aqueles envolvidos no estudo da história da tecnologia e do maquinário, ainda na década de 1960. Progressivamente, contaram com a companhia de historiadores e arquitetos interessados nas práticas do trabalho industrial e nos vestígios arquitetônicos. Todo este compromisso é frágil ainda para impedir que o vasto patrimônio industrial brasileiro, com seus engenhos, minas, portos, ferrovias, moradias operárias, barragens e represas, complexos industriais do século XIX e também os mais recentes (o que inclui um vasto patrimônio arquitetônico moderno das décadas de 1930, 1940 e 1950, hoje igualmente ameaçado) ainda seja pouco estudado ou perca exemplares a cada dia. O Brasil não possui um inventário nacional de seu patrimônio industrial e mesmo a documentação relativa à atividade da indústria encontra-se apenas parcialmente organizada. Há dezenas de acervos desestruturados, em péssimo estado de conservação ou sendo descartados, tanto no que se refere à memória ferroviária do país, quanto no caso de documentação relativa a certas indústrias e moinhos demolidos, ou a campos de atuação específica, como os monjolos no sul do país, as fiações têxteis na região sudeste e nordeste ou mesmo a indústria pesada mais recente. A documentação que se associa ao patrimônio industrial por vezes perde-se antes do desaparecimento dos vestígios físicos do bem, e perde-se por diversas razões: encontra-se separada fisicamente dos objetos a que fazem referência, é encaminhada a diferentes acervos como parte de falências, concordatas ou demolição de imóveis, ou incorporadas a outros acervos. Do mesmo modo, há a perda irrecuperável de artefatos, maquinários, ferramentas, utensílios e peças de reposição que definem os usos da indústria, apenas comparável à perda da dimensão arquitetônica destes bens. Um possível antídoto a estas perdas é a prática diligente do estudo, do inventário, do registro, com esforços partindo de diversas disciplinas. Nesta direção, apresentam-se os estudos aqui reunidos, neste número temático da URBANA.

Cristina Meneguello – Professora Doutora

Denise Fernandes Geribello


MENEGUELLO, Cristina; GERIBELLO, Denise Fernandes. Apresentação. Urbana. Campinas, v.3, n.1, 2011. Acessar publicação original [DR]

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Cidade, imagem, história e interdisciplinaridade / Urbana / 2007

A alegria de trazer a público este segundo número da revista Urbana se alimenta, especialmente, da satisfação em poder reunir um conjunto expressivo de estudos que abordam a cidade, bem como da percepção do significativo diálogo que se esboça entre esses textos. Elaborados em primeira versão para os debates da edição de julho de 2007 do Simpósio Nacional da Associação Nacional de História – ANPUH, ocorrido na cidade de São Leopoldo, os artigos desta segunda Urbana são conduzidos pelo fio da interdisciplinaridade – aspecto, aliás, que acompanha o CIEC desde seus inícios, e também este periódico.

Inspirados pelos debates na ANPUH-2007, partimos de uma seleção de textos apresentados em dois Simpósios Temáticos do evento para compor o dossiê Cidade, Imagem, História e Interdisciplinaridade. Na composição, ambos os Simpósios Temáticos, “Cidade, História e Interdisciplinaridade” (coordenado por mim e por Marisa Varanda Teixeira Carpintero) e “Cultura Visual, Imagem e História” (coordenado por Iara Lis Schiavinatto e Charles Monteiro), interagem continuamente, sem que se revele ao leitor, numa primeira tomada, quais autores estiveram presentes em um ou outro debate. [1]

