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Uma estreita passagem: o conceito de corpo nas obras de Schopenhauer e Freud – FONSECA (V-RIF)
FONSECA, Eduardo Ribeiro da. Uma estreita passagem: o conceito de corpo nas obras de Schopenhauer e Freud. Curitiba: Editora UFPR, 2016. Resenha de: LAZZARETTI, Lucas Piccinin. Voluntas – Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v.7, n.2, p.153-159, 2016.
O esforço de realizar um entrecruzamento de duas produções intelectuais pode ser conduzido pela capacidade de se gerar novas fugas e novas reflexo es, mas também pode – talvez muito facilmente – recair em uma espécie de linearidade erma que revela apenas aquilo que o próprio esforço suscitou. No caso do livro de Eduardo Ribeiro da Fonseca, Uma estreita passagem: o conceito de corpo nas obras de Schopenhauer e Freud, a leitura parece ter transcorrido o rumo de novas e prolíficas ponderações, permitindo outras viso es na o apenas sobre a relação entre os dois autores, mas sobretudo fazendo evidenciar as muitas analises que podem partir dessa intersecção.
Os autores abordados pelo referido livro na o deixam de intensificar o problema de um possível entrecruzamento, já que, uma vez que na o se tratam de pensadores vinculados necessariamente por uma dimensão histórica e conceitual demasiado estrita – pois Freud na o e , a primeira vista, um filosofo e, tanto mais, um filosofo pós-kantiano –, pode então advir a tendência de se tomar o predecessor pelas lentes do sucessor. Isto e , a análise mais ligeira buscaria encontrar em Schopenhauer uma espécie de ancoradouro conceitual e até mesmo histórico para o trabalho clínico-especulativo realizado posteriormente por Freud, como que desenvolvendo uma fundamentação da psicanalise a s avessas, fazendo emergir, desde uma leitura a posteriori, uma espécie de legitimidade para o trabalho empreendido pelo me dico vienense. A primeira grandeza do livro de Eduardo Ribeiro da Fonseca e justamente a de declarar-se contra rio a essa posição, asseverando que:
Um dos nossos principais objetivos é ajudar a preencher a lacuna histórica e existente dentro da psicanálise, principalmente quanto ao reconhecimento de Schopenhauer como precursor do conceito de um psiquismo de base orgânica, baseado na noção de impulsos inconscientes e sem fundamento – isto é, irracionais. Essa é, essencialmente, a natureza do “golpe narcísico” que, segundo Freud, a própria psicanálise infligiu à humanidade (p. 25).
Trata-se, portanto, de permitir a composição de um estudo feito com base em uma igualdade e na o como uma espécie de causalidade fortuita. Nesse sentido, a escolha instrumental feita pelo autor indica a acuidade com o rigor da analise, pois encontra um ponto de reflexa o que obscurece os privilégios de um pensador perante o outro e destaca justamente os liames conceituais, sendo que “guardadas as diferenças específicas, aceita-se que, tanto para o filosofo quanto para o psicanalista, o corpo humano e a chave para o entendimento da função psicológica, tenda a sexualidade como ponto focal” (p. 29).
A estrutura do livro divide-se, então, em duas partes. A primeira e dedicada a analise da noção de corpo na obra de Schopenhauer, enquanto a segunda parte e voltada para a esta analise na obra de Freud. Os dois pensadores são tomados segundo as próprias características de suas produções, de modo que a primeira parte do livro, por exemplo, inicia-se com um dos pontos centrais do pensamento de Schopenhauer, isto e , a noção de representação, apontando que, para o filosofo alemão, “a noção de representação e um processo fisiológico, fruto da atividade do sistema nervoso central, dentro de um complexo processo de apercepça o da efetividade, submetida ao princípio de razão” (p. 36). Já se delineia aqui a tônica que conduz todo o trabalho, isto e , buscar evidenciar nos conceitos – seja de Schopenhauer, seja de Freud – de que maneira a estrutura de seus pensamentos e conduzida pela chave de leitura fornecida pelo corpo.
