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Clio and the crown: the politics of history in Medieval and Early- Modern Spain – KAGAN (HH)
KAGAN, Richard K. Clio and the crown: the politics of history in Medieval and Early- Modern Spain. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 2009, 376 p. Resenha de: SILVEIRA, Pedro Telles da. Qual o lugar da história oficial na história da historiografia? História da Historiografia. Ouro Preto, n. 7, p. 338-344, nov./dez. 2011.
Sublinhar que o panorama da produção historiográfica na Idade Moderna é mais variegado do que durante muito tempo se tendeu a imaginar não deixa de ser uma espécie de lugar-comum nas obras – não tão recentes assim – dedicadas ao tema. De fato, já nos ensaios e conferências de Arnaldo Momigliano1 tal apelo era feito, e ele se repete e se complexifica nos livros de Donald R. Kelley (KELLEY 1991, p. 14-15) e Anthony Grafton (2007), para ficarmos apenas com alguns dos mais conhecidos nomes associados ao estudo desse tipo de historiografia. As obras destes e de outros autores procuram todas resgatar a vivacidade, a diversidade e a pertinência dos debates historiográficos anteriores à formação da historiografia enquanto disciplina científica, processo que ocorre, grosso modo, no decorrer do século XIX. E, mesmo assim, aspectos importantes dessa produção continuam negligenciados, como é o caso da história oficial. É tendo em vista esta situação que se insere Clio and the crown, de autoria do historiador norte-americano Richard L. Kagan.
Afiliado ao influente grupo da atlantic history, tendo editado junto com Geoffrey Parker, um volume em honra a John H. Elliott,2 Richard L. Kagan fez sua carreira estudando a Espanha dos séculos XVI e XVII e a administração de seu então poderoso império. As marcas dessa atuação aparecem logo no início do primeiro capítulo, onde afirma que apesar de muito da historiografia produzida nos reinos espanhóis nos séculos que lhe interessam terem sido objeto de estudos recentes, estes têm como foco as características estilísticas e retóricas destes textos, e não suas funções e seus usos (KAGAN 2009, p. 18). Também a filiação institucional de Kagan, professor na universidade Johns Hopkins, permite compreender o amplo recorte temporal que o livro abarca. Partindo das primeiras crônicas escritas em vernáculo em Castela no século XIII, o livro se fecha na passagem do século XVIII para o XIX, quando a falência da Real Academia de la Historia em cumprir seus objetivos indica que a era da história oficial chegara ao fim. Com esse recorte em mente, Richard L. Kagan paga tributo a dois de seus colegas de departamento, Gabrielle Spiegel e Orest Ranum, que já atacaram questões semelhantes a respeito, respectivamente, da historiografia francesa medieval e da historiografia seiscentista deste mesmo reino.3 Para Kagan, história oficial é a historiografia produzida visando a defesa dos interesses tanto de um governante quanto de uma autoridade religiosa, de uma corporação urbana etc. Para o autor, esse tipo de historiografia é um instrumento que visa divulgar uma imagem positiva daqueles nela interessados – do mesmo modo, ela também pode ser escrita para contradizer uma narrativa previamente formada (KAGAN 2009, p. 3). Seu caráter agonístico, portanto, tornou o número de narrativas e contra-narrativas produzidas por cronistas, historiógrafos e outras personagens protegidas por um ou outro mecenas extremamente alto; como o próprio autor indica, adaptando a expressão de um dos autores debatidos, trata-se de um “mar de histórias” (KAGAN 2009, p.42). Essas mesmas características, argumenta o autor, frequentemente impediram uma consideração mais atenta a esta historiografia, facilmente rotulada como derivativa, pouco inspirada ou outras qualificações menos lisonjeiras (KAGAN 2009, p. 4-6). Trata-se de um dos méritos do trabalho que Richard L. Kagan consiga desfazer estes estereótipos com uma obra ao mesmo tempo sintética e informativa, que analisa a fundo seu objeto sem perder de vista os processos mais amplos nos quais ele se insere.
Esta mirada simultaneamente ampla e detalhada marca o primeiro capítulo, no qual o autor traça um quadro da historiografia hispânica entre o final da Reconquista e o reinado de Isabel e Fernando, os reis católicos. Destaca- -se, no texto, a estreita relação entre os projetos imperiais acalentados pelos mais diversos governantes castelhanos e a as características da historiografia por eles patrocinada. Serve particularmente a estes propósitos o trabalho do taller historiografico organizado por Afonso X, responsável pelas crônicas produzidas durante seu reinado, em especial a “General estoria”, uma crônica da história universal até o século XVIII, a qual apresenta a narrativa da criação de um imperium hispânico através da inserção dos feitos ocorridos na Península Ibérica numa história mundial. A visão de um império que reina sobre a Espanha mas também se alastra pelos territórios dominados pelos mouros direciona também muito das crônicas produzidas sob o reinado de Sancho IV, demonstrando a imbricação entre historiografia e projeto político.
