Crianças dos países de língua portuguesa – MULLER (EH)

O que há de comum na experiência de crianças e adolescentes que viveram em países lusófonos situados em quatro continentes do globo nas últimas décadas do século XX? De comum, segundo a educadora Verônica Regina Müller, o fato de utilizarem o português como primeira ou segunda língua na vida cotidiana, as condições de pobreza que uma parcela significativa dessa população enfrenta ou, eventualmente, o acesso à educação escolar, mesmo que de forma precária. A obra, intitulada Crianças dos países de língua portuguesa: histórias, culturas e direitos, demonstra ainda, ao longo de seis capítulos, que há outro denominador comum. Desde a aprovação da Convenção Internacional dos Direitos da Criança pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1989, Angola, Brasil, Cabo Verde, Moçambique, Portugal e Timor Leste têm buscado, de diferentes maneiras e entre avanços e reveses, implementar a noção de direitos – sociais, civis e políticos – em favor de sua população infanto-juvenil. Essa tarefa exigiu (e continua a exigir) um esforço hercúleo do Estado, da sociedade civil, das famílias e dos indivíduos, uma vez que o processo de instituição da concepção de direitos humanos para os infantes de ambos os sexos implica grandes mudanças na esfera sociocultural, especialmente nas sociedades do continente africano.

As narrativas dessa faceta da história de crianças e adolescentes, com exceção do caso brasileiro, procuram dar conta, sobretudo, dos fenômenos ocorridos nos últimos trinta anos do século XX em cada sociedade em particular. Apesar de todos os textos se reportarem à história política dos Estados nacionais (processo de descolonização, independências e ditaduras/processos de democratização), os marcos temporais balizadores das análises são as legislações e/ou as políticas sociais instituídas, com ênfase nas relativas ao universo escolar. As narrativas são construídas a partir de dados obtidos através da análise do discurso de documentos de caráter oficial (em particular as legislações), etnografias, entrevistas e memórias. O ideário de infância e direitos humanos como discursos oriundos da sociedade ocidental e um olhar relativista em relação às noções de classe social, etnicidade e relações de gênero norteiam, do ponto de vista teórico, a escrita dos capítulos.

Além da História da Infância sob a ótica do nacional, os capítulos, em seu conjunto, descrevem um processo histórico transnacional, seja do ponto de vista dos usos do idioma português, seja do ponto de vista da transformação das crianças em sujeitos de direito.1 A junção dessas duas perspectivas no campo da história constitui, sem dúvida, o ponto forte do livro.

O capítulo sobre Angola, escrito por Eugênio Alves da Silva, é o único da obra que trata de crianças e adolescentes do meio rural. O autor justifica essa escolha porque, no período estudado, 42% da população do país habitavam no campo. Nessas localidades, meninos e meninas constituíam uma parcela importante da mão de obra familiar. A alfabetização através do idioma português na escola colocava em risco a “Educação Tradicional Africana” (ETA) (p. 47), especialmente a das meninas (p. 55). Para o autor, a resistência dos adultos das comunidades rurais à alfabetização no idioma português não está associada somente ao fato de ser a língua do antigo colonizador, mas a rupturas significativas, reproduzidas sobretudo no âmbito das relações de trabalho e das relações de gênero.

No capítulo sobre o Brasil, Verônica Regina Müller, Miryam Mage e Ailton José Morelli procuram fornecer aos leitores e leitoras um panorama da introdução dos direitos da criança e do adolescente no país durante todo o século XX. Nessa narrativa histórica, a ênfase recai sobre os avanços obtidos no período pós-Estatuto da Criança e do Adolescente. A partir de 1990, as políticas sociais, sobretudo as de cunho compensatório (bolsa família), possibilitaram que muitas crianças e adolescentes que habitavam nas cidades e no campo não se evadissem dos bancos escolares e tivessem um maior domínio do idioma português (p. 96). Para os autores, porém, ainda há muito a fazer no campo dos direitos. Entre as demandas, as mais difíceis de vencer são as de caráter adultocêntrico, presentes na sociedade brasileira (p. 93).

