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Uma Arqueologia da Memória Social. Autobiografia de um Moleque de Fábrica | José de Souza Martins
O escritor da obra supracitada é um conhecidíssimo intelectual brasileiro, dono de um privilegiado currículo como professor de sociologia e pesquisador. José de Souza Martins aposentou-se como professor da Universidade de São Paulo (USP) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – em 2003, mas continua na ativa enquanto pesquisador e escritor. Talvez a obra mais conhecida deste sociólogo seja O Poder do Atraso1 (HUCITEC, 1994). Mas, além desta, são mais de vinte publicações desde o primeiro livro, quando José de Souza Martins tinha 18 anos e ainda era trabalhador numa fábrica de cerâmica em São Paulo.
A obra, aqui resenhada, é o seu mais recente livro e recebido (por essa sua leitora) com grata alegria, pois se trata de uma “escrita de si”, sensível, em que o autor articula trajetória pessoal, familiar, por meio de sua concepção de cultura, coletiva ou social. José de Souza Martins nos entrega, publicamente, sentimentos, segreda impressões sobre outros e sobre si mesmo em um “despudor” paradoxal, ou seja, maravilhoso e respeitoso. Ao terminar de ler, ficamos com a impressão de que, em alguma medida, a memória narrada por ele a nós também pertence (ou pelo menos, não é estranha a boa parte dos brasileiros que viveram o século XX).
Minha geração é a dos filhos da Era Vargas, a geração dos que viveram a grande e complicada transição do Brasil pós-escravista do café para o Brasil da grande indústria; a geração das crianças e adolescentes que nasceram para o trabalho precoce, de diferentes modos, segundo a situação social de cada um, presas do labirinto da transição social. (MARTINS, 1994, p. 447)
A obra em apreço se divide em 14 partes, tendo ainda um prólogo e uma conclusão, em que, numa teia intrincada de fatos e acontecimentos, José de Souza Martins vai desvendando a trama das memórias de sua família (portugueses, espanhóis e certa descendência muçulmana), “expulsa” da Europa pela pobreza, para trabalhar no Brasil na lavoura do café em São Paulo. O Sociólogo saiu à cata de saber quem é, comboiando o sentimento de ausência deixada com a morte do pai, quando o autor ainda tinha cinco anos de idade, comboiando silêncios em torno de curiosidades do mundo da infância não respondidas na época. E acrescenta ainda:
Nós que procedemos do grande e ignorado mundo dos pobres, seres residuais da sociedade tradicional e pré-moderna que foi largando suas gentes por caminhos e veredas da transição para o mundo moderno, nascemos coadjuvantes da trama da vida, no meio do drama que já estava sendo encenado. Nossas pressas pessoais só têm sentido na lentidão do acontecer histórico. (MARTINS, 1994, p. 443)
A narrativa de José de Souza Martins combina com as possíveis análises sobre “o ato de narrar”, como nas dimensões traçadas por Paul Ricouer,2 sendo que, para o filósofo, o vivido só faz sentido quando narrado, pois a narração apresenta uma compreensão desse mesmo vivido a quem narra, mas também a quem lê/escuta.
E, é assim que não falta na narrativa autobiográfica de Martins a análise acadêmica de seu autor, seus preceitos teóricos, metodológicos, suas visões de mundo. Nessa construção criativa, a todo o momento, José Martins coloca os trajetos pessoais dentro de uma perspectiva do social, o “eu” é ao mesmo tempo o “nós” e, nesse rico processo, nos explica a lenta ascensão familiar e assevera categoricamente:
Ninguém subia na vida sozinho […] O progresso individual como marco da modernização e das possibilidades pessoais na sociedade industrial é ficção. Só família, nunca sozinhas, ligadas a grupos sociais e instituições, como a vizinhança e, eventualmente, uma igreja, qualquer que seja ela. Sem essas referencias, a vida fica muito complicada (MARTINS, 1994, p. 281)
Retomamos, outrossim, Paul Ricoeur3 nas palavras do professor mineiro José Carlos Reis,4 no que concerne ao seu entendimento sobre a narrativa ricoueriana: “a necessidade em mim e fora de mim não é só percebida, representada, mas assumida como minha situação, minha condição desejante no mundo”. (REIS, 2011, p. 259) É assim, que nos parece, que o Sociólogo narra a sua história; ele cria, simultaneamente, uma teia social que denuncia e anuncia as suas próprias ideias para o futuro, diz-nos qual a sua “condição desejante no mundo”.
