Trabalhadores do mundo: ensaios para uma história global do trabalho – LINDEN (TES)

LINDEN, Marcel van der. Trabalhadores do mundo: ensaios para uma história global do trabalho. Campinas: Editora da Unicamp, 2013, 520 p. Resenha de: TERRA, Paulo Cruz. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.14 n.3, Set./dez. 2016.

Como pensar/escrever uma História Global do trabalho? Essa é a questão que permeia o livro Trabalhadores do mundo: Ensaios para uma história global do trabalho, de Marcel van der Linden, publicado em 2013, pela Editora da Unicamp. Trata-se de uma tradução para o português de uma obra publicada originalmente em inglês, em 2008. O autor foi diretor de pesquisa do Instituto Internacional de História Social, situado em Amsterdã, e, assim como a instituição, se tornou uma referência em termos da história global do trabalho, cujas linhas gerais nos são apresentadas nesse volume.

A História Global do Trabalho consiste mais, segundo o autor, em uma “área de interesse” do que um bem-definido paradigma teórico. Linden propõe o estudo transcontinental, mais do que transnacional, dos movimentos sociais trabalhistas e das relações de trabalho. Por transcontinental entende-se colocar “todos os processos históricos num contexto mais amplo, por ‘menores’, em termos geográficos, que sejam esses processos” (Linden, 2008, p. 14), tecendo comparações entre diferentes países e/ou, principalmente, analisando as interações internacionais.

Ao enfocar as conexões globais, segundo Linden, a História Global do Trabalho se contrapõe ao nacionalismo metodológico e ao eurocentrismo presentes na história do trabalho produzida na Europa e na América do Norte. O eurocentrismo define-se como “o ordenamento mental do mundo a partir da perspectiva da região do Atlântico Norte”. Nesse sentido, a história da classe trabalhadora e dos movimentos trabalhistas dessa região foram vistas como acontecimentos separados, e quando era dada atenção a outros locais, “estes eram interpretados de acordo com os esquemas do ‘Atlântico Norte’” (Linden, 2008, p. 11). O nacionalismo metodológico, por sua vez, “funde sociedade e Estado”, naturalizando o Estado-nação.

A proposta de Linden para uma História Global do Trabalho aponta também para um conceito mais amplo de trabalhador. O autor dialoga diretamente com Marx, para quem o trabalho livre assalariado – no qual o trabalhador, enquanto indivíduo livre, dispõe de sua força de trabalho como uma mercadoria – era a forma de mercantilização do trabalho verdadeiramente capitalista. Contudo, os assalariados constituíam apenas uma entre as cinco classes ou semiclasses subalternas no capitalismo, que incluiria ainda os trabalhadores autônomos, “que são proprietários de sua força de trabalho e de seus meios de produção e vendem os produtos ou serviços resultantes de seu trabalho”; a pequena burguesia, “formada por pequenos produtores e distribuidores de bens que empregam um número reduzido de trabalhadores”; os escravos, “que não possuem nem sua força de trabalho nem suas ferramentas e são vendidas”; e o lumpemproletariado, “que é totalmente excluído do mercado de trabalho legalizado” (Linden, 2008, p. 30). Com exceção dos trabalhadores assalariados, os outros grupos foram considerados como historicamente menos significativos para Marx.

Linden ressalta que pesquisas empíricas em diversas partes do mundo apontaram, entretanto, que as proposições de Marx sobre a classe trabalhadora e a mercantilização do trabalho eram muito restritas. O autor argumentou que no capitalismo há “uma variedade quase infinita de tipos de produtores, e as formas intermediárias entre as diferentes categorias são definidas de formas mais fluidas do que nítidas” (Linden, 2008, p. 30). Ele indica, por exemplo, que os trabalhadores assalariados eram bem menos livres do que sugeria a visão clássica, e que existiam diversas maneiras de prender um empregado a seu emprego.

Considero a visão mais abrangente de classe trabalhadora como uma das principais contribuições do livro. Contudo, é preciso afirmar que outros historiadores, inclusive brasileiros, já chamavam a atenção para a ampliação do conceito de trabalhador, mesmo não estando ligados à História Global do Trabalho. Se, em 1998, Silvia Hunold Lara denunciava a exclusão dos escravos nas análises da história social do trabalho no Brasil (Lara, 1998, p. 26), o quadro tem sido alterado mais recentemente. Marcelo Badaró Mattos, por exemplo, afirmou que a experiência de convivência entre escravizados e livres foi fundamental no processo de formação da classe trabalhadora do Rio de Janeiro. Essa convivência teria ocorrido em diversos aspectos, como no mercado de trabalho, nas organizações criadas, além das ações coletivas. Segundo Mattos, os trabalhadores escravizados e livres conviviam tanto nas fábricas quanto na rua, além de partilharem outros espaços, como moradia, lazer, alimentação e transporte (Mattos, 2004, p. 62).