Richard L. Kagan direciona, portanto, ainda que de maneira um tanto quanto breve, sua argumentação em direção ao debate acerca da importância da própria historiografia em período tão recuado quanto o da Reconquista.
Para o autor, ao contrário do que uma de suas interlocutoras – Gabrielle Spiegel – argumenta, o nascimento de uma historiografia em vernáculo na Espanha teve menos relação com a criação de narrativas que legitimassem as pretensões da nobreza do que “com a determinação de Afonso X de aumentar sua autoridade real e [com] seus esforços de fazer o castelhano (i.e., espanhol) a língua oficial tanto da administração quanto da lei”. O rei sábio, dessa forma, antecipou em cerca de dois séculos a preocupação de Antonio de Nebrija de que língua e império deveriam andar lado a lado (KAGAN 2009, p. 24).
O segundo capítulo, por sua vez, trata justamente de um desses governantes influenciados pela visão de império cuja semente foi plantada no século XIII, Carlos V. A historiografia oficial elaborada sob a proteção deste monarca indica um caso bastante acentuado da dinâmica que, para o autor, é uma das características da historiografia oficial hispânica: a tensão entre uma historia pro persona, centrada nos feitos do rei, e uma historia pro patria, cujo foco está nas conquistas realizadas pelo reino como um todo. O capítulo também desenvolve uma outra tensão que atravessa a história oficial, e não apenas a de matriz hispânica, qual seja, a entre as demandas de um governante, as funções de um cargo – o de cronista, no caso espanhol – e as características da formação dos letrados, personagens recrutadas para escrever essas mesmas histórias. No caso de Carlos V, a pretensão de glorificar o próprio nome choca- -se com a ojeriza de humanistas como Juan Ginés de Sepúlveda e Paolo Giovo ante os projetos imperiais e dinásticos do governante, atravancando e, no fim, impossibilitando a escrita de uma crônica de seu reinado enquanto o próprio governante vivia. A tensão entre os governantes e aqueles que compunham suas histórias indica também as transformações por que passa a historiografia, que se aproximava cada vez mais da política e da concepção de Quintiliano segundo a qual à história interessava mais a persuasão que a instrução (KAGAN 2009, p. 88).
O autor, dessa forma, insere-se diretamente no debate acerca da escrita da história na passagem do século XVI para o XVII, colocando em questão a conotação muitas vezes negativa dessa mesma passagem.4 Richard L. Kagan faz questão de frisar a impossibilidade de se separar as razões pelas quais a história é escrita das formas que ela irá assumir e, por conseguinte, também a indistinção entre forma e conteúdo da narrativa da historiográfica. Como afirma, “as negociações do imperador com Giovio tratavam tanto da substância […] quanto do estilo, ou seja, da maneira particular na qual os fatos eram apresentados” (KAGAN 2009, p. 89).
A tensão entre a historia pro patria e a pro persona e a difícil relação os monarcas e seus escribas enquadra a discussão dos três capítulos seguintes, não por acaso dedicados à historiografia durante o reinado de Filipe II. No terceiro capítulo, o autor aborda a recusa do monarca de patrocinar uma obra de história com os contornos de uma historia pro persona, laudatória de sua figura; a atitude, muitas vezes interpretada como sinal de modéstia, na verdade indica que frente ao “mar de histórias”, Filipe II procurava escapar à natureza agonística da história oficial. Para isso, segundo Kagan, o rei espanhol apoiava a escrita de uma história que celebrasse os feitos antigos dos espanhóis e, ao mesmo tempo, defendesse a unidade de seu reino resultando dos acontecimentos passados.
Não deixa, portanto, de se situar no âmbito dos projetos imperiais, como já abordara anteriormente. A recusa de Filipe II, entretanto, não pôde se estender à totalidade de seu reinado, já que frente aos ataques à sua monarquia, ele passou a se inclinar em direção ao apoio de uma história de sua própria época. Essa transformação no pensamento de Filipe II, objeto do quarto capítulo, é enquadrada, no quinto capítulo, no debate relativo às possessões hispânicas na América e na Ásia.
Richard L. Kagan estuda a criação do cargo de cronista das Índias tendo em vista justamente o pano de fundo dos ataques à monarquia universal de Filipe II, argumentando mais uma vez pela ligação entre as políticas relacionadas à história e a própria produção historiográfica. Significativamente, tendo em vista as preocupações do monarca espanhol em sustentar uma historiografia que não fosse mera rival de suas contemporâneas, o próprio cargo de cronista das Índias demonstra a união entre preceitos políticos e os princípios elaborados pelos historiadores para certificarem e justificarem suas histórias. Segundo o autor, o ocupante do cargo não se dedicava apenas ao registro das ações que tomassem lugar no Novo Mundo, pelo contrário, pois
seguindo os trabalhos de de historiadores tão influentes como Francesco Guicciardini e os ditados do gênero da ars historicae, ele [o cronista] também tinha de refletir sobre as causas dos eventos e sobre os motivos por trás das ações individuais e incluir, por motivos didáticos, exemplae de vários tipos (KAGAN 2009, p. 151).