Os capítulos sobre Cabo Verde, produzido por Lorenzo I. Bordonaro e Redy Wilson Lima, e sobre Moçambique, por Elena Colona e Eugénio José Brás, discutem fenômenos da mesma natureza: os embates existentes entre os discursos relativos aos diferentes modos de ser criança e adolescente no mundo urbano daqueles países nos últimos trinta anos do século XX. Enquanto a noção de infância afirma que o “espaço esperado” para a criança e o adolescente é a escola e/ou o ambiente doméstico, as famílias pobres das cidades de Praia e Maputo mantiveram a prática de deixar seus filhos e filhas brincando/trabalhando pelas ruas das cidades. Lorenzo I. Bordonaro e Redy Wilson Lima entendem que há uma grande diferença entre “crianças de rua e crianças na rua”, na zona urbana de Cabo Verde (p. 127). Afirmam, de forma crítica, que conceitos aplicados por técnicos das agências internacionais, operadores do direito e jornalistas não dizem respeito às realidades africanas, mas se limitam às latino-americanas. Os autores não concordam com a transformação do modo de ser criança “tradicional” em um problema social, especialmente pela mídia. Já para Elena Colona e Eugénio José Brás, o deslocamento dos menores pelas ruas da cidade de Maputo está de longa data associado a estratégias de sobrevivência das famílias empobrecidas (p. 171).

Para Catarina Tomás, Natalia Fernandes e Manuel Jacinto Sarmento, a história dos direitos da criança em Portugal, desde o processo de redemocratização do país, em 1974, tem como marca os paradoxos. Se, por um lado, o país atingiu excelentes índices no campo da saúde infantil e expandiu a proteção aos menores de idade através da justiça, por outro, a violência doméstica ainda continuou presente entre as famílias; além disso, a taxa de natalidade decresceu bastante, e crescimento populacional, se houve, foi por conta da imigração. Os autores mencionam mais dois problemas relativos ao universo infantil que emergiram no período: a obesidade e o stress (p. 219).

O último capítulo procura historiar a introdução dos direitos da criança na “fraturada” sociedade do Timor Leste. Afonso Maia, Benvinda L. da R. Oliveira, Márcia Valdineide Cavalcante e Silvestre de Oliveira descrevem as diferenças em relação a esse processo em três períodos distintos da história daquela sociedade durante o século XX: o período da dominação colonial portuguesa (1515-1975), a época da “invasão” indonésia (1975-1999) e o pós-independência do país, em 2002. Os autores e autoras consideram fundamental, nos três períodos, o direito à vida, à educação e à saúde. Ressaltam, também, que o domínio dos idiomas português e, depois, indonésio, pelas crianças e adolescentes, tinha o poder de produzir a inclusão ou a exclusão social naquela sociedade (p. 246).

Esses processos históricos nos países lusófonos poderão, certamente, ser interpretados de muitas outras maneiras. Esta, todavia, cativa os leitores e leitoras pelo seu ineditismo no campo da História da Infância e da História Transnacional e por fornecer pistas para outras investigações. Estudos desta natureza devem ser feitos para que, além de produzir conhecimento, possamos constatar que outros “mundos” podem ser construídos.

1 Sobre a História Transnacional, ver Bayly, C. A.; Beckert, Sven; Connelly, Matthew; Hofmeyr, Isabel; Kozol, Wendy; Seed, Patricia. AHR conversation: on Tansnational History, The American Historical Review, 1 dec. 2006, vol. 111, no 5, p. 1441-1464.

Silvia Maria Favero Arend – doutora em História pela Universidade Fed eral do Rio Grande do Sul e professora do Departamento de História da Universidade do Estado de Santa Catarina (smfarend@gmail.com).


MULLER, Verônica Regina (org.). Crianças dos países de língua portuguesa: histórias, culturas e direitos. Maringá: Editora da Universidade Estadual de Maringá, 2011. 275 p. Resenha de: AREND, Silvia Maria Favero. Uma história dos direitos da criança nos países lusófonos. Estudos Históricos, v.25 n.50 Rio de Janeiro July/Dec. 2012.

Timor-Leste Por Trás do Palco / Kelly C. Silva e Daniel S. Simão

Publicado recentemente, o livro “Timor-Leste Por Trás do Palco – Cooperação Internacional e a Dialética da Formação do Estado” é ruma coletânea de textos produzidos por autores com as mais diversas formações e experiências na área de cooperação internacional, e produto do seminário internacional Cooperação Internacional e a Construção do Estado em Timor- Leste. O livro apresenta uma crítica às práticas da cooperação como instrumento de poder e de suas relações com as conjunturas históricas, poderes e culturais locais pré-estabelecidas, bem como os problemas decorrentes da atuação de diversas organizações na região.

