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O tráfico de Escravos Africanos: Novos Horizontes / Tempo / 2017
A escravização e o transporte forçado de africanos para as Américas possibilitaram a exploração intensiva da mão de obra de milhões de indivíduos, influenciando profundamente o desenvolvimento das sociedades americanas, das nações europeias diretamente envolvidas na colonização e das sociedades africanas escravizadoras e escravizadas. O tráfico de escravos e as lutas por sua extinção no século XIX foram fundamentais para definir as identidades de negros e brancos, legando importantes consequências socioculturais no mundo atlântico. Por isso, esses temas seguem inspirando profícuos trabalhos nos campos das ciências humanas, notadamente na história. Desde o lançamento do banco de dados Voyages (<slavevoyages.org>) em 2008,2 esses estudos ganharam uma ferramenta central de investigação. Totalizando informações de aproximadamente 35 mil viagens pelo Atlântico, Voyages tornou possível redimensionar os dados até então conhecidos sobre o infame comércio de seres humanos. Hoje, sabemos que cerca de 12,5 milhões de indivíduos foram embarcados e transportados em condições degradantes em navios de mais de uma dezena de nações. Desses, apenas 10,7 milhões chegaram vivos aos portos de desembarque. Graças ao Voyages, sabemos atualmente também mais sobre a distribuição geográfica desses africanos, as condições a bordo dos navios e outras características importantes do tráfico que gerações anteriores de historiadores.
Além de ser uma monumental fonte de registros sobre o tráfico, Voyages tem influenciando a constituição de outros bancos de dados que vêm se demonstrando ferramentas fundamentais que possibilitam aos estudiosos enveredarem por investigações inovadoras que tanto têm contribuído com novos entendimentos da história da migração forçada de seres humanos. A cada pesquisa que se inicia, um minucioso perfil dessa atividade se desvela. Estudos recentes vêm investindo em aspectos originais que não foram contemplados na plataforma online, mostrando que, mais do que uma operação mercantil, o comércio de africanos provocou transformações em diferentes esferas conectadas pelo tráfico. E não apenas aquelas do contexto atlântico, pois foi um fenômeno de dimensões globais, impactando regiões a milhares de quilômetros de distância.
O objetivo deste dossiê é trazer em primeira mão alguns resultados atuais, inovadores e originais sobre o trato negreiro que vêm renovando a historiografia sobre o assunto. Assim, oferecemos aos leitores textos que tenham como tema principal o comércio de africanos a partir de perspectivas e abordagens diversificadas.
O artigo “Ending the history of silence: reconstructing european slave trading in the Indian Ocean”, de Richard Allen, que abre este dossiê, é inovador em vários aspectos. Primeiramente, por abordar com profundidade um tema que ainda permanece renegado pela historiografia do tráfico de escravos: o comércio de cativos realizado nas águas do Índico, rompendo com um padrão “atlântico-cêntrico”.4 Em segundo, por apresentar uma meticulosa análise de documentos recentemente inventariados da Companhia das Índias Orientais Britânica dos séculos XVII e XVIII e de viagens francesas e portuguesas pela localidade, cobrindo um período que vai de 1670 aos anos 1830. Ao deslocar seu campo de estudo para o Índico, Allen propõe que os historiadores passem a analisar esse comércio como uma atividade global, e não apenas regional, dentro de uma imbricada rede mercantil, envolvendo comerciantes de diversas nações europeias e de outras regiões, bem como a escravização de milhares de africanos, indianos, malaios, chineses e outros povos que circundavam o Mare Indicum. Essas atividades impactaram de forma variada e generalizada os Estados e as sociedades locais. Allen revisita também o movimento abolicionista que tomou forma no Índico pari passu àquele do Atlântico, que propunha o fim do comércio de cativos e da utilização da mão de obra escrava, demonstrando, assim, as conexões existentes dessa atividade global. Na parte final de seu artigo, ele lança um estimulante desafio, apontando várias questões que ainda carecem de análises e abordagens mais aprofundadas para que a atividade mercantil escravista do Índico atinja a devida importância no âmbito da historiografia.