O Brasil, aliás, está presente em diversas partes do livro. O Grupo de Trabalho da Associação Nacional de História (Anpuh) “Mundos do Trabalho” é citado como exemplo de organizações surgidas no âmbito internacional, no período recente, que têm ampliado o estudo da história do trabalho. Além disso, o caso dos escravos ao ganho do Brasil é exposto como um tipo específico dentro da escravidão. Só que nesse caso há uma confusão causada pela tradução. Linden utiliza como referência um artigo de Maria Cecília Velasco e Cruz, que escolheu a expressão slaves-for-hire como tradução de “escravos ao ganho”. A versão brasileira do livro, por sua vez, traduziu a expressão em inglês como “escravos de aluguel”. Contudo, as expressões representam relações distintas: enquanto em uma os escravos são alugados pelos senhores, que recebem diretamente os proventos desse aluguel; na escravidão ao ganho, por sua vez, são os escravos que cobram pela execução de serviços e/ou venda de produtos e repassam os ganhos aos seus senhores, sendo permitido ao trabalhador cativo reter o que excedesse a quantia combinada previamente.

Além da discussão sobre o conceito de classe trabalhadora, presente na primeira parte do livro, a obra se debruça sobre a ação coletiva dos trabalhadores, entendida como “uma ação mais ou menos coordenada por parte de um grupo de trabalhadores (e, talvez, seus aliados), visando a atingir um objetivo específico, que eles seriam incapazes de alcançar individualmente, dentro do mesmo período de tempo e pelos meios a eles disponíveis” (Linden, 2008, p. 19). Assim, Linden aborda as variações do mutualismo, na segunda parte, e as formas de resistência, na terceira, que incluem as greves, os protestos de consumidores, os sindicatos e o internacionalismo operário. A quarta, e última parte, trata das contribuições das disciplinas adjacentes, como a teoria do sistema-mundo, de Wallerstein, ou o diálogo com estudos etnológicos, ao analisar especificamente os iatmul, um povo da Papua Nova-Guiné.

Ao longo do livro, somos apresentados a muitos exemplos de diferentes partes do mundo sobre os variados assuntos tratados. Aliás, chama a atenção a erudição de Linden, que domina uma vasta bibliografia, arrolada em impressionantes 81 páginas ao final da obra. A utilização dos exemplos mundiais é possível, segundo o autor, pois, apesar da diversidade e especificidades das experiências, “as formas de ação coletiva inventadas pelos trabalhadores subalternos de todo o mundo refletem uma lógica própria e bem definida, que é possível identificar e verificar” (p. 406). O autor apresenta justamente uma preocupação em buscar as frequências e tendências que podem ser agrupadas em alguns tipos básicos comuns.

Se os muitos exemplos das várias partes do mundo podem ser vistos como um dos pontos positivos do livro, eles também apresentam problemas. Para Leon Fink, as categorias altamente articuladas estabelecidas por Linden “tendem a ignorar grandes distinções entre Estado-nações e as suas políticas culturais”, bem como podem levar à perda do senso de “cronologia, periodização e turning points históricos” (Fink, 2010). Crítica semelhante foi feita por Fernando Teixeira da Silva, que indicou que a “justaposição de exemplos sacados de diferentes tempos e espaços tende a sacrificar a própria historicidade dos fenômenos analisados e a percepção da mudança histórica” (Teixeira, 2014, p. 360).

O livro de Linden é uma leitura instigante e propõe importantes reflexões para os interessados na história do trabalho. A História Global do Trabalho proposta por ele, por sinal, já tem dado importantes frutos pelo mundo. No Brasil, no entanto, ainda está engatinhando. De certo, um grande empecilho para o seu desenvolvimento é a falta de financiamento em nosso país para pesquisas que, nessa perspectiva, geralmente demandam amplos recursos para um trabalho em equipe. Infelizmente, tudo tende a piorar, já que o apoio ao desenvolvimento da ciência tem minguado cada vez mais.