Em Schopenhauer, como demonstra Eduardo Ribeiro da Fonseca, o corpo e mais do que um simples adendo ao todo de uma teoria sistema tica, mas e muitas vezes o fenômeno que permite entender a dina mica daquilo que o filosofo alemão busca apreender (Vontade e Representação). Enquanto ponto central, a noção de corpo e , dessa maneira, extensivamente retrabalhada por Schopenhauer com vistas a continuamente obter resultados e reflexo es mais acuradas no que tange ao problema principal. A começar pelo traço imediato do conhecimento, inserido no âmbito da representação, o pensador de Frankfurt centraliza o corpo como primeiro motor das capacidades perceptivas, pois “através do sentimento do próprio corpo, a percepção de todos os outros objetos se realiza” (p. 40), de tal modo que “o conhecimento intelectual resulta da influencia exercida pelos dados exteriores junto ao corpo” (p. 41). A dinâmica da representação – sobretudo se considerada aquela derivada de uma estrutura estritamente kantiana – e sensivelmente alterada, pois “o estudo do corpo como objeto imediato expõe a fisiologizaçao do processo de apreensão do mundo como representação” (p. 44). O passo que da então Schopenhauer – e que bem destaca Eduardo Ribeiro da Fonseca – e avançar sobre essa noção de corpo deslocando-o também para o âmbito da mediação, delineando aqui os contornos gerais da relação conflituosa que o filosofo identifica como sendo central na existência de cada indivíduo, na o devido a um aparato transcendente, mas como uma inerência da estrutura imanente na qual o ser humano encontra-se.
E com base nessa estrutura conflituosa, a qual parte de um instrumento que, antecedente a razão, já tem sua própria dimensão operacional, que o filosofo pode então apresentar suas ponderações sobre os limites dessa mesma razão humana, já que, como bem pontua o autor do livro, para Schopenhauer “somos prejudicados pelo uso de um instrumento que deveria estar a nosso serviço” (p. 53), pois, demonstrando-se o conflito existente entre o âmbito imediato e mediato em que o corpo se situa, a razão acaba por apresentar-se como nada mais do que “deficitaria”. E com base nessa suspeita perante os alcances da razão que se desenvolvem as considerações sobre a Vontade e, na o por outra razão, e neste ponto que a noção de corpo enquanto chave de leitura acaba por encontrar as consequências mais prolíficas da analise desenvolvida pelo autor sobre o pensamento do filosofo alemão.
Para além de uma limitação epistemológica, Schopenhauer avança sobre a problema tica da Vontade partindo justamente das limitações encontradas no âmbito da Representação. A pretensa o do filosofo e , portanto, de ir ale m do mero reconhecimento da existência de representações, valendo-se então de uma via metafísica, sendo que “o que a metafísica do filosofo de Frankfurt sugere e que o querer confere sentido essencial ao corpo e deve ser considerado como o seu próprio íntimo, cuja característica mais profunda e a de ser, em grande medida, inconsciente” (p. 58). A amplitude desse ir além, como reconhece o Eduardo Ribeiro da Fonseca, na o se restringe a limitação de uma analise sobre os alcances da cognoscibilidade humana, mas visa atingir, em função de seu impulso metafísico, os tracejados cósmicos do que se encontra inscrito justamente na fenomenalizaçao privilegiada que e o corpo. Para o filosofo, “a Vontade nos aparece como um conceito obtido por extensa o a partir do conceito de vontade individual, não sendo, portanto, possível observa -lá em si mesma, mas apenas senti-la no corpo” (p. 72).