Estímulos a novas pesquisas relacionadas com tráfico de escravos também são sugeridos em “Patterns in the intercolonial slave trade across the Americas before the nineteenth century”. Escrito em coautoria por Gregory E. O’Malley e Alex Borucki, esse é o segundo artigo que compõe o dossiê. Nesse texto, os autores focam o estudo das rotas dos escravos no continente americano, outra dimensão da migração forçada de africanos repleta de lacunas a serem preenchidas pelos investigadores. Para muitos africanos escravizados, a chegada a um porto americano após uma dolorosa travessia atlântica não significava o fim da sofrida jornada, mas apenas uma etapa de um caminho que estava por ser concluído. A partir de uma análise qualitativa, os autores buscam esquadrinhar onde e por que as rotas de escravos se desenvolveram nas Américas. O foco da investigação recai sobre o período anterior às abolições do comércio de escravos britânico e norte-americano. Os autores elaboram uma tipologia para diferenciar as modalidades dessa atividade escravista. De forma geral, o tráfico intercolonial se dividia em duas grandes categorias, intraimperial e transimperial, com três ramificações cada, decorrentes das condições de tributação, de legalidade, da capacidade econômica e da política imperial. O bem-sucedido trabalho ora apresentado é um refinado arcabouço conceitual que nos permite enxergar com mais clareza os padrões da prática mercantil escravagista intra-americana. Não à toa, trata-se de um texto que reflete inquietações intelectuais de um grupo de historiadores partícipes de um projeto maior que busca desenvolver uma ampla base de dados intitulada Final Passages: The Intra-American Slave Trade Database. Inspirado pelo Voyages, esse conjunto de informações visa a levantar e tornar público elementos sobre as viagens de escravos pelas Américas. Assim, ao final do artigo, os autores incentivam que mais pesquisadores passem a se dedicar a essa modalidade da migração forçada dos africanos e de seus descendentes que tanto contribuíram para moldar as diversas sociedades americanas nas quais estiveram inseridos.
A modalidade intra-americana do comércio de escravos também é o objeto de análise do terceiro texto que compõe o dossiê, “O tráfico interestadual de escravos nos Estados Unidos em suas dimensões globais, 1808-1860”, de Leonardo Marques. Seu escopo analítico mira as tensões provocadas na esfera pública norte-americana causadas pelo tráfico interestadual no período posterior à abolição do comércio transatlântico nos Estados Unidos. Na primeira parte, Marques nos apresenta um minucioso debate historiográfico sobre a temática, com contribuições de pesquisas recentes que descortinam as relações entre a instituição da escravidão e do tráfico no sul dos Estados Unidos com o desenvolvimento do capitalismo global no Oitocentos. O acirrado debate pró e contra o tráfico interestadual norte-americano é escrutinado na segunda parte do texto. Aqui, ficamos sabendo o quanto essa questão sofria influência de processos atlânticos e hemisféricos. O tráfico doméstico norte-americano nos é apresentado como constituinte de uma rede mercantil mais ampla, que envolvia territórios no Caribe, África e Brasil, causando tensões diplomáticas internacionais, ao mesmo tempo que impactava sobremaneira o debate interno existente entre os defensores e os contrários ao tráfico e à escravidão no âmbito doméstico.