A seleção que fizemos resulta em passagens por variados espaços – como não podia deixar de ser, quando as temáticas se entrecruzam justamente na cidade e na história. Somos levados com os autores por diversos espaços, alguns revisitados em tempos e miradas diferentes: por Guaratuba, Campinas, Porto Alegre e interior sul-riograndense, João Pessoa, Rio de Janeiro, São Paulo e mais, ora conduzidos pelas margens, ora levados aos centros, aos parques, ao lazer, aos dilemas, às figurações, às tensões, às ilusões… Por vezes são os gestos do urbanista e do capitão-mór que norteiam essas passagens, noutras vezes as tomadas do jornalista, do fotógrafo e do cineasta, ou ainda os ângulos do especialista e do governante, ou as penas do chargista e do literato, narrativas daqueles que vivenciam e pensam, em lugares diversos, os espaços do urbano. Passagens, aliás, apreendidas por meio de narrativas que avançam para além da suposta fugacidade ou ineficiência das ações – e transformações – no urbano, para além de uma imaginada coesão da cidade possivelmente convertida em dispersão. Pode-se dizer que, de modos distintos, os estudos aqui reunidos acolhem o “descontrole” e a imprevisibilidade da cidade e se movem em direção a outros espaços, despidos de ilusões de ordem, envoltos pelo desejo de desvelar algo mais, de avançar mais alguns passos na compreensão desse fenômeno complexo e instigante que é a cidade.

As passagens nesses estudos, portanto, não se reduzem à(s) espacialidade(s). Abarcam a multiplicidade que perpassa a cidade, entendida como fenômeno histórico ou na condição de objeto de conhecimento. A dimensão inegavelmente complexa e múltipla do urbano é visível ao longo dos textos, não apenas quando a abordagem conceitual ou documental, sobretudo da cultura visual, implica na compreensão de seus diversos suportes materiais, suas fontes visuais e iconográficas, suas linguagens, seus lugares de enunciação, circuitos e fluxos. O múltiplo e o complexo se fazem presentes também quando os estudos se desdobram sobre a heterogeneidade das formas e sujeitos na / da cidade, a variedade de seus atores e autores, a pluralidade dos discursos e leituras que a percebem, a diversidade de diagnósticos e perspectivas que a avaliam, em sua mobilidade e transformação constante. A visualidade e a dimensão narrativa, que dialogam entre esses textos, configuram um processo continuado de produção de sentidos sociais, apreendidos neste dossiê.

Entendemos que abordar historicamente a cidade considerando-se essa complexidade nos coloca, sobretudo, o desafio de se constituir uma visão antes interdisciplinar do que multidisciplinar do urbano. Mais que dispor lado a lado disciplinas e seus campos de reflexão, esse desafio implica considerar ainda os contatos e entrelaçamentos nos quais é possível vislumbrar os diálogos indispensáveis à apreensão da cidade. Trata-se, na verdade, de uma opção que se construiu ao longo do trabalho editorial, desde as primeiras formulações para o projeto deste periódico, e esperamos que o leitor possa percebê-la no percurso destes textos.

Os editores da Urbana – Revista Eletrônica do Centro Interdisciplinar de Estudos da Cidade-CIEC / Unicamp – são amplamente gratos aos autores, que prontamente enviaram e aprimoraram seus textos, aguardando pacientemente por esta edição que, por “injustificáveis justificativas”, demorou mais que se previa para vir a público. Hoje na condição de editora deste número, agradeço ainda ao imprescindível apoio dos colegas do CIEC, virtualmente presentes desde os momentos de seleção dos textos, bem como nas revisões e afins. Esperamos, por fim, que o resultado de todos esses encontros possa ampliar e renovar os debates que iniciamos noutros tempos.

Nota

1 Para conhecer cada proposta em sua versão original e sua relação com cada um dos dois simpósios temáticos, o leitor pode aproveitar-se da “virtualidade” desta leitura e navegar pelos arquivos da ANPUH-2007: http: / / snh2007.anpuh.org / site / saoleopoldo

Josianne Francia Cerasoli – Membro do conselho editorial da Urbana, responsável por este número. E-mail: josiannefc@gmail.com


CERASOLI, Josianne Francia. Apresentação. Urbana. Campinas, v.2, n.1, 2007. Acessar publicação original [DR]

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Religião, poder, civilização e etnia na cidade colonial / Urbana / 2006