Os autores organizadores possuem formação na área de antropologia, e realizaram uma intensa pesquisa de campo em Timor Leste. Algumas questões principais são lançadas ao longo da obra, e na tentativa de respondêlas, os textos trazem à tona as inúmeras facetas e os problemas derivados do campo da cooperação internacional e de sua atuação na reconstrução de um Estado.

Um das questões abordadas que instigam a reflexão do leitor é a atuação dos organismos internacionais no Timor-Leste, vista por algum tempo como exemplo fantástico de como uma cooperação internacional deve se dar, e que se transforma – a partir de uma crise militar – em um modelo de Estado fracassado. Essa é a idéia que a obra tenta refutar. Nenhum dos extremos deve ser tido como verdadeiro. Não se trata de um exemplo de perfeição, mas também não se trata de um modelo totalmente equivocado e implodido com tal crise. Os problemas, segundo alguns dos textos, são provenientes de dificuldades que estão presentes em qualquer outro tipo de atuação internacional, e os fatos acorridos não depõe contra toda uma construção positiva decorrente dos projetos empreendidos pelas organizações atuantes.

Ao identificar os problemas, o livro aborda questões fundamentais para a compreensão dos erros e acertos e porque não dizer, para correção e elaboração de novos projetos nas áreas de relações internacionais, política interna e externa, atuações militares – sobretudo da Força de Paz, com intensa participação brasileira – e projetos culturais na reconstrução de um Estadonação.

O livro, composto de vários artigos, é dividido em três partes. Na primeira delas, intitulada “Timor-Leste: passado, presente e futuro.”, procedeuse à uma análise do período que vai do início da ocupação colonial portuguesa até o acirramento da crise no país, passando diferentes momentos do longo período e principalmente pelos problemas causados pela exploração, pelos problemas das tentativas de descolonização, culminando com a crise militar e com a sua solução através da intervenção internacional.

Os portugueses estiveram presentes desde as conquistas do século XVI, de modo que, na reconstrução do país, tema principal do livro, torna-se imprescindível o papel da presença do passado colonial português, pois são inúmeros e importantes os laços estabelecidos entre a cultura portuguesa – bem como as influências intercontinentais inerentes a ela – e as populações locais.

Em 1975, a Indonésia anexou o Timor-Leste ao seu território. Como resistência, houve a formação de guerrilhas armadas e redes clandestinas de combate ao invasor, além da resistência diplomática formada por exilados na Austrália, Moçambique e Portugal. Em 1999 a Organização das Nações Unidas (ONU) propõe uma espécie de consulta popular para definir a anexação. Com resultado contrário, dá-se uma retirada em meio a massacres e a destruição de grande parte da estrutura física do país.

Em busca de uma solução, a ONU interveio através da UNTAET/ United Nations Transitional Administration in East Timor (Administração Transitória das Nações Unidas no Timor Leste), que incluía uma administração civil juntamente com uma força de paz, na tentativa de reconstrução e instauração de um governo autônomo. Além da ONU, outras organizações internacionais passaram a auxiliar neste processo, por exemplo, Banco Mundial, Banco de Desenvolvimento Asiático, Missões religiosas, ONGs, etc…

O segundo capítulo, sob o título “Timor-Leste e a cooperação internacional. Economia, política e administração pública”, é composto de artigos que remetem aos problemas da interferência externa nas questões econômicas e políticas do país, explicitando aspectos positivos e negativos de tal cooperação. São levantadas nessa parte, questões como o papel das instituições monetárias e bancárias, da jurisdição e outros campos da administração pública, além do modo como é tratada a educação e a cultura na reconstrução do país.

A interferência internacional no campo econômico, político, e sobretudo quando procura estabelecer um processo eleitoral, torna seu papel delicado.

Uma das autoras (organizadora) do livro, em entrevista ao Jornal Folha de São Paulo, afirmou que Portugal apoiava determinado candidato, ligado à FRETILIN, às eleições, enquanto os interesses australianos estavam destinados a outros candidatos.

