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De Nova Lisboa a Brasília: a invenção de uma capital (séculos XIX-XX) – VIDAL (H-Unesp)
VIDAL, Laurent. De Nova Lisboa a Brasília: a invenção de uma capital (séculos XIX-XX). Trad. Florence Marie Dravet. Brasília: UnB, 2009. 352 p. Resenha de: TORRÃO FILHO, Amilcar. De nova Lisboa a Brasília: a invenção de uma capital (séculos XIX-XX). História [Unesp] v.30 no.2 Franca Dec. 2011.
O professor Laurent Vidal, da Universidade de La Rochelle se debruçou sobre as cidades brasileiras ou luso-brasileiras em diversas publicações – como a nômade Mazagão, que atravessou o Atlântico, deixando o Marrocos onde era o último bastião português, passando por Lisboa e vindo aportar, finalmente, na Amazônia portuguesa em 17691 –, agora nos traz uma leitura de fôlego da construção de Brasília, nas comemorações de seus 50 anos. Trata-se de sua tese de doutorado defendida na Universidade de Paris III, em 1995, publicada em francês no ano de 2002 pelo Institut des Hautes Études de l’Amérique Latine. A primeira e mais evidente qualidade deste trabalho é recuperar o longo período no qual a capital brasileira foi projetada no interior de seu imenso território, desde a Nova Lisboa, que seria a nova sede do novo Reino Unido de uma corte no exílio, até a Brasília de Juscelino Kubitschek, saída do traço da arquitetura moderna diretamente para o planalto central. Além disso, o livro tem a preocupação de colocar uma questão importante, sobretudo no caso de Brasília, que está definida em sua introdução; se com Mazagão Vidal havia se perguntado para que serve uma cidade em suspensão e em trânsito, no caso de Brasília ele questiona: “Para que serve uma cidade quando ela não existe?” Questão que é acrescentada por outra, correlata: “A que corresponde essa imperiosa necessidade social de projetar ou fundar, mesmo no papel ou em palavras, as cidades?” (p. 11). Portanto, este trabalho trata destas duas dimensões fundamentais para a compreensão de Brasília, e de todas as capitais sonhadas e desejadas: a sua dimensão material, com as agruras de sua construção e os resultados urbanísticos de sua efetiva ocupação, mas também a sua dimensão projetiva, imaterial, os projetos realizados ou não, os traços de suas utopias que revelam os desejos, as ambições e os planos por trás de sua construção ou o que vai além de sua redução ao puramente utópico ou técnico, este momento, como define o autor, “intermediário, em que a cidade ainda não possui existência física, mas em que já deixou de ser simplesmente uma visão utópica” (p.11).
No caso de Brasília, cidade capital por definição e por projeto, cabe ainda indagar-se sobre o seu papel na construção de uma memória e uma identidade da nação que ela representa, ou do processo pelo qual “a identidade de uma nação ou de uma comunidade pretende espacializar-se”; o que coloca outra pergunta importante: “quem ou o que produz uma cidade para nela depositar uma memória” (p. 16). Não se trata, portanto, apenas de um projeto de cidade nova, é uma nova capital, e uma capital que deve redefinir o país projetando um Brasil moderno, desenvolvido, interiorizado, correspondendo a um “projeto de sociedade” (p. 18). Uma sociedade até então dividida pela antinomia sertão/litoral, que para muitos impedia o desenvolvimento de todas as suas partes; não por acaso, será a nova cidade chamada de a capital da esperança.
O livro está dividido em sete capítulos, seis dos quais dedicados a projetos para a construção da cidade capital que finalmente faria o sertão vencer a dominância do litoral. O primeiro diz respeito à Nova Lisboa, a cidade que seria construída para substituir o Rio de Janeiro como sede da nova monarquia, num momento no qual havia dúvidas em relação à qualidade da nova corte para assumir o papel de capital, por seu terreno pantanoso, seu clima úmido e cheio de insetos. A decisão de manter a capital no Rio de Janeiro levou a cidade a ser remodelada para adequar-se ao decoro de uma capital real, digna da monarquia portuguesa, reformas que são bastante conhecidas e deram grande parte da feição mais típica da cidade tal como a conhecemos. Entretanto, a necessidade de “interiorização” da capital não desaparece das preocupações geopolíticas e estratégicas, presentes nos projetos de Hipólito José da Costa ou de Antônio Rodrigues Veloso de Oliveira. A grande cidade portuária, para estes autores, não possui as qualidades requeridas a uma verdadeira capital, cuja criação se torna uma exigência de modernização, na qual o autor observa “um deslocamento da representação do espaço construído para o espaço mental, um deslocamento do conceito da cidade, como espaço político, lugar de trocas econômicas e sociais, para seu inverso imaterial, sua idealização” (p. 48).