Durante muito tempo, a cidade colonial foi vista pela historiografia como espaço da desordem, do desleixo e da anomia. Para muitos também a cidade era uma exceção no espaço da América portuguesa, eminentemente rural, ou dominada pela natureza selvagem do continente. A partir da década de 1980, todo um debate se constituiu em torno da ordem ou desordem dos núcleos urbanos portugueses na América, com a contribuição de historiadores, geógrafos, arquitetos, antropólogos etc. Trabalhos importantes demonstraram como estas imagens, carregadas de preconceitos em alguns casos, não podiam ser estendidas a todas as cidades portuguesas de ultramar, sobretudo a partir do século XVIII, com o governo pombalino. A reconstrução de Lisboa após o terremoto de 1755, a construção de novas cidades planejadas no reino, como Vila Nova de Santo Antônio, ou no Brasil, como na Amazônia ou no Mato Grosso, por exemplo, demonstram como normas de construção ordenadas e preocupações com simetria, higiene, localização dos sítios urbanos não eram desconhecidas nem desprezadas pelos lusitanos.

Como o objetivo da Revista Urbana é tematizar a cidade nos diversos campos do conhecimento, sobretudo na História, escolhemos justamente a cidade colonial como tema de nosso primeiro número. Com o dossiê Religião, civilidade e etnia na cidade colonial, mais do que limitar a temática das contribuições, pretendemos justamente demonstrar a multiplicidade das pesquisas atuais com relação a esta cidade, que refletem exatamente a multiplicidade de registros e experiências presentes numa cidade construída em contexto colonial, na qual conviviam diversas etnias, com diferentes formas de vida e civilização, estatutos jurídicos e sociais próprios, homens livres e escravos, além dos libertos, uma administração dividida entre poderes laicos e religiosos, que por vezes trabalham juntos, por outras passam por importantes conflitos. Sem esquecer de que estas cidades são, muitas vezes, instrumentos de conquista nas quais determinados povos e homens deveriam ser dominados e inseridos na cultura da Metrópole mas também das elites locais que efetivamente administravam-nas. Nesse sentido, tanto a religião como a civilidade, tão importante sobretudo para os administradores ilustrados do século XVIII, são entendidas aqui como instrumentos de enquadramento e controle destas populações de índios, africanos, mestiços e livres pobres.

Nestas cidades, a aparente desordem, que tanto chamou a atenção quer dos governadores portugueses, quer dos viajantes ou da historiografia, indica a presença destas formas de dominação e controle e, também, das resistências a elas. Portanto, com este dossiê, pretendemos ir um pouco além do debate ordem / desordem, buscando estas formas de ordenamento jurídico, social, espacial etc., que não têm relação ainda com uma racionalidade urbanística criada apenas no século XIX.


TORRÃO FILHO, Amilcar. Apresentação. Urbana. Campinas, v.1, n.1, 2006. Acessar publicação original [DR]

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Urbana | Unicamp | 2006

Urbana1 Urbana

Urbana (Campinas, 2006-) é a revista eletrônica do CIEC (Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Cidade), Centro de Pesquisa vinculado ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, foi estabelecida em 2006 por iniciativa de historiadores dedicados aos estudos urbanos, Amílcar Torrão Filho, Josianne Cerasoli, Rodrigo de Faria, Viviane Ceballos, com apoio de Cristina Meneguello, Stella Bresciani e Silvana Rubino.

O periódico dedica-se à publicação de artigos baseados em pesquisas originais, de resenhas e de traduções, sempre dentro da temática ampla da história urbana. Os artigos podem versar sobre o tema do Dossiê proposto para cada edição ou podem compor a seção de artigos livres.

A revista eletrônica Urbana recebe contribuições destinadas ao público acadêmico voltadas ao estudo de temas relativos à produção do universo urbano na sociedade moderna/contemporânea, prioritariamente em perspectiva histórica, tais como: história da cidade e do urbanismo, políticas públicas, intervenções urbanas, políticas de preservação e patrimônio, avaliações críticas e reflexões sobre a cidade, cultura e linguagens urbanas, espaço político/público, saberes eruditos e especializados sobre a cidade, tensões sociais e cidadania.

Periodicidade quadrimestral.

Acesso livre.

ISSN 1982-0569.

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