Ao analisar “cara ter e sexualidade” na obra de Schopenhauer – como o faz no terceiro capítulo – o autor apresenta o que ha de singular nas reflexo es do filosofo de O mundo como vontade e representação, isto e , a compreensão da sexualidade como vinculada a própria analise previa realizada sobre o corpo. Sexualidade, nesse sentido, e mais do que simples limitação física, mas e o ponto em que corpo se mostra como importante chave de leitura, pois o filosofo “ve na Vontade de viver e no desejo sexual que a expressa a possibilidade de estabelecer uma passagem da Vontade para a Representação” (p. 85). A passagem a qual se refere o autor encontra-se intimamente ligada com as diversas consequências que daí retira o filosofo, como a sua posição tomada por pessimista, ou mesmo o reconhecimento do confronto entre vida e morte situado na própria essência da existência, a qual na o encontra muitas saí das, salvo a sublimação perante os impulsos de vida e morte.
Na segunda parte, referente a s obras e pensamento de Freud, Eduardo Ribeiro da Fonseca, ja nas primeiras linhas destaca a diferença entre os autores. Enquanto o filosofo de Frankfurt possui um cara ter especulativo como traço central de sua produção, o psicanalista vienense, por sua vez, pretende dedicar-se a produção de uma ciência – como Freud bem pontua em seu Projeto para uma psicologia científica – e, de forma lateral ou muitas vezes indireta, vem a realizar exercícios especulativos. E interessante pontuar que, salvaguardando essa diferença, o autor consegue apresentar em seu livro os resultados semelhantes que as duas conduções metodológicas fornecem.
A perspectiva teórica de Freud parte de uma problema tica que mobiliza a reflexa o, já que “a consideração de que existe uma fronteira tênue entre o que caracteriza um indivíduo avaliador, o seu corpo orgânico e o objeto representado” (p. 112). já traz em si um problema. No caso de Freud, na o se trata de uma questão de reconhecimento da formação e limites do intelecto, mas, antes, da estrutura das dimensão es formadoras do âmbito psicológico em relação com a base orgânica. Repousa aí um conflito muito próximo aquele já apontado por Schopenhauer entre a base formativa do reconhecimento inicial do indivíduo perante ele mesmo (o corpo) e o mundo que cerca esse indivíduo, a tal ponto que, como evidencia o autor, “Freud, como Schopenhauer, pensa o Eu consciente como um representante psíquico do organismo diante do mundo efetivo, como um verdadeiro advogado dessa efetividade junto a s forças orgânicas que exigem satisfaça o” (p. 121).
E no esforço pela formulação conceitual e instrumental de sua nova ciência, a psicanalise, que Freud depara-se com a necessidade de explicitação da relação entre consciente e inconsciente de uma forma que Schopenhauer na o enfrentou. Reticente com o uso de atribuições consideradas como demasiado especulativas, parece ter sido a tônica do pensador austríaco buscar por esclarecimentos no campo da concretude “orgânica” do corpo, daí a relevância do corpo na formação de suas primeiras conjecturas sobre os conceitos centrais da psicanalise e, de igual modo, daí a aparente rejeição a categorias consideradas demasiado abstratas ou “metafísicas”. O embate e as restrições reconhecidos pelo filosofo alemão como decorrentes do desconhecimento sobre o psiquismo são tomados por Freud como a base da formulação da noção de repressão, evitando a todo custo o emprego de termos como Vontade, sobretudo a maneira utilizada por Schopenhauer. Entretanto, apesar dessa aparente divergência, e também nesse âmbito que se manifesta uma importante proximidade entre os autores;
A partir da noção de repressão revela-se todo um campo comum entre os autores, que envolve o problema do desconhecimento humano acerca da natureza do psiquismo. Para superar a dificuldade de investigar racionalmente algo que não segue as leis da consciência – e, portanto, desorienta o investigador –, ambos usam como bússola o corpo e seus impulsos conscientes, que são surpreendidos em ato, nos interstícios da racionalidade (p. 136).
