From Africa to Brazil: Culture, Identity, and an Atlantic Slave Trade, 1600-1830 – HAWTHORNE (RBH)

HAWTHORNE, Walter. From Africa to Brazil: Culture, Identity, and an Atlantic Slave Trade, 1600-1830. Cambridge (U.K.): Cambridge University Press, 2010. 254p. Resenha de: MACHADO, Maria Helena P. T. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.34 n.67, jan./jun. 2014.

Entre os povos do litoral da Alta Guiné, quando alguém cai doente ou morre, considera-se necessária a presença de um jambacous – palavra em crioulo para designar adivinhadores, curadores, médiuns e outras figuras sociais participantes do mundo do sagrado – capaz de curar o doente ou pelo menos restaurar o equilíbrio social perdido como consequência da ação maléfica de feiticeiros, causadores do mal. Utilizando-se de poções, amuletos ou grisgris, assoprando, declinando palavras sagradas e realizando outras performances, o jambacous, muitos deles mandinkas, assumia um importante papel na restauração do equilíbrio social das famílias, linhagens e comunidades. Nos séculos XVIII e inícios do XIX, para essas comunidades costeiras, era medida de grande importância detectar os feiticeiros maléficos para retirá-los da sociedade por meio da pena de morte ou da venda do indivíduo no circuito do tráfico transatlântico de escravos.

No Pará da década de 1760, o escravo mandinka José foi chamado para curar a escrava bijagó, Maria, que estava gravemente doente. Para tal, José preparou uma mistura de plantas e a administrou pronunciando palavras incompreensíveis, como parte de um ritual complexo que incluía tanto o conhecimento herbalista quanto o contato com o invisível. Nada sabemos da história pessoal de José. O fato, porém, de o tráfico entre a Alta Guiné e a Amazônia – como bem mostra o livro From Africa to Brazil – ter colocado em circulação um grande número de feiticeiros, pode lançar luz sobre aspectos ainda desconhecidos e insuspeitados da rica história atlântica que entrelaçou as sociedades costeiras e das terras altas da Alta Guiné com as da Amazônia colonial, mais particularmente o Maranhão da segunda metade do século XVIII e primeiras décadas do XIX.

Sintetizado em enxutas 254 páginas, o livro escrito por um dos maiores especialistas na história da Guiné, Walter Hawthorne, lança luz agora sobre diferentes aspectos que condicionaram a história da montagem de uma economia escravista atlântica no Estado do Grão-Pará e Maranhão.

Como mostra o autor, foi a dinâmica do tráfico transatlântico que promoveu a recuperação da economia da Amazônia, ocorrida a partir da fundação da Companhia do Grão-Pará e Maranhão, em 1755, e até as primeiras décadas do século XIX. Analisando temas amplos e variados, o livro aborda a montagem e declínio de uma economia escravista amazônica baseada na mão de obra indígena, a estruturação do tráfico transatlântico – que permitiu a concretização das políticas reformistas pombalinas relativa ao desenvolvimento da cultura do arroz, principalmente no Maranhão da segunda metade do XVIII – e, finalmente, a estruturação de uma economia e uma sociedade escravistas na Amazônia.

A economia da Amazônia baseava-se, sobretudo, no labor que os trabalhadores escravizados da Alta Guiné desenvolviam no cultivo do arroz, trabalhando de sol a sol no inclemente clima tropical da região, em uma agricultura que sugava gigantesco volume de trabalho escravo, da etapa de derrubada da floresta à incessante capinação, colheita e beneficiamento do arroz carolina, o qual, muito apreciado pelos portugueses, encontrava um mercado consumidor voraz no ultramar. Assim, insisto, os escravos oriundos da Alta Guiné tornaram-se a base da economia e sociedade amazônicas do período. Os dados e análises dispostos nesse livro são ricos e variados, salvo engano o mais completo estudo a respeito da constituição da sociedade escravista transatlântica na Amazônia.