O capítulo seguinte trata de projeto similar, já agora no âmbito da construção do Estado nacional separado de Portugal, a Cidade Pedrália, indefectível referência ao príncipe, depois imperador, Pedro I, homenagem de seu idealizador, o desconhecido Paulo Ferreira Menezes Palmiro. A nova capital era parte de um projeto de interiorização e povoamento do imenso interior, o “desertão” brasileiro, de José Bonifácio, o Patriarca, bem como uma estratégia para garantia da unidade territorial e a sua consequente definição da nacionalidade brasileira. Não por acaso a sua localização teria como “coluna vertebral”, diz o autor, o rio São Francisco, o rio da unidade nacional para muitos (p. 61). Apesar destes projetos, para Vidal, a permanência do Rio de Janeiro como capital imperial “se inscreve na lógica do projeto geopolítico definido pelo imperador: inserção da jovem nação brasileira no mercado comercial internacional”, com a necessidade de manter a capital num porto e seguindo a política imaginada por João VI, a “vocação do Brasil como nação ‘européia'” (p. 63). Processo coerente com outra interiorização, diferente da projetada aqui na transferência da capital para o sertão, aquela descrita por Silva Dias, o enraizamento de interesses portugueses no Brasil e o processo de interiorização da metrópole no centro-sul da colônia, sendo a separação com Portugal resultado de um aumento das divergências entre os interesses portugueses no Brasil e o Reino2. É muito mais uma interiorização centrada no Rio de Janeiro, incompatível com a transferência da sede de governo para o interior. Vidal, neste capítulo, recupera o esquecido projeto ilustrado e racional da Cidade Pedrália, de Menezes Palmiro, que pretendia dar corpo a uma ambição social e geopolítica que rompia com os modelos urbanos adotados pelos portugueses até então (p. 70).
O projeto seguinte é Imperatória ou, como diz o título deste terceiro capítulo, o sonho de uma São Petersburgo tropical, seguindo as intermináveis dúvidas em relação à capacidade do Rio de Janeiro em representar bem seu papel de capital. Trata-se do projeto de Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro, que critica justamente o comprometimento das principais cidades brasileiras com o comércio internacional, com a exterioridade, não dando espaço à necessária construção da nacionalidade brasileira, que o Visconde buscou tanto na história quanto num projeto de capital. O interior, o homem do sertão seriam, na visão de Varnhagen, os instrumentos de redenção do país, Minas seria, então, a Castela do Brasil (p. 87). O Visconde de Porto Seguro se insere, ao mesmo tempo, num rompimento com o modelo colonizador português que convive com a sua inserção em seu modelo civilizatório lusitano, que afirma a posição preeminente da população branca no controle do aparelho de Estado. Seu modelo urbanizador vê na cidade não um quadro estático, mas “o local, o motor da modernização. Imperatória é assim a cidade do homem brasileiro reconciliado com a modernidade” (p. 100).