Esta narrativa autobiográfica é […] uma narrativa etnográfica, um documento e uma explicação, um entendimento do que se passou na formação da classe trabalhadora no Brasil, na perspectiva do testemunho e da experiência pessoal […] O passado não está tão longe assim. (MARTINS, 1994, p. 441)
É um Sociólogo militante. Ao narrar a sua trajetória, parece, ele mesmo, não acreditar que tenha chegado tão longe do destino posto ao “moleque de fábrica” que, ao nascer, foi levantado ao alto pelos braços do pai e vaticinado por este como futuro trabalhador de carpintaria. Tal história, contada muitas vezes por familiares, foi lembrada no momento do juramento em 1993 ao assumir a Cátedra Simón Bolívar da Universidade de Cambridge, na Inglaterra. Escreve:
Descobriríamos, então, que favelas, cortiços, bairros operários, vilarejos rurais, habitações isoladas da roça, estão cheios de crianças promissoras, que só precisam de uma oportunidade, como a que eu tive, para irem além dos limites sociais de seu nascimento. Certamente há, até mesmo, gênios potenciais nesses lugares do supostamente negativo. (MARTINS, 1994, p. 453)
A narrativa começa em um lugarejo em Portugal, em 1974, quando, já pesquisador, participa de um evento naquele país e decide, por conta própria, viajar para o interior com o objetivo de conhecer a cidade de nascimento do pai. Ao chegar ao vilarejo, realiza a primeira das descobertas que exibirá ao longo do enredo do livro: seu pai era filho de padre. Descobre-se, em meio a uma história de tabus, e compreende o silêncio dos familiares: “silêncio constrangedor”, “envergonhado”. E, nesse ponto da narração, mais precisamente na página 56 da obra em destaque, ele expõe a fotografia do avô padre, no caixão de morte e nos deixa comovidos, confidenciando: “foi assim que conheci meu avô”. (MARTINS, 1994, p. 57)
A partir daí, José de Souza Martins desenrola uma narrativa que apresenta os dois lados da família (paterna e materna), por meio de encontros com pessoas e objetos. Sua família se constrói no que o sociólogo diz ser um mundo de “certo realismo fantástico da cultura e nas mentalidades populares”; (MARTINS, 1994, p. 10) são pessoas (o autor, igualmente) que atravessaram o século XX, no limiar de representações de mundos díspares: o industrial e o artesanal; o urbano e o rural; o letrado e o analfabeto.
Trajetórias inseridas na problemática dos des-territorializados que são os migrantes (os simples, os pobres, os corridos), que perdem as referências de espaço e tempo coletivos e têm que refazer-se cultural e socialmente para darem conta de novas demandas. José Martins de Souza reflete:
A cronologia dos simples estende-se pelo longo e lento tempo da formação da sociedade moderna, o tempo que nos junta e nos separa. Por isso, o voltar atrás para compreender o incompreensível agora e o possível adiante. Bem pensadas as coisas, é a finitude que dá sentido ao que começa na vida e na história. (MARTINS, 1994, p. 10)
A história do pobre ganha sentido na história lenta e de longa duração, ocorrida no cotidiano do trabalho; o cientista social a desenha por meio das suas próprias experiências e de familiares no quadro, denominado pelo professor, como da cultura popular. Como no exemplo da avó materna, da qual ouvia a crônica familiar que chegava até o século XVIII: memórias dela e de outros que a mesma ouvira contar ou ouvira dizer.