Entre a miríade de assuntos abordados por Hawthorne, dois aspectos sobressaem. Em primeiro lugar, ressalto a análise a respeito do tráfico de escravos, por meio da qual o autor corrige os dados disponíveis no The Transatlantic Slave Trade Database (www.slavevoyages.org). Utilizando-se de variados documentos – relatórios sobre tráfico de escravos, cartas, inventários de proprietários de fazendas e documentos eclesiásticos, entre outros, provenientes de ambas as regiões ligadas pelo tráfico transatlântico – Hawthorne mostra que o tráfico de escravos entre a Alta Guiné e a Amazônia, da segunda metade do século XVIII até meados do XIX, se desenvolveu principalmente à custa das sociedades costeiras e não das localizadas nas terras altas. Se, de fato, o tráfico engolia tanto populações de terras altas como costeiras – mandinkas, bijagós, papeis, balantas etc. – circunstâncias ligadas ao sistema social que produzia cativos acabaram por sugar majoritariamente grupos litorâneos. De fato, o livro discute como as sociedades costeiras da Alta Guiné se achavam particularmente sensíveis ao tráfico devido tanto à necessidade de consumo de instrumentos de ferro para a manutenção dos sistemas de irrigação e drenagem de águas nas áreas produtoras de arroz, quanto à dinâmica do sistema social de sequestro de indivíduos de etnias vizinhas e de perseguição de feiticeiros. As vítimas, vendidas aos agentes do tráfico local, a maioria destes “lançados”. Assim, From Africa to Brazil comprova que eram as sociedades costeiras que, subjugadas por suas próprias dinâmicas e demandas, se tornaram as mais fragilizadas frente ao tráfico.

Seguindo a interpretação proposta por Sidney Mintz e Richard Price, o autor argumenta que, mais do que o pertencimento a grupos étnicos específicos, a travessia do Atlântico produzia uma identidade pan-regional, estabelecendo profundos laços entre pessoas que usufruíam do mesmo universo cultural mais amplo, mas que, em suas sociedades originais, haviam permanecido separadas por pertencimentos étnicos específicos.

O segundo aspecto especialmente rico desse trabalho se materializa na discussão do sistema de produção de arroz e, neste, o papel desempenhado pelo trabalhador escravizado da Alta Guiné. Opondo-se à tese do “arroz negro”, desenvolvida por Judith Carney no livro Black Rice, cujo argumento central gira em torno da continuidade dos métodos e técnicas da produção desse cereal entre a África e as colônias das Américas, este livro documenta a descontinuidade entre o tipo de cultivo de arroz praticado nas terras alagadas da região costeira da Alta Guiné, que exigia um importante conjunto de saberes detidos pelos homens, e a agricultura de queimada e derrubada – a coivara –, dominante no espaço colonial amazônico dedicado à rizicultura. O que sugere este livro é que o sistema de plantio de arroz desenvolvido na Amazônia seria fruto da conjugação de saberes variados, provenientes dos indígenas, portugueses e, certamente, também dos trabalhadores provenientes da Alta Guiné– sendo, por seu caráter multicultural, mais bem conceituado como “brown rice”, algo como “arroz pardo”, que em inglês produz um trocadilho com o termo usado para definir arroz integral.

Se os homens teriam seus saberes tradicionais quase excluídos do sistema de produção colonial, teria cabido às mulheres a tarefa de manter e transmitir conjuntos de práticas e saberes ligados aos hábitos de vida e costumes alimentares originários das terras costeiras da Alta Guiné, permitindo a manutenção de fortes laços entre as populações escravizadas na Amazônia e o pan-regionalismo das sociedades étnicas de Cacheu e Bissau.

Finalmente, em seus últimos capítulos, Hawthorne se volta para a discussão do cotidiano do escravo na sociedade maranhense, marcado por crenças e práticas espirituais originárias da Alta Guiné. Aqui o autor se dedica a traçar as continuidades e permanências de práticas, ritos e crenças que permitem o rastreamento das íntimas conexões existentes entre a Alta Guiné e a Amazônia, de ontem e de hoje. Embora, sem dúvida, ele aí apresente instigantes dados e análises, essa é a parte menos aprofundada do livro. Resumida em capítulos curtos e carecendo de um maior diálogo com a história social da escravidão na Amazônia e em outras regiões do Brasil, essa parte do livro contrasta com a riqueza encontrada nas outras, embora ofereça dados raramente encontrados em estudos nacionais sobre a região.