Referências

FINK, Leon. Review of vand der Linden, Marcel. Workers of the World: Essays toward a Global Labor History. H-Net Reviews, julho 2010. Disponível em: <www.h-net.org/reviews/showrev.php?id=30764>. Acesso em: 15 de jul. 2016. [ Links ]

LARA, Silvia H. Escravidão, cidadania e história do trabalho no Brasil. Projeto História, São Paulo, n. 16, 1998. [ Links ]

LINDEN, Marcel van der. Trabalhadores do mundo: ensaios para uma história global do trabalho. Campinas: Editora Unicamp, 2013. [ Links ]

MATTOS, Marcelo B. Experiências comuns. Escravizados e livres na formação da classe trabalhadora carioca. Tese (apresentada ao Concurso para Professor Titular de História do Brasil) – Departamento de História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2004. [ Links ]

SILVA, Fernando T. van der Linden, Marcel – Trabalhadores do mundo: ensaios para uma história global do trabalho. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 34, n. 67, p. 357-363, 2014. [ Links ]

Paulo Cruz Terra – Departamento de História da Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: p003256@yahoo.com.br

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Trabalhadores do mundo: ensaios para uma história global do trabalho – MARCEL (RBH)

MARCEL, Linden Van Der. Trabalhadores do mundo: ensaios para uma história global do trabalho. Campinas (SP): Ed. Unicamp, 2013. 520p. Resenha de: SILVA, Fernando Teixeira da. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.34, n.67, jan./jun. 2014.

No Congo belga do final do século XIX, em sua viagem pelo coração das trevas do “homem moderno”, Joseph Conrad encontrou bacongos mortos de tanto trabalhar no assentamento dos trilhos da ferrovia do rei Leopoldo, assim como assistiu à fuga dos que se recusavam a ser recrutados. Em pleno século XXI, na República Democrática do Congo, uma matéria do New York Times constata que 90% dos mineiros trabalham em condições análogas à de escravo, para extrair tungstênio e estanho usados em aparelhos eletrônicos consumidos em diferentes partes do globo. Lamentavelmente, eles não constituem exceção. Min Min, pseudônimo usado para evitar retaliações, foi recrutado aos 19 anos em sua terra natal, Miamar, para trabalhar em barcos pesqueiros na vizinha Tailândia, na esperança de encontrar dias melhores, conforme seu “agenciador” lhe havia prometido. Ao chegar às docas, ele lhe disse: “sou seu dono”. Min Min se viu forçado a trabalhar até 20 horas por dia, de domingo a domingo, sem receber qualquer remuneração. Ao tentar fugir, foi capturado e torturado com anzóis. A boa notícia é que, após 9 anos de pesadelos, Min Min conseguiu escapar e retornar para sua casa. “Eu me senti livre”, disse ele (Potenza, 2014). Não teve a mesma sorte a maioria dos cerca de 30 milhões de trabalhadores submetidos à “escravidão contemporânea” em mais de 160 países, segundo levantamento de um relatório sobre trabalho compulsório no mundo atual (Global Slavery Index, s.d., p.7).

Bem sabemos que, do Congo da época de Conrad aos barcos de pesca da Tailândia de nossos dias, a escravidão “moderna”, que vicejou das Grandes Navegações ao século XIX, tornou-se proibida por lei. Mais do que isso, qualquer trabalho que não seja considerado “livre” é moralmente censurável. Entretanto, a escravidão continua presente. É como se algo tivesse saído diferente do combinado, mas essa impressão logo se desfaz quando percebemos que a história do capitalismo, desde a expansão do mercado mundial no século XIV, foi sempre a história do trabalho compulsório, por compulsão tanto física quanto econômica. Tal constatação constitui a essência de Trabalhadores do mundo, livro que Marcel van der Linden publicou originalmente em inglês, em 2008, e que acaba de ser lançado em português pela Editora da Unicamp.