Encontra, o autor, dimensões culturais do cotidiano, como a divisão do mundo do trabalho por gênero, mulher na cozinha e homem na roça; o trabalho infantil, dado certo na aprendizagem do pobre; os laços de compadrio, entre fazendeiros e colonos, na Europa e depois no Brasil, esticados para o paternalismo nas relações operário e patrão, já no mundo da fábrica e do urbano. É o escritor de Poder do Atraso (1994) nos alertando na sua condição de “desejante” para a continuidade de uma Sociedade e Estado, marcados pelo mando dos donos da terra e mantendo-se conservadora e clientelista na transição do mundo rural para o urbano.
Lembra-nos do “infanticídio involuntário” comum na vida dos pobres, exemplifica com um caso da própria mãe, que “furtara” o remédio para vermes reservado à irmã, pois o dinheiro só dava para comprar o purgante para uma das filhas. Na sequência, o autor divaga contando-nos, quando aluno do curso de Ciências Sociais e trabalhava no setor de pesquisas de mercado de uma grande empresa de leite em pó, teve evidências que o leite de um programa social destinado ao Nordeste do Brasil às crianças pobres, acabava consumido pelo marido/pai, com o argumento que era ele que trabalhava, portanto a necessidade de priorizá-lo com o melhor alimento.
Enfim, a obra de José de Souza Martins se propõe a ser uma autobiografia de uma criança e de um jovem, pois a narrativa se encerra pouco depois da sua saída da fábrica para tentar uma educação distante do mundo do operariado. Escreve-nos: “memórias de operários, sobretudo de operários-crianças, são certamente raras, se é que existem”. (MARTINS, 1994, p. 448) Alguns trabalhos hoje vêm problematizando a “invisibilidade” da criança e do jovem nas pesquisas acadêmicas, como de Helena Abramo e Lúcia Rabello Castro, ambas da psicologia. As Ciências Sociais também tem se interessado pelo tema, inclusive com a presença de simpósios temáticos e cursos de curta duração, em encontros da área e exemplificamos com o trabalho organizado pela historiadora Mary Del Priori (1999) “História da Criança no Brasil”.
É inegável que, entre os muitos aspectos na obra de José de Souza Martins que podem chamar a curiosidade ou a atenção privilegiada do leitor, salientei dois, que me comoveram mais fortemente na leitura desta obra: os aspectos relacionados à própria narrativa de si do autor e a sua perspectiva de dar visibilidade a uma fase da vida do ser humano considerada “nublada”, tanto no que diz respeito à historiografia quanto na experiência de vida de cada um de nós.
Mas, existem ainda outros aspectos significativos no livro do sociólogo que merecem ser conferidos por diferentes leitores, como é caso das grandes personagens que surgem página a página como o avô postiço, o próprio pai, sua tia Anna e tantos outros; e, principalmente, o próprio autor: o “moleque de fábrica” com sua astúcia diária.
Notas
1. MARTINS, J. S. O Poder do Atraso. São Paulo: Hucitec, 1994.
2. RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. SP: Martins Fontes, 2010.
3. ______. Op. Cit., 2010.
4 REIS, José Carlos. História da “Consciência Histórica“ Ocidental Contemporânea. Belo Horizonte: Autentica, 2011, p. 259.
Ivaneide Barbosa Ulisses – Universidade Federal de Minas Gerais / Universidade Estadual do Ceará.
