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Imagem e reflexo – religiosidade e monarquia no reino visigodo de Toledo (Séculos VI-VIII) | Ruy de Oliveira Andra de Filho
A Península Ibérica sempre ocupou dentro do mundo romano um espaço importante no tocante não apenas a sua localização, mas também como um dos mais ricos celeiros do Imperium. Com o fim político do Império Romano do Ocidente, a região, que, no passado, abrigou povos de etnias várias como lusitanos, iberos, celtas e celtiberos, vivenciaria até o século VIII a ocupação de seu território por dois povos de origem germânica, os quais para lá estenderam seus domínios após sua migração, a saber, suevos e visigodos. Estes últimos assentaram-se preferentemente na Hispânia romana, em um contexto sócio-histórico e religioso bastante peculiares. Exatamente sobre estas singularidades do mundo germânico em um território antes celta e romano debruça-se Ruy de Oliveira Andrade Filho.
Cada vez mais estudos historiográficos sobre a Alta Idade Média (ou Primeira Idade Média) [como queiram] realizados por pesquisadores brasileiros concentram-se sobre a movência, assentamento e contribuições de toda a ordem legados, apropriados, fundidos e refundidos pelo estrato populacional germânico no ocidente europeu. Vinícius Dreger, Mário Jorge Bastos, Leila Rodrigues da Silva, Renan Friguetto, apenas para citar alguns nomes, compõem esse espectro de investigadores. Caso nos ocupemos em especial com a Espanha medieval, o nome do professor da Universidade do Estado de São Paulo, citado no primeiro parágrafo, deve assomar como um dos principais e Imagem e reflexo – religiosidade e monarquia no reino visigodo de Toledo (Séculos VIVIII) preenche uma lacuna cronológica e historiográfica nesses estudos.
O medievista sintetiza em cinco capítulos e 253 páginas os acontecimentos sobre a relação Monarquia-Igreja presentes no desenvolvimento do reino visigodo de Toledo ao longo de três séculos e para alcançar este objetivo, divide seu trabalho em cinco capítulos teórico-práticos, nos quais expõe não apenas seu instrumental de trabalho e análise das fontes investigadas, como também seu vasto arcabouço teórico que subjaz as suas práticas de pesquisa.
No primeiro capítulo, “Uma Hispânia convertida?”, evidencia-se um levantamento crítico com opiniões de diversos renomados estudiosos acerca da extensão, penetração e aceitação do cristianismo na região, preferentemente entre os séculos IV e VIII. Ao lado da superstitio e das gentes que professavam o judaísmo e defendiam as heresias, assiste-se também a presença dos innumeri christiani (p. 40). O historiador aponta, com sólida erudição, as questões que perpassavam os citadinos de então, bem como a massa de camponeses, com suas visões e práticas muitas vezes diferenciadas da própria experiência cristã, em que escolhas (heresias) não ligadas à ortodoxia, como o caso do priscilianismo, também encontraram espaço de circulação dentro do território majoritariamente hispânico. Esse estado de coisas, assevera Ruy, serviu também como circunstâncias, nas quais as estruturas de Sippe visigodas foram lentamente sofrendo modificações em favor de uma monarquia consolidada. Para isso, a influência da Igreja e sua habilidade em amalgamar na imagem de unus Dei populus, unumque regnum, expressa no Terceiro Concílio de Toledo, foram fundamentais. O paulatino mas inexorável avanço do cristianismo sobre as práticas pagãs dos rustici fora aberto.
“Cultura e Religião no Reino de Toledo” é o título do segundo capítulo, no qual o binômio “cultura/religião” é abordado no reino de Toledo, porém até chegar no medievo, o autor elabora um percurso histórico dessa relação, iniciando sua viagem na Tardoantiguidade, mais precisamente, no século III, com a sacralização do poder imperial, reafirmado e remoldado a partir da implantação do cristianismo como religião oficial do império um século depois. Contudo, ainda sentia-se na Hispânia uma forte presença de traços pagãos dentre os senadores e os camponeses, o que, a posteriori, com o fortalecimento da monarquia dos visigodos e em especial após a conversão do rei Recaredo, ainda tenderia a se manifestar. Um fator que contribui sobremaneira para a difusão da religião “oficial” foi, sem dúvida, uma rede de “escolas episcopais, paroquiais e monásticas, cuja finalidade principal era … a formação de clérigos” (p. 80). Igreja e Monarquia apoiam-se mutuamente em Toledo, porém no tocante à saúde, física e d´alma, sente-se uma simbiose de práticas e costumes populares com a utilização de elementos cristãos, configurando uma união perene entre corpo/alma e lhe dando juízo de fé pública. Interessante notar que o historiador ressalta dois aspectos importantes nesse processo: o primeiro prende-se à conversão dos monarcas e de seu séquito mais próximo; já o segundo, a cristianização, ainda necessitava de uma implementação maior, pois o maravilhoso, o insólito, o estranho que fugiam à compreensão dos eclesiásticos ainda rodeavam e povoavam estratos significativos da população visigótica da Hispânia e de Toledo.
Nada mais justo, portanto, que o próximo capítulo “Religiosidade ou Religiosidades?” também apresentasse uma indagação como tema central. A questão do encontro entre modos de vivenciar o sagrado expresso pela dicotomia paganismo X cristianismo no território hispânico é debatida e o historiador aponta desde o início para o fato de que obras como os Capitula Martini ou o De correctione rusticorum, de Martinho de Braga, “não parecem estar dotadas de uma intenção apenas preventiva ou lutando contra lembranças residuais ou obscuras, ´meras impurezas´” (p. 103). Tais textos demonstrariam a coexistência de duas formas de religiosidade, uma oficial e outra ´popular`.