Em suma, o livro como um todo apresenta ampla e aprofundada análise de aspectos cruciais da montagem, desenvolvimento e declínio do sistema de escravidão africana na Amazônia e de suas conexões com povos, práticas e ritos de povos variados, mas sobretudo costeiros, da Alta Guiné. Por isso, From Africa to Brazil é um livro que merece ser lido por todos os interessados na história da África, do tráfico transatlântico, do sistema escravista e dos povos da Amazônia. Um livro que devia também ser traduzido para divulgar a história da escravidão numa região em que ela é ainda pouco desenvolvida.

Maria Helena P. T. Machado – Departamento de História, Universidade de São Paulo. E-mail: hmachado@usp.br.

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The rise of the Trans-Atlantic slave trade in Western Africa, 1330-1589 – GEEN (VH)

GREEN, Toby. The rise of the Trans-Atlantic slave trade in Western Africa, 1330-1589. Cambridge: Cambridge University Press, 2012. 323 p. SCHLICKMANN, Mariana. Varia História. Belo Horizonte, v. 29, no. 51, Set./ Dez. 2013.

Os estudos acerca do tráfico de escravos em África já realizaram avanços primorosos, contudo, ainda há diversas lacunas em seus anos iniciais, sobretudo no oeste africano. Neste sentido, o livro The rise of the Trans-Atlantic slave trade in Western Africa, 1330-1589, publicado em 2012 e ainda sem tradução para o português, é uma imensa contribuição que o historiador britânico Toby Green – conhecido no Brasil por sua obra Inquisição: o reinado do medo – realiza para a história desta região pouco estudada.

Green se dedica, como o próprio título do livro indica, a estudar a ascensão do tráfico atlântico de escravos, do século XIV ao XVI. A área pesquisada é o oeste africano, termo utilizado primeiramente por George Brooks1 para se referir à área da Alta Guiné (que vai do Rio Senegal até Serra Leoa) e Cabo Verde. O objetivo desta obra é mostrar a importância da região para a consolidação do tráfico atlântico de escravos e para o surgimento de culturas e identidades criadas a partir da experiência da diáspora.

Utilizando fontes orais e documentos escritos por árabes e europeus, o autor defende que, no início do século XIV, o poderio do Império do Mali passa a se estender por toda a região da Alta Guiné, ao mesmo tempo em que o comércio transaariano de escravos aumenta e se afirma na área. A prática do comércio de escravos pelo deserto vem junto com uma cultura de violência, que se insere no cotidiano das sociedades que conviviam com os processos de captura, comércio e utilização de escravos.

Para o autor, as populações locais, ao passarem pelo processo de malinkização (apropriação de elementos culturais e religiosos do Império do Mali), ajustaram-se rapidamente à nova cultura de violência imposta pelo comércio de escravos. Esta capacidade de rápida adaptação a uma nova conjuntura cultural, política, religiosa e comercial; a flexibilidade e tolerância com novos povos deram ares cosmopolitas à região; fato que foi fundamental para o surgimento e depois consolidação do comércio com os europeus.

A ideia central deste livro é de que o oeste africano teve um papel chave não só no tráfico, mas na própria criação do mundo atlântico e no surgimento de identidades diaspóricas em todo o planeta, pois ali ocorrem as primeiras trocas comerciais, culturais e sociais que serviram inicialmente como um padrão. Por isso, uma perspectiva global permeia todo o livro, no intuito de mostrar as múltiplas conexões e as relações interdependentes entre o local e o global. O conceito de “mundo atlântico” auxilia metodologicamente Green neste sentido, que o utiliza em congruência com Russel-Wood: um espaço além de fronteiras políticas ou nacionais, onde intercâmbios sociais, culturais, comerciais e demográficos ocorreram de forma intensa entre os continentes europeu, africano e americano.2

O livro está dividido em duas partes. Na primeira – cujo recorte temporal é de 1300 até 1550 -, é traçada uma história regional antes do contato com os europeus, mostrando como as relações entre os mandingas e os guineenses influenciaram a conjuntura social que propiciou o comércio internacional, uma vez que moldou as populações de forma a se tornarem flexíveis e receptíveis em relação a novas culturas. É com esta sociedade cosmopolita, que não impõe barreiras para a realização de negócios com estrangeiros, que os europeus fizeram os contatos iniciais, conseguiram estabelecer e consolidar trocas comerciais.