Tal afirmação gerou desconforto em Portugal, e provocou a seguinte carta em resposta às afirmações da pesquisadora: “Li, com interesse, a entrevista hoje (10 de abril) concedida à “Folha de S. Paulo” pela Professora Kelly Silva, da UnB, a propósito do processo eleitoral em Timor- Leste. Sem querer retirar legitimidade à livre interpretação desenvolvida nesse texto sobre o posicionamento e motivações das diferentes forças em confronto, não posso deixar de discordar sobre a alusão que nela é feita ao papel de Portugal nesse contexto, e que o título escolhido sublinhou. O meu país tem demonstrado, ao longo de décadas, um empenhamento inquestionável, e unanimemente reconhecido, em favor do reforço das instituições democráticas timorenses. Isso pressupõe o natural respeito por quaisquer resultados que decorram do respectivo funcionamento. Procurar ligar a posição oficial portuguesa a qualquer facção política em Timor-Leste configura um processo de intenções que, em absoluto, rejeitamos, por não ter apoio em quaisquer factos concretos. Embaixador Francisco Seixas da Costa”1 As acusações não incluíam apenas Portugal, pois na mesma entrevista ela afirmou que havia claros interesses da Austrália em manter a fragilidade política no Timor, para facilitar a exploração de petróleo, bem como manterse em uma posição estrategicamente favorável do ponto de vista militar.

Não vem ao caso tomar uma posição em defesa de um dos lados. Porém, o que se assinala é que o envolvimento da comunidade internacional nas questões referentes ao país nem sempre são desvinculados de interesses econômicos e políticos. Daí a importância de uma regulação e verificação de um órgão superior quando se trata do problema da cooperação internacional.

Na terceira e ultima parte, intitulada “Construção do Estado”, são levantadas questões ideológicas relativas ao papel dos órgãos internacionais na reestruturação dos poderes e autoridades, e a publicação finaliza com uma série de discussões sobre a eficácia da cooperação concedida e as dificuldades enfrentadas pela comunidade internacional.

Apesar de ser uma coletânea com diferentes abordagens, o livro parece defender uma tese: a experiência no Timor-Leste não pode ser vista como um exemplo de extrema eficiência e eficácia, como foi divulgado e se sustentou por algum tempo, mas também não se trata de um total fracasso na formação do Estado através da cooperação internacional, como passou a ser visto após a crise militar. Trata-se, segundo os autores, de uma iniciativa com erros e acertos, com sucessos e insucessos, que devem ser analisados num contexto problemático que apresenta mudanças durante o processo de reconstrução do país. Outro ponto levantado está no fato do país ter grande diversidade cultural e conjunturas históricas específicas, o que torna o papel da cooperação internacional complexo e desafiador.

O livro aponta, não apenas nesta parte, mas em sua totalidade, para pontos positivos e negativos da cooperação internacional. Uma das críticas está no conflito idiomático que instalou-se no sistema judiciário do país. O anglo-saxão usado pela cooperação internacional passou a ter que conviver com o português e com o indonésio, além das dezenas de dialetos locais.

A cooperação internacional é vista como um instrumento político que interfere no destino político do país. Deve, portanto, ser analisada criticamente, pois ao invés de resolver problemas, corre o risco de gerar outros, maiores que os existentes, aumentando as injustiças, privilegiando grupos específicos em detrimento de outros. Ao analisar criticamente o papel de tal cooperação, não só em Timor Leste, mas em outros países, a leitura do livro sugere pensar em que medida ela ocorre de modo desinteressado e realmente comprometido com a reconstrução do país, ou seja, que aspectos a tornam um problema em certos campos de atuação.

Notas 1Carta enviada ao Jornal Folha de São Paulo e publicada também no site: http://timor-online.blogspot.com/2007_04_13_archive.html Acesso: 22 nov. 2007

Fabiano Luis Bueno Lopes – Doutorando em História na Universidade Federal do Paraná.


