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Uma casa sem cor – MUZART (REF)
MUZART, Zahidé Lupinacci. Uma casa sem cor. Florianópolis: Editora Mulheres, 2009. 28p. Resenha de: PAIVA, Kelen Benfenatti. Uma história de solidão. Revista Estudos Feministas v.18 n.1 Florianópolis Jan./Apr. 2010.
Conhecida pelo importante trabalho de resgate da literatura de autoria feminina no século XIX e pelo empenho em trazer à luz nomes esquecidos de mulheres de nossa história literária, Zahidé Lupinacci Muzart trilha, em 2009, caminhos ainda não percorridos por ela – a chamada literatura infantil – e publica, pela Editora Mulheres, Uma casa sem cor, livro de intensa sensibilidade poética, com belíssimas ilustrações de Márcia Cardeal.
Longe de seguir a antiga linha dos primeiros livros ditos infantis no Brasil, em que o tom pedagógico e moralizante predominava, Zahidé trata em seu livro – com total liberdade – de questões que por décadas foram evitadas para esse público leitor. A dor da perda, da ausência, da solidão e da morte será abordada em primeiro plano, bem como o será a capacidade da criança de sentir o mundo e os acontecimentos à sua volta. A autora vai, além de abordar um tema complexo, retratar a tentativa de aprender a viver e a conviver com a ausência.
Zahidé apresenta-nos, através da protagonista-narradora, uma menina de oito anos, a imagem de criança não como ser inocente e angelical, em processo de “vir-a-ser” ou um “adulto em miniatura”, mas um sujeito dotado de inteligência e sensibilidade, capaz de lidar, à sua maneira, com sentimentos e situações impostas pelas circunstâncias da vida e pelo mundo. Retrata a infância não como lugar da felicidade em que não há espaço para a morte e a dor, mas como lugar povoado por alegrias, curiosidades, tristezas e, sobretudo, solidão.
Sem ter ouvido dos adultos o verdadeiro motivo da partida do pai, ou seja, sua morte, a protagonista observa a casa, os objetos e as pessoas que a cercam para compreender essa ausência. A personificação da casa cinza, triste, de porta fechada, de “alma fechada”; as mudanças sofridas pela mãe de “olhos sempre doentes”, “eternamente vermelhos”; “mais quieta e sombria”, “o tempo todo fechada dentro de si mesma”; e as mudanças na rotina da família, como o fato de todos na casa não ouvirem mais música e só receberem “gente triste” ou não terem mais bolo nem arroz-doce aos sábados intensificam ainda mais o sentimento de falta experimentado pela menina.
As ilustrações predominantemente em tons escuros, acinzentados, criam com a narrativa o efeito de profunda tristeza. A grande metáfora da ausência será a falta de cores ou a predominância do cinza: “Se eu tivesse que dizer qual é a cor da nossa vida, Dona Zefa, diria que é cinza”, afirma a menina ao descrever a vida da família sem o pai.
A morte, temática tão recorrente na literatura, se abre nas páginas deste livro para trazer à tona outros temas, como a velhice, na figura da avó sempre se queixando de não ser ouvida pelo médico; a falta de dinheiro, quando a família perde seu mantenedor; o desejo da mãe de proteger a filha e de poupar-lhe o sofrimento, além da difícil tarefa de vivenciar a ausência.
A memória também terá papel de destaque neste livro, peça fundamental na vivência e convivência com a dor. Somente por meio dela se dá a possibilidade do reencontro, e aquele que partiu ressurge, revive e se presentifica nas rememorações da protagonista, “o som do seu riso, da sua voz, a alegria de seus gestos” e tudo o que lhe ensinou, como na ocasião em que lhe dissera que “bruxas são apenas mulheres que sabem mais do que os homens e que têm poderes de cura, poderes que os outros não têm e por isso falam mal delas […]”.
A criação de uma personagem que carrega consigo saberes populares deixa implícita a desierarquização dos saberes promovida pela autora, bem como evidencia os fragmentos da história das mulheres, como a perseguição daquelas que de alguma forma representaram uma ameaça aos padrões instituídos pelo poder. Ao deixar indícios dessa parte de uma história pouco lembrada, a autora reafirma sua concepção de criança como um ser capaz de apreender os diferentes saberes, entre os quais se encontra também o histórico.
À medida que a protagonista se aproxima da possibilidade de “reencontrar” o pai, ou seja, de saber por meio de Dona Zefa o motivo de sua partida, as cores claras e diversificadas surgem nas páginas do livro e voltam à vida da menina, que finalmente entende a morte dentro da vida.
Ao ler Uma casa sem cor, de Zahidé Lupinacci Muzart, o leitor pode constatar que adultos e crianças compartilham um mesmo universo complexo, povoado de alegrias e tristezas, e talvez por isso se possa afirmar que a autora, ao trilhar os caminhos da literatura infantil, fez um livro sem destinatário. É possível que adulto e criança se reconheçam e vivenciem essa história de solidão das mais diversas maneiras e intensidades, afinal a morte e a dor da ausência fazem parte de cada um de nós, inevitavelmente, em algum momento de nossas vidas.
Kelen Benfenatti Paiva – Universidade Federal de Minas Gerais.