A preocupação central do autor é expor que os comerciantes locais daquela área ditaram inicialmente o ritmo das negociações, pois as mercadorias e rotas traçadas eram as mesmas do comércio interno. Neste primeiro momento ele também mostra como as interações e trocas culturais entre europeus e africanos foram mudando ao longo do século XV, e como a chegada dos cristãos novos de ascendência ibérica na região no século XVI acarretou em mudanças na dinâmica do comércio, do tráfico e do jogo político de alianças locais.

Mudanças ocorreram também com a chegada de judeus, que exercem um papel importante no contexto e também na formação do mundo atlântico, ressalta Green, e também José da Silva Horta e Peter Mark.3 Os judeus formaram uma comunidade comercial muito importante no final do século XVI, que causou grande impacto na região. Uma delas foi a reorganização das redes de poder, uma vez que os estrangeiros procuravam se inserir através de casamentos com mulheres das elites locais, como aponta Havik,4 e dependiam destas para o sucesso comercial. Green procura também desconstruir a visão da dominação das mulheres pelos homens ao mostrar o importante papel ocupado por elas nestas sociedades atlânticas do oeste africano.

A segunda parte abarca de 1492 até 1589, e procura integrar a história regional até então traçada com o mundo atlântico, mostrando como um mundo afetou o outro e vice-versa. É apresentada a explosão do contrabando e a extensão da rede do tráfico de escravos, que se expandiu rapidamente no século XVI. Também é apontado que a criação de sociedades crioulas nesse contexto só foi possível através das conexões entre forças locais e globais em ambos os lados do Atlântico, uma vez que para o estabelecimento de relações, os comerciantes tinham de adotar os costumes dominantes do local, ao invés de propagar ou preservar suas diferenças culturais, o que propiciou a criação de redes e identidades diaspóricas e do fenômeno da crioulização.

Para compor este livro, o historiador britânico fez uso de história oral, com o objetivo de entender as práticas culturais locais das áreas pesquisadas e também de vasto material do Arquivo de História Oral da Gâmbia. Também fez observações etnográficas em Casamansa, Guiné Bissau e Cabo Verde entre 1995 e 2011. Como fontes escritas, utilizou relatos de viajantes, documentação oriunda de arquivos sobre escravidão, tráfico, história atlântica e o Santo Ofício da Colômbia, Portugal, Espanha e do Vaticano e uma vasta bibliografia sobre o tema.

Ele defende que apesar de grande parte do seu trabalho estar pautado em fontes externas – principalmente as produzidas por europeus – isso não torna seu trabalho eurocêntrico, uma vez que ele é capaz de interpretar as fontes sabendo dos limites impostos pelo contexto e mentalidade da época. Acredita que as fontes orais utilizadas, pertencentes ao Arquivo de História Oral da Gâmbia, permitem a integração de perspectivas africanas em sua análise, além de uma perspectiva diferente sobre um mesmo episódio. Cabe observar que o autor procura durante todo o texto analisar os documentos de forma crítica, sem forçar os limites impostos pelos mesmos e pautando todos os seus argumentos em diversos tipos de fontes.

No texto, Green critica a tendência de se estudar a história do tráfico por um viés quantitativo, pois se corre o risco de subestimar o número de africanos deportados nos primórdios deste tipo de comércio. Contudo, ele não ignora as importantes contribuições oferecidas por bancos de dados como o Trans-Atlantic Slave Trade Database, apesar de preferir seguir uma perspectiva não quantitativa, que ressalta os aspectos e impactos sociais, culturais e políticos do comércio de escravos, tendo para isso um arcabouço conceitual pautado principalmente no conceito de crioulização.

