Ética, direito e política: a paz em Hobbes, Locke, Rousseau e Kant – NODARI (C)

NODARI, Paulo César. Ética, direito e política: a paz em Hobbes, Locke, Rousseau e Kant. Paulus, 2014. Resenha de: RECH, Moisés João. Conjectura, Caxias do Sul, v. 22, n. 2, p. 401-407, maio/ago, 2017.

A tarefa que Paulo César Nodari se coloca é, em grande medida, ambiciosa, para dizer o mínimo. Sua pesquisa de tese de Pósdoutoramento que se constituiu na presente obra, tem como mote o “projeto filosófico da paz no contratualismo moderno” (2014, p. 298), na qual Nodari empreende profundos estudos acerca de autores clássicos do pensamento político-moral da modernidade: Hobbes, Locke, Rousseau e Kant – com notória ênfase no pensador de Königsberg. O inovador enfoque elaborado em Ética, direito e política… é justamente olhar sob um novo prisma os autores destacados, qual seja, o prisma da paz. Desse modo, Nodari desembaraçar-se da carga pessimista que os autores contratualistas carregam consigo, no que diz respeito à propensão da natureza humana à guerra.

Para tanto, o texto se desenvolve a partir de duas partes, que se dividem em seis capítulos. A Primeira Parte, intitulada: “O contratualismo moderno e o projeto filosófico da paz: Hobbes, Locke e Rousseau” é subdividido em três capítulos, que, igualmente, são divididos em partes de contextualização e de inovação. Leia Mais

A Clio Tucidideana entre Maquiavel e Hobbes: os olhares da história e as figurações do historiador – PIRES (HP)

PIRES, Francisco Murari. A Clio Tucidideana entre Maquiavel e Hobbes: os olhares da história e as figurações do historiador. Porto Alegre: Armazém Digital, 2014. PANEGASSI, Rubens Leonardo Panegassi. Sobre o estatuto epistemológico da História. História & Perspectivas, Uberlândia, v. 28, n. 53, 5 jan. 2016.

Hobbes on legal authority and political obligation – VENEZIA (CE)

VENEZIA, Luciano. Hobbes on legal authority and political obligation., 2015. Resenha de: HIRATA, Celi. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n.34, Jan./Jun. 2016

Em seu livro, publicado no ano passado, Luciano Venezia pretende fundamentar uma leitura deontológica da obrigação política em Hobbes. Trata-se de um comentário que se opõe à leitura mais difundida, leitura segundo a qual o principal traço da lei seria a coerção, de forma que os súditos seriam obrigados a obedecer à lei porque o seu cumprimento constituiria a melhor maneira de promover os seus interesses e não porque a lei obrigaria por si mesma. Venezia, em contraste, pretende argumentar que os súditos estão moralmente obrigados a obedecer à lei na medida em que as promessas e contratos possuem a força de obrigar por si mesmas, independentemente dos interesses do agente, sendo que há casos nos quais a ordem legal requer que os súditos ajam de um modo diferente do que o interesse racional ordenaria. A marca característica da lei seria, pois, a autoridade e não a coerção. Para o autor, o que está em questão é a defensabilidade mesma da teoria política de Hobbes, na medida em que uma interpretação que enfoca no caráter coercitivo da lei e no interesse próprio comprometeriam a relevância teorética de sua filosofia política e legal pelas seguintes razões: em primeiro lugar, porque teorias que fazem da coerção a característica fundamental da lei não são hodiernamente populares; em segundo, como H. Hart argumenta, a teoria hobbesiana da lei, de acordo com essa interpretação predominante, não daria conta de uma certa variedade de leis — como aquelas que conferem poderes ao invés de imporem obrigações — bem como da persistência das leis ao longo de diferentes gerações de legisladores; por fim, como S. Shapiro defende, um regime no qual as sanções de não-cumprimento constituíssem a única razão para a obediência seria logicamente impossível pela simples razão de que há um limite para as ameaças e sanções.

A interpretação de Venezia é fundamentada em três sub-teses, como o próprio autor formula nas considerações finais: em primeiro lugar, Venezia defende que as diretivas legais introduzem razões autorizadas para a ação, que, como tais, excluem e tomam o lugar de outros tipos de razão, como as razões de teor prudencial; em segundo, o autor argumenta que os súditos são moralmente obrigados a obedecer a quase tudo que é ordenado pelo soberano, mesmo quando o cumprimento da ordem é desvantajoso para a sua autoconservação; em terceiro, Venezia sustenta que a teoria contratual de Hobbes fundamenta as obrigações políticas de modo independente dos estados motivacionais dos súditos, sendo que as suas obrigações podem ir para além da promoção de seus interesses racionais.

Quanto ao primeiro ponto, Venezia argumenta que a noção de autoridade ocupa um lugar de destaque na filosofia legal e política de Hobbes e que ela se distingue normativamente de outras razões que influenciam o comportamento humano, como a persuasão e o poder: enquanto as diretivas coercitivas influenciam as ações pelo seu conteúdo (na medida em que um agente as segue para evitar um mal maior ou alcançar um bem maior), as diretivas autorizadas influenciam o raciocínio prático pela sua origem, sendo que um agente a segue porque uma pessoa ou instituição exige que ele aja assim, independentemente de seu conteúdo, mesmo quando o agente não acredita que o seu cumprimento seja vantajoso (incluindo no cálculo as sanções que podem advir de seu não-cumprimento). A distinção que está na base dessa diferenciação é aquela que Hobbes realiza no capítulo XXVI do Leviatã entre conselhos (counsels) e ordens (commands): enquanto os primeiros fornecem uma razão para agir em virtude de seu conteúdo, as segundas o fornecem em função de sua origem. A lei, na medida em que motiva a ação pela sua origem, tem, segundo Venezia, o propósito de interromper a deliberação prática e fornecer a razão relevante para a obediência. É nesse sentido que Hobbes de fi ne nos Elementos da Lei que uma ordem é uma lei quando “a ordem é uma razão suficiente para mover a ação” (EL, XIII, 6). É também nesse sentido que a sentença do árbitro exclui e substitui a avaliação pessoal, tornando-se a razão definitiva para agir. Sendo assim, as sanções pelo não-cumprimento não desempenham um papel central na concepção hobbesiana da lei, mas são apenas coadjuvantes. Venezia opõe-se, assim, à leitura analítica predominante sobre a obrigação, leituras como as de D. Gauthier, G. Kavka, J. Hampton, K. Hoekstra, que sustentam que o papel do soberano consiste em resolver o dilema do prisioneiro, superando a in fluência das paixões e aliando o interesse privado com o interesse comum por meio das sanções.

O argumento de que as leis seriam um tipo diferente de razão por meio da distinção entre ordens e conselhos, entre motivação pela origem e motivação pelo conteúdo é bastante convincente. Entretanto, fica a questão de se seria possível algo assim como interromper a deliberação para Hobbes. A alternância das imagens das consequências boas ou más de uma dada ação na mente ou dos apetites e aversões parece ser descrito por Hobbes como um processo universal, que se dá em todos os corpos animados. Este argumento deveria, pois, ser fundamentado não apenas na natureza da lei, isto é, no terreno político e legal, mas também no terreno antropológico.

Outro argumento que Venezia apresenta para defender que as sanções não são centrais na filosofia legal de Hobbes é que mesmo agentes que, por suposição, fossem perfeitamente racionais e morais, precisariam de autoridade para regular as suas ações, mesmo na ausência de sanções. A guerra no estado de natureza se daria, segundo a interpretação de Venezia, porque os homens discordam em suas interpretações particulares do que é válido ou razoável, isto é, devido à ausência de padrões do que é bom ou ruim e das ações que devem ser realizadas. A explicação do conflito não seria moral ou psicológica, mas residiria na falta de definições autorizadas de noções morais. Essa explicação do conflito abre espaço para uma filosofia política e legal que enfatiza a autoridade como o traço característico da lei. Embora toda lei envolva penalidade e as sanções sejam uma parte constitutiva da lei, trata-se mais de uma questão empírica do que conceitual, sendo que a ordem do soberano fornece por si mesma a razão para agir e as sanções introduzem apenas uma razão adicional para o cumprimento da lei, minimizando o risco de abuso e não-cumprimento. A coerção não seria, deste modo, indispensável na regulação das leis.

A despeito de centralizar na noção de autoridade, afirmando que é ela que caracteriza a lei e não a coerção, o autor não analisa a noção de autorização e de representação tal qual Hobbes a apresenta no Leviatã. A justificativa que ele indica é dupla: em primeiro lugar, o autor alega que a autorização não acrescenta nada de significativo para a obrigação contratual de obediência às diretivas do soberano; em segundo, ele afirma, seguindo nisto o comentário de P. Martinich, que a fundamentação da obediência na autorização e na alienação do direito natural são incompatíveis, na medida em que, quando uma pessoa autoriza uma outra, esta última apenas a representa, de modo que a primeira possui autoridade e permanece superior em relação à segunda, em contraste com a alienação. Ora, seria importante mostrar isso de forma mais fundamentada, já que não é essa a consequência que Hobbes parece extrair do ato de autorização. Uma vez que a noção de autoridade é central para a argumentação de Venezia, seria preciso, parece-nos, dar mais atenção a essa noção tal como ela é apresentada no texto de Hobbes.

Quanto ao segundo ponto, Venezia argumenta que se a tese de que a obediência se fundamenta no auto-interesse dos súditos fosse correta, os agentes poderiam legitimamente desobedecer à lei quando ela não o promovesse, o que não é afirmado por Hobbes. Pelo contrário, a desvantagem da obediência da lei não legitima a desobediência. A desobediência em relação às leis só é justificada nos casos nos quais os súditos não se obrigaram a obedecer ou a não resistir. Deste modo, mesmo a liberdade para desobedecer é normativa, segundo Venezia.

Além disso, a teoria de Hobbes introduziria, segundo Venezia, as duas notas características das razões morais, tais como elas são descritas contemporaneamente por Stephen Everson. Segundo este, as razões morais são aquelas que, em primeiro lugar, motivam o agente a agir pelo interesse de outro além do interesse próprio e que, em segundo, são categóricas, sendo que a sua força normativa não depende das motivações do agente. Ora, Venezia argumenta que Hobbes introduz a análise de determinadas paixões, como piedade, caridade, benevolência, etc., pelas quais os homens podem ser motivados apenas pela ideia de promoverem o interesse de outros. Quanto ao segundo ponto, o comentador argumenta que, a partir da definição hobbesiana de justiça, os homens justos não são motivados pelo benefício próprio, mas exclusivamente por considerações morais, sendo que aquele que cumpre a lei não pela lei, mas pelo medo da sanção, é injusto (Do Cidadão, IV, 21). Ora, a partir do parágrafo referido, no qual Hobbes afirma que a lei de natureza compete à consciência, não se pode fundamentar a tese de que essas leis sejam imperativos categóricos, e consequentemente razões morais no sentido descrito por Everson. No Leviatã, Hobbes, pela contraposição entre foro interno e foro externo, afirma que a obrigação em consciência das leis de natureza só obrigam de fato quando há segurança no seu cumprimento. Ou seja, trata-se de um imperativo hipotético e não categórico, já que a obrigação se fundamenta na obtenção da paz e vale apenas com a condição de que os outros a cumpram 1 .  Elas tornam impositivo o desejo de as colocar em prática, mas nem sempre obrigam porque dependem de circunstâncias exteriores ao agente. Há, neste ponto, uma grande distância entre a filosofia de Hobbes e aquela de Kant. A perspectiva acaba sendo até mesmo inversa: para Hobbes, aquele que agisse incondicionalmente de acordo com as leis de natureza, aplicando- as mesmo na ausência de garantias de que os outros a cumprissem, agiria contrariamente ao fundamento mesmo das leis de natureza, invalidando a sua aplicação futura.

Enfim, quanto ao terceiro ponto, Venezia sustenta que Hobbes analisa as obrigações contratuais numa maneira deontológica, na medida em que depois de renunciar pelo contrato à parte de seus direitos naturais, os agentes adquirem obrigações que são independentes de seus estados motivacionais contingentes. A obrigação tem como fundamento

a promessa, sendo que a penalidade constitui uma motivação meramente adicional. Nesse sentido, a razão para contrair a obrigação distingue-se da razão para cumpri-la: enquanto a primeira é prudencial, baseada no auto-interesse, a segunda não o é. A obrigação política não se fundamenta na possibilidade de sanções em caso de não cumprimento, mas em atos voluntários que expressam consentimento.

Por fim, Venezia critica esse fundamento mesmo da obrigação política em Hobbes, a saber, a tese de que as ações realizadas sob coerção são completamente voluntárias. O comentador argumenta que as ações cometidas sob coerção não são voluntárias porque as condições sob as quais os agentes coagidos fazem as suas escolhas não refletem a sua vontade real, considerando-se a afirmação de Hobbes de que “o objetivo de todos os atos voluntários dos homens é algum bem para si mesmos” (Leviatã, XIV, p. 115). Os agentes não realizariam as ações em questão se elas tivessem oportunidade de agir de outro modo, sendo que a escolha em questão não expressa o arbítrio próprio do agente, mas a escolha é de outro, que deliberadamente reduz as opções possíveis. As suas decisões não refletiriam a sua verdadeira vontade, mas eles seriam o mero instrumento de outros agentes. Ora, tal crítica se opõe à definição mesma de voluntaridade em Hobbes, definição segundo a qual é voluntário todo ato que provém da vontade, a qual consiste, por sua vez, no último momento da deliberação do qual se segue imediatamente a ação, independentemente de como e em quais circunstâncias foi determinada. É justamente nesse sentido que Hobbes reavalia o exemplo de ação dado por Aristóteles na Ética a Nicômaco, a saber, a de um capitão que joga a carga de sua embarcação no mar pelo medo de seu navio afundar, exemplo que é mencionado por Venezia. Enquanto para o estagirita essa ação constitui o exemplo de uma ação mista, nem voluntária e nem contra-voluntária, visto que a ação não seria desejada por si mesma, ainda que o princípio da ação resida no agente, para Hobbes se trata de uma ação perfeitamente voluntária porque procedente da vontade. Essa redefinição e simplificação do que é a vontade e do que é voluntário é absolutamente central na filosofia hobbesiana. Afirmar, pois, que o que Hobbes de fi ne como voluntário nem sempre o é, na medida em que as ações realizadas sob coação não seriam desejadas em si mesmas, é rejeitar a definição de Hobbes e endossar o que o autor já refutara. Mas como o próprio Hobbes defende, se a definição é compreendida e não admitida, a controvérsia se encerra (De Corpore, VI, § 1 5) .

Por fim, nas considerações finais, Venezia dirige críticas a diversos pontos da filosofia política de Hobbes. Em primeiro lugar, Hobbes erraria no ponto de partida de sua teoria política ao colocar o desacordo humano e a guerra civil no mesmo patamar, ponto de partida que resultaria numa teoria política extremamente autoritária. Os filósofos políticos contemporâneos, como J. Rawls, mostraram que o conflito e a diversidade de opiniões são constitutivas das sociedades democráticas. Outro ponto a ser criticado, tal como Hume já o fizera, é que apenas um número muito limitado de súditos obrigaram-se, tanto pelo consentimento tácito como explícito, a obedecer à lei. Além disso, Venezia critica o fato de que o direito do soberano de governar não é apenas o resultado da transferência dos direitos pelos súditos, mas está fundamentado em seu direito natural, o que seria inapropriado, pois deste modo não se distinguiria o soberano enquanto um indivíduo privado e enquanto portador de um cargo oficial. Por fim, além daquela crítica concernente à voluntariedade das ações feitas sob coação, Venezia endossa a crítica dos filósofos liberais, notadamente, J. Locke, de que não se pode ter obrigações políticas em relação a um governo absoluto por não possuirmos o direito de nos escravizar. À exceção da segunda crítica, que diz respeito ao número dos que pactuaram e que parece ter validade mesmo pressupondo a filosofia hobbesiana, as demais críticas são exteriores à filosofia de Hobbes e só podem ser realizadas a partir de pressupostos completamente estranhos ao filósofo. Se, por um lado, é louvável o esforço de trazer a filosofia de Hobbes para os debates contemporâneos, por outro, medi-lo a partir dos parâmetros da filosofia política atual faz o seu sistema filosófico perder o seu sentido.

De toda forma, o livro de Luciano Venezia constitui uma contribuição importante para os estudos da filosofia hobbesiana, uma vez que apresenta bons argumentos em favor de uma leitura diferente daquela predominante sobre a obrigação política, a natureza da lei e do contrato na filosofia de Hobbes, além de ser extremamente claro e objetivo. O que nesta resenha se apresentou como sendo problemático decorre em grande medida da discrepância entre dois métodos e tradições de interpretação distintos, a saber, entre o método estrutural de leitura e o método analítico, que é o método adotado pelo autor do livro.

Nota

1 “(…) Aquele que fosse modesto e tratável, e cumprisse todas as suas promessas numa é poca e lugar em que ninguém mais assim fizesse, torna-se-ia presa fácil para os outros, e inevitavelmente provocaria a sua própria ruína, contrariamente ao fundamento de todas as leis de natureza, que tendem para a preservação da natureza ” (Hobbes, 2014, p. 136).

Referência

HOBBES, Thomas. (2 0 1 4). Leviatã. São Paulo: Martins Fontes.

Celi Hirata – Professora Universidade Federal de São Carlos. E-mail: celi_hirata@yahoo.com

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Hobbes e a liberdade republicana – SKINNER (HP)

SKINNER, Quentin. Hobbes e a liberdade republicana. São Paulo: Editora Unesp, 2010 (Tradução de Modesto Florenzano), 214 p. Resenha de: CARVALHO JÚNIOR, Eduardo Teixeira. A metodologia de Quentin Skinner e o conceito de liberdade em Hobes. História & Perspectivas, Uberlândia, v. 26, n. 49, 8 mar. 2014.

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Hobbes e a liberdade Republicana – SKINNER (NE-C)

SKINNER, Quentin. Hobbes e a liberdade Republicana. Trad. Modesto Florenzano. São Paulo: Editora da Unesp, 2010. Resenha de: SILVA, Ricardo. Skinner e a liberdade Hobbesiana. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.95, Mar., 2013.

A mais recente incursão de Skinner no pensamento político de Hobbes é algo mais do que uma elegante contribuição à reconstituição histórica da concepção de liberdade do filósofo inglês. Trata-se também de um “lance” (move) – para usar uma expressão cara ao próprio Skinner – nos embates atuais entre teóricos liberais e republicanos. Crítico da hegemonia do pensamento liberal na política contemporânea, Skinner oferece um suporte historiográfico importante às pretensões normativas do neorrepublicanismo. Sua genealogia do conceito de liberdade é o melhor exemplo desse tipo de suporte, e Hobbes e a liberdade republicana ocupa um lugar de destaque nessa genealogia. Focalizando a turbulenta década inglesa de 1640, o livro documenta os momentos em que Hobbes elabora uma alternativa de grande consistência teórica à então convencional concepção republicana de liberdade, desenvolvendo uma concepção negativa de liberdade que será mais tarde apropriada pela tradição liberal. Hobbes e a liberdade republicana é produto do encontro entre a historiografia do pensamento político e o debate analítico e normativo na teoria política contemporânea.

A LIBERDADE NEORROMANA

O ponto de partida para a compreensão da narrativa de Skinner sobre a evolução do conceito hobbesiano de liberdade é a apresentação das características básicas da concepção republicana que Hobbes teria combatido e derrotado. Skinner remonta à legislação compilada no Digesto do direito romano para revelar as origens da concepção republicana de liberdade, que acabou inspirando os ataques à Coroa no período mais agudo dos conflitos na Inglaterra de meados do século XVII. Na seção relativa ao direito das pessoas (De statu hominum), já surge a “distinção primordial no seio das associações civis”, aquela entre os que “gozam do status de liberi hominus ou ‘homens livres’ e aqueles que vivem na servidão”1.

Conforme vem defendendo Skinner, em sintonia com o filósofo Philip Pettit, a concepção republicana (ou neorromana) de liberdade é irredutível a qualquer um dos polos da dicotomia entre liberdade negativa e liberdade positiva. Ou seja, ela não se define nem pela simples ausência de oposição externa às ações individuais, nem pela pura presença da participação dos cidadãos no autogoverno da cidade2. Embora a liberdade republicana seja também um tipo de liberdade negativa, uma vez que ela decorre da ausência, e não da presença de algo, o que se encontra ausente não é a indiscriminada interferência externa nas escolhas e ações dos indivíduos, como na concepção liberal, mas sim um tipo particular de interferência, resultado da dependência e da dominação derivadas da existência do “poder arbitrário” de determinados agentes sobre outros3. Na fórmula consagrada por Pettit, a liberdade republicana é a liberdade como não dominação4.

Uma das características centrais da relação de dominação é que ela permanece em vigor mesmo quando o agente dominante abstém-se de interferir efetivamente nas escolhas e ações do agente dominado. Tome-se o caso extremo e paradigmático da relação de dominação entre senhor e escravo. O fato de um escravo viver sob o domínio de um senhor benevolente não faz dele menos escravo, ou seja, não o torna mais livre. A ausência atual de impedimentos às suas escolhas e ações é apenas um corolário de um dos estados possíveis dos desejos de seu senhor, e ele, escravo, sabe disso. A consciência desse estado de sujeição pesa inevitavelmente sobre suas atitudes, que tendem a antecipar a vontade do senhor. O ponto decisivo é que não se pode considerar livre um agente cujas escolhas e atitudes realizam-se sob a influência da ansiedade decorrente da sua consciente dependência da vontade de outrem. Segundo Skinner, este ensinamento, que se encontra no núcleo da concepção de liberdade reivindicada pelos teóricos atuais do republicanismo, era corrente na época de Hobbes:

Como James Harrington afirmaria, em 1656, na sua exposição clássica da teoria republicana, Oceana, a desgraça dos escravos é que eles não têm o controle de sua vida, estando consequentemente forçados a viver em um estado de incessante ansiedade com relação ao que lhes pode ou não acontecer5.

MÉTODO E HISTÓRIA

Ao narrar a “batalha” de Hobbes contra a teoria neorromana, Skinner faz duas asserções interdependentes, ambas inovadoras em relação aos estudos sobre a teoria hobbesiana da liberdade. A primeira é de caráter metodológico, a segunda, de caráter histórico. A inovação metodológica consiste em compreender o desenvolvimento das ideias de Hobbes sobre o conceito de liberdade como “lances” em uma disputa simultaneamente intelectual, política e constitucional. O propósito de tal metodologia é abordar “a teoria de Hobbes não simplesmente como um sistema geral de ideias, mas também como uma intervenção polêmica nos conflitos ideológicos de seu tempo”6. Skinner reafirma os princípios interpretativos do contextualismo linguístico da Escola de Cambridge. Conforme postulou originalmente há mais de quatro décadas, todo pensador político, por mais sistemático e abstrato que seja, no ato de criação de um texto, encontra-se irremediavelmente envolvido em um processo comunicativo com seus contemporâneos. Mais do que simplesmente constatar ou descrever certo estado de coisas, os textos dos escritores políticos são invariavelmente destinados a realizações práticas. Os autores cujos textos pretendemos interpretar estão sempre “fazendo coisas com palavras”7. A questão norteadora de qualquer interpretação de textos que se pretenda “genuinamente histórica” deveria assumir a seguinte forma: o que determinado autor “estava fazendo” ao escrever ou publicar seus textos8?

No caso de Hobbes, a resposta oferecida por Skinner é direta: Hobbes estava combatendo os defensores da concepção republicana de liberdade. Na verdade, o filósofo inglês “era o mais formidável inimigo da teoria republicana da liberdade”9. A crítica de Hobbes à liberdade republicana aparece já em seu primeiro esforço sistemático de teorização política, presente em Elementos da lei natural e política (1640), e uma nova tentativa acontece logo em seguida, com a publicação de Do Cidadão em 1642. No entanto, uma alternativa capaz de destronar a concepção neorromana de liberdade só seria definitivamente alcançada no Leviatã (1651).

A demonstração da ocorrência de mudanças significativas no pensamento de Hobbes sobre o conceito de liberdade nos leva à inovação histórico-substantiva de Skinner, que vai de encontro à visão quase consensual sobre a suposta imutabilidade do conceito nas sucessivas versões da teoria política hobbesiana. Para a ampla maioria dos intérpretes, nenhuma diferença marcante haveria no modo como a liberdade é apresentada nos Elementos da lei, em Do Cidadão e no Leviatã. Mesmo Philip Pettit, cuja reconstrução analítica da liberdade republicana é fortemente tributária de Skinner, acredita jamais ter ocorrido qualquer “alteração maior no pensamento de Hobbes sobre a liberdade”10. Skinner oferece uma vigorosa contraposição a tal consenso interpretativo, sugerindo que Hobbes não apenas modificou sua concepção de liberdade, mas que o fez de maneira particularmente radical. Assim, “a análise de Hobbes da liberdade no Leviatã representa não uma revisão, mas um repúdio ao que ele havia anteriormente argumentado”11.

A BATALHA DE HOBBES

Em Elementos da lei natural e política, Hobbes volta-se contra diversas correntes teóricas de algum modo comprometidas com a tese de que a liberdade dos súditos é uma espécie de função da forma de governo. Skinner refere-se a três dessas correntes de pensamento, em relação às quais Hobbes teria “manifestado consciência aguda”12. A primeira é a dos monarquistas moderados ou constitucionais, cujas manifestações iniciais remontam às primeiras décadas do século XVII. O núcleo normativo dessa corrente reside na ideia de que “não é necessariamente incompatível viver como homens livres e submetidos ao governo de reis”13. A publicação da tradução inglesa da República de Bodin forneceu argumentos úteis à corrente em questão. Bodin admitia a incompatibilidade entre liberdade e monarquia quando esta fosse do tipo “senhorial”, em que o príncipe é o “senhor dos bens e das pessoas de seus súditos”. Nesse caso, os súditos são governados como “o senhor de uma família governa seus escravos”. No entanto, se a monarquia em questão é do tipo legal (ou régia) os súditos permanecem livres, protegidos da vontade arbitrária do rei, pois “o monarca régio ou rei, instalado na soberania, sujeita a si mesmo às leis da natureza”14.

A segunda corrente do pensamento constitucional a chamar a atenção de Hobbes defendia um “Estado misto”, combinando os princípios monárquico, aristocrático e democrático. Apenas essa forma de Estado teria a virtude de conciliar a ordem política com a liberdade. Segundo Skinner, Hobbes dá inúmeras mostras de que está atento à existência dessa corrente de pensamento, mas não se detém com especial interesse em sua crítica. Uma das razões para isso é que ele estava muito mais preocupado com uma terceira corrente, representativa de um desenvolvimento ainda mais radical da ideia de que a liberdade está associada a uma forma particular de governo.

O núcleo normativo dessa terceira corrente reside na proposição de que só é possível viver como homem livre no âmbito de um “Estado livre”. Conforme esclarece Skinner, os defensores dessa perspectiva tinham em mente um Estado no qual

somente as leis imperam, e no qual todos dão seu consentimento ativo às leis que a todos obrigam. Em outras palavras, sustentava-se ser essencial viver em uma democracia ou em uma república que se autogoverna, em oposição a qualquer forma de regime monárquico ou mesmo misto15.

Nos Elementos da lei, Hobbes dirige ataques específicos a cada uma dessas correntes, mas empenha-se sobretudo em refutar o que há em comum entre elas: a ideia de que a liberdade é uma função de forma de governo. O ataque de Hobbes parte da premissa de que a liberdade está associada à condição natural dos indivíduos. Ou seja, só há liberdade no Estado de natureza, e no momento em que os indivíduos pactuam para a instituição do Soberano, eles abandonam sua liberdade natural para ingressar na condição de súditos. Hobbes chega a definir a liberdade como “o estado de quem não é súdito”16. Os indivíduos, na condição de súditos de um poder soberano, seriam tão destituídos de liberdade numa democracia como numa monarquia, não fazendo qualquer diferença se a monarquia é régia ou senhorial, como queria Bodin.

Embora a impressão dos Elementos da lei tenha ocorrido apenas em 1650, o manuscrito começou a circular já em 1640. Neste mesmo ano, intensificou-se a tensão entre o Parlamento e a Coroa resultante da tentativa de Carlos I de reabilitar o ship-money17. A criação de um imposto sem a aprovação do Parlamento fez com que muitos parlamentares se pronunciassem nos termos da teoria neorromana da liberdade. Os adversários das pretensões absolutistas do rei consideraram a iniciativa uma afronta à liberdade e um caminho certo para reduzi-los da condição de homens livres à de escravos. Por outro lado, partidários de Carlos I defendiam-no esgrimindo os recursos retóricos do absolutismo, mormente da teoria do direito divino dos reis. Roger Maynwaring, ex-capelão de Carlos I, era uma dessas vozes em favor do poder absoluto do rei, que deveria incluir o poder de criar impostos. Ele já havia sido submetido a processo de impeachment e aprisionado pelo Parlamento em 1629, mas acabou beneficiado pelo perdão do rei, que ainda o faria bispo de St. Davis em 1636. Em 1640 ele não teve a mesma sorte. As duas Câmaras voltaram-se contra o bispo, preparando um ato para a anulação do perdão real. Maynwaring preferiu não permanecer na Inglaterra para conferir o desfecho dos acontecimentos, e partiu em busca de esconderijo na Irlanda. É certo que o absolutismo de Maynwaring diferia filosoficamente daquele articulado por Hobbes, que dispensava a tradicional teoria do direito divino dos reis. Seja como for, como sugere Skinner, Hobbes percebeu que, para fins práticos, a posição defendida por Maynwaring poderia ser plenamente justificada pela teoria contida nos Elementos da lei. John Aubrey, em seu perfil de Hobbes, relata que este lhe teria confidenciado que “o bispo Maynwaring pregara sua doutrina, daí a razão, dentre outras, de ele estar aprisionado na Torre”18. Em novembro de 1640, prevendo possíveis situações de perigo a que ele próprio estaria exposto, Hobbes segue para seu exílio de onze anos em terras estrangeiras.

Assim que Hobbes instalou-se em Paris, passou imediatamente a revisar os Elementos da lei, ao mesmo tempo em que vertia a obra para o latim. O trabalho foi concluído em novembro de 1641 e publicado em abril de 1642, com o título latino De Cive (Do Cidadão). De acordo com Skinner, no que se refere ao tema da liberdade, a par de uma série de modificações menores, ao menos duas importantes inovações são introduzidas nessa obra.

A primeira decorre da nova postulação de Hobbes de que “a única coisa verdadeira no mundo é o movimento”19. A liberdade passa então a ser definida como a ausência de todo e qualquer impedimento ao movimento dos corpos. Não há dúvida de que uma compreensão adequada de tal definição requer que se esclareça o que de fato conta como impedimento ao movimento. Hobbes refere-se a duas modalidades de impedimentos capazes de subtrair-nos a liberdade: os impedimentos externos e os impedimentos arbitrários. Os impedimentos externos são aqueles causados por obstáculos surgidos de causas exteriores ao corpo em movimento. É possível afirmar, por exemplo, que as águas de um rio sofrem um impedimento absoluto para mover-se livremente além dos limites das margens do rio. Analogamente, no que se aplica à liberdade humana, diz-se, por exemplo, que uma pessoa encerrada numa prisão está privada da liberdade de mover-se além dos limites das grades da prisão. Já a noção de impedimento arbitrário indica que a causa que impede o movimento não é mais exterior ao corpo, porém interna a ele. Se os impedimentos externos criam obstáculos absolutos ao movimento dos corpos, os impedimentos arbitrários, conforme os define Hobbes, “não impedem absolutamente o movimento, mas o fazem per accidens, isto é, por nossa própria escolha”20. O fato de esse tipo de impedimento derivar de uma “escolha” indica que seu âmbito de aplicação é a liberdade humana. O impedimento arbitrário à liberdade surge quando uma pessoa se abstém de realizar determinada ação mesmo quando tem a capacidade e o desejo de agir. Neste ponto, como observa Skinner, a questão que emerge é a seguinte: que “tipo de força” pode ser considerada “capaz de nos impedir de querer executar uma ação que está em nosso poder”. Hobbes responde que a força em questão “procede de nossas paixões, e acima de tudo a paixão do medo”21.

A segunda inovação introduzida em Do Cidadão é a ideia de liberdade civil. Nada semelhante pode ser encontrado nos Elementos da lei. Na verdade, a lógica argumentativa que animava essa primeira sistematização da teoria política de Hobbes não somente ignorava, mas também vetava a concepção de qualquer forma de liberdade além da liberdade natural. Skinner argumenta que Hobbes, influenciado pelo clima político e ideológico que o levou à decisão de exilar-se, procede à revisão dos Elementos da lei de modo a apresentar sua “defesa da soberania absoluta em um estilo mais conciliador e menos inflamado”22. A admissão da possibilidade de os indivíduos preservarem alguma forma de liberdade mesmo depois da efetuação do pacto que os retira do estado de natureza requer claramente a renúncia à tese de que a liberdade “é o estado de quem não é súdito”. Contudo, se não se pode mais afirmar que qualquer forma de governo suprime a liberdade, também não se sustenta a crença de que apenas determinadas formas de governo favorecem a liberdade, ao passo que outras levam necessariamente à escravidão. Com base na ideia de liberdade como ausência de impedimento externo ao movimento, Hobbes passa a afirmar que “todos os servidores e súditos que não estão acorrentados nem encarcerados são livres”23. Ademais, independentemente da forma de governo, haverá sempre um “número quase infinito de ações que não são nem prescritas nem proibidas”, constituindo a “liberdade inofensiva” dos súditos. Por outro lado, com base em sua concepção de impedimento arbitrário ao movimento dos corpos, ele reconhece que as leis civis constituem uma limitação à liberdade, uma vez que o medo das consequências previsivelmente advindas de sua infração levaria os indivíduos ao refreamento de ações que eles têm vontade e capacidade para realizar. Em suma, medo e liberdade seriam incompatíveis.

Porém, conforme o historiador inglês, a formulação definitiva do conceito hobbesiano de liberdade só viria a acontecer no Leviatã. Hobbes tinha consciência “de que precisava enfrentar os teóricos da liberdade republicana em seu próprio terreno”24. Tal enfrentamento traduziu-se na disputa pelo sentido da expressão “homem livre”. O discurso republicano contra a monarquia absolutista (e em grande medida contra a monarquia tout court) fazia da ideia de “homen livre” sua principal arma de luta ideológica. Tradução da expressão latina liber homo, o termo freeman circulava amplamente entre os republicanos ingleses contemporâneos de Hobbes. Viver sob o domínio absoluto de um monarca seria incompatível com a manutenção do status de homem livre. É nesses termos que se expressam, por exemplo, John Milton e John Hall, dois dos mais notáveis escritores republicanos da época. Segundo Milton, se não podemos ter a expectativa de alcançar nossos objetivos “sem o dom e o favor de uma única pessoa” não somos “nem República, nem livres”, somos “vassalos de posse e domínio de um senhor absoluto”. John Hall é ainda mais categórico ao afirmar que “viver sob uma monarquia é viver como um escravo”25.

Skinner procura mostrar como a revisão do conceito de liberdade no Leviatã decorre do esforço de Hobbes para desacreditar a noção de “homem livre” dos republicanos. Consolidando desenvolvimentos anteriores de sua reflexão sobre o tema, Hobbes parte da definição do que ele considera a “liberdade em sentido próprio”, aplicável tanto a criaturas irracionais e inanimadas como a racionais. Em seu “sentido próprio”, a liberdade define-se exclusivamente pela ausência de oposição ao movimento. Esta fórmula já aparecia em Do Cidadão. Agora, porém, a ideia de oposição (ou impedimento) é restringida para referir-se apenas a barreiras externas ao movimento dos corpos. Hobbes faz desaparecer o conceito de impedimento arbitrário como uma possível causa da redução da liberdade, uma alteração que traz profundas consequências em sua argumentação. Agora medo e liberdade não são mais incompatíveis, pois resta evidente que o medo não pode ser tomado como um obstáculo externo às nossas escolhas. Ao eliminar a possibilidade de tratar constrangimentos internos como restrição à liberdade, Hobbes prepara o terreno para o assalto definitivo à noção republicana de homem livre. A ansiedade, o medo ou qualquer outro freio de ordem psicológica capaz de interferir nas escolhas e nos movimentos de um indivíduo em situação de dependência não constituem o tipo de impedimento que Hobbes considera contrário à liberdade. Neste caso, bem como quando se trata de um impedimento interno de ordem física, a exemplo do enfermo imobilizado em seu leito, não é de ausência de liberdade que se trata, mas da ausência de poder.

E o que dizer da lei civil? Em que medida ela pode ser tomada como um impedimento à liberdade? Em Do Cidadão, Hobbes já havia chamado a atenção para o fato de que sob qualquer sistema de leis há um sem-número de ações não proibidas nem prescritas pelo soberano. Ele repete esse argumento no Leviatã, com a máxima de que a liberdade reside no “silêncio da lei”. Mas agora Hobbes vai adiante, realizando uma operação decisiva para seu propósito de desvincular a liberdade da lei. Anteriormente ele havia apresentado o medo de infringir a lei como impedimento arbitrário à ação livre. Com o subsequente abandono da noção de impedimento arbitrário, o medo perde sua função de impedimento da ação e a lei deixa de significar restrição à liberdade. Hobbes oferece como prova o fato de que mesmo diante de uma lei proibitiva ou prescritiva extremamente rigorosa restará sempre aos súditos a alternativa da desobediência. Como sintetiza Hobbes, “o medo e a liberdade são compatíveis […]. E de maneira geral todos os atos praticados pelos homens no interior de repúblicas, por medo da lei, são ações que os seus autores têm a liberdade de não praticar”26. Ora, se não há qualquer conexão necessária entre a liberdade dos cidadãos e a forma jurídica do Estado, deixa de fazer sentido a questão sobre qual seria a forma de Estado mais afeita à liberdade. Deixa de fazer sentido também a resposta republicana segundo a qual somente numa república autogovernada, num “Estado livre”, a liberdade humana poderia ser assegurada. Hobbes encerra a questão afirmando que “quer a república seja monárquica, quer seja popular, a liberdade é sempre a mesma”27.

PASSADO E PRESENTE

Skinner conclui sua narrativa com a sugestão de que a fórmula definida no Leviatã resultou em uma mudança conceitual revolucionária e em poderosa arma de luta ideológica contra o republicanismo. Hobbes “venceu a batalha”28, deixando como herança uma concepção de liberdade que, na atualidade, tem sido “amplamente tratada como um artigo de fé”29.

A esta altura, um crítico familiarizado com a metodologia contextualista de Skinner poderia legitimamente perguntar: a afirmação de que a concepção de liberdade desenvolvida por Hobbes no longínquo século XVII grassa hoje como um “artigo de fé” não levaria ao tipo de “anacronismo” tão estigmatizado nos ensaios metodológicos do próprio Skinner? Há quem acredite que sim, considerando “estranho encontrar um escritor que começou pela insistência na especificidade histórica de cada período agora vindo a defender o tipo de categoria meta-histórica maniqueísta que ele tanto deplorou”30. Há também os que julgam “desconcertante que grande parte dos escritos de Quentin Skinner nos estágios mais adiantados de sua carreira seja informada por seus compromissos políticos e filosóficos fortemente assumidos”31.

No entanto, quando se observa a trajetória recente de Skinner, seu afastamento de alguns de seus postulados metodológicos originais não surpreende32. Há pelo menos uma década, Skinner já afirmava que passara a encontrar “mais coisas na perspectiva de uma tradição e, consequentemente, de uma continuidade intelectual do que costumava encontrar”, e que isso o fez ver “mais promissoramente do que costumava ver” o valor atual do engajamento crítico “com nossos antepassados e grandes pensadores, ao menos quanto a alguns conceitos-chave que continuam a estruturar nossa vida em comum”33. Mais do que qualquer outro livro de Skinner, Hobbes e a liberdade republicana reflete essa alteração na perspectiva do autor sobre a relação entre o passado e o presente da teoria política.

Notas

1 SKINNER, Q. Hobbes e a liberdade republicana. São Paulo: Ed. da Unesp, 2010, p. 10.         [ Links ] 2 A distinção entre as concepções negativa e positiva de liberdade é fortemente tributária de um ensaio de Isaiah Berlin, publicado originalmente em 1958. Cf. BERLIN, Isaiah. “Dois conceitos de liberdade”. In: HARDY, Henry e HAUSHEER, Roger (orgs.). Isaiah Berlin: estudos sobre a humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, pp. 226-72.         [ Links ] 3 SKINNER, Q. “Freedom as the absence of arbitrary power”. In: LABORDE, Cécile e MAYNOR, John (eds.). Republicanism and political theory. Londres: Blackwell, 2008.         [ Links ] 4 PETTIT, Philip. Republicanism: a theory of freedom and government. Oxford: Oxford University Press, 2007.         [ Links ] 5 SKINNER, Hobbes e a liberdade republicana, op. cit., p. 12.
6 Ibidem, p. 14.
7 Conforme o título de um dos livros que mais influenciaram o método skinneriano: Austin, J. L. How to do things with words. 2.ed. Massachusetts: Harvard University Press, 1975.         [ Links ] 8 Cf. SKINNER, Q. “Meaning and understanding in the history of ideas“. History and Theory, vol. 8, no 3, 1969, pp. 3-53.         [ Links ] 9 SKINNER, Hobbes e a liberdade republicana, op. cit., p. 13.
10 PETTIT, Philip. “Liberty and Leviathan“. Politics, Philosophy and Economics, vol. 4, no 1, 2005, p. 150.         [ Links ] 11 SKINNER, Hobbes e a liberdade republicana, op. cit., p. 14.
12 Ibidem, p. 70.
13 Ibidem, p. 70.
14 Citado em Skinner, Hobbes e a liberdade republicana, op. cit., p. 71.
15 Ibidem, p. 75.
16 Citado em Skinner, Hobbes e a liberdade republicana, op. cit., p. 83.
17 Tradicionalmente, os reis da Inglaterra contavam com a prerrogativa de requisitar às cidades costeiras embarcações (ou o dinheiro equivalente à construção dessas embarcações) para a defesa naval em situações em que o reino via-se na iminência de sofrer invasões inimigas. Em 1635, em meio a uma crise financeira, Carlos I, alertando para a possibilidade de invasão, passa a requerer o recolhimento do ship-money para fazer frente às dificuldades. A prática repetiu-se nos anos seguintes, mesmo na ausência de qualquer ameaça externa, o que levou a uma crescente insatisfação no Parlamento. Não tardaram a aparecer discursos protestando contra o caráter abusivo e arbitrário do tributo, o que culminou, em 1641, na decretação da sua ilegalidade.
18 Citado em Skinner, Hobbes e a liberdade republicana, op. cit., p. 93.
19 Citado em Skinner, Hobbes e a liberdade republicana, op. cit., p. 111.
20 Ibidem, p. 112.
21 Ibidem, p. 113.
22 Ibidem, p. 116.
23 Citado em SKINNER, Hobbes e a liberdade republicana, op. cit., p. 117.
24 Ibidem, p. 143.
25 Citados em SKINNER, Hobbes e a liberdade republicana, op. cit., p. 141.
26 HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 180.         [ Links ] 27 Ibidem, p. 184.
28 SKINNER, Hobbes e a liberdade republicana, op. cit., p. 197.
29 Ibidem, p. 194.
30 DIENSTAG, Joshua. “Man of peace: Hobbes between politics and science”. Political Theory, vol. 37, no 5, 2009, p. 703.         [ Links ] 31 COLLINS, Jeffrey. “Quentin Skinner’s Hobbes and the neo-republican project”. Modern Intellectual History, vol. 6, no 2, 2009, p. 365.         [ Links ] 32 SILVA, Ricardo. “O contextualismo linguístico na história do pensamento político: Quentin Skinner e o debate metodológico contemporâneo”. Dados, vol. 53, no 2, 2010.         [ Links ] 33 SKINNER, Quentin. “Quentin Skinner on encountering the past (interview)”. Finnish Yearbook of Political Thought, vol. 6, 2002, p. 55.         [ Links ]

Ricardo Silva – Professor do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina.

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Hobbes e a liberdade republicana – SKINNER (C)

SKINNER, Q. Hobbes e a liberdade republicana. Trad. de Modesto Florenzano. São Paulo: Edunesp, 2010. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. Conjectura, Caxias do Sul, v. 16, n. 3, Set/dez, 2011.

A história intelectual tem buscado forjar padrões de análise que a convertam num campo de estudo estabelecido e fixado como outros já consagrados, a exemplo da história política, da econômica, da social e da cultural. Por suas íntimas aproximações com a história filosófica e com a história das ideias, definir seguramente suas fronteiras teórico-metodológicas e seu alcance interpretativo do objeto, assim como seu corpus documental, torna-se, além de um problema tenso e contraditório, um desafio para o estudioso da temática. Se mesmo entre os lugares principais de produção, a história intelectual é ao mesmo tempo ambígua, sem necessariamente construir procedimentos de pesquisa comuns, como se observa nos Estados Unidos, na França, na Inglaterra, na Alemanha e na Itália, como então se deveria proceder ao seu estudo e à sua apropriação? A obra de Skinner está entre aquelas que, desde os anos 60 (séc.XX), tem se debruçado com afinco sobre a questão. Agrupando-se ao que ficou definido como contextualismo linguístico inglês, ele se esforçou para a criação de procedimentos adequados para que a história intelectual fosse, entre outras coisas, um instrumento apropriado para o estudo do pensamento e da ação política no tempo. Estudioso da história moderna, preocupou-se com a investigação do pensamento renascentista, reformista, contrarreformista, liberal e conservador, e com a maneira como estabeleceriam relações com seu contexto. Para ele, somente ao se agrupar o contexto de produção das obras é que se torna possível visualizar os jogos linguísticos usados pelos letrados e políticos do período e reconstituir como agem e se movimentam no campo de produção das obras e da ação política, estabelecer os nexos de ação do grupo e do indivíduo, analisar os discursos e as estratégias de ação, além de permitir definir quais são as intenções dos agentes sociais em sua escrita, por já formar nela uma ação política, com desdobramentos sociais profundos, ao ser apropriada pela sociedade.

Evidentemente, a proposta analítica do autor é consistente e articulada, o que não quer dizer que seja isenta de fragilidades. O ponto, talvez, mais criticado em sua proposta é justamente a de agrupar e definir as intenções dos agentes sociais, por meio do estudo de seus escritos. Leia Mais

Hobbes: Natureza, história e política – VILANOVA; BARROS (FU)

VILANOVA, M.G.; BARROS, D.F. Hobbes: Natureza, história e política. São Paulo: Discurso Editorial, 2009. Resenha de: CRUZ, Michael de Souza. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.12, n.2, p.192-195, mai./ago., 2011.

Hobbes: Natureza, história e política é uma coletânea de artigos de alguns trabalhos apresentados no Colóquio Internacional (que possui o mesmo nome do livro) realizado na USP (Universidade de São Paulo), em São Paulo, em outubro de 2009. Fruto da parceria entre CAPES e MINCyT a partir dos grupos de pesquisa da UNC (Universidad de Córdoba) e USP, o colóquio foi organizado em diferentes mesas temáticas, que foram seguidas pelo livro, contando com a participação de especialistas da filosofia hobbesiana da Argentina e do Brasil. Com o objetivo maior de estimular a troca de ideias entre os pesquisadores dos dois países (divulgar diferentes linhas de pesquisa, resultados e projeções), tal colóquio teve como resultado impresso tal livro, que retrata ao leitor a grandiosidade da filosofia de Thomas Hobbes de uma maneira perspícua. Os artigos são apresentados segundo os diferentes eixos temáticos: Hobbes e a Tradição, Religião e Política, Filosofia Natural e Política e O Legado de Hobbes na Contemporaneidade.

Após a apresentação dos editores, segue o artigo de Abertura: Hobbes, recente (p. 9-19), de R.J. Ribeiro. Em seu artigo, Ribeiro pretende mostrar ao leitor a atualidade da filosofia de Hobbes a despeito do temor gerado pela sua política (em especial, o Leviatã) aos seus contemporâneos. Como filósofo, o que Hobbes faz é levar a cabo o princípio de que “conhecemos o que fazemos”, desde a geometria ao contrato social (seus maiores exemplos de saberes teórico e prático). Contudo, o autor julga que a marca distintiva da filosofia hobbesiana é justamente o seu legado político: “se dependesse de sua ciência, Hobbes seria nota de rodapé” (Ribeiro, 2009). Hobbes é essencialmente um teórico da soberania que desnudou o que há de terrível no poder: a importância central do seu próprio uso. Entretanto, há que distinguir pavor (ou temor) de medo (awe), cabendo o uso desse último no exercício da soberania no Leviatã. Manter os súditos não em uma condição aterrorizada, mas em “reverente temor”, isto é, em um sentimento que está entre o temor e a reverência, eis a originalidade e a riqueza da filosofia política hobbesiana.

Na temática Hobbes e a Tradição, temos: Hobbes, Bodin e a liberdade como problema (p. 21-32), de D.F. Barros. Nesse artigo, o autor problematiza a tese cara a alguns intérpretes da filosofia de Hobbes que afirmam que a sua teoria política é fundadora da doutrina do liberalismo político. Tal como apregoam os defensores de tal tese, a função central do soberano hobbesiano é a proteção daquilo que seria mais germinal ao pensamento liberal: vida e propriedade. Entretanto, Barros replica: como conciliar o poder ilimitado do soberano em mandar (tal como uma “máquina despótica”) com um modelo de Estado destinado a guardar e proteger os direitos naturais do indivíduo? No artigo Leviatã e Oceana (p. 33-44), E. Ostrensky defende uma tese heterodoxa acerca do Leviatã: tratava-se de um experimento constitucional, isto é, um modelo político para uma nova ordem que se fazia necessária na Inglaterra pós-guerra civil. A defesa dessa tese passa pela análise de uma tese complementar que estabelece que os méritos e limitações do Leviatã como um experimento constitucional foram apresentados nas críticas de James Harrington em sua obra Oceana. Em favor da primeira tese, a autora estabelece: (i) a obra se apresenta como projeto científico genuíno, amparado num método rigoroso; (ii) oferece-se como ortodoxia a ser adotada nas universidades e contempla subcasos de soberania absoluta (adquirida e instituída). Em favor da segunda tese, estabelece que Oceana (obra dedicada a Oliver Cromwell) é o contra-ataque republicano ao modelo absoluto desenhado por Hobbes no Leviatã, criticando-lhe a concepção de que haveria liberdade num regime monárquico e percebendo na obra hobbesiana uma receita antiquada para a solução de conflitos. Em Pasiones e imaginación: tradición y modernidad (p. 45-60), M.L.L. de Stier pretende mostrar o que a teoria das paixões de Hobbes guarda em comum e em que sentido rompe com a teoria aristotélico-escolástica. No que diz respeito à primeira perspectiva, a autora atenta para o fato de que tanto Aristóteles e a Escolástica quanto Hobbes defendem que as paixões são basicamente movimentos e afecções involuntárias vinculadas ao prazer e a dor. Acerca da perspectiva de diferenciação das teorias, Stier joga luz no conceito de vontade: enquanto que na concepção aristotélico-escolástica ela é uma faculdade ou capacidade de querer, para Hobbes ela nada mais do que um ato ou um apetite último da deliberação.

Na temática Religião e Política, temos o artigo Hobbes y los usos políticos de La Trinidad (p. 63-82), de A.J. Coldero. Coldero trata em seu artigo de uma das questões mais delicadas da filosofia de Hobbes: o papel e o lugar da religião na commonwealth. E faz isso tratando de um dos problemas teológicos mais intrincados: a trindade. Tal como já expresso pelo título do artigo, o autor afirma o caráter instrumental da leitura bíblica hobbesiana, evidenciado pela sua forma “politizante” de interpretação das escrituras. Sendo assim, o próprio problema da trindade sofrerá essa instrumentalização. Não obstante, isso não exclui o exercício hobbesiano de uma leitura própria da trindade (Pai, Filho e Espírito Santo). Essa análise leva, segundo o autor, a uma tensão que não teria passado despercebida da análise de Hobbes, entre duas perspectivas trinitárias: econômica (aspecto histórico e centrado na divisão das pessoas) e ontológica (que faz referência a uma unidade divina “substancial”). Além disso, acerca da disputa interpretativa estabelecida entre Edwin Curley e Aloysius Martinich, Coldero segue a linha deste último; enquanto o primeiro defende uma ironia hobbesiana ao tratar da questão política (desacreditando no dogma trinitário, mas reafirmando a teoria da personificação), o último parte do reconhecimento factual da legitimidade da doutrina da trindade à época de Hobbes. A despeito da dita instrumentalização do religioso ao político em Hobbes, M.G. Villanova, em Desobediência de motivação religiosa (p. 83-95), trata a questão da religião em Hobbes sob outra perspectiva: a religião como motivação da desobediência civil. É sabido que, paralelo ao irrestrito poder do soberano, é admitido por Hobbes o direito de resistência, isto é, à defesa da liberdade vital e corporal. Contudo, sustenta o autor, o filósofo reconheceria também o direito à proteção de “bens imateriais”, a exemplo da crença religiosa. Assim como no direito de natureza pré-cívico, o mesmo pode-se dizer quanto ao direito de resistência do cidadão na commonwealth, ou seja, continua a pertencer a ele a avaliação quanto à conveniência de quando e como resistir ao direito de punir do soberano.

Na temática Filosofia Natural e Política, temos ¿Quién obedece al Leviatán? (p. 97-109), de D.J. Rosanovich. Em seu artigo, cujo título mais esclarecedor não pode ser, Rosanovich procura estabelecer quais são os “atores políticos” que têm lugar na teoria de Hobbes. A tese central do autor é que, na contramão do que proporiam, por exemplo, Locke e Kant, Hobbes recusa aceitar atores coletivos como elementos fundadores do Estado. Nesse sentido, em vez de uma pessoa jurídica ou de um povo, Hobbes afirma que uma multidão, isto é, um conglomerado de indivíduos, é logicamente anterior ao Estado. Recusa também, por conseguinte, a ideia de um pacto bilateral entre os indivíduos e o soberano na criação do Estado. Porque o pacto é somente entre indivíduos, o soberano é alheio a ele, razão pela qual o ato de instituição da soberania não pode ser desfeito. Entretanto, do fato de Hobbes recusar a constituição de agentes supraindividuais na formação do Estado, daí não se segue que o soberano não possa constituir mecanismos que gerem condições sociais aptas a favorecer a obediência dos súditos. Talvez o artigo de C. Balzi, Descripción de un animal artificial, o ¿por qué Hobbes escribió Leviathan? (p. 111-123), seja o mais polêmico e heterodoxo do livro no que toca à interpretação do sistema filosófico de Hobbes. O autor indaga-se acerca das razões históricas e intelectuais do filósofo ter escrito o Leviatã, visto que era uma obra que não parecia estar no itinerário filosófico hobbesiano (mas sim a tradução para o inglês do De Cive). Para Balzi, a criação do conceito de representação, o quadro sinóptico das ciências, o extenso aparato teológico e a valorização da retórica não são explicações suficientes para isso. Seria, na verdade, a fundamentação do conceito de Estado a grande tarefa do Leviatã – que não fora realizada nas obras anteriores. Entretanto, ao fundamentar a sua interpretação, o autor acaba por valorizar o quadro sinóptico das ciências do capítulo IX do Leviatã, em que Hobbes estabeleceria a completa autonomia da sua Filosofia Civil em relação à sua Filosofia Primeira. Assim, o Livro I da obra não seria mais um tratado antropológico que fundamentaria a política, mas tão somente uma parte negativa (pars destruens) do Leviatã. Já em Thomas Hobbes e o argumento dominador (p. 125-141), W.B. Lisboa faz de uma dificuldade filosófica que remonta a Aristóteles e aos os medievais um convite à compreensão do sistema filosófico de Hobbes. Sabendo-se que o argumento dominador (supostamente apresentado primeiramente por Diodoro Cronos; também analisado por Aristóteles no capítulo IX do De Interpretatione) conclui que “tudo o que é possível é atualmente ou será”, isto é, estabelece um determinismo universal, Lisboa trata de apresentar a defesa hobbesiana dessa conclusão a partir das premissas do próprio sistema do filósofo. Num primeiro momento, faz uma “reconstrução ontológica” do argumento hobbesiano, estabelecendo a necessidade do passado, bem como a dicotomia necessidade e impossibilidade – sendo a noção de possibilidade reduzida à primeira. Assim, para Hobbes, todo evento futuro terá uma causa necessária. Noutro momento, o autor faz uma reconstrução “lógico-metafísica” do argumento hobbesiano. Assim como possibilidade e necessidade, também há a identificação entre causas suficientes e causas necessárias no determinismo de Hobbes. Ademais, no que toca à determinação do valor de verdade dos enunciados, o instante de tempo em que se realiza o que diz a proposição é indiferente à determinação do seu valor de verdade – sendo um problema da temporalidade e limitação do conhecimento humano e não da constituição das coisas.

Na última temática do livro, O Legado de Hobbes na Contemporaneidade, temos Leviatã secreto: Hobbes e o Serviço de Inteligência (p. 143-152), de C.R.C. Leivas. Fazendo justiça à temática em que se enquadra, o artigo de Leivas é muito original ao fazer de Hobbes um pensador de uma questão típica das relações políticas contemporâneas: o Serviço de Inteligência. Hobbes seria um dos filósofos que veriam na espionagem e no Serviço de Inteligência uma necessidade para a segurança pública; porém, a concepção hobbesiana não se esgotaria nessa necessidade imediata de subsistência do Estado moderno: ela seria, com efeito, ensejada por uma fundamentação moral estruturada pelo imperativo de segurança a saúde do povo é lei suprema (salus populi suprema Lex). Ora, a boa visão política dos Estados modernos depende de um bom êxito de seus espiões na coleta de informações sigilosas. Assim, o Leviatã possui um Sistema de Inteligência para decifrar o poder invisível de inimigos do Estado através da coleta de informações e decodificação de códigos secretos, tudo em prol do imperativo de segurança salus populi. O artigo de N. Souki, Da guerra civil de Hobbes às guerras nossas de cada dia (p. 153-167), realiza uma daquelas tarefas que se nos parecem mais pertinentes ao compreendermos a filosofia política hobbesiana: uma vez que se trata de um clássico, seu estudo só ganha sentido se fizermos dos problemas e das respostas de Hobbes nossos problemas e, por que não, nossas respostas. Apesar da pertinente advertência que nos diz que o estudo de Hobbes deve circunscrevê-lo ao seu tempo (um período de guerra civil confessional), não estamos eximidos da tarefa de ler Hobbes como um “barulho de fundo” frente às condições da realidade política atual, partindo do seu conceito de guerra civil: eis a proposta da autora. Se considerarmos, tal como faz Hobbes, a guerra não como um confronto efetivo, mas como uma disposição de entrar em confronto, seremos então, tal como admite Souki, obrigados a reconhecer esse fenômeno na atualidade.

Em suma, Hobbes: Natureza, história e política apresenta ao leitor – desde aquele imerso em pesquisas especializadas sobre o autor àquele que tem dele um conhecimento mínimo – as diversas facetas da filosofia hobbesiana iluminadas por pesquisadores argentinos e brasileiros ao longo dos últimos anos. Desse modo, esse livro não somente representa o diálogo entre as diferentes pesquisas, mas a verdadeira originalidade, complexidade, profundidade exegética e atualidade da filosofia de Thomas Hobbes.

Michael de Souza Cruz – Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, RS, Brasil. E-mail: michael.s.c@hotmail.com

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[DR]

 

Revoluções do Poder | Eunice Ostrensky

As possibilidades de leituras e interpretações dos clássicos do pensamento político são inúmeras. No entanto, uma das formas de afirmar sua validade foi, durante muito tempo, vê-los como sujeitos que, com seus textos, rompem a própria transitoriedade da história e são capazes de responder a diferentes questões em diversos tempos e lugares. A validade de sua leitura estaria, portanto, nesta capacidade de responder não só a seus problemas e de seus contemporâneos, mas aos nossos também.

Eunice Ostrensky, professora da Ciência Política da USP, parece ir em direção contrária ao caminho exposto anteriormente. Em Revoluções do Poder, fruto de sua tese de doutorado, publicado pela Editora Alameda, a professora não só procura colocar Thomas Hobbes no contexto político da Inglaterra revolucionária no século XVII, mas, através de intensa pesquisa e leitura apurada, procura reconstruir os debates e as diversas interpretações que concorrem em ambiente inglês.

Entretanto, reconstituir o debate em tempos revolucionários, de surgimento de novas teorias e novos grupos, é tarefa árdua que requer familiaridade com a linguagem estudada e capacidade de interpretar “lances” de linguagem, para usar uma terminologia de J. Pocok (2003). Ou seja, usar certo elemento de uma forma diversa, com significados e sentidos diferentes, a fim de persuadir os possíveis leitores/ouvintes de certo discurso. No entanto, o que era óbvio para os contemporâneos de Hobbes, indiscutível para os que com ele partilhavam seu momento, já não é para nós, que nos distanciamos deles pelo abismo temporal. Por isso, as interpretações são abertas, lacunares e passíveis de crítica. Contudo, o caminho proposto pela professora é inovador em terras brasileiras e demonstra, na prática, as possibilidades abertas pelo método da Escola de Cambridge. Ou seja, entender os objetivos dos pensadores em seu momento, inseridos nos debates e diálogos de seu contexto histórico. Nas palavras de John Langshaw Austin, para escritores como Ostrensky, “as palavras também são atos” (AUSTIN, 1990), são elementos de intervenção e ação no debate político.

O livro pretende compreender o período entre 1642 e 1649, chamado pela autora de “períodos fatais” (p. 32), anos de crise da soberania em que surgem debates sobre republicanismo, limites do Estado, poder e liberdade. Esses vocábulos, complexos em sua definição mesmo fora do contexto revolucionário, ampliam suas possibilidades de definição em momentos de embate político. O ápice da “Grande Rebelião”, como era chamada então a Revolução Inglesa, se daria em 1649, com a condenação e execução de Carlos I. “Nunca antes se havia julgado, condenado e executado um rei publicamente. No passado, coroas usurpadas e reis cruéis haviam merecido execuções que se fizeram pelas costas, no escuro, porque nem mesmo os assassinos (…), pensavam em contestar a monarquia” (p. 41).

Na primeira parte do livro, Ostrensky nos apresenta os personagens que irão compor sua narrativa. Isso talvez seja um dos traços mais marcantes de seu livro: as teorias têm dono, nome e data. Os embates, reconstruídos conforme a documentação que chegou até nós são expostos em sua complexidade e dimensão, demonstrando como os que vivenciaram os períodos de tanta transformação entenderam e interpretaram o que então se passava, que significados davam para o que então ocorria e de que maneira procuraram convencer seus contemporâneos com seus argumentos. Composto por seis capítulos, o livro se divide conforme a “ordem cronológica das razões” e temática das teorias que surgiam e caíam na Inglaterra do século XVII.

