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The Familiarity of Strangers. The Sephardic Diaspora, Livorno, and Cross-Cultural Trade in the Early Modern Period – TRIVELLARO (LH)
TRIVELLARO, Francesca. The Familiarity of Strangers. The Sephardic Diaspora, Livorno, and Cross-Cultural Trade in the Early Modern Period. New Haven: Yale University Press, 2009. Resenha de: TAVIM, José Alberto R.S. Ler História, n.58, p. 235-235, 2010.
1 Em 1964 Susan Sontag escreveria um ensaio subversivo (para muitos), que designaria «Contra a interpretação». Nele considerava que a função da crítica de arte devia ser «mostrar como é o que é, ou mesmo que é o que é, em vez de mostrar o que significa»1.
2 De facto, é difícil não considerar esta obra como uma pièce d`art, inclusivamente quando Aron Rodrigue opina «This is a superb and sophisticated book…». O livro está escrito de uma forma aliciante, e estruturado quase artisticamente, interpretando a enorme e diferente massa documental de uma forma inteligente, até porque convence o leitor. De qualquer forma, tal não significa que seja de leitura fácil, pois o leitor passa por assuntos de teor diferente, de capítulo para capítulo, enunciados de forma densa.
3 Então a questão fundamental é que parece uma pièce d`art do ponto de vista da escrita e da complexa estruturação interna mas trata-se objectivamente de um livro de História, melhor, de histórias, que Francesca Trivellato tenta entrelaçar, como está espelhado no título. Daí podermos avançar para «o que é» e lançar hipóteses sobre «o que significa».
4 É uma obra essencialmente sobre Cross-Cultural Trade partindo da análise da documentação de uma firma judaica de Livorno no século XVIII? Não. O que a autora pretende explicitar de uma forma incisiva é que não devemos deixar de contextualizar muito cuidadosamente os nossos objectos de estudo, nomeadamente quando se utiliza um conceito que nasceu depois da pós-modernidade. Quando o livro se fecha e vemos o falhanço destas poderosas famílias de mercadores judeus de Livorno – os Ergas e os Silveras – por causa de um grande diamante não vendido ficaremos para sempre alerta sobre o uso anacrónico de determinada terminologia, como a de «firma judaica». Trata-se portanto de um livro cheio de preciosismos técnicos e de contextualizações que se espraiam ao longo de dez capítulos. Entre estes destacamos a introdução metodológica e historiográfica, que remete para os paradigmas destes estudos, como os de Philip Curtin e seus críticos; o capítulo com informação actualizadíssima sobre a complexa diáspora sefardita e sua prática negocial, nomeadamente no Mediterrâneo, uma área esquecida, como salienta Francesca, para o século XVIII, face ao desabrochar das potências do Norte, como os Países-Baixos e a Inglaterra; o tratamento das formas de transacção económica dentro da comunidade que acompanham intrinsecamente as transacções sociais que eram o casamento, o dote, entre outros; o acento na heterogeneidade das redes comerciais dos Ergas e Silveras, que abarcavam outros sefarditas, conversos, italianos e até hindus de Goa; a exploração temática do complexo comércio de troca entre o coral mediterrânico (com magníficas imagens da época sobre o processo da sua extracção) e os diamantes da Índia, e sobre os agentes envolvidos; e finalmente, como já foi referido, a tragédia final do grande diamante, nunca vendido e que arruinou os esforços de investimento das duas famílias de Livorno.
5 Pessoalmente encontrei a solução para questões que colocava há muito e para as quais não encontrava resposta satisfatória. Por exemplo, para o facto da diáspora dos Arménios, por comparação, atingir uma densidade humana e geográfica mais limitada no Ocidente. Por outro lado, a exploração da etiqueta nas letras dos mercadores, como factor de solidificação e controle social, mesmo fora do ethos judaico, era uma temática que esperava ser tratada há muito tempo e que aqui é focada magistralmente.
6 O que significa esta obra? Que a História Económica e Social não será a mesma, sobretudo para quem não está interessado na temática da Diáspora Judaica. Passo a explicar: para quem está interessado na temática da Diáspora Judaica e se mantém actualizado, já há muito que explora esta matéria vasta tendo em conta a diversidade das conjunturas, a heterogeneidade social dos parceiros, os jogos institucionais e culturais da credibilidade, e sobretudo sabe que a História Económica e Social da Diáspora Sefardita é não só indissociável da complexa História Cultural das várias comunidades, como também lhe é intrínseca: por isso, a detalhada e excelente obra de I.M. Bloom, The Economic Activities of the Jews of Amsterdam2 está datada, e o livro de Jonathan Israel, Diasporas within a Diaspora3, passou a ser referente. De qualquer forma, até porque nesta obra, como a autora assume, se trata de um estudo de caso como partida para uma História Global, a eficácia do caminho epistemológico acima enunciado está facilitado.