Dono de extraordinária erudição, diretor por vários anos do prestigioso Instituto Internacional de História Social (IIHS), de Amsterdã, e conhecedor de diversas línguas, o autor encontra-se muito bem posicionado para propor uma “história global do trabalho”, termo que, segundo ele, foi cunhado pelo próprio IIHS. Van der Linden logo alerta que não se trata de um novo paradigma, uma escola historiográfica ou outra Grande Teoria. Em termos concisos, tal história é uma “área de interesse”. Em primeiro lugar, está o interesse em produzir uma história transnacional e transcontinental, que seja capaz de romper as barreiras historiográficas confortavelmente fincadas nas fronteiras dos Estados-nação, muitas vezes naturalizadas. Em um contexto expandido de processos históricos, podem-se examinar combinações e fluxos materiais e simbólicos que atravessam diferentes dimensões geográficas, bem como elaborar comparações para testar hipóteses antes elaboradas no interior dos quadros nacionais.

Igualmente importante é o interesse em desafiar definições reducionistas de “classe trabalhadora”, tão ao gosto das perspectivas deterministas e evolucionistas de estudos empreendidos no chamado Atlântico Norte, para os quais os países periféricos acompanhariam os “estágios” de desenvolvimento do centro do capitalismo, onde teriam predominado os trabalhadores assalariados em estado “puro”. Um arraigado pensamento teleológico crê que a escravidão, a servidão por contrato, o trabalho autônomo, doméstico, infantil e de subsistência seriam formas residuais de exploração do trabalhador, não subordinadas à lógica da mercantilização capitalista e, portanto, fadadas ao desaparecimento. Se o campo de visão se amplia para uma escala global, pode-se observar que todas essas formas de trabalho são coexistentes e, muitas vezes, complementares. Para van der Linden, “a base de classe comum a todos os trabalhadores subalternos é a mercantilização coagida de sua força de trabalho” (p.41, grifo do autor). Por isso, importa inventariar os motivos que levam ao uso desta ou daquela modalidade de exploração da força de trabalho, ou o impedem. Seria o trabalho escravo menos eficiente porque “uma pessoa incapaz de adquirir propriedades não pode ter outro interesse que não comer o máximo possível e trabalhar o mínimo possível”, como pontificava Adam Smith (p.75)? São questões como esta que o autor busca deslindar, não apenas do ponto de vista dos cálculos econômicos, mas também a partir de considerações sobre normas comportamentais, legais, políticas e morais.

Essa síntese recobre a primeira e mais instigante parte do livro. Em seguida, pouco mais da metade do estudo é dedicado a analisar as expressões de ação coletiva dos “trabalhadores subalternos” contra a dominação do capital. Num verdadeiro tour de force, com exemplos extraídos sobretudo de vastíssima literatura secundária produzida nos cinco continentes, van der Linden apresenta, na segunda parte da obra, extensa taxonomia de organizações de trabalhadores (sociedades de auxílio mútuo e cooperativas) e, na terceira, formas de resistência, como greves e internacionalismo operário (os sindicatos curiosamente integram esta última parte, talvez reproduzindo teses que demarcam e hierarquizam as fronteiras entre mutualismo e sindicalismo, embora os limites entre ambos sejam muitas vezes fluidos e mal definidos). Por meio de descrições infatigáveis, o afã tipológico da obra ordena, categoriza e define fenômenos comuns, ao mesmo tempo em que estabelece semelhanças e diferenças entre eles. As mais de duas centenas de páginas que catalogam espécimes extraídos de distintos tempos e lugares buscam regularidades, tendências, frequências e comparações que colocam à prova e controlam generalizações tentadoras. O leitor pode se servir de diversas formas desse impulso classificatório, como ler os capítulos separadamente, conforme interesses específicos (como o próprio autor sugere na Introdução), e utilizar as informações de fôlego enciclopédico como referência para eventuais consultas.

A última parte é um apelo ao diálogo interdisciplinar, em particular com a economia, a sociologia e a antropologia. Merece destaque o capítulo sobre a teoria do sistema-mundo, em grande parte inspirado em Immanuel Wallerstein e nas reações às suas reflexões. Tal teoria considera que, desde o século XVI, o capitalismo expandiu-se mundialmente, configurando um sistema que se caracteriza “por uma única divisão internacional do trabalho e múltiplos territórios políticos (Estados) organizados numa totalidade interdependente formada por um centro de trocas desiguais no comércio internacional, e por uma semiperiferia economicamente situada a meio caminho entre o centro e a periferia” (p.320, grifos do autor). Van der Linden reconhece que o conceito apresenta limites, embora possa contribuir para a construção de uma história global do trabalho, o que o leva a retomar as questões centrais da primeira parte do livro. Reexamina agora os variados e, via de regra, simultâneos “modos de controle do trabalho”, assim como as estratégias de resistência das classes subalternas na medida em que o conflito capital-trabalho encontra-se no centro do desenvolvimento do sistema-mundo. De especial interesse são os capítulos 13 e 14, respectivamente dedicados ao estudo da interdependência entre trabalho de subsistência e de produção de mercadorias e ao impacto da incorporação de uma etnia de Papua-Nova Guiné, na Oceania, ao capitalismo e, em particular, ao trabalho assalariado.