MARTINS, José de Souza. Uma Arqueologia da Memória Social. Autobiografia de um Moleque de Fábrica. São Paulo: Ateliêr Editorial, 2011. Resenha de: ULISSES, Ivaneide Barbosa. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.30, n.1, jan./jun. 2012. Acessar publicação original [DR]
Uma Arqueologia da Memória Social. Autobiografia de um Moleque de Fábrica | José de Souza Martins
O escritor da obra supracitada é um conhecidíssimo intelectual brasileiro, dono de um privilegiado currículo como professor de sociologia e pesquisador. José de Souza Martins aposentou-se como professor da Universidade de São Paulo (USP) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – em 2003, mas continua na ativa enquanto pesquisador e escritor. Talvez a obra mais conhecida deste sociólogo seja o “O Poder do Atraso” (MARTINS, 1994). Mas, além desta, são mais de vinte publicações desde o primeiro livro, quando José de Souza Martins tinha 18 anos e ainda era trabalhador numa fábrica de cerâmica em São Paulo.
A obra, aqui resenhada, é o seu mais recente livro e recebido (por essa, sua leitora) com grata alegria, pois se trata de uma “escrita de si”, sensível, em que o autor articula trajetória pessoal, familiar, por meio de sua concepção de cultura, cultura coletiva ou social. José de Souza Martins nos entrega, publicamente, sentimentos, segreda impressões sobre outros e sobre si mesmo em um “despudor” paradoxal, ou seja, maravilhoso e respeitoso. Ao terminar de ler, ficamos com a impressão de que, em alguma medida, a memória narrada por ele, a nós também pertence (ou pelo menos, não é estranha a boa parte dos brasileiros que viveram o século XX).
Minha geração é a dos filhos da Era Vargas, a geração dos que viveram a grande e complicada transição do Brasil pós-escravista do café para o Brasil da grande indústria; a geração das crianças e adolescentes que nasceram para o trabalho precoce, de diferentes modos, segundo a situação social de cada um, presas do labirinto da transição social (MARTINS, 1994, p. 447).
A obra, em apreço, se divide em 14 partes, tendo ainda um prólogo e uma conclusão, em que, numa teia intrincada de fatos e acontecimentos, José de Souza Martins vai desvendando a trama das memórias de sua família (portugueses, espanhóis e certa descendência muçulmana), “expulsa” da Europa pela pobreza, para trabalhar no Brasil na lavoura do café em São Paulo. O Sociólogo saiu à cata de saber quem é comboiando o sentimento de ausência deixada com a morte do pai, quando o autor ainda tinha cinco anos de idade, comboiando silêncios em torno de curiosidades do mundo da infância não respondidas na época. E acrescenta ainda:
Nós que procedemos do grande e ignorado mundo dos pobres, seres residuais da sociedade tradicional e pré-moderna que foi largando suas gentes por caminhos e veredas da transição para o mundo moderno, nascemos coadjuvantes da trama da vida, no meio do drama que já estava sendo encenado. Nossas pressas pessoais só têm sentido na lentidão do acontecer histórico (MARTINS, 1994, p. 443)
A narrativa de José de Souza Martins combina com as possíveis análises sobre “o ato de narrar”, como nas dimensões traçadas por Paul Ricouer (2010), sendo que para o filósofo, o vivido só faz sentido quando narrado, pois a narração apresenta uma compreensão desse mesmo vivido a quem narra, mas também a quem lê/ escuta.
E, é assim, que não falta na narrativa autobiográfica de Martins a análise acadêmica de seu autor, seus preceitos teóricos, metodológicos, suas visões de mundo. Nessa construção criativa, a todo o momento, José Martins coloca os trajetos pessoais dentro de uma perspectiva do social, o “eu” é ao mesmo tempo o “nós”, e nesse rico processo, nos explica a lenta ascensão familiar e assevera categoricamente:
Ninguém subia na vida sozinho […] O progresso individual como marco da modernização e das possibilidades pessoais na sociedade industrial é ficção. Só família, nunca sozinhas, ligadas a grupos sociais e instituições, como a vizinhança e, eventualmente, uma igreja, qualquer que seja ela. Sem essas referencias, a vida fica muito complicada (MARTINS, 1994, p. 281)
Retomamos, outrossim, Paul Ricoeur (2010) nas palavras do professor mineiro José Carlos Reis, no que concerne ao seu entendimento sobre a narrativa ricoueriana: “A necessidade em mim e fora de mim não é só percebida, representada, mas assumida como minha situação, minha condição desejante no mundo” (REIS, 2011, p. 259). É assim, que nos parece, que o Sociólogo narra a sua história; ele cria, simultaneamente, uma teia social que denúncia e anuncia as suas próprias ideias para o futuro, diz-nos qual a sua “condição desejante no mundo”.