7 Quem não pretende estar interessado na temática da Diáspora Judaica porque chega a negar uma especificidade face à clássica História Económica e Social, que comporte a necessidade epistemológica de uma área científica designada Estudos Judaicos ou similar, ficou ultrapassado. Quem ler a obra de Francesca Trivellato tomará consciência que é caricato, em termos académicos, esgrimir hoje considerações científicas contra uma Historiografia Portuguesa – até Lúcio de Azevedo – que pretendia demonstrar a equivalência entre modernismo negocial e exclusividade étnica, que em alguns casos assentava em considerações eugénicas. Essa historiografia e outra devem ser devidamente contextualizadas e Francesca Trivellato demonstrou que estes cientistas sociais devem isso sim estar suficientemente actualizados para compreender o funcionamento cultural das relações internas de cada grupo em questão, no sentido de apreenderem as matizes das relações que entre eles se mantinham. Lucubrar acerca das potencialidade positivas de um grupo, no sentido de demonstrar que afinal, per se, ocupava um espaço económico-social de excelência outrora atribuído unicamente a um outro (por exemplo, o dinamismo dos mercadores cristãos-velhos face ao dinamismo dos mercadores cristãos-novos e judeus), transforma-se num empreendimento tão relativo como evidenciar parcerias, mesmo sem insistir que afinal nestas o peso de um grupo (por exemplo, os cristãos-novos) era menor do que se pensava. Com esta obra entendeu-se que era imprescindível, no âmbito da História Económica e Social, compreender o contexto social em que o grupo actuava, quais as potencialidades e limites da especificidade de actuação económica e social dos seus membros, dentro e fora da comunidade, e como tentavam lidar com as suas limitações e possibilidades, num determinado contexto, para rentabilizar as suas actividades junto de outros grupos, que no caso dos Ergas e Silveras, viviam em Amesterdão, no Médio Oriente e até na longínqua Goa – algo que o estudo social de um grupo utilizando com singularidade o cosmopolita conceito de elite tornaria redutor. Numa posição oposta, e perante o desfecho do diamante, seria até absurdo considerar, como ainda hoje se assiste em algumas paragens, que a atitude essencialista de mostrar a positividade de um determinado grupo, face a forças consideradas opressivas, é um trabalho de cidadania.
8 Pelo contrário, quando acabamos a leitura desta obra, ficamos com a sensação que da operacionalidade sobre a matéria apurada surgiu um objecto maior que transcende a História dos Ergas e dos Silveras (cheguei a esquecer-me deles em algumas páginas da obra): a da densidade social e cultural que preside a qualquer contrato económico, dificilmente observada na estrita História Económica – por vezes da Globalização avant la lettre – das formas de circulação dos produtos, do capital, do crédito, dos preços, etc. Assim, a História Económica Social torna-se Humana, ou seja o homem torna-se o seu principal objecto, e não o produto ou o gráfico. Ou parafraseando Hanna Arendt: «É com palavras e actos que nos inserimos no mundo humano»4. E qualquer transcendência interpretativa de teor económico, cultural ou até de transgressão política (caso da cidadania) fica verdadeiramente mais limitada.
9 Resta acrescentar algumas sugestões. Como é frequente para estudos de períodos mais tardios do Antigo Regime, falta alguma retrospectiva que tornaria este caso de Cross-Cultural Trade menos singular, sobretudo envolvendo judeus e o Oriente, e que provavelmente o incluiria numa tradição secular bem visível na relação entre Portugueses e grupos até de muçulmanos no espaço asiático, desde o século XVI. Por outro lado, constatando-se pela leitura da obra que é fundamental ultrapassar clichés que não passam pela perspectiva de Cross-Cultural Trade, tomada numa acepção mais dinâmica que tem em conta todos os contextos em que naquele as personagens envolvidas agem, seria necessário então aprofundar outra vertente de análise: no que respeita concretamente aos judeus sefarditas e conversos, e para além dos Ergas e Silveras, como se estruturam as diferentes dialécticas das relações sociais internas e junto de outros grupos sociais e poderes institucionais, que tornaram possível um secular envolvimento em Cross Cultural Trade’s, não tendo estes ao mesmo inflectindo, decisivamente, no desaparecimento das fronteiras sociais da coesão do grupo?
Notas
1 Susan Sontag, «Contra a Interpretação», in Contra a Interpretação e outros ensaios, Lisboa, Gótica, (…)
2 Herbert I. Bloom, The Economic Activities of the Jews of Amsterdam in the Seventeenth and Eigteenth (…)
3 Jonathan Israel, Diasporas within a Diaspora. Jews, Crypto-Jews and the World Maritime Empires (154 (…)
4 Hanna Arendt, A Condição Humana, Lisboa, Relógio d`Água, 2001, p. 225.
José Alberto R.S. Tavim – Departamento de Ciências Humanas – IICT