A conjunção de todas estas preocupações – à maneira peculiar que lhe era possível de realizar tendo em vista ocupar um cargo oficial – está presente no trabalho do primeiro cronista das Índias, Antonio de Herrera y Tordesillas, personagem central deste quinto capítulo.
É neste momento que a proposta do autor rende mais frutos, pois Kagan consegue tecer de modo mais detido a trama entre todos os fios de sua obra: o imperativo dos monarcas, as necessidades de um gênero e as capacidades – tanto intelectuais quanto políticas – daqueles dele encarregados. Se na introdução de seu livro o autor afirma que, no cenário intelectual da época, era o historiógrafo a pessoa mais autorizada para escrever sobre o passado, pois apenas ele tinha acesso aos documentos necessários para tal (KAGAN 2009, p. 6), a análise que faz da obra de Antonio de Herrera, cronista das Índias entre 1596 e sua morte, em 1626, permite justamente compreender como trabalhava esse mesmo historiógrafo. Taxado muitas vezes de plagiário (KAGAN 2009, p. 172- 173), a fina análise de Kagan permite reconstruir a imagem do autor como um leitor judicioso das obras que utilizava para compor sua própria história – mais do que como um investigador em busca de informações novas; simultaneamente, permite compreender que a tarefa à qual se dedicava enquanto cronista não era tanto a escrita de uma nova história quanto a reelaboração das narrativas já existentes, de modo a adequá-las à defesa daquele para quem escreve. Se se tornou um tanto quanto comum fazer o paralelo da figura do historiador com aquela do juiz, Richard L. Kagan, através do exame do trabalho de Herrera, faz um sonoro argumento a favor da comparação – que já aparece na introdução de seu livro (KAGAN 2009, p. 6) – entre o historiógrafo e o advogado. Para ambos não se trata nem de garimpar informações novas nem de inventar fontes, isto é, de revolver os materiais da história imbuído de má fé; pelo contrário, o que está em questão é utilizar as possibilidades do trabalho histórico para manipular seus enunciados a favor ou contra aqueles a quem a narrativa se endereça (KAGAN 2009, p. 5). Tarefa que, mostra Kagan, depende tanto das regras de verificação do discurso histórico, então objeto de um intenso debate, quanto qualquer outra narrativa pertencente ao mesmo gênero. Ressalta, também, a compreensão da obra do historiador oficial como uma empresa coletiva mais do que resultado da iniciativa individual, algo que também a historiadora francesa Chantal Grell destaca em obra recente (GRELL 2006, p. 13).
A trama dessas tensões constitui, sem dúvida, o aspecto mais importante do livro, e é apenas de lamentar que, por vezes, tentando costurar entre os mais diversos autores e contextos, Richard L. Kagan aborde demasiado rapidamente estes temas, sem reproduzir análise como a que faz a respeito de Antonio de Herrera. Mesmo assim, ele é feliz ao tratar, no sexto capítulo, a incapacidade de Filipe IV e de seu ministro, o conde de Olivares, de controlarem a circulação de obras históricas no interior da fronteira de seu próprio reino como indício da existência, já no século XVII, de uma opinião pública capaz de contradizer a propaganda oficial (KAGAN 2009, p. 204). A intersecção entre a legitimação perante o público e a atividade do historiógrafo adiciona outra camada de significação ao trabalho do autor no livro.
Também no sétimo e último capítulo o autor aborda parcela dessa dinâmica, ao demonstrar que a proposta de uma renovação intelectual feita pelos novatores e pela Real Academia de la Historia acaba por sucumbir às pressões e às intrigas da vida cortesã. A assimilação das pretensões críticas desta última instituição ao funcionamento da máquina administrativa da qual a história oficial faz parte resultou na própria perda de sua importância. Ao cabo, a Real Academia de la historia foi ultrapassada – assim como a história oficial (GRELL 2006, p. 16) – pela evolução da própria historiografia.
A dinâmica entre a história oficial e as demais províncias da história é o aspecto que garante a relevância da obra de Richard L. Kagan. Para além da preocupação com o estudo da historiografia do período – uma área particularmente forte no meio historiográfico de língua inglesa –, Clio and the crown também se insere, como se tentou demonstrar aqui, num debate que começa a ganhar corpo a respeito das relações entre a história dos historiógrafos e a narrativa de constituição da própria historiografia. Para Kagan, autores como Grafton e Kelley acabam por definir de forma demasiado rígida a linha divisória entre a historiografia oficial e a daqueles autores não ligados a qualquer cargo.
Em passagem carregada de ironia, na qual faz um inventário dos celebrados historiadores que foram também historiógrafos – uma lista que vai de Fernão Lopes a Voltaire –, Kagan destaca a dificuldade de situar a fronteira entre a historiografia “acadêmica” – isto é, motivada pela comunidade de historiadores e destinada a ela – e a historiografia “polêmica”, ou seja, a história oficial, direcionada a leigos e submetida a inúmeras flutuações políticas (KAGAN 2009, p. 4). Da mesma forma, ser um historiador oficial não significava necessariamente ser um mau historiador.
