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Um patrimônio em contendas: os bens jesuíticos e a magna questão dos dízimos no estado do Maranhão e Grão-Pará (1650-1750) | Raimundo M. Neves Neto
No centro histórico de Belém (PA), situa-se ainda hoje o imponente complexo arquitetônico de Santo Alexandre, obra paulatinamente erigida entre os séculos XVII e XVIII pelos padres da Companhia de Jesus. Em dissertação recentemente defendida (LOPES, 2013), analisei a forma com esses prédios (colégio e igreja) foi conscientemente incorporado à paisagem de poder do bairro que, à época colonial, era o mais destacado politicamente na cidade. Localizado entre os edifícios síntese do poderio instituído, essas construções jesuíticas tornaram-se, elas mesmas, um conjunto discursivo de afirmação da presença inaciana na Amazônia. Foram, e são, nesse sentido, a síntese material da ação missionária, incorporada em termos espaciais, volumétricos e decorativos.
A opulência da arquitetura dos discípulos de Santo Inácio de Loyola, todavia, mantém relação imediata todo o articulado mecanismo econômico da Missão do Maranhão, essencial para manutenção dos colégios e residências desses padres. É justamente essa dinâmica de produção e gerenciamento do patrimônio jesuítico o alvo de estudo do livro de Raimundo Moreira das Neves Neto, “Um patrimônio em contendas: os bens jesuíticos e a magna questão dos dízimos no estado do Maranhão e Grão-Pará (1650-1750)”, fruto de sua dissertação de mestrado no Programa de PósGraduação em História Social da Amazônia da Universidade Federal do Pará.
Produto de pesquisa acadêmica iniciada ainda em sua graduação em História, o livro se insere no necessário debate acerca das práticas econômicas dos jesuítas, tema que há tempos carece de investigações sistematizadas, tal como já indicava Serafim Leite (1953), um dos estudiosos com maior domínio na documentação histórica relativa aos padres inacianos. Preocupação historiográfica, por certo, adivinha das repetidas alusões presentes nesses documentos, nos quais colonos e autoridades coloniais reclamavam do poderio financeiro dos filhos de Loyola em terras amazônicas e, quiçá, do estado do Brasil.
Dividido em três capítulos, a obra de Neves Neto dá conta de pormenores da articulação administrativa e política dos jesuítas para construírem seu patrimônio no Maranhão e Grão-Pará, entre os anos de 1650 e 1750. No primeiro desses capítulos, o autor estabelece os parâmetros do modo jesuítico de acúmulo de bens materiais, ainda no século XVII. Trata de evidenciar as medidas iniciais dos padres para aquisição e aumento das fazendas – os núcleos de produção na Missão –, doações de terras, criação de animais, plantações, tanto na capitania do Maranhão, quanto na do Grão-Pará. Nessa seção do trabalho, essas fazendas, bem como os engenhos, são detidamente descritos em seu aparato material e organizacional. Mais do que isso, Neves Neto nos informa da estrutura hierarquizada da organização administrativa jesuítica, na qual havia padres com cargos específicos ao gerenciamento do patrimônio, os procuradores e os reitores dos colégios. Eram esses agentes os conhecedores da legislação colonial e dos potenciais benfeitores da Ordem, notadamente os moradores abastados da Colônia.
No capítulo 2, o debate recai sobre as atividades temporais dos padres da Companhia de Jesus. Essencialmente, essa questão se liga às práticas produtivas e de comércio desenvolvidas com os itens produzidos nas fazendas ou advindos das coletas das drogas do sertão. Essas atividades, por outro lado, possuíam privilégios, espécies de subsídios traduzidos em controle da mão-de-obra indígena e isenção de impostos, então denominados dízimos. Neves Neto explicita os números brutos dos produtos saídos dos portos de Belém, fornecendo dados quantitativos da circulação de mercadorias dentro do império português. Singular neste capítulo é observar o alcance da produção inaciana no mundo colonial, não apenas do ponto de vista da articulação dentro do Maranhão e Grão-Pará com as trocas entre os Colégios de São Luis e de Belém, mas também do que era exportado. Vislumbra-se, desse modo, a imperiosa necessidade de observar a relação local-global que enseja a ação jesuítica no mundo colonial, como já indicou Dauril Alden (1996).