O quarto capítulo/projeto trata de Tiradentes, não a cidade mineira antiga São José Del Rei, mas um projeto republicano para uma nova capital que se torna um dispositivo constitucional na República. Trata-se, para Vidal, de um projeto de mudança que oferece “a possibilidade de planejar uma cidade especialmente destinada às elites, uma cidade sem povo” (p. 104). Em 1892, é criada a célebre Comissão de exploração do Planalto Central do Brasil, dirigida por Luís Cruls, diretor do Observatório Astronômico do Rio de Janeiro, que deveria demarcar a localização da nova capital. Para o autor, a mudança funcionava, para as elites republicanas, como uma forma de “conjurar o medo da cidade, da grande cidade como o Rio que, todo dia, inquieta um pouco mais os republicanos no poder” (p. 124-125). O medo, presente tanto em liberais como em conservadores, de que o crescimento da cidade seja acompanhado pelo direito à cidade, o direito à cidadania. Esta discussão se apoia muito menos no conceito de progresso da nação do que na construção de uma nacionalidade na qual a cidade grande aparece para muitos, como Euclides da Cunha, citado por Vidal, como um espaço demasiadamente cosmopolita, que impõe modelos culturais importados, que não traduzem o espírito brasileiro. Uma capital cosmopolita, nessa visão, não seria uma adequada cabeça da nação, não pensaria o país de acordo com os interesses brasileiros (p. 129). Concepção que teria muita fortuna no meio intelectual e acadêmico, das ideias fora de lugar, importadas, que não estariam aclimatadas à “realidade” e ao espírito nacional. Esta visão da capital se materializa não no Planalto Central e na substituição do Rio de Janeiro, mas pela construção de Belo Horizonte, paralelamente às reformas de Pereira Passos, nova adequação da capital carioca aos desígnios das elites. Em 1930, Teodoro Figueira de Almeida propõe no jornal A Ordem um projeto de nova capital chamado Brasília: a cidade histórica da América, demonstrando, segundo Vidal, um gesto deliberado de tentativa de “reescritura da história” por meio da forma urbana, que poderia materializar o sonho de uma “capital sem povo” (p. 142).
A sequência do trabalho de Vidal nos revela como, no tema da nova capital, perpassou praticamente todos os governos monárquicos ou republicanos. O quinto projeto/capítulo trata do período Vargas, que retoma a discussão sobre a transferência para o centro do Brasil de sua sede de poder. Para Vidal, a instauração do Estado Novo, em 1937, procura estabelecer um Estado verdadeiramente nacional, o que implica uma nova divisão territorial do país, o estabelecimento de uma nova geografia, o que culmina com a criação do IBGE, em 1938. Para o autor, está em processo também, no Brasil deste momento, uma “reavaliação do papel da cidade nas atividades de uma nação”, o que é visível, por exemplo, na construção de Goiânia, cujo plano levaria em conta a dupla natureza da cidade, “lugar de exercício do poder e de atividades econômicas e sociais” (p. 156). Em seu segundo governo, Vargas voltaria ao plano de transferência, criando em 1953 a Comissão de Localização da Nova Capital Federal (CLNCF), de evidente tarefa. Neste momento, gesta-se uma ruptura em relação às anteriores propostas, pois aqui não se trata mais de discutir a criação de uma sede administrativa para o país, mas de “dar coerência a uma sociedade não mais dividida, mas reconciliada em torno de um mesmo projeto de futuro” (p. 174).
Um projeto de futuro reconciliado e unificador parece ser o mote para o definitivo projeto de Brasília, obra capital do governo Juscelino Kubitschek, no feliz título de seu sexto capítulo. Vidal trata, aqui, de feitos conhecidos, dando especial atenção ao contexto histórico da construção de Brasília, bem como ao plano vencedor de Lucio Costa e Niemeyer. A qualidade deste capítulo está justamente na forma como as dimensões políticas e arquitetônicas são analisadas na construção, não apenas de uma cidade, mas da “idéia mesmo de capital”, afirmando um Brasil moderno (p. 202). Ou como ressalta adiante, o concurso de Brasília e a sua construção colocam um problema mais amplo do que a simples construção de uma nova cidade, o da “invenção de um urbanismo político adaptado a uma democracia liberal do século XX” (p. 220). O autor vê a possibilidade de um jogo de ambiguidades entre o projeto político e o projeto social de Brasília, ou uma cidade “esticada entre duas tendências: a ambição igualitária do urbanista e do arquiteto e a ambição liberal do político, tudo isso acobertado pela idéia de modernismo” (p. 240). Ou de uma propensão latina de aspiração à grandeza, audácia e imaginação com uma lógica de disciplina que vem tolher estes impulsos.
De Nova Lisboa a Brasília propõe uma leitura histórica da construção de Brasília não apenas no estabelecimento de uma linhagem cronológica dos diversos projetos e planos de transferência, que pela primeira vez foram tratados em seu conjunto como uma unidade, mas também da representação de uma certa imagem de Brasil, de determinadas expectativas deste gesto fundador da criação de uma capital que coincide com o “batizado” do país e que nasce sob o signo deste gesto tão simples de Lucio Costa em forma de uma cruz que designa o plano piloto, dando-lhe uma feição ao mesmo tempo mítica, mística e moderna. A inauguração de Brasília é um ato fundacional; fundação de uma nação moderna, reconciliada, a marca de uma utopia que o urbanismo moderno muitas vezes sonhou, mas poucas vezes pôde realizar, com toda a esperança e a frustração que envolvem as utopias, tão bem descritas neste trabalho que recupera o longo caminho de invenção de uma capital e de um sonho.
1 VIDAL, Laurent, Mazagão: a cidade que atravessou o Atlântico. Trad. port. Marcos Marcionilo. São Paulo: Martins, 2008. Primeira edição francesa de 2005.
2 DIAS, Maria Odila Leite da Silva, A interiorização da metrópole e outros estudos. 2. ed. São Paulo: Alameda, 2005.
Amilcar Torrão Filho – Professor Doutor – Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Rua Monte Alegre, 984, Perdizes, São Paulo, CEP: 05014-901. E-mail: amilcartorrao@uol.com.br.
Pour une anthropologie de l’espace | Françoise Choay
Françoise Choay é bem conhecida do público brasileiro, por vários de seus livros e artigos já traduzidos para o português, como A regra e o modelo, ou a Alegoria do Patrimônio. Este livro, recém-publicado na França, não é exatamente uma obra nova, mas a coletânea de trabalhos esparsos e de difícil acesso, coligidos para a coleção La Couleur des Idées, da editora Seuil. Embora escritos ou publicados entre 1985 e 2005, seus textos apresentam uma incômoda atualidade.
A própria autora, em seu prefácio, chama a atenção para a heterogeneidade dos temas tratados, mas adverte, o que a leitura confirma, que seus textos possuem uma “dupla unidade de objeto e de tempo” (p. 7). Uma unidade de temas, pois para ela edifícios singulares e arquitetura, cidades e urbanismo, monumentos e conservação patrimonial, projetos icônicos e projeto político, são formas e práticas múltiplas de uma mesma e única atividade, “cujo desdobramento no espaço natural permite às sociedades humanas edificar o seu meio próprio” (pp. 7-8). E uma unidade temporal, não necessariamente de suas balizas cronológicas, que vão do século XV de Alberti ao século XXI do patrimônio mundial, mas do período no qual estão inseridos os textos escolhidos, que a autora afirma estar marcado por uma revolução eletro-telemática, ou informacional, de enorme impacto sobre a cidade, o urbanismo e o patrimônio.
O livro está dividido em quatro partes: História e Crítica, O Urbano, Patrimônio e Antropologia; ainda que sejamos advertidos que esta classificação é em parte arbitrária, e estes temas se entrecruzem constantemente. Justamente a antropologia, que dá título ao volume, dá uma unidade conceitual a estes textos aparentemente heterogêneos. A autora insiste nesta “função antropo-genética da espacialização” que, segundo ela, está totalmente ausente do debate sobre a arquitetura e o urbanismo, mesmo nos órgãos de administração ou na “praça pública”, unânimes em “celebrar o caráter lúdico e mediático de todas as ‘artes do espaço’, devotados “ao deus da moda e das finanças” (p. 10). Ou seja, Choay procura destacar o caráter não-natural da arquitetura e da produção de cidades, nos quais a política e a ação do homem são constitutivas, muito mais do que uma técnica pretensamente científica e neutra.
Sua primeira crítica é endereçada, então, a Le Corbusier, num texto que o coloca em perspectiva. Seu interesse não é tanto a obra de Le Corbusier, como um determinado aporte moderno sobre a arquitetura e a cidade, representada pelo arquiteto suíço. Tampouco são as carências técnicas de suas obras construídas, embora não deixe de apontá-las; mas demonstrar o que denomina “a dimensão retórica do funcionalismo corbusiano” (p. 16). Justamente porque esta dimensão retórica é o aspecto mais importante da obra do arquiteto, responsável pelo que Choay considera a sua incompreensão da condição antropológica da urbanização; ou mais claramente, a ausência de uma dimensão verdadeiramente urbana de seus projetos de metrópoles (p. 21). A dimensão polemista de seus textos, mais abundantes que sua obra construída, e sua recepção altamente midiática, seriam responsáveis pelo alcance de seu trabalho no pensamento urbanístico, a despeito de sua incompreensão da real dimensão da técnica na cidade, ao contrário dos esquecidos Ildefonso Cerdà, que Choay não se cansa de recuperar, e Gustavo Giovannoni, ou de Camillo Sitte, acusado pelo mesmo Jeanneret de passadista.