Conforme a historiografia avança para a era dos cronistas e historiógrafos, a obra de Richard L. Kagan lembra que para analisá-la não é o bastante reproduzir os limites disciplinares modernos como conceitos analíticos da historiografia passada. Se a necessidade de situar os discursos em seus contextos é cada vez mais premente, perguntar-se pelo que há de oficial ou patrocinado em muitas das obras historiográficas do período moderno pode ser maneira de historicizar o próprio trabalho do historiador. À medida que a historiografia brasileira avança, por sua vez, rumo ao século XVIII, é interessante perguntar como conectar uma história do método histórico a uma história social da historiografia, preocupações por vezes tão distantes. Seja qual for a pergunta, considerar o lugar da história oficial na história da própria historiografia passa pela resposta que Richard L. Kagan acabou de dar.
Referências
GRAFTON, Anthony. What was history? The art of history in early modern Europe. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.
GRELL, Chantal. Les historiographes en Europe de la fin du Moyan Âge à la Revolution. Paris: Presses de l’Université Paris-Sorbonne, 2006.
KAGAN, Richard L. Clio and the Crown: Writing History in Habsburg Spain. In: KAGAN, Richard L.; PARKER, Geoffrey. Spain, Europe, and the atlantic world: essays in honor of John H. Elliot. Cambridge: Cambridge University Press, 1995, p. 73-99.
KELLEY, Donald R. Versions of history from Antiquity to the enlightenment. New Haven: Yale University Press, 1991.
MOMIGLIANO, Arnaldo. As raízes clássicas da historiografia moderna. Bauru: EDUSC, 2004.
SPIEGEL, Gabrielle. Romancing the past: the rise of vernacular prose historiography in thirteenth-century France. Berkeley: University of California Press, 1993.
RANUM, Orest. Artisans of glory: writers and historical thought in seventeenthcentury France. Chappell Hill: University of North Carolina Press, 1980.
Notas
1 Para ficar numa obra de fácil acesso pelo leitor brasileiro, ver MOMIGLIANO 2004.
2 A contribuição de Kagan ao volume compartilha o título com o livro aqui analisado, demonstrando a permanência das preocupações do autor ao longo de sua atuação, muito embora a ênfase e a extensão temporal do capítulo – restrito ao reinado de Filipe II – sejam muito mais limitadas que no livro que publica cerca de quinze anos depois; ver KAGAN; PARKER 1995, p. 73-79.
3 Refiro-me a SPIEGEL 1993 e também a RANUM 1980.
4 Como transparece, por exemplo, no trabalho já referenciado de Anthony Grafton, para quem, no século XVII, a história era uma narrativa política escrita por estadistas ou funcionários – historiógrafos profissionais –, dos quais muitos poucos preocupavam-se com as maneiras a partir das quais escolher, justificar e examinar as evidência (GRAFTON 2007, p. 230-231).
Pedro Telles da Silveira – Mestrando da Universidade Federal de Ouro Preto. E-mail: doca.silveira@gmail.com Rua Novo Hamburgo, 238 – Passo d’Areia 90520-160 – Porto Alegre – RS.
Participatory Institutions in Democratic Brazil – AVRITZER (NE-C)
AVRITZER, Leonardo. Participatory Institutions in Democratic Brazil Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 2009. Resenha de: ROMÃO, Wagner de Melo. Entre a Sociedade Civil e a Sociedade Política. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.87, Jul, 2010.
Participatory institutions in democratic Brazil é a obra mais importante de Leonardo Avritzer desde a publicação de Democracy and the public space in Latin America1. O autor rediscute e amplia a análise sobre experiências de orçamento participativo (OP) nas cidades de Porto Alegre, Belo Horizonte e São Paulo e também apresenta estudos sobre mais duas “instituições participativas” — os conselhos de saúde e os processos de formulação dos planos diretores urbanísticos nestas cidades, e também em Salvador.
Avritzer reelabora o que tem sido seu principal desafio teórico desde os anos de 1990: as aproximações entre sociedade civil e sociedade política, e a incorporação de práticas originárias da sociedade civil pelas instituições políticas, em novos “desenhos institucionais” participativos com poder de deliberação sobre políticas públicas. O autor propõe-se a desenvolver uma “teoria das instituições participativas” (p. 4) e reconhece que “os partidos políticos e a sociedade política permanecem pouco teorizados na maior parte da literatura sobre participação, por causa do caráter elitista da literatura ou das concepções anti-sistêmicas da teoria dos movimentos sociais”2. Isto seria uma lacuna na literatura, sobretudo no contexto brasileiro, “em que o Partido dos Trabalhadores (PT) mostrou o caminho ao introduzir arranjos participativos, a conexão entre partidos políticos e sociedade civil na implementação de modelos de participação vem a ser uma variável-chave — mas que não é esclarecida pela teoria” (p. 7). Assim, a principal diferença deste livro para seus trabalhos anteriores é a incorporação da dimensão político-partidária à análise.