Na última parte do livro, o historiador discute um ponto chave em estudos da economia jesuítica: os dízimos. Uma “grave questão”, como reitera Neves Neto, que diz respeito à relação da Ordem com a Coroa portuguesa, necessariamente ligadas pelo padroado régio. Para além de localizar o leitor em todas as dimensões que essa política esteve envolvida, o autor lança olhar sobre as filigranas das argumentações inacianas para exercer seus privilégios, principalmente diante das constantes oposições dos colonos. Se no capítulo anterior Neves Neto consegue dá conta do exercício produtivo da Companhia de Jesus, mostrando como ela executava suas atividades econômicas, nessa seção é desvelada a articulação efetuada pelos padres no manejo da legislação, imprescindível à legitimação de suas atividades temporais. Tais argumentos focalizavam no imperativo dessas práticas para o desenvolvimento efetivo do cotidiano missionário, ou seja, da evangelização. Do mesmo modo, é relevante a inserção dos discursos dos outros agentes, não religiosos, acerca do império econômico jesuítico, o que garante ao leitor a percepção da complexidade das relações no mundo colonial. Devo mencionar que as menções a essa rede de interpretações legais por parte dos jesuítas e colonos é presente em todo o texto de Neves Neto.
O livro aqui resenhado já é leitura obrigatória a quem deseja conhecer uma das dimensões do mundo jesuítico, a do seu patrimônio, lacuna que gradativamente vem sendo preenchida por obras de referência como esta, inedita para a Amazônia colonial. A rica documentação, associada com o excelente diálogo com a historiografia, fornece voz ao emudecimento apontado por Paulo de Assunção (2004) quanto se refere às análises sobre as práticas econômicas jesuíticas, provadas, em verdade, pela dispersão das fontes pertinentes ao assunto. Além disso, a pesquisa de Neves Neto permite o debate de período ainda pouco visitado pela historiografia amazônica, o século XVII e primeira metade do XVIII.
A leitura do trabalho aqui resenhado, ainda em seu formato de dissertação, também propiciou à minha pesquisa de mestrado a observação das particularidades da produção dos bens materiais jesuíticos. O meu foco na conformação de suas edificações, analisadas em conjunto, no bairro central da Belém colonial, não poderia estar desvinculada do entendimento da dinâmica própria a essa Ordem religiosa no que diz respeito à conformação de seu patrimônio. A gama de cultura material produzida pelos inacianos, considerando o contexto apontado por Neves Neto, é inteligível dentro da perspectiva da relação ativa que há entre sociedade e objetos (LIMA, 2011). Sinteticamente, um dos esforços dos jesuítas estava na conformação de bases materiais para consolidação da ação expansionista de fé católica, associada à política mercantil, nesse caso portuguesa. Desse modo, as paredes do Colégio e Igreja dos inacianos em Belém, tal como em outras partes do mundo, são a dimensão concreta das relações sociais do mundo colonial (LIMA, 2011; LOPES, 2013).
Referências
ALDEN, Dauril. The Making of an Enterprise: The Society of Jesus in Portugal, Its Empire, and Beyond, 1540-1750. Stanford: Stanford University Press, 1996.
ASSUNÇÃO, Paulo de. Negócios Jesuíticos: o cotidiano da administração dos bens divinos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2004.
LEITE, Serafim. Artes e ofícios dos jesuítas no Brasil: 15000 a 1552. Lisboa/Rio de Janeiro: Edições Brotéria/Civilização Brasileira, 1953.
LIMA, Tânia Andade de. Cultura material: a dimensão concreta das relações sociais. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, Ciências Humanas, v.6(1), p.11-23, 2011.
LOPES, Rhuan Carlos dos Santos. “Melhor sítio da terra”: Colégio e Igreja dos jesuítas e a paisagem da Belém do Grão-Pará, Um estudo de arqueologia da arquitetura. 2013. Dissertação de Mestrado (Antropologia) – Universidade Federal do Pará.
Rhuan Carlos dos Santos Lopes – Discente de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal do Pará (PPGA/UFPA). E-mail: rhuan.c.lopes@gmail.com
NEVES NETO, Raimundo Moreira das. Um patrimônio em contendas: os bens jesuíticos e a magna questão dos dízimos no estado do Maranhão e Grão-Pará (1650-1750). Jundiaí: Paco Editorial, 2013. Resenha de: LOPES, Rhuan Carlos dos Santos. Aedos. Porto Alegre, v.6, n.14, p.151-154, jan./jul., 2014. Acessar publicação original [DR]