Apoiado numa ideologia progressista, Le Corbusier presume, assim, a universalidade das necessidades do homem, por isso a possibilidade de se construir as suas famosas “máquinas de morar” e “máquinas de habitar”; mais do que isso, “trata-se de conceber, para o homem universal, protótipos reprodutíveis de cidades e não mais apenas edifícios isolados” (p. 25). Trata-se de uma modernidade universalizante e “desumana”, destinada a um “homem teórico”, portanto inexistente (p. 36). Mas o arquiteto suíço não é o único representante desta ideologia progressista, composta de “imperativos categóricos, de paralogismos, de amálgamas terminológicos, de referências a saberes não dominados, de metáforas falaciosas”, cujos autores se instauram como “detentores e enunciadores da verdade arquitetônica e urbanística”; dos quais o mais talentoso, e midiático, é hoje Rem Koolhas (p. 115).
Falta-nos, para Choay, um discurso crítico e autocrítico, ou um “discurso epistemológico” sobre a cidade e a arquitetura, que ela encontra, por exemplo, em Alberti, daí a unidade de objeto de seu texto apesar da enorme distância temporal. Por isso a sua insistência no caráter não prescritivo do De Re Aedificatoria, cuja finalidade não é descrever os meios que permitam “realizar uma série de projetos concretos, nem de propor uma coleção de edifícios ideal-típicos, mas de fazer compreender a significação do ato construtivo” (p. 379). Tanto em Le Corbusier como em Alberti, a autora insiste em seu caráter retórico, que não significa obviamente apenas “discurso”, numa acepção de senso comum, mas de uma preceptiva do ato de construir, uma teoria da arquitetura e do urbanismo (p. 379). A diferença é que Alberti reconhece a dimensão antropológica da construção de cidades e da vida urbana.
Apesar de acusada, como Sitte e Giovannonni, de passadista, por sua defesa da cidade já construída e do patrimônio arquitetônico, que ela toma o cuidado de distinguir do patrimônio histórico, mais ligado aos “abusos de uma indústria mundializada e mundializante do patrimônio” (p. 319), e que não tem, necessariamente, um “estatuto antropológico” (p. 266), Choay chama a atenção para o que considera um grande anacronismo atual: denominar os espaços urbanos nos quais habitamos hoje pelo conceito arcaico de “cidade” (“Ville”: un archaïsme lexical, pp. 148-153). Deveríamos, assim, admitir o desaparecimento da cidade tradicional e interrogar-nos sobre “a natureza da urbanização e sobre a não-cidade que parece ter se tornado o destino das sociedades ocidentais avançadas” (p. 167); o que denomina, baseada em Melvin Webber, de era pós-urbana, título de um dos artigos citados deste autor (p. 200).
Para não deixar dúvidas quanto ao caráter não-passadista de sua obra, chega a sugerir até mesmo algumas demolições vistas como necessárias: da Biblioteca Nacional (ou ironicamente a Très Grand Bibliothèque), por seu “programa anacrônico, concepção anti-funcional, implantação absurda, e custo de funcionamento insano”, a Ópera da Bastilha e o Ministério das Finanças, por sua “desestruturação sem apelo do tecido circundante” e inutilidade (p. 304). Claro que, assim como Alberti, seu texto não é prescritivo, nem um manual de construção de cidades. Suas sugestões polêmicas e impossíveis, nestes casos citados, são muito mais um destaque sobre a forma como determinadas intervenções urbanas não levam em conta um conhecimento antropológico da cidade e do patrimônio e uma profunda incompreensão da significação do ato construtivo, que ela identifica na obra de Alberti. Um debate premente para o qual, infelizmente, possui poucos interlocutores.
Amilcar Torrão Filho – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
CHOAY, Françoise. Pour une anthropologie de l’espace. Paris: Seuil, 2006. Resenha de: TORRÃO FILHO, Amilcar. Uma antropologia do espaço. Urbana. Campinas, v.2, n.1, 2007. Acessar publicação original [DR]