Avritzer busca formular sua teoria sobre as instituições participativas relacionando-a com três elementos principais: a sociedade civil, a sociedade política e o desenho institucional3. Inicialmente, o autor retoma a tese já presente em seus trabalhos anteriores: as mudanças na sociedade civil brasileira — explicadas, sobretudo, pelo avanço do associativismo em grandes cidades como Porto Alegre, São Paulo e Belo Horizonte a partir de meados dos anos de 1970 — teriam atuado fortemente para a democratização do país, em uma perspectiva autonomista ante o Estado autoritário, distinta de uma cultura política anterior, centrada na aproximação clientelista e subalterna ao aparelho estatal. Entretanto, o autor identifica algumas peculiaridades locais. Em Belo Horizonte e, principalmente, em Porto Alegre, indica maior autonomia em face do Estado e dos partidos políticos, na comparação com São Paulo e Salvador. Além disso, os movimentos sociais de Belo Horizonte e Porto Alegre seriam mais “generalistas” no que diz respeito ao acesso a bens públicos, enquanto os de São Paulo e Salvador teriam objetivos mais localizados — em torno da saúde e educação, em São Paulo, e do movimento cultural, em Salvador. Tais diferenças seriam fatores de maior ou menor sucesso na incorporação das “instituições participativas” ao sistema político formal.
Em seguida, o autor direciona suas observações às mudanças ocorridas na sociedade política brasileira e latino-americana nos anos de 1980 e 1990. É então que começa a ser incorporada à análise a dimensão partidária, pouco explorada nos textos anteriores em virtude da avaliação sobre a centralidade da sociedade civil nos processos de democratização no Brasil e na América Latina, e também pela visão de que o Estado seria refratário aos impulsos democratizantes advindos da esfera societária. Neste livro, ao contrário, Avritzer enfatiza o modo como a sociedade política, os partidos políticos de esquerda e, especificamente, o Partido dos Trabalhadores teriam atuado para a formalização do que chama de “instituições participativas”, incorporando demandas sobre participação presentes em suas origens “externas” às instituições políticas formais:
A sociedade política, no interior das instituições participativas, relaciona concepções de participação originárias dos atores da sociedade civil. Nesse sentido, reforça concepções gerais de participação que estão na raiz da formação dos partidos políticos de massas e de esquerda. […] O PT, no Brasil, desempenha exatamente este papel de relacionar ideias de participação presentes em suas origens com atores da sociedade civil que demandam participação. Na maior parte dos casos de participação analisados neste livro, a iniciativa foi tomada por atores da sociedade política (p. 10).
Esta nova demarcação teórica, dada pela incorporação dos partidos políticos à análise, dá-se de modo bastante específico:
Afirmo que a distinção entre partidos de massa e partidos eleitorais ainda é válida. Além disso, argumento que o lado identitário da formação do partido continua a ser relevante no debate sobre partidos políticos de massa. Demonstro que um partido de massas com ligações externas ao sistema político é o veículo ideal para trazer demandas participativas ao Estado (p. 13).
Assim, o modo pelo qual Avritzer incorpora a sociedade política na análise se dá pelo viés da sociedade civil, uma vez que o PT é visto como um partido de origem nela e portador de suas demandas participativas. As mudanças na sociedade política — em suma, o aparecimento do PT — são derivadas das mudanças ocorridas na sociedade civil: o PT, herdeiro direto do associativismo revigorado nos anos de 1970 e 1980, teria atuado como cabeça de ponte da participação popular no sistema político, facilitando a inserção de práticas democratizantes da sociedade civil no Estado.
Dessa forma, assim como no caso da sociedade civil, a caracterização do PT elaborada por Avritzer se dá na chave da autonomia: “o projeto político do PT nasce das demandas por autonomia em relação ao Estado feitas pelo novo sindicalismo e pela Igreja Católica” (p. 47). No caso do “novo sindicalismo”, tratar-se-ia de autonomia diante da tutela do controle do Estado sobre as organizações sindicais. No caso da Igreja Católica, Avritzer indica que “autonomia significou a habilidade dos atores sociais de demandar bens públicos — terra, serviços sociais, saúde, ou melhorias urbanas, como pavimentação ou saneamento — independentemente do Estado” (p. 47)4. Ao “novo sindicalismo” e à Igreja Católica, o autor agrega o que chama de new left, parcela da esquerda que critica os comunistas, sem que se demore em investigar suas características e o modo como teria se agregado às duas outras “forças de coalizão”.
Além disso, também como um componente identitário do PT, figuram a crítica ao clientelismo e a adoção da democracia participativa. Estes fatores teriam contribuído para que o PT tivesse inovado institucionalmente ao introduzir formas de participação no orçamento, na saúde e na política urbana.