A crioulização, ou creolisation5, mostra a corrente historiográfica adotada pelo autor, o qual entende que o contato entre as diferentes culturas e costumes fez surgir algo novo: as culturas e identidades crioulas ao redor do mundo, que mesmo novas podem preservar características dos povos que a originaram. Roquinaldo Ferreira também partilha desta mesma visão, mas alerta que ela “está longe de ser consensual”.6 Green deixa claro que sua perspectiva tem o caráter linguístico como ponto de partida para observar as transformações sociais e culturais que decorrem do contato entre europeus e africanos, pois “o desenvolvimento de uma nova língua pode refletir novas forças sociais. Onde as interações sociais e as trocas são intensas, as mudanças linguísticas seguem” (p.12).7

Ao colocar esta região no centro do mundo, o livro de Toby Green passa a interessar não só os especialistas em História da África, mas a todos que se interessam pelo tema do tráfico, da escravidão, da diáspora africana e da História Atlântica.

1 BROOKS, George E. Landlords and strangers: ecology, society and trade in Western Africa, 1000 – 1630. Boulder: Westview Press, 1993.
2 RUSSELL-WOOD, A.J.R. Sulcando os mares: um historiador do império português enfrenta a “Atlantic History”. História, v.28, n.1, p.20, 2009.
3 HORTA, Jose da Silva; MARK, Peter. Judeus e muçulmanos na Petite Cotê senegalesa do início do século XVII: iconoclastia anti-católica, aproximação religiosa, parceria comercial. Cadernos de Estudos Sefarditas, n.5, p.29-51, 2005.
4 HAVIK, Philip. A dinâmica das relações de gênero e parentesco num contexto comercial: um balanço comparativo da produção histórica sobre a região da Guiné-Bissau – séculos XVII e XIX. Afro-Ásia, n.27, p.79-120, 2002.
5 Toby Green utiliza diversos referenciais para a utilização deste conceito, entre eles: MINTZ, Sidney W.; PRICE, Richard Price. The birth of African-American culture: an anthropological approach. Boston: Beacon Press, 1992; BERLIN, Ira. From Creole to African: Atlantic Creoles and the origins of African-American society in Mainland North America. The William and Mary Quarterly, 3rd Ser., v.53, n.2, p.251-288, April 1996; HEYWOOD, Linda; THORNTON, John K. Central Africans, Atlantic Creoles, and the foundation of the Americas, 1585-1660. Cambridge/New York: Cambridge University Press, 2007.
6 FERREIRA, Roquinaldo. Ilhas crioulas: o significado plural da mestiçagem cultural na África Atlântica. Revista de História, São Paulo, n.155, p.19, 2006.
7 Tradução da autora. “The development of a new language may reflect new social forces. Where social interactions and exchanges are intense, linguistic change follows”.

Mariana Schlickmann – Departamento de História. Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte (MG). Brasil. Mestranda em História Social da Cultura pela Universidade Federal de Minas Gerais. Contato: mariana.schli@gmail.com.

The Atlantic Slave Trade from West Central Africa, 1780-1867 – SILVA (RBH)

SILVA, Daniel Domingues da. The Atlantic Slave Trade from West Central Africa, 1780-1867. New York: Cambridge University Press, 2017. 232p. Resenha de: ALFAGALI, Crislayne Marão Gloss. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.38, n.79, set./dez. 2018.

The Atlantic Slave Trade from West Central Africa conta em minúcia a história do comércio das gentes no auge de seu funcionamento, na principal região de procedência dos escravizados que foram deportados para as Américas, em especial para o Brasil. Esse fato, por si só, torna o livro imprescindível tanto para a compreensão das dinâmicas do tráfico e da escravização na África, quanto para a história dos africanos e seus descendentes na diáspora.

Os primeiros parágrafos escritos por Daniel Domingues dizem muito sobre suas escolhas teóricas e seu objetivo de unir métodos quantitativo e qualitativo. Na introdução narra-se a trajetória de Nanga, que foi penhorado por sua mãe para libertar um de seus tios, o qual, por sua vez, foi escravizado e vendido por adultério, uma ofensa que poderia ser punida com escravização, banimento e morte. Uma história repleta de reviravoltas que nos conta as experiências de escravidão e liberdade vivenciadas por Nanga e suas conexões com a era da abolição e a supressão do tráfico no Atlântico Norte. Acontecimentos concomitantes ao aumento da demanda por mercadorias primárias na Europa em franca industrialização e, consequentemente, à intensificação do comércio das almas da África Centro-Ocidental para as plantações nas Américas.