Os grandes contornos que Marcel van der Linden oferece para a configuração de uma história global do trabalho revelam as muitas potencialidades dessa “área de interesse”, mas também convidam a refletir sobre seus riscos e desafios. Trabalhadores do mundo se encerra com uma observação de E. P Thompson: “cada acontecimento histórico é único. Mas muitos acontecimentos, separados entre si por vastas distâncias de tempo e espaço, revelam, quando colocados em relação mútua, regularidades de processos” (citado na p.413). A assertiva justifica muito do que van der Linden desenvolveu durante a maior parte do livro, mas também chama a atenção para a própria noção de processo que uma descrição tipológica pode colocar à deriva. A justaposição de exemplos sacados de diferentes tempos e espaços tende a sacrificar a própria historicidade dos fenômenos analisados e a percepção da mudança histórica. Riscos como esses são, felizmente, evitados no sugestivo capítulo sobre “internacionalismo operário”.

Assim como a ampliação do conceito de classe trabalhadora deve estar no cerne de qualquer história global do trabalho, parece fundamental alargar também o que se entende por formas de ação e organização coletivas dos trabalhadores. Elas, certamente, não se reduzem às instituições formais. Celebrações, rituais, lazer, esporte e “pequenas lutas” nos locais de trabalho são fenômenos que também podem ser examinados em escala global, pois constituem expressões culturais e políticas que, em diversos momentos, se interconectam em âmbito transnacional, o que obviamente van der Linden não ignora, embora tenha escolhido tratar, sobretudo, de um universo institucional mais conhecido e documentado.

Como “globalizar” a história do trabalho sem desconsiderar devidamente as características dos Estados-nação? Para lidar com essa questão, é elucidativo o estudo de Leon Fink sobre os marinheiros ingleses e norte-americanos dos séculos XIX e XX. Talvez não haja categoria de trabalhadores mais “propícia” a estudos transnacionais que os marítimos, envolvidos diretamente na “economia-mundo” e exercendo papel de relevo no transporte e no mercado global de mercadorias. Eles singram mares e oceanos que perpassam os mais diferentes territórios nacionais e trabalham em uma indústria altamente competitiva que desafia nações e impérios inteiros que queiram regular em escala internacional seus negócios e, principalmente, as relações de trabalho. Esforços regulatórios via de regra fracassaram, e os trabalhadores permaneceram por longo período submetidos a maus-tratos físicos e impedidos de abandonar o trabalho, sob o risco de condenação por deserção, motivo pelo qual foram frequentemente comparados a escravos. Fink acompanha os debates parlamentares, as disputas políticas, a legislação, os embates coletivos e os sindicatos empenhados, entre outros aspectos, em criar um mercado mundial de trabalho mais uniforme e, assim, capaz de equalizar salários e condições de trabalho assentadas em divisões étnicas e raciais. Para dar conta de uma história da luta pela regulamentação do trabalho dos marinheiros na “longa duração” e nos dois lados do Atlântico, o autor precisou contextualizar justamente a “cultura política” dos dois países nos mais diversos períodos abarcados pela obra, assim como as diferentes tradições políticas, institucionais e legais de ambos os Estados-nação (Fink, 2011). Em suma, descrições taxonômicas podem transformar as especificidades dos Estados nacionais em epifenômenos.

Por outro lado, a depender do problema, do objeto de estudo e da abordagem, principalmente quando o intento é analisar longos processos históricos, como o da regulação internacional do trabalho, o que se perde é a “experiência vivida” dos trabalhadores. Importa, então, perguntar se é da “natureza” da história global do trabalho, ocupada com teorias como a de “sistema-mundo”, enfatizar os aspectos “estruturais” em detrimento da história “vista de baixo”. Como van der Linden assinalou, não foram poucos os que viram aquela teoria como determinista, eurocêntrica, fechada e avessa a incorporar os trabalhadores, assim como muitos que a abraçaram defendem que as ações coletivas dos subalternos se interconectam em escala planetária em razão da divisão internacional do trabalho, cabendo aos trabalhadores o papel de protagonistas (capítulo 12).

Estamos diante do complexo problema dos “jogos de escala”. Seja como for, há bons exemplos que mostram a possibilidade de se articular as dimensões, por assim dizer, “macro e micro”, sem que se caia nas falsas dicotomias ainda em voga entre “totalização” e “fragmentação”, “estrutura” e “agência”, “poder” e “resistência”. Mais uma vez, histórias de marinheiros podem ser invocadas em nosso auxílio. Para Peter Linebaugh e Marcus Rediker, em estudo já consagrado (2008), os navios, nos séculos XVII e XVIII, foram tanto um espaço de dominação, tirania, insegurança e monotonia, quanto um meio de produção e ponto de convergência do radicalismo proletário do Atlântico Norte durante a formação do capitalismo. Náufragos, escravos, servos irlandeses, piratas, marinheiros, assalariados, quilombolas, ameríndios e plebeus de toda ordem interconectaram-se (para usar expressão cara a van der Linden) e fizeram circular experiências transcontinentais. Eles protagonizaram motins, revoltas e ondas revolucionárias, como foi o caso da revolução de São Domingos, cujo impacto, por razões que não cabem aqui elucidar, resultou na “nacionalização” dos grupos que formavam aquela “multidão” atlântica (“o que daí resultou foi nacional e parcial: a classe trabalhadora inglesa, os negros haitianos e a diáspora irlandesa“, p.300). Nessa obra merecidamente incensada, a abrangência do conceito de “classe trabalhadora” é ainda mais expandida, os processos transnacionais são historicamente contextualizados, a periodização acompanha grandes mudanças do capitalismo e do Estado marítimo britânico – tudo isso sem perder de vista a perspectiva dos “de baixo”.

Por fim, é preciso levar em conta que uma história global, sobretudo esta que se propõe a combater o eurocentrismo, requer também o desenvolvimento da internacionalização da história do trabalho em todos os quadrantes. Por um lado, muito já se tem feito nessa perspectiva, a começar pelos frequentes congressos internacionais para debater e publicar pesquisas afinadas com a proposta, tendo Marcel van der Linden e o IIHS como uns de seus principais animadores. Por outro, parafraseando o subtítulo de um texto influente de Carlo Ginzburg, as trocas são desiguais no mercado historiográfico. Nem sempre os protagonistas da história global conhecem o que está sendo realizado em todos os lugares. É evidente que se esforçam para isso, mas há limitações de ordem orçamentária, como as impostas até mesmo pelos Estados-nação do Atlântico Norte após a crise de 2008, os quais cortaram recursos para programas e instituições dos países do “capitalismo central” e limitaram ou mesmo inviabilizaram projetos em parceria entre Norte e Sul.

O mais importante, contudo, é ter em mente que, como bem observou van der Linden ao se referir ao idioma alemão, há línguas “ilegíveis”. Não seria o caso de reivindicar aqui pioneirismos nacionalistas nem listar com imodéstia as numerosas pesquisas – diversas em escala transnacional – que ampliaram o conceito de classe trabalhadora, rompendo, por exemplo, com as tradicionais narrativas da transição do trabalho escravo para o trabalho livre no Brasil. Pretendo apenas assinalar que é muito oportuna a publicação do livro em português, não apenas por suas propostas, mas igualmente pelo debate que pode provocar, de modo a levar os historiadores no Brasil a pensar sobre o quanto já foi feito e ainda pode ser percorrido na direção de uma história global do trabalho, mesmo que nem sempre com esse rótulo.

Referências

FINK, Leon. Sweatshops at Sea: Merchant Seamen in the World’s First Globalized Industry, from 1812 to the Present. Chapel Hill: The University of North Carolina, 2011.         [ Links ]

GLOBAL SLAVERY INDEX. Walk Free Fondation, p.7. Disponível em: www.globalslaveryindex.org/report/; Acesso em: 22 abr. 2014.         [ Links ]

LINEBAUGH, Peter; REDIKER, Peter. A hidra de muitas cabeças. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.         [ Links ]

POTENZA, Alessandra. “21st Century Slavery”. The New York Times, Mar. 17, 2014 (“Upfront Magazine”, v.146, n.10, p.8-11).         [ Links ]

Fernando Teixeira da Silva – Departamento de História, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). E-mail: ftdsilva@gmail.com.

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