É a partir desta caracterização do papel do PT na sustentação das “instituições participativas” que o autor introduz o que parece ser o principal — embora modesto — ganho analítico de Participatory institutions in democratic Brazil. Avritzer argumenta que, para que sejam investigadas as causas dos sucessos e dos fracassos das políticas participativas das diversas administrações petistas, devem ser conhecidas as seções locais do PT, sobretudo, quanto à relação entre identidade e estratégia no nível local. E avalia que o PT, como todo partido político de esquerda e de massas de perfil social-democrata, teria passado pelo dilema de manter sua identidade sociopolítica, construída sobre o princípio da autonomia dos movimentos sociais dos quais seria originário, e ao mesmo tempo tornar-se competitivo no sistema político — a dimensão estratégica. As variações desses dois pólos (identidade e estratégia) deveriam ser consideradas no âmbito local (municipal e/ou estadual). Deste conjunto de fatores originou-se maior ou menor “vontade política” da seção local do PT e de seus governos municipais para com as “instituições participativas” (p. 50ss).
Cabe no momento indicar o terceiro elemento analítico utilizado por Avritzer no livro. Ele propõe um olhar sobre as “mudanças no desenho institucional” (pp. 62-80), apresentando um “modelo dinâmico e interativo de desenho participativo”:
O modelo dinâmico e interativo também compreende que o sucesso do desenho participativo não é causado pelo desenho em si; antes, cada sucesso é o resultado não antecipado de interações entre atores da sociedade política e da sociedade civil que levam ao desmantelamento das velhas regras e fixam as novas (p. 64).
Este é fundamento do movimento teórico pelo qual o autor incorpora a sociedade política como um ator propositivo de instituições participativas, e não apenas resistente a elas. A partir da premissa do “desenho institucional e interativo”, são apresentadas três possibilidades de instituições participativas — o orçamento participativo, os conselhos de saúde e os processos de aprovação dos planos diretores municipais. Com base nelas, o autor constrói tipos ideais de desenho institucional, respectivamente os chamados bottom-up designs (desenhos “de baixo para cima”), os power-sharing designs (desenhos de compartilhamento de poder) e os ratification designs (desenhos de ratificação). Esses modelos terão maior ou menor possibilidade de sucesso de acordo com o modo em que se dá o encontro entre sociedade civil e sociedade política no contexto local. Assim, por meio da análise sobre como se comporta cada design em cada uma das quatro cidades estudadas, o autor pretende construir quadros comparativos que o levem a uma “teoria das instituições participativas”.
O livro denota um relativo deslocamento nas teses anteriores de Avritzer, sobretudo quanto ao orçamento participativo. De fato, era insustentável a pouca importância teórica dada ao contexto político-partidário das localidades, sobretudo aquele relativo aos posicionamentos do PT local e mesmo às disputas no interior do partido. Embora o tema não estivesse totalmente ausente em seus textos anteriores, o autor não havia ainda tratado do papel central dos governos — e dos partidos que os sustentam — na proposição e no controle dos processos de orçamento participativo. Ou seja, não havia ainda estabelecido como preocupação teórica a natureza das relações entre os partidos políticos e a sociedade civil que ajudam a explicar a configuração das instâncias participativas, considerando a propensão do PT local a estimular e fortalecer as instituições participativas. Avritzer pouco se debruçara sobre o problema dos padrões de comportamento e composição local dos partidos que ajudam a explicar as variações de “vontade política” nas várias experiências de orçamento participativo nos governos petistas ou não-petistas.
Este passo analítico teve que ser dado principalmente pelo relativo fracasso da experiência do OP de São Paulo. Anteriormente saudado como “potencializador da dinâmica participativa na cidade”5— a postura adotada pelo autor com relação a esse caso se torna mais crítica neste livro. Assim, a incorporação de São Paulo ao seu rol de cidades estudadas (em textos anteriores ele se respaldava nas experiências “positivas” de Porto Alegre e Belo Horizonte6) — traz a necessidade de explicar por que, em uma cidade com movimentos sociais tradicionalmente vigorosos, a experiência de OP não teria sido satisfatória na capital paulista.
Os oito anos de malufismo (1992-2000) entre a primeira e a segunda administração petista em São Paulo são indicados como perniciosos para a estruturação de instituições participativas na cidade. Isto teria se dado não só em relação ao OP, mas também aos conselhos de saúde e à elaboração de seu plano diretor urbanístico. Entretanto, o que é central como opção analítica é a verificação das divisões internas no PT paulistano sobre as prioridades dadas à participação popular, já presentes no governo de Luiza Erundina e acentuadas no governo de Marta Suplicy.
É fundamental ao argumento de Avritzer indicar o PT como um partido pró-participação. Os casos em que isso não se configura são ora explicados pelas fissuras internas ao partido — entre setores mais ou menos afeitos às instituições participativas —, ora indicados como “concessões” ao sistema político formal para que o partido não “perca votos”, como na justificativa pela “opção” do governo de Marta Suplicy em não privilegiar o OP como política de gestão, pela necessidade eleitoral que o teria levado a realizar acordos com a direita malufista na Câmara de Vereadores (p. 113).