E necessário pontuar que, quanto mais Freud avança em suas considerações sobre aquilo que se mostra como que vetado a primeira averiguação de um pesquisador, isto e , os mean [DR] os do inconsciente, mais o medico vienense depara-se com os rumos especulativos, a tal ponto que, ao considerar a relação do homem com a espécie, tem de fazer notar o caráter na o limitado as formulações mais imediatamente orgânicas. E o que ocorre, por exemplo, na apresentação do conceito de libido, em que Freud, valendo-se de explicações fisiológicas e orgânicas, tem de fornecer um salto tema tico para ser capaz de explicar o vínculo na o explicitamente orgânico que mobiliza toda organicidade, pois, nas palavras de Eduardo Ribeiro da Fonseca, “a função do cérebro, como a de qualquer coisa física, esta sujeita a lei da inercia, e se faz ativa apenas quando o intelecto e posto em movimento pela vontade”, considerando-se que, “na psicanalise, por outro lado, e a libido que ativa ate mesmo a unia o entre as células do organismo, que funciona de acordo com um princípio de prazer, sendo papel do aparelho psíquico reduzir ao máximo os efeitos da estimulação” (p. 150). A libido não e assumida por Freud como sendo uma espécie de vontade schopenhaueriana, mas também na o diz respeito unicamente a organicidade, mas revela um impulso que se perfaz no âmbito biológico sem reduzir-se a esse no sentido de uma causalidade.
Enquanto a teoria da libido na o apresenta maiores problemas em uma consideração pontual, isto e , no aspecto singular da manifestação orgânica dos indivíduos, e com relação ao fundamento da libido – o impulso – que Freud encontra a necessidade de formulação es mais especulativas. A explicação que fornece Eduardo Ribeiro da Fonseca sobre a noção de impulso faz antever o ponto de aproximação mais inusitado entre os dois autores analisados:
Do ponto de vista de Freud, o impulso é uma força poderosa, radical, indeterminada, atemporal, arcaica, avaliativa e própria não só dos organismos complexos, mas do conjunto integral da natureza. O registro do impulso vai além do indivíduo e de sua espécie, portanto, adquire uma conotação metafísica, sendo que, ainda que esta ampliação do conceito escape aos domínios próprios da psicanálise, ela é sempre considerada pelo psicanalista vienense (p. 170).
Esse e o ponto em que se pode antever um dos traços mais originais do trabalho de Eduardo Ribeiro da Fonseca, uma vez que esse, na comparação analítica entre os dois autores, tomando o corpo como chave interpretativa e avaliativa, faz evidenciar um processo inverso ao habitualmente conferido para a analise de autores sucedidos temporalmente (sobretudo quando trata-se da psicanalise, já tão conhecida por produzir jogos de espelhos a seu favor): na o e Schopenhauer quem serve como que indiscriminadamente a pretensa o de legitimidade dos conceitos freudianos, mas, como pode ser antevisto, e Freud quem confere o privilegio da originalidade a produção filosófica schopenhaueriana. Ale m disso, parece estar indicado, ainda que de forma indireta, a possibilidade de se considerar a relação de ambos os autores frente a especulação metafísica, já que o filosofo de Frankfurt declara a necessidade de enfrenta- lá e o medico vienense reluta tanto quanto possível a ceder aos seus encantos, sendo que e , ao fim e ao cabo, as expansões de suas especulações metafísicas o que confere os traços mais inovadores de ambos os pensamentos. Cabe a Eduardo Ribeiro da Fonseca o me rito de ter demonstrado mais do que a estreita passagem que o corpo representa enquanto chave interpretativa nas obras dos pensadores elencados, mas também por ter viabilizado um novo caminho hermenêutico que faz voltar as atenções para Schopenhauer na o apenas como o pensador que primeiro lançou as bases para uma das teorias mais relevantes do século XX, mas por ser o pensador que transcende, com suas especulações metafísicas, as próprias dimensões e limitações dessa teoria.
Lucas Piccinin Lazzaretti – Doutorando em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Bolsista CAPES. E-mail: lucasplazzaretti@hotmail.com
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