Esta narrativa autobiográfica é […] uma narrativa etnográfica, um documento e uma explicação, um entendimento do que se passou na formação da classe trabalhadora no Brasil, na perspectiva do testemunho e da experiência pessoal […] O passado não está tão longe assim […] (MARTINS, 1994, p. 441)
É um Sociólogo militante. Ao narrar a sua trajetória, parece, ele mesmo, não acreditar que tenha chegado tão longe do destino posto ao “moleque de fábrica”, que ao nascer foi levantado ao alto pelos braços do pai e vaticinado por este como futuro trabalhador de carpintaria. Tal história, contada muitas vezes por familiares, foi lembrada no momento do juramento em 1993 ao assumir a Cátedra Simón Bolivar da Universidade de Cambridge, na Inglaterra. Escreve:
Descobriríamos, então, que favelas, cortiços, bairros operários, vilarejos rurais, habitações isoladas da roça, estão cheios de crianças promissoras, que só precisam de uma oportunidade, como a que eu tive, para irem além dos limites sociais de seu nascimento. Certamente há, até mesmo, gênios potenciais nesses lugares do supostamente negativo (MARTINS, 1994, p. 453)
A narrativa começa em um lugarejo em Portugal, em 1974, quando já pesquisador, participa de um evento naquele país, decide, por conta própria, viajar para o interior, com o objetivo de conhecer a cidade de nascimento do pai. Ao chegar ao vilarejo, realiza a primeira das descobertas que exibirá ao longo do enredo do livro: seu pai era filho de padre. Descobre-se, em meio a uma história de tabus, e compreende o silêncio dos familiares: “silêncio constrangedor”, “envergonhado”. E, nesse ponto da narração, mais precisamente na página 56 da obra em destaque, ele expõe a fotografia do avô padre, no caixão de morte e nos deixa comovidos confidenciando: “foi assim que conheci meu avô” (MARTINS, 1994, p. 57).
A partir daí, José de Souza Martins, desenrola uma narrativa que apresenta os dois lados da família (paterna e materna), por meio de encontros com pessoas e objetos. Sua família se constrói no que o sociólogo diz ser um mundo de “[…] certo realismo fantástico da cultura e nas mentalidades populares” (MARTINS, 1994, p. 10); são pessoas (o autor, igualmente) que atravessam o século XX, no limiar de representações de mundos díspares: o industrial e o artesanal; o urbano e o rural; o letrado e o analfabeto.
Trajetórias inseridas na problemática dos des-territorializados que são os migrantes (os simples, os pobres, os corridos), que perdem as referências de espaço e tempo coletivos e têm que refazer-se cultural e socialmente para darem conta de novas demandas. José Martins de Souza reflete:
A cronologia dos simples estende-se pelo longo e lento tempo da formação da sociedade moderna, o tempo que nos junta e nos separa. Por isso, o voltar atrás para compreender o incompreensível agora e o possível adiante. Bem pensadas as coisas, é a finitude que dá sentido ao que começa na vida e na história (MARTINS, 1994, p. 10)
A história do pobre ganha sentido na história lenta e de longa duração, ocorrida no cotidiano do trabalho; o cientista social a desenha por meio das suas próprias experiências e de familiares no quadro, denominado pelo professor, como da cultura popular. Como no exemplo, da avó materna, da qual ouvia a crônica familiar que chegava até o século XVIII, memórias dela e de outros que a mesma ouvira contar ou ouvira dizer.