Para Avritzer, quando há harmonia intrapartidária nas seções locais do PT, as chances de que o OP vingue são maiores. Este argumento vale tanto para o caso negativo — São Paulo —, em que não teria havido acordo no interior do partido sobre a dimensão a ser dada às políticas participativas, como para o caso positivo — Porto Alegre —, em que teria havido um “pacto” entre as principais facções para que as disputas internas não atrapalhassem o projeto político maior na cidade:
Em Porto Alegre, Olívio Dutra tomou posse com o apoio de todos os grupos internos ao PT, liderando um pacto segundo o qual cada facção local do PT iria indicar o prefeito nas eleições subsequentes. Tarso Genro seguiu Dutra, e Pont seguiu Genro, mostrando como este pacto no âmbito das lideranças produziu uma durável hegemonia do PT na cidade (p. 58).
Afirmações de tal natureza indicam os limites da análise de Avritzer e demonstram as insuficiências da compreensão apresentada pelo autor quanto aos padrões internos da competição político-partidária. É sabido que as disputas entre as forças políticas internas do PT de Porto Alegre — e gaúcho de maneira geral — nos anos de 1990 talvez tenham sido ainda mais conflagradas do que as do PT paulistano. Segundo Filomena7, de 1993 a 1999, estabeleceu-se uma aliança entre as tendências Articulação de Esquerda e Democracia Socialista (DS), adversárias do PT Amplo (grupo liderado por Tarso Genro). Tanto é que, ao contrário do que aponta Avritzer, em 1996 houve prévias entre Raul Pont (DS) e José Fortunati (PT Amplo) para a escolha do candidato a prefeito, vencidas pelo primeiro. Fortunati, então, torna-se vice de Pont. Já em 2000, mesmo com a vigência da possibilidade da reeleição, as novas prévias envolvem Pont, Fortunati e Genro, que as venceu. Estas situações e os muitos casos de desfiliações de figuras locais proeminentes — como o próprio Fortunati e, antes dele, Antonio Hohlfeldt, que fora o primeiro vereador do partido em Porto Alegre, eleito em 19828— indicam que o ambiente interno do PT gaúcho pouco diferia do habitual em outras seções do partido. Ou seja, as disputas por indicações a cargos majoritários deram-se em geral na base do voto e da quantidade de delegados que cada candidato ou facção conseguia arregimentar. Tal aritmética, da mesma forma, era a base para a nomeação de mais ou menos correligionários aos cargos no governo ou no partido9. O prestigiado OP porto-alegrense, sem dúvida, tornou-se também um anexo a esta disputa, pois se tornou um espaço político estratégico de fortalecimento dos grupos internos10.
É também interessante verificar como Avritzer trata de um caso negativo de orçamento participativo, o de São Paulo na gestão de Marta Suplicy (PT). Para o autor, a explicação para o fracasso se deve aos seguintes fatores, combinados: 1) o núcleo de assessores mais próximos de Suplicy seria cético em relação à participação, e teria deixado o comando do OP aos setores esquerdistas do PT na capital paulista, com pouco poder político no interior do partido e da gestão; 2) a opção de governabilidade executada pelo governo fora a incorporação de setores conservadores e malufistas à maioria governista, sobretudo por meio das nomeações de subprefeitos. Isto teria dificultado o OP em subprefeituras dominadas por membros de partidos não comprometidos com a participação.
Embora certamente tais fatores possam explicar parcialmente a pouca relevância do OP na elaboração do orçamento e na priorização de políticas públicas na cidade de São Paulo, não explicam o fato de o OP de São Paulo ter apresentado, nos quatro anos em que esteve em vigor, um crescente aumento na participação, que variou crescentemente de 34 mil a 82 mil pessoas, entre 2001 e 2004 (p. 101).
Em outros trabalhos, relativos aos casos de Porto Alegre e Belo Horizonte, Avritzer vinculou a participação à credibilidade do processo perante a população. Em suma, as regras do orçamento participativo seriam efetivas e as deliberações quanto à priorização de obras e serviços seriam cumpridas pelos governos11. No caso de Porto Alegre, o autor liga a baixa participação em algumas regiões com “menor tradição associativa” a dúvidas sobre a capacidade do processo em promover a execução de obras públicas. Sugere, então, que a existência anterior de práticas de participação da sociedade civil predetermina a efetividade do orçamento participativo. No caso de Belo Horizonte, os altos e baixos níveis de participação que se apresentam ano após ano são ligados também a dúvidas dos participantes quanto à efetividade e à continuidade do orçamento participativo. Em seu estudo sobre esta cidade, o autor relaciona tais dúvidas com a incerteza sobre se o candidato do PT ganharia as eleições em 1996 e se, depois, o prefeito do PSB daria a mesma prioridade ao OP12. Todas essas elucubrações, de fraca consistência empírica, servem ao autor para o reforço de suas premissas sobre a capacidade da população em participar de “modo racional”.