Nesse breve introito, delineiam-se alguns dos mais importantes diálogos historiográficos atuais sobre: os processos e critérios de captura e escravização; as origens dos escravizados que foram forçados a deixar a África Centro-Ocidental; o impacto do tráfico nas sociedades africanas e suas relações com a política interna dos Estados africanos; quais foram as motivações dos centro-africanos que participavam do tráfico; e as dificuldades e agruras enfrentadas por aqueles que foram atingidos pela maior migração forçada à longa distância da história.

Dessa forma, a fim de unir análises de cunho qualitativo com fontes seriais, o autor lança mão do cruzamento de informações fruto de seu trabalho como colaborador da maior base de dados sobre viagens escravistas “Voyages: The Trans-Atlantic Slave Database” (Eltis et al., s.d.) com as obtidas em variado conjunto documental. O livro traz listas e registros de escravizados e libertos produzidos pelas comissões mistas para a supressão do tráfico e pelas autoridades coloniais em Angola, arrolamentos de mercadorias que circulavam no comércio atlântico, relatos de viajantes, testemunhos de escravizados e libertos e toda sorte de documentos oficiais presentes em arquivos brasileiros, norte-americanos, portugueses, angolanos e britânicos.

Os dois primeiros capítulos esboçam o panorama geral das flutuações do comércio das almas de 1780 a 1867, bem como sua organização e agentes envolvidos desde a captura, escravização e transporte até a venda. Uma das conclusões apresentadas é a de que o número de escravizados dependeu mais de eventos relacionados à demanda da economia atlântica e a eventos como a rebelião de São Domingos e a abolição do tráfico inglês, que promoveram a expansão do comércio ibérico e brasileiro, que à oferta de cativos desencadeada por guerras provocadas pela expansão Lunda. A ênfase passa para o papel central desempenhado pelos comerciantes, intermediários e traficantes. Pessoas de variada procedência e condição social com ambições econômicas, políticas e de ascensão social, que não deixaram de influenciar diretamente a oferta e a demanda de cativos.

Domingues questiona a historiografia que associa as dinâmicas do trato dos viventes com processos de formação estatal no interior do continente africano. Especificamente para a historiografia sobre a África Centro-Ocidental, o volume e a origem dos escravizados que abasteciam o tráfico foram associados à expansão do Império Lunda e à formação do Reino Imbangala Kasanje.1 Tal como outros estudos (Ferreira, 2012Ferreira, 2012aCandido, 2013) permitem entrever, The Atlantic Slave Trade from West Central Africa relativiza a tese de Miller (1988) segundo a qual a fronteira da escravidão se moveria cronológica e progressivamente para o interior do continente africano. Isso porque o processo de escravização abrangeu também as populações costeiras, mesmo em áreas de ocupação portuguesa, que não estavam imunes ao sequestro, razias e outras formas de escravização (p.7).

Por isso, o Capítulo 3 traz uma das contribuições mais relevantes do livro, um estudo minucioso das origens dos escravizados que partiam da África Centro-Ocidental no século XIX. Há registros detalhados para 11.264 indivíduos, de 21 grupos linguísticos e 116 etnias, em sua maioria de regiões costeiras, de algumas áreas específicas próximas a portos de embarque, aspecto que ressalta as novas interpretações historiográficas acima citadas.

Ao estudar os etnômios predominantes, Domingues constata que escravizadores e escravizados frequentemente falavam a mesma língua e compartilhavam valores culturais similares. Contudo, salienta que esse processo respondia a pressões impostas pelo mundo atlântico. Por conseguinte, não é possível dissociar esse processo da crescente e complexa rede mercantil relacionada à demanda atlântica de produção de cativos para abastecer os portos das Américas.

Tampouco pode-se presumir que comerciantes e escravizados compartilhavam uma identidade única como o vocabulário africano erroneamente pode induzir; pelo contrário, não viam a si próprios com base em uma consciência comum de irmandade. “Eles [os escravizados] podiam falar a mesma língua que seus captores, viver próximo a eles, adorar as mesmas divindades, mas eles ainda assim poderiam ser considerados ‘de fora’ (outsiders)” (p.99, trad. nossa). Para o autor, esse “senso localizado e restrito de identidade” teve consequências desastrosas sobre algumas sociedades, como no caso do impacto demográfico do tráfico no Ndongo. Algo diferente do que foi visto para as populações Umbundu. Isso mostra que as consequências do tráfico foram desiguais nas diferentes sociedades africanas.