SILVA, Kelly Cristiane; SIMÃO, Daniel Schroeter. Timor-Leste Por Trás do Palco: Cooperação Internacional e a Dialética da Formação do Estado. Belo Horizonte: UFMG, 2007. Resenha de: LOPES, Fabiano Luis Bueno. Textos de História, Brasília, v.15, n.11/2, p.291-294, 2007. Acessar publicação original. [IF]

Discurso da Dissidência / Noam Chomsky

Talvez Chomsky seja mais lembrado por sua rica produção acadêmica na área da lingüística. Lecionando esta disciplina no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (EUA), desde 1955, tornou-se seguramente uma das maiores expressões no campo da lingüística. Hoje, através de seus inúmeros discursos políticos se credencia como uma das mais importantes vozes contra o establishment. Trata-se portanto de um especialista no estudo da linguagem com reconhecimento internacional que ora contribui com seus escritos e palestras para diminuir as injustiças sociais através de contundentes análises sobre a conjuntura mundial, particularmente sobre as conseqüências das políticas externas estadunidense e européia. Levando-se em conta o alcance que têm seus estudos face à problemática política atual pode-se dizer que é um autor relativamente pouco conhecido do grande público e, no caso brasileiro, também do público intelectual. Tendo em vista o seu indiscutível comprometimento em todas as situações que envolvem disputas internacionais e também a competência em tratar temas contemporâneos, mereceria maior atenção destes diferentes públicos.

O livro que escolhemos para comentar aqui é uma coletânea de diferentes artigos e entrevistas que apresentam um Chomsky ativista de direitos humanos e desmistificador da propaganda que objetiva controlar as pessoas nas mais diversas situações de exploração política e social.

Um exemplo do seu vanguardismo no tratamento de questões internacionais e do pragmatismo do seu trabalho pode ser ilustrado através da forma como abordou fatos da história recente do Timor Leste. Há quase três décadas não se via qualquer perspectiva de solução para os conflitos naquela região, tampouco qualquer voz entre os intelectuais que os denunciasse. Foi exatamente Noam Chomsky quem mais uma vez entrou em cena, denunciando a falta de comprometimento internacional para resolver problemas desta natureza. O silêncio jornalístico e literário mantido face aos desmandos indonésios no Timor foi quebrado através das palavras do nomeado autor. Para ele este terrível crime do século, pois: “…o assalto indonésio a Timor está nos lugares cimeiros, não só pela sua dimensão de holocausto – talvez o mais elevado número de mortes da população civil – mas porque poderia ter sido facilmente previnido ou pelo menos interrompido a tempo”, é um exemplo de como um pacto estabelecido entre governos e imprensa termina por beneficiar os agressores, colocando as vítimas na escuridão do esquecimento deliberado.

Nesta coletânea de textos pode-se portanto apreender muito da sua forma de pensar questões sóciopolíticas em perspectivas novas, que trazem às vezes consigo certo valor de previsão. Dizemos isso porque Chomsky escreve para intelectuais sem esquecer daqueles que estão fora de tal grupo, uma vez se tratar aqui também de pessoas interessadas em compreender o que de fato está acontecendo nas circunstâncias e regiões abordadas.

O autor afirmava já nos idos de 1996 que, ao contrário de outros conflitos como na Bósnia, Angola, Ruanda e Iraque-Kuwait, no caso do Timor, não havia ambigüidade nem complicações sobre a solução apropriada e nem necessidade da ameaça do uso de força para alcançá-la, nem mesmo a necessidade de sanções.

Fazia-se necessário, portanto, apenas o reconhecimento da mea culpa e a desistência dos cúmplices daquele crime. Certamente hoje se vê após toda a humilhação e sofrimento pelo qual passou o povo timorense, que aquelas nações outrora coniventes com a situação se viram acuadas pela opinião pública, cedendo espaço para a força de resistência da pequena população local. Mas o livro de Chomsky não se reduz ao problema do Timor. Há pois uma explanação de seus posicionamentos seguros face à política externa das nações ricas, em especial da norteamericana, encontrando novos paradígmas para analisar ações criminosas contra populações, muitas vezes esquecidas pela mídia. Os posicionamentos diferenciados “rebeldes e independentes” nos seus escritos e na sua fala mostram a distância que cultiva da maioria dos seus pares norte-americanos, o que não poderia deixar de lhe render grandes dificuldades no mercado editorial de peso daquele país e venha a justificar inclusive a dificuldade de difundir suas obras em língua portuguesa.