Em São Paulo, mesmo considerando que o OP “sempre levantou fortes dúvidas sobre o quão deliberativas seriam suas decisões” (p. 100), os números oficiais utilizados pelo autor demonstram que houve sempre um acréscimo dos níveis de participação, mesmo considerando que o OP paulistano teria privilegiado os setores mais organizados da população13 (p. 102), em tese, os mais esclarecidos sobre eventuais manipulações da prefeitura e/ou sua incapacidade em entregar as obras prometidas.
Tais inconsistências analíticas sobre a participação no OP e a limitação em se considerar os partidos políticos e governos apenas com relação à “vontade política” para se implementar ou não propostas participativas fazem com que o livro pouco avance na análise sobre o que realmente pauta a dinâmica política das experiências de OP e, de resto, das “instituições participativas”. A incorporação da sociedade política em sua argumentação é restringida por seu arcabouço teórico anterior, vinculado ao protagonismo da sociedade civil na proposição de processos participativos. Esta visão permanece em Participatory institutions in democratic Brazil, impedindo-o de avançar significativamente na incorporação à análise das dinâmicas próprias da sociedade política.
Artigos e livros publicados ao longo desta década14 têm contribuído para que se forme a seguinte tese: as “instituições participativas” são freqüentadas principalmente por agentes (indivíduos e grupos) situados nas franjas da “sociedade política”, em torno (ou mesmo no interior) dos partidos políticos. Esta visão é reforçada à medida que se sobe na escala de proximidade com a sociedade política, ou seja, no caso das experiências de orçamento participativo, de maneira crescente desde as reuniões de bairro até os “conselhos do orçamento participativo”, que deliberam sobre a proposta orçamentária a ser apresentada à Câmara de Vereadores e têm maior capacidade institucional de interagir com o poder municipal. A proximidade com as esferas estatais invariavelmente é utilizada pelos conselheiros para um melhor posicionamento pessoal (ou de grupo) no interior da dinâmica político-partidária-eleitoral de cada bairro e da cidade.
Diante disso, é preciso que o referencial analítico sobre os processos participativos induzidos pelos poderes públicos seja remodelado. Deve-se caracterizar, afinal, quem acorre aos conselhos e, mais do que qualificar e mensurar a relação dos conselheiros com organizações da sociedade civil, verificar qual o nível de relação destes com a sociedade política, tanto nas instituições (governos, partidos), como nos processos típicos das disputas realizadas na sociedade política, sobretudo as campanhas eleitorais. Afinal, quem é a “sociedade civil” que participa dessas experiências? E em que medida seus “representantes” podem ser considerados como tal, uma vez que, numa visão mais acurada, mantêm vínculos tão fortes com a sociedade política?
Este veio de análise não poderia ser trilhado por Avritzer, pois põe à prova suas teses originais sobre uma “sociedade civil” que demandaria espaços de participação e atuaria neles de maneira autônoma pela democratização do Estado. O argumento do livro, de que “o elemento analítico relevante é como sociedade civil e sociedade política interagem” (p. 165), mantém intacto o espírito de seus textos desde A moralidade da democracia15. É notável como, em Participatory institutions in democratic Brazil— embora avance na observação do contexto local das relações internas dos governos e partidos —, sociedade civil e sociedade política permanecem como elementos estanques. Pouco se diz sobre o quanto a dimensão substantiva da sociedade civil — tal como conceituada por Avritzer —, em vez de se afirmar, pode ser diminuída nos orçamentos participativos e nas outras instituições políticas.
Notas
1 Princeton/Oxford: Princeton University Press, 2002. [Links]
2 Todas as passagens do livro citadas foram traduzidas pelo autor.
3 Provavelmente, esta incorporação da sociedade política como um componente analítico no mesmo nível da sociedade civil tenha se devido, de um lado, a outros trabalhos sobre o OP que enfatizaram a centralidade das iniciativas partidárias para o sucesso (ou fracasso) de inúmeras experiências. De outro lado, Avritzer passa a reconhecer a multiplicidade de situações relativas à “vontade política” com relação ao OP no interior mesmo do Partido dos Trabalhadores e outros partidos de esquerda.
4 É interessante perceber como o autor, assim, vincula diretamente os movimentos sociais que demandam políticas públicas de todas as ordens à ação estrita da Igreja Católica.
5 AVRITZER, Leonardo, RECAMÁN, Marisol e Venturi, Gustavo. “O associativismo na cidade de São Paulo”. In: AVRITZER, L. (org.). A participação em São Paulo. São Paulo: Editora da Unesp, 2004, pp. 11-57. [Links]
6 AVRITZER. “O orçamento participativo: as experiências de Porto Alegre e Belo Horizonte”. In: DAGNINO, Evelina (org.).Sociedade civil e espaços públicos no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2002, pp. 17-45; [Links] Ibidem, “O orçamento participativo e a teoria democrