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Theodosius II: Rethinking the Roman Empire in Late Antiquity – KELLY (H-Unesp)
KELLY, Christopher (org.). Theodosius II: Rethinking the Roman Empire in Late Antiquity. Cambridge/UK: Cambridge University Press, 2013. eBook. Resenha de: FIGUEIREDO, Daniel de. História [Unesp] v.34 no.2 Franca July/Dec. 2015.
Teodósio II governou o Império Romano do Oriente, já separado administrativamente da porção ocidental, por longos quarenta e dois anos (408-450 d.C.). Um dos primeiros registros que se dispõe da sua personalidade é fornecido pelo escritor eclesiástico Sócrates de Constantinopla que o descreveu, no livro VII da sua História Eclesiástica, como “extremamente doce em comparação a todos os homens que estão sobre a terra”. Relatos dessa natureza, dentre outros do período, que chegaram até nós, certamente contribuíram para a construção, pela historiografia antiga e moderna, de uma imagem de desaprovação desse imperador. Nesses relatos, Teodósio II é associado a um governante ineficiente, fraco e suscetível de ser manipulado pelas redes de influências de poderosos cortesãos e bispos da hierarquia eclesiástica em construção.
Essa perspectiva negativa das ações de Teodósio II frente aos desafios que lhes foram apresentados foi, em grande medida, realçada pelos intermináveis conflitos teológicos protagonizados por diferentes facções episcopais que buscavam se afirmar como referência em ortodoxia a ser seguida. A sensação de caos que teria caracterizado aquele contexto, de acordo com algumas análises historiográficas, projetava uma falta de autoridade das ações imperiais na condução desses conflitos. Isso poderia, inclusive, ameaçar a sua posição de governante. Contudo, esse viés de análise tem sido reavaliado por pesquisas mais recentes que buscam encarar a documentação textual do período como artefatos discursivos retóricos de alta carga subjetiva. Como já alertava Jean-Michel Carrié (1999) – na introdução da obra conjunta com Aline Rousselle, L’Empire Romain en Mutation: des Sévères à Constantin – 192-337 – muitas vezes produzida em momentos de conflitos, a documentação do período, à primeira leitura, pode induzir o historiador a interpretar os acontecimentos em conformidade com as paixões partidárias das facções em confronto. Não podemos deixar de perceber, ainda, o interesse propagandístico que norteou a preservação e a transmissão desses documentos que, certamente, pode ter contribuído para enaltecer a imagem de aliados ou destruir a reputação de desafetos.
A proposta dessa obra ora resenhada, Theodosius II: Rethinking the Roman Empire in Late Antiquity (2013), conforme indica o seu organizador Christopher Kelly, não se trata de uma tentativa revisionista em ampla escala da reputação desse imperador. Trata-se, acima de tudo, de reavaliar os aspectos chave da política administrativa por ele conduzida, em conjunto com seus auxiliares mais próximos. As estratégias implementadas a partir dessa colaboração possibilitou a sua permanência como o governante que por mais tempo administrou o império, a despeito das deficiências que lhes são atribuídas. Além de trazer importantes considerações sobre o governo de Teodósio II, na sua apresentação da obra, Kelly faz uma abrangente revisão historiográfica acerca do período teodosiano e estabelece um rico diálogo com e entre os capítulos subsequentes, assinados por historiadores de destaque no tema.
Esse objetivo de releitura do governo teodosiano muito vem a contribuir para o entendimento mais amplo do período que se convencionou chamar de Antiguidade Tardia. Essa periodização, atualmente melhor estabelecida entre meados do século III até o século VIII d.C., busca observar as transformações pelas quais passou a sociedade romana nas diferentes esferas da vida social, política, econômica e cultural. Desse modo, ao até então propalado “declínio e queda” do império descortina-se novos modos de enxergar o período como num momento rico em possibilidades de análises e singular em relação ao período clássico precedente e ao medievo que o sucedeu. A presente obra contribui para esse novo olhar a partir de uma leitura enriquecedora da documentação explorada, que em muito pode contribuir para as reflexões dos pesquisadores que trabalham com diferentes tipos de textos produzidos no período. Como exemplo de documentos trabalhados na presente obra citamos o Código Teodosiano, a Notitia Dignitatum, as Histórias Eclesiásticas, asNovellae (novas leis emitidas entre 438 e 441), os Acta Conciliorum Oecumenicorum,Panegíricos, dentre outros.
Nesse sentido, além do Capítulo 1 introdutório, que compõe toda a Parte I do livro, de autoria do organizador, Christopher Kelly, seguem-se mais dez capítulos, divididos em três diferentes áreas de interesses. A Parte II, intitulada Arcana imperii (Capítulos de 2 a 5), busca analisar os problemas de se construir um relato satisfatório da complexa dinâmica política do império e, em particular, o papel e a influência dos grupos que competiam na Corte em Constantinopla. Na Parte III,Past and present (Capítulos de 6 a 8), são expostas algumas preocupações contemporâneas dos autores teodosianos no sentido de apresentar uma retórica de unidade do império que, de fato, já se encontrava dividido política e administrativamente. A Parte IV, Pius princeps (Capítulos de 9 a 11), explora as dificuldades de apresentar, louvar e relembrar uma imagem de Teodósio II como um pio governante cristão.
Afunilando as três áreas de interesses acima citadas, no Capítulo 2 intituladoMen without women: Theodoisus’ consistory and the business of government, Jill Herries indica sua percepção, a partir da análise do Código Teodosiano, da forma colegiada com que as decisões eram tomadas na Corte imperial em Constantinopla. Ao estabelecer diálogo com a obra de Kenneth Holum,Theodosian Empresses: Women and Imperial Dominion in Late Antiquity, de 1982, a autora minimiza a ascendência atribuída àAugusta Pulquéria, irmã mais velha de Teodósio II, como canal de influência poderoso nas decisões tomadas na Corte. Para ela, a dinâmica dos grupos de interesses em uma Corte multipolar, cujos membros eram prestigiados pelo imperador, é uma resposta à estabilidade do governo teodosiano. No Capítulo 3, Theodosius and his generals, Doug Lee percebe a mesma estratégia imperial de privilegiar a diversidade no campo militar em consonância com o que indicou Harries na sua análise sobre o Consistorium. Lee observa que a inexistência de tentativas a usurpações pode estar relacionada à escolha de generais portadores de diferentes visões político-religiosas. A análise prosopográfica por ele empreendida identificou generais não cristãos, arianos e de outras tantas formas de cristianismos que interagiam na sociedade romana do período. Essa estratégia dinástica teodosiana teria tido o efeito de dissuadir as ambições de ascensão de qualquer desses generais ao comando do poder imperial.
No capítulo 4, Theodosius II and the politics of the first Council of Ephesus, Thomas Graumann analisa duas comunicações oficiais do imperador (sacrae) e uma carta dirigida ao bispo Cirilo de Alexandria. Nesses documentos, Graumann indica como, na perspectiva imperial, o primeiro Concílio de Éfeso, reunido em 431, foi conduzido por funcionários imperiais no sentido de dar uma percepção de unidade à Igreja a despeito do relacionamento tenso entre os vários grupos de interesse, de modo que nenhuma facção emergisse dominante. Encerrando essa segunda parte, no Capítulo 5, Olympiodorus of Thebes and eastern triumphalism, Peter Van Nuffelen destaca como o cronista não cristão Olimpiodoro, cuja obra foi perdida, mas resumida por cronistas posteriores, oferece um valioso relato dos eventos ocorridos no Ocidente entre 407 e 425. Ao buscar descrever sua percepção de instabilidade reinante na porção ocidental, Olimpiodoro o faz em contraste com a construção de uma imagem de um império oriental estável. Nesse sentido, Nuffelen inova ao mostrar como Olimpiodoro, ao escrever sua história do Ocidente tendo como espelho o Oriente, contribuiu para difundir uma ideologia triunfalista e integradora do império oriental teodosiano.
No Capítulo 6, Mapping the world under Theodosius II, Giusto Traina percebe como além do Código Teodosiano, a Notitia Dignitatum – documento que elenca a estrutura administrativa civil e militar tanto do Oriente quanto do Ocidente – serviu a propósitos propagandísticos como expressão da importância que o regime teodosiano dava a uma ideia de Império Romano como estrutura unitária, embora tal unidade fosse apenas virtual. No contexto da sua elaboração (datada em torno de 401 para a parte oriental e atualizada na década de 420 no Ocidente), a Notitiabuscava oferecer uma visualização ideológica do poder imperial em termos geográficos. No Capítulo 7, “The insanity of heretics must be restrained”: Heresiology in the Theodosian Code, Richard Flower explora os tratados de heresiologia como oDe haeresibus, de Agostinho de Hipona, e oPanarion, de Epifânio de Salamina, e os compara com um pronunciamento de Teodósio II, emitido em 428, e preservado na forma de lei com o títuloDe haereticis no Código Teodosiano 16.5.65. De acordo com Flower, embora esses tratados de literatura técnica, para ele fonte de conhecimento mais seguro e confiável, tenham em alguma medida inspirado a lei de repressão aos heréticos inscrita no Código Teodosiano 16.5.65, essa legislação deve ser lida no contexto da sua aplicação. Esse cuidado decorre da prevalecente tendência de condenação de oponentes teológicos visando à criação de uma autoridade religiosa durante o governo de Teodósio II. Ou seja, o autor busca demonstrar uma seletividade no momento da aplicação da lei.
Finalizando a terceira parte do livro, no Capítulo 8, Classicism and compilation, interaction and tranformation, Mary Whitby nos fornece uma interessante análise de como os textos da literatura grega do século V d.C. estabeleceram interação com os gêneros clássicos. Para ela, essa tendência estava associada a crescente importância do cristianismo na sociedade romana. Whitby analisa uma pletora de gêneros literários como as Vidas, orações fúnebres, a História Lausíaca, osflorilegia, diálogos, enciclopedismos, paráfrases bíblicas e histórias eclesiásticas. Tais análises buscam observar a riqueza da produção literária durante o governo de Teodósio II, bem como a forma flexível e criativa com que os autores cristãos estabeleceram diálogo com as formas literárias do passado no sentido de dar autoridade aos seus escritos através uma retórica refinada.
No Capítulo 9, Stooping to conquer: the Power of imperial humility, Christopher Kelly novamente trás sua contribuição através da análise das cerimônias de humildade imperial (como ex. transferência de relíquias de mártires, longas procissões lideradas pelo imperador com pés descalços). Na sua leitura, tais acontecimentos estavam relacionados a estratégias orquestradas em que cerimônia religiosa e ideologia imperial se uniam tanto para dar sensação de proximidade com os cidadãos como para promover a piedade imperial. Estabelecendo um diálogo entre os panegíricos escritos no período com o Panegírico a Trajano, de Plínio o Jovem, Kelly demonstra como essas atitudes de humildade paradoxalmente aproximavam a família imperial de seus súditos e, ao mesmo tempo, acentuava a distância entre governante e governados com o intuito de justificar e legitimar a autocracia imperial. No Capítulo 10, The imperial subject: Theodosius II and panegyric in Socrates’ Church History, Luke Gardiner considera os problemas encarados pelo escritor eclesiástico Sócrates de Constantinopla na sua escrita sobre o regime teodosiano, ao qual era contemporâneo, particularmente em termos da reivindicação pública de piedade imperial. Gardiner observa uma estratégia similar adotada por Sócrates de Constantinopla, em sua História Eclesiástica, àquela adotada por Eusébio de Cesareia quando escreveu sobre o imperador Constantino. Os destaques e as habilidades atribuídas ao imperador, nesses panegíricos, serviam como estratégia para nuançar julgamentos de reprovação das decisões imperiais, em vista do risco de se criticar um imperador que ainda se encontrava no poder.
Encerrando essa quarta parte e finalizando a obra, o Capítulo 11, sob o títuloTheodosius II and his legacy in anti-Chalcedonian communal memory, Edward Watts analisa a forma como o governo de Teodósio II foi avaliado em quatro textos egípcios escritos entre os séculos V e VIII d.C.: o Plerophories, de João Rufus, a História de Dióscoro, do Pseudo-Theopistus, asCrônicas, de João de Nikiu e o Synaxary – um catálogo que lista os santos comemorados em cada dia do calendário egípcio. Watts observa que a tendência desses textos em realçar aspectos positivos do governo de Teodósio II, descrevendo aquele momento como o auge do império cristão e o paraíso da ortodoxia, tinha por estratégia estabelecer um contraste com o governo do imperador Marciano (450-457). No Concílio de Calcedônia, em 451, cujas decisões foram respaldadas por Marciano, ficou definido a natureza dual do corpo do Cristo encarnado, decisão essa que colidia com a doutrina que apregoava a união dessas naturezas, bastante popular na tradição egípcia e inspirada nos ensinamentos do bispo Cirilo de Alexandria.
Em vista da riqueza das temáticas analisadas, bem como a originalidade com que a documentação textual é trabalhada nos diferentes capítulos, consideramos que a presente obra passa a se constituir referência para os estudiosos dispostos a enfrentar os desafios de melhor entender o governo de Teodósio II. A grande quantidade de documentos remanescentes desse período encontra-se a espera de outras tantas abordagens instigantes como as que foram oferecidas nessa coletânea. Esse livro certamente trará, também, valiosas contribuições a todos os pesquisadores que se debruçam sobre o recorte cronológico denominado de Antiguidade Tardia, assim como aos historiadores em geral por seu caráter inovador na leitura da documentação.
Daniel de Figueiredo – Doutorando em História Antiga. Programa de Pós-graduação em História da Faculdade Ciências Humanas e Sociais. UNESP – Universidade Estadual Paulista – Campus de Franca – Av. Eufrásia Monteiro Petráglia, n. 900, CEP: 14409-160, Franca, São Paulo, Brasil. Bolsista FAPESP.