Além da reportagem onde mostrou à imprensa inglêsa a farsa dos países ricos envolvidos no genocídio de Timor Leste, alertando para a iminente extinção de um povo, caso países como os Estados Unidos, Inglaterra, Austrália continuassem cúmplices das investidas indonésias, Chomsky nos traz nesta obra outros critérios para compreender diversas problemáticas emergentes das relações internacionais como por exemplo, a investida das forças da OTAN no Kosovo ou do NAFTA na América Latina. Um tratamento detalhado é dado à reestruturação do livre mercado imposta pelas potências industriais cusadora de uma contínua deteriorização sócio-econômica dos países latino-americanos. Aborda os falaciosos benefícios da grande vitória do capitalismo mostrando suas verdadeiras conseqüências: (…) a porção dos bens do mundo controlada pelos países pobres e de rendimento médio desceu de 23 para 18 por cento entre 1980 e 1988. O informe do Banco Mundial de 1990 acrescentava que, em 1989, os recursos transferidos dos ‘países em vias de desenvolvimento’ para o mundo industrializado alcançaram um novo recorde. Calcula-se que o pagamento do serviço da dívida ultrapassou os novos caudais de fundos em 49,2 mil milhões de dólares, um aumento de cinco mil milhões de dólares desde 1988, e os novos fundos fornecidos pelos credores caíram ao nível mais baixo da década.

As imensas oportunidades do “novo mundo” pós Guerra Fria para a expansão e consolidação da democracia de mercado e vitória dos mercados abertos foi parte da retórica do governo Clinton no início da década de noventa e encontram uma análise no capítulo do livro intitulado de “Democracia e Mercados na nova Ordem Mundial.” A idéia da Guerra Fria como bloqueadora da política externa americana de dominação é contraposta ao fato de que no mesmo período nada impediu a continuidade e manutenção desta política.

No texto sobre “O acordo de Paz Para o Kosovo” busca esclarecer os denominados efeitos colaterais dos bombardeamentos americanos e da OTAN que se disseram vitoriosos após 10 semanas de luta com a rendição de Milosevic. Foi com esta ação bélica que os auto-proclamados “Estados esclarecidos” (Estados Unidos, GrãBretanha e alguns outros associados) afirmaram ter dado início a uma nova era na história da humanidade, guiados por ‘um novo internacionalismo, em que a repressão brutal de grupos étnicos não voltará a ser tolerada.'” Outros temas menos específicos, porém de igual intensidade, importância e atualidade no que tange às relações desiguais entre os denominados países ricos com aqueles do hemisfério sul e Europa Oriental encontram espaço no livro. O estrangulamento destas nações pelo rápido crescimento da dívida externa; os interesses de elementos de dominação interna naquilo que a Organização Mundial do Comércio defende; a política antidrogas norte-americana e sua relação com o terceiro mundo encontram análises à luz de novas vertentes. O livro é concluído com uma entrevista sobre “O Poder das Elites e a Responsabilidade dos Intelectuais” que concedeu a David Barsamian em fevereiro de 1988. Barsamian compilou posteriormente (no ano de 1993) três entrevistas por ele feitas com o autor em um trabalho intitulado “A minoria próspera e a Multidão Inquieta” traduzido por Mary Grace Figheira Perpétuo, editado no Brasil pela Universidade de Brasília (2a. edição, 1999). Trata-se de idéias complementares àquelas presentes no livro ora comentado e em especial às de seu último capítulo versando sobre temas diversos como o das minorias, do sionismo, da religião, dos limites da responsabilidade intelectual, do controle da informação pelas elites, dentre outros de semelhante envergadura.

As entrevistas, os artigos acadêmicos e as reportagens que formam o conjunto de textos interagem e se complementam. Anarquista confesso, Chomsky pode ser lido inclusive por não-anarquistas, pois sua linguagem é universal e não por menos é hoje considerado um dos mais conhecidos e influentes pensadores norteamericanos, apesar do ceticismo com que o trata a grande imprensa de seu país. Não por menos encontra o autor uma audiência cada vez maior e mais fiel para suas palestras sobre temas políticos, sejam elas proferidas nos Estados Unidos ou noutros países. Encontra-se ainda em anexo ao livro uma lista com os principais trabalhos de cunho político do autor, embora muitos deles acessíveis apenas em seu idioma de origem.

Antonio Caubi Ribeiro Tupinambá – Universidade Federal do Ceará.


CHOMSKY, Noam. Discurso da Dissidência. Tradução de Ana Barradas e Isabel Palha. Lisboa: Edições Dinossauro, 2000. Resenha de: Revista Trajetos, Fortaleza, v.1, n.2, 2002. Acessar publicação original. [IF].