As tabelas, mapas e anexos que trazem a descrição dos etnômios dos escravizados são recursos fundamentais para composição mais abrangente da presença e das contribuições dos falantes de línguas bantu na constituição das sociedades americanas.

Os Capítulos 4, 5 e 6 buscam o ponto de vista africano do tráfico de escravizados. Em outras palavras, analisam como as concepções das sociedades africanas de gênero e idade, por exemplo, tiveram peso relevante na determinação do perfil demográfico dos escravizados que eram vendidos na costa. Havia relutância em vender mulheres adultas para a travessia atlântica em razão de sua importância para as sociedades locais.

Ademais, o autor analisa as mudanças nos padrões de consumo das sociedades africanas relacionadas à adição de uma variedade de itens, como os tecidos asiáticos e europeus, a suas produções locais. Africanos de diversa condição social e econômica, e não apenas líderes políticos, engajaram-se no tráfico, motivados principalmente pelas recompensas materiais. Contudo, em termos gerais, os escravizados pertenciam às camadas sociais inferiores, incluindo prisioneiros de guerra, vítimas de rapto ou trapaça e aqueles escravizados por ofensas como roubo e adultério. Enfim, eram várias as formas legais e ilegais de escravização.

Neste ponto, uma maior aproximação dos estudos sobre as mudanças nas políticas internas dos sobados e de seus padrões culturais possibilitaria outras interpretações. Jan Vansina, por exemplo, associa a intensificação da prática do penhor em meados do século XVIII à concentração de poder em “matrilinhagens corporativas”, governadas pelos “mais velhos” da linhagem que passaram a dispor de seus dependentes como forma de eles próprios escaparem da escravidão (entregando o penhorado em seu lugar) ou para pagar dívidas e obter bens e riquezas (Vansina, 2005, p.18).

Por fim, as análises de Domingues se sustentam em amplo lastreamento empírico e profícuo diálogo historiográfico. Ao enfatizar a agência africana e seus meandros não deixa de lembrar como o legado do trato das gentes é um obstáculo na formação de nações como Angola e outros países que hoje se localizam na África Centro-Ocidental (p.15).

Referências

BIRMINGHAM, David. The Date and Significance of the Imbangala Invasion of Angola. Journal of African History, Cambridge/New York: Cambridge University Press, v.6, n.2, p.143-152, 1965. [ Links ]

CANDIDO, Mariana P. An African Slaving Port and the Atlantic World. Benguela and its Hinterland. New York: Cambridge University Press, 2013. [ Links ]

ELTIS, David et al. Voyages: The Trans-Atlantic Slave Database. [ base de dados on-line]. s.d. Disponível em: Disponível em: www.slavevoyages.org/ ; acesso em: 12 set. 2018. [ Links ]

FERREIRA, Roquinaldo A. Cross-Cultural Exchange in the Atlantic World: Angola and Brazil During the Era of the Slave Trade. Cambridge: Cambridge University Press, 2012. [ Links ]

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MILLER, Joseph. The Imbangala and the Chronology of Early Central African History. Journal of African History, Cambridge/New York: Cambridge University Press, v.13, n.4, p.549-574, 1972. [ Links ]

_______. Way of death: Merchant Capitalism and the Angolan Slave Trade, 1730-1830. Madison: University of Wisconsin Press, 1988. [ Links ]

VANSINA, Jan. The Foundation of the Kingdom of Kasanje. Journal of African History, Cambridge/New York: Cambridge University Press, v.4, n.3, p.355-374, 1963. [ Links ]

_______. Ambaca Society and the Slave Trade c. 1760-1845. Journal of African History, Cambridge/New York: Cambridge University Press, v.46, n.1, p.1-27, 2005. [ Links ]

1Esse assunto foi mote de amplo debate representado sobretudo por VANSINA (1963), BIRMINGHAM (1965) e MILLER (1972).

Crislayne Marão Gloss Alfagali – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Departamento de História. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: crisalfagali@puc-rio.br.

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