Encontra, o autor, dimensões culturais do cotidiano como a divisão do mundo do trabalho por gênero, mulher na cozinha e homem na roça. O trabalho infantil, dado certo na aprendizagem do pobre. Os laços de compadrio, entre fazendeiros e colonos, na Europa e depois no Brasil, esticados para o paternalismo nas relações operário e patrão, já no mundo da fábrica e do urbano. É o escritor de “Poder do Atraso” (1994) nos alertando na sua condição de “desejante” para a continuidade de uma Sociedade e Estado marcados pelo mando dos donos da terra e mantendo-se conservadora e clientelista na transição do mundo rural para o urbano.
Lembra-nos do “infanticídio involuntário” comum na vida dos pobres, exemplifica com um caso da própria mãe, que “furtara” o remédio para vermes reservado à irmã, pois o dinheiro só dava para comprar o purgante para uma das filhas. Na sequência, o autor divaga contando-nos, quando aluno do curso de Ciências Sociais e trabalhava no setor de pesquisas de mercado de uma grande empresa de leite em pó, teve evidências que o leite de um programa social destinado ao Nordeste do Brasil às crianças pobres, acabava consumido pelo marido/pai, com o argumento que era ele que trabalhava, portanto a necessidade de priorizá-lo com o melhor alimento.
Enfim, a obra de José de Souza Martins se propõe a ser uma autobiografia de uma criança e de um jovem, pois a narrativa se encerra pouco depois da sua saída da fábrica para tentar uma educação distante do mundo do operariado, escreve-nos, “Memórias de operários, sobretudo de operários-crianças, são certamente raras, se é que existem” (MARTINS, 1994, p. 448). Alguns trabalhos hoje vêm problematizando a “invisibilidade” da criança e do jovem nas pesquisas acadêmicas como de Helena Abramo e Lúcia Rabello Castro, ambas da psicologia. As Ciências Sociais também tem se interessado pelo tema, inclusive com a presença de simpósios temáticos e cursos de curta duração, em encontros da área e exemplificamos com o trabalho organizado pela historiadora Mary Del Priori “História da Criança no Brasil” (1999).
É inegável que, entre os muitos aspectos na obra de José de Souza Martins que podem chamar a curiosidade ou a atenção privilegiada do leitor, salientei dois, que me comoveram mais fortemente na leitura desta obra: os aspectos relacionados à própria narrativa de si do autor e a sua perspectiva de dar visibilidade a uma fase da vida do ser humano considerada “nublada”, tanto no que diz respeito à historiografia quanto na experiência de vida de cada um de nós.
Mas, existem ainda outros aspectos significativos no livro do sociólogo que merecem ser conferidos por diferentes leitores, como é caso das grandes personagens que surgem página a página como o avô postiço, o próprio pai, sua tia Anna e tantos outros; mas também o próprio autor o “moleque de fábrica” com sua astúcia diária.
Referências
MARTINS, J. S. O Poder do Atraso. São Paulo: Hucitec, 1994.
MARTINS, J. S. Uma Arqueologia da Memória Social. Autobiografia de um Moleque de Fábrica. São Paulo: Ateliêr Editorial, 2011, p. 57.
REIS, José Carlos. História da “Consciência Histórica“ Ocidental Contemporânea. Belo Horizonte: Autentica, 2011, p. 259.
RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. SP: Martins Fontes, 2010.
Ivaneide Barbosa Ulisses – Doutorada em História/UFMG. E-mail: ivaulisses@yahoo.com.br
MARTINS, José de Souza. Uma Arqueologia da Memória Social. Autobiografia de um Moleque de Fábrica. São Paulo: Ateliêr Editorial, 2011. Resenha de: ULISSES, Ivaneide Barbosa. “Foi assim que conheci meu avô…”: autobiografia da criança que nascerá para ser carpinteiro. Caminhos da História. Montes Claros, v. 17, n.1-2, p.241-245, 2012. Acessar publicação original [DR]