Para Ruy Andrade, o termo `religiosidade popular` situa-se na esfera de um embate que oporia o cristianismo, uma religião da cultura escrita, a um conjunto de crenças e práticas, que sobressaiu exatamente a partir da expansão dominadora do credo cristão, pois o estudioso defende para o período “a religiosidade como elemento catalisador dos descontentamentos, e não seu agente elaborador.” (p. 109) Portanto, vislumbrar-se-ia uma antinomia campo X cidade, em que o meio rural manteria tradições e expressões de religiosidade dissonantes daquelas das cidades, ligadas ao círculo real e de certa forma aliadas ao poder eclesiástico. Esta “cisão de fé”, se é que assim podemos denominar tal fenômeno no reino visigodo de Toledo, colocava em lados opostos a magia pagã e o milagre cristã, embora, afirma o historiador, questionando-se ao fim do capítulo, se é realmente possível falarmos de ´religiosidade popular´, na medida em que este termo parece englobar mais que simplesmente uma escolha ou prática não referendada pela Mater Ecclesia, revelando-se como um outro viés da religião do Cristo.
No próximo capítulo, “A Utopia Monárquica Visigoda”, discute-se a partir da conversão ao cristianismo dos visigodos do reino de Toledo ocorrida no ano 589 o projeto de referendo da organização monárquica do reino em consonância com a esfera religiosa, já que “A unidade política assentava-se, pois, na unidade religiosa.” (p. 132) A coesão política do reino atrelava-se agora ao apoio eclesiástico, que ensejava e ansiava por uma “utopia monárquica”, em que bispos e nobres visigóticos possuiriam papel de destaque nos assuntos régios em Toledo.
Para a realização em terra de um ideal cristocêntrico até o fim do reino visigótico de Toledo em 711, a Igreja lança mão da metáfora do corpus Christi para direcionar os papéis sociais de todos, reis e súditos, no céu e na terra com a intermediação dos clérigos, representantes do Criador entre os homens. Para o historiador, uma aliança é estabelecida, tanto em nível civil quanto em teológico, entre realeza e igreja, a ponto de, cita o pesquisador brasileiro, se chegar em certos momentos “à promulgação pelos reis da lex in confirmatione concilii” (p.142). A lei e a Lei fundem-se, e a consagração em Toledo do rei Wamba, em 672, é marco na história ocidental.
A sacralização da monarquia, as etapas, as funcionalidades e as características deste momento histórico descritas no capítulo IV somam-se agora no capítulo V, Religiosidade e Monarquia no Reino de Toledo os resultados visíveis e depreensíveis de tal processo. Partindo de Paulo e Isidoro de Sevilha ter-se-ia a divisão do homem em sua integralidade em três instâncias: “espírito/pneuma, que corresponderia à parte que estava reservada para a imortalidade; alma/psykhe, que animaria o corpo; e corpo/soma, [este último par apenas para Paulo] a parte degradável que desapareceria.” (p. 166) O historiador analisa com argúcia a inserção do homem – visigodo – dentro do plano cosmológico cristão, em que a teia cultural do cristianismo e suas expressões de religiosidade servem de base e de argamassa para ordenar o mundo, já que, como bem explica Ruy Andrade, “´Cosmo´, significando ordem, estrutura, mundo, universo, também é uma palavra entendida como ´caos´…” (p. 171), o que logicamente pressuporia a existência prévia de uma falta de coesão. As uerba Dei mostram, num mundo ordenado, as belezas da Criação e caberia ao homem ser o espelho deste ordenamento e deste encanto. A natureza deve se sujeitar ao melhor specimen forjado por Deus, a cidade é eleita o seu melhor abrigo, embora sobre a terra ainda pairasse o a possibilidade da sedição do Mal.
Tal perigo, que lembraria ao ser humano a presença do demônio, pode ser polarizado pelos binômios catolicismo/arianismo devido à associação ao Mal de reis visigodos que professavam a doutrina de Ário. Todavia, o rei cristão verdadeiro traria a salvação e a saúde ao seu povo, sendo ambos os termos derivados etimologicamente de salus. Enfim, o Homem e o Reino do plano divino ver-se-iam então personificados e revividos na figura do monarca e seu reino terrestre. Nesse momento entende-se o porquê do título Imagem e Reflexo, como bem sumariza o historiador: “É uma condição básica: a moldura do espelho não lhe distorce a imagem, confere-lhe uma forma.” (p. 192)
Em suma, lançando questões, propondo interpretações aos moldes de uma História Argumentativa, amparado em sólida bibliografia e em uma linguagem acessível a estudiosos e leigos, Ruy de Oliveira Andrade filho leva-nos ao reino visigodo de Toledo, em uma viagem que se encerra no “eterno retorno” do mundo germânico medieval à plasmação da Europa que em grande parte ora conhecemos e que cada vez mais é objeto de investigação de historiadores brasileiros.
Álvaro Alfredo Bragança Júnior – Departamento de línguas Anglo-Germânicas. E-mail: alvabrag@uol.com.br
FILHO, Ruy de Oliveira Andrade. Imagem e reflexo – religiosidade e monarquia no reino visigodo de Toledo (Séculos VI-VIII). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012. Resenha de: BRAGANÇA JÚNIOR, Álvaro Alfredo. Germanos na Espanha medieval – entre Reis e Deus (es). Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.13, n.1, p. 114-119, 2013. Acessar publicação original [DR]