Nos primeiros capítulos a autora preocupa-se em demonstrar como os realistas costumavam pensar o mundo e sua própria realidade, ou seja, o arcabouço das crenças do período pré-revolucionário a partir do qual as mudanças ocorrem. Curiosamente, tanto parlamentares como realistas costumavam reivindicar seus direitos buscando um passado mais remoto, garantindo que o oponente trazia perigosas inovações que poderiam comprometer “a ordem do mundo”. Pensados em linguagem teológica, com referências bíblicas, os sentidos dos textos sagrados eram vertidos conforme o desejo daqueles que deles se apropriavam. A Reforma, suas contradições e consequências, iriam atingir também o mundo político, suas formas de interpretação e modos de ver o mundo. Paralelo a isso estavam os discursos juristas, relacionados ao constitucionalismo inglês e a validade do commom law acima das leis escritas e da própria vontade do rei e das leis promulgadas pelo parlamento. Esse é o “pano de fundo” (p.118) dos primeiros dois capítulos, panorama conceitual primário que permite e dá as diretrizes para as inovações, que, neste período conturbado, surgiriam.

Frente às críticas ao poder realista, era necessário responder e reafirmar a necessidade do poder soberano para a manutenção da ordem e da paz social. De acordo com a autora, portanto, é necessário entender os argumentos realistas como respostas aos opositores (p. 36), de um lado os jesuítas, de outro os protestantes radicais. Para isso, linguagens diferentes são usadas, a fim de demonstrar a validade dos argumentos frente a públicos distintos, acostumados a vocábulos e sentidos diferenciados.

No capítulo III a autora procura analisar mais aprofundadamente o discurso realista, demonstrando as formas como a prática política de Carlos I aproximava-se da de Jaime I, seu pai. Contudo, nos avisa Ostrensky, embora o desejo de sistematização do pensamento régio seja necessário a fim de nos possibilitar compreensão, é indispensável percebê-los como respostas a diferentes personagens que a questionavam e a faziam justificar sua posição e pretensão. Por exemplo, enquanto Filmer, um dos maiores representantes da defesa do poder divino, escreve direcionado ao publico interno, aos juristas, Jaime I, se direciona ao público externo, formado por jesuítas e protestantes.

No IV capítulo, Ostrensky analisa os discursos e personagens do outro lado da luta: os parlamentares e os defensores desses. Frente à dificuldade em por ferio às prerrogativas régias o Parlamento lançou um argumento inovador até o momento: a separação entre o rei e a pessoa que o exerce. Segundo a autora, esse gesto, embora aparentemente tímido, abriu espaço para a afirmação da autoridade do Parlamento. Na impossibilidade de se julgar o homem, cujo cargo se tinha por sagrado, aboliu-se o cargo. Ela reconstrói e demonstra três linguagens presentes no discurso parlamentarista: o discurso da ordem, o do constitucionalismo inglês e o “populismo aristotélico”, com as noções de participação política como essências do homem. Essa colcha de retalhos que não aparece separadamente nos discursos, nos mostra as formas como a linguagem se sobrepõe, inovando e ratificando vocabulários, perceptíveis ou não aos seus personagens. No entanto, há, mesmo com as diferenças, um ponto comum: as distintas chaves discursivas afirmam que a lei assegura a deposição do monarca como tirano.

No penúltimo capítulo a autora debruça-se em um dos mais debatidos e controvertidos filósofos da modernidade: Thomas Hobbes. Se o pensador é, sem dúvida nenhuma, o grande nome do período, cujas obras chegam até nós e são debatidas com entusiasmo no mundo acadêmico, seus textos não estão “no vazio”, antes se encontram relacionados e imbricados no jogo político de seu tempo, em outras palavras, eles são veículos de intervenção. Como coloca a autora, por exemplo, Elementos da Lei é fruto do debate político das décadas de 20 e 30. Através da análise que a autora faz de um contemporâneo de Hobbes, Digges, é possível esboçar comparações entre o pensador e outras vertentes de pensamento que tiveram ou não (não é possível saber, infelizmente) contato com seu trabalho. O filósofo não firma seus argumentos em pressupostos teológicos e por essa e outras razões não foi bem recebido pelo próprio grupo que defendia a aristocracia. Embora seja possível traçar paralelos entre o pensador e seus contemporâneos, é impossível negar o caráter inovador de seus textos e afirmações, já que suas respostas à crise de soberania vão em direção a um ângulo diverso dos apresentados por seus colegas. A soberania não é direito divino, é fruto do desejo de sobrevivência do homem frente à natureza humana e seu inevitável caminho à morte prematura. Nisso centra-se também sua crítica à oratória ciceroniana, pois sendo o humano variável, é impossível se chegar a um consenso sobre certo e errado, sendo necessária a criação de uma ciência moral e política. Além disso, Hobbes inverte o termo “sedutor”, originalmente usado para os papistas, que seduziriam o rei. No sentido dado ao termo no Behemoth principalmente, sedutores são os que convencem o povo a se indispor com seu soberano. Esse é um dos exemplos da peculiaridade do pensador, que, utiliza-se de palavras usadas por seus adversários com sentido diferente, buscando, desta forma, persuadir seu leitor e mostrar os malefícios que a desobediência ao soberano poderia trazer.

No último capítulo, a autora centra sua análise naqueles que seriam os jacobinos da Revolução Inglesa: os levellers, ainda pouco estudado no Brasil. Para demonstrar como esses seriam os primeiros democratas da história moderna, a autora coloca em destaque as formas que alcançavam a ideia de representação política: tolerância religiosa e liberdade de culto, reinterpretação da lei da natureza e uma teoria dos direitos naturais. A definição de liberdade para eles será diversa da usado por Hobbes, por exemplo, já que não será no sentido de interferência dos outros na liberdade do indivíduo, mas de liberdade em atuar no espaço público. Contrários a falta de limites do poder régio, mas também do Parlamento, os levellers defendem o poder de racionalidade e decisão das multidões.

As críticas aos levellers viriam de várias frentes, principalmente devido ao radicalismo das propostas e a possibilidade de transferir o poder à multidão, vista como destituída de racionalidade. Embora autores como Hobbes não os mencionem, presume-se que seus prováveis leitores os conheceriam e estariam devidamente informados a respeito de sua argumentação, já que defende sua filosofia tendo como base elementos usados pelo grupo rival.

Em sua conclusão, intitulada A Segunda Metade do Círculo, a autora afirma que seu objetivo no livro era acompanhar a mudança da linguagem, o desgaste da visão paradigmática e a predominância da Lei Civil e Natural. Após a queda da monarquia perde sentido o constitucionalismo parlamentarista e a defesa da harmonia entre rei e Parlamento. Outras formas de entendimento, expressos através de palavras, serão usadas e terão, na mente dos leitores e ouvintes, uma entonação diversa da anterior, a base seria outra: o pensamento republicano.

A fim de concluir esta resenha, cabe dizer algumas palavras sobre este livro que é, no mínimo, instigador por sua abordagem. Diferentes dos estudos tradicionais, que buscam, através de intensa leitura, descortinar certo pensador e entender sua filosofia e principais conceitos, Eunice Ostrensky procura contrapor Hobbes com seus interlocutores. Entender o vocabulário político presentes neste momento, os debates produzidos através de um arranjo conceitual comum, mas que ao mesmo tempo esta em mutação, pode ser colocado como um de seus objetivos. Tarefa árdua que requer familiaridade com uma linguagem que se diferencia da nossa no tempo e no espaço. Lacunas existirão, assim como interpretações que certamente seriam contestadas pelos seus autores e não aceitas por eles, como é a preposição de um dos maiores defensores da proposta da autora, Quentin Skinner2 . No entanto, mostrar que filósofos colocados no Panteon pela tradição não fizeram pressuposições fora de seu tempo, mas coladas ao contexto e as possibilidades que esse lhes dava, é um dos méritos dessa proposta. Outro seria demonstrar, como já afirmou Skinner (2000, p.150), que os filósofos não respondem as nossas questões, mas as suas, cabe a nós, portanto, buscar, como eles fizeram anteriormente, respostas aos problemas de nossa sociedade.

Notas

2. Quentin Skinner afirma que um dos seus objetivos era produzir uma interpretação passível de ser aceita pelo próprio autor do texto.

Referências

AUSTIN, J. L. Quando dizer é fazer: palavras e ação. Tradução de Daniel Marcondes de Souza Filho. Porto Alegre: Artes Médias, 1990.

POCOCK, J.G.A. Linguagens do Ideário Político. Tradução de Flávio Fernandez. São Paulo: EDUSP, 2003.

SKINNER, Quentin. Significado e comprensión em La historia de las ideas. Tradução de Horacio Pons. In: Primas – Revista de História Intelectual, Quilmes, nº4, 2000, p.149-191.

Débora Regina Vogt – Licenciada e mestranda pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Trabalha com o livro de história do filósofo político Thomas Hobbes, Behemoth, e desenvolve pesquisa referente ao papel da referência aos antigos em sua obra. E-mail: debirv@hotmail.com


Ostrensky, Eunice. Revoluções do Poder. São Paulo: Alameda, 2006. Resenha de: VOGT, Débora Regina. Aedos. Porto Alegre, v.3, n.8, p.248-252, jan. / jun., 2011. Acessar publicação original.