No século XIX, o debate em torno da legalidade ou não do tráfico de escravos calcava-se em argumentos de caráter econômico, mas também humanitários. Eram seres humanos, afinal, os transportados em condições degradantes pelas águas do Atlântico. Muito pouco se sabe ainda sobre a história de vida desses indivíduos que foram obrigados a realizar essa longa jornada, que muitas vezes se iniciava nos sertões africanos, estendendo-se até o interior do continente americano. O quarto texto do dossiê, “The slave ship Manuelita and the story of a Yoruba community, 1833-1834”, escrito por Olatunji Ojo, nos revela quem eram alguns desses africanos. Em plena era da abolição, a apreensão de um navio cubano em 1833 por forças anglo-espanholas fornece ao autor um caminho para descortinar o passado desses sujeitos. Por meio da utilização da base de dados African Origins (<www.african-origins.org>) e de outros materiais investigativos, Ojo estabelece quem eram esses escravos, suas origens, os trajetos por eles percorridos, os processos e o contexto de escravização pelos quais passaram na África, suas afinidades sociais e familiares pré-escravistas, bem como suas experiências no domínio da escravidão. Vale apontar o destaque dado pelo autor aos impactos causados pelo tráfico de escravos, acarretando guerras generalizadas, além do papel atuante dos africanos no processo de captura e venda dos escravos nas rotas mercantis da Iorubalândia.5 Por serem descritos nos registros coevos como sendo lucumis-ecomoshos,6 os sobreviventes que chegaram a Havana direcionam a investigação ora apresentada para a análise da questão identitária dessa região africana e de como essas mesmas identidades poderiam ser reinterpretadas no contexto americano. O artigo busca esquadrinhar também o processo de condenação do navio no tribunal antiescravista de Havana, de como os recém-libertos foram inseridos na ilha de Trinidad na condição de trabalhadores contratados ou aprendizes, causando repercussões trágicas na vida desses indivíduos.
Por fim, o texto que encerra o dossiê, “Domingos Dias da Silva, o último contratador de Angola: a trajetória de um grande traficante de Lisboa”, escrito por Maximiliano M. Menz, segue os passos da carreira de um importante agente do comércio angolano de escravos. Por meio da análise da biografia desse personagem, Menz soma esforços a uma ampla gama de trabalhos que vêm se dedicando nas últimas décadas a desvelar a complexa engrenagem que movia os negócios negreiros envolvendo agentes das praças de Lisboa, Rio de Janeiro e Luanda. Para tanto, o autor utiliza um vasto manancial documental calcado em um alicerce teórico-metodológico vinculado aos estudos da história econômica clássica e da micro-história. Assim, a trajetória que nos é revelada ilumina o modus operandi dos circuitos mercantis e de seus agentes, responsáveis pela migração forçada de milhões de africanos entre as duas margens do Atlântico Sul.
A publicação desse dossiê pela Tempo, portanto, contribui para a divulgação desses novos estudos, ampliando o espaço de debate e de interesse pela temática, rompendo com a ideia de que a escravização e o comércio de escravos africanos ocorreram exclusivamente na esfera atlântica. Ele também proporciona novos olhares sobre contextos diferentes nos quais a dinâmica escravista exerceu papel fundamental
Notas
1. Instituto de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) – Niterói (RJ), Brasil. E-mail: alexvieira77@gmail.com.
2. Departamento de História da Universidade de Rice – Houston(TX), EUA. E-mail: domingues@rice.edu.
3. Desde 2015, o banco de dados conta com uma versão em português. Uma primeira versão ainda em inglês fora publicada em 1999 no formato de CD-Rom pela Cambridge University Press.
4. Allen, em seu texto, menciona o historiador francês Hubert Gerbeau como tendo sido o primeiro a apontar a “história do silêncio” em torno do tráfico de escravos no Índico.
5. Região cultural africana do golfo da Guiné que compreende hoje parte da Nigéria, Togo e Benin, habitada pelo povo iorubá.
6. Designação aplicada aos falantes da língua iorubá em Cuba no século XIX.
Alexandre Vieira Ribeiro – Instituto de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) – Niterói (RJ), Brasil. E-mail: alexvieira77@gmail.com
Daniel B. Domingues da Silva – Departamento de História da Universidade de Rice – Houston(TX), EUA. E-mail: domingues@rice.edu
RIBEIRO, Alexandre Vieira; SILVA, Daniel B. Domingues da. Apresentação. Tempo. Niterói, v.23, n.2, mai. / ago., 2017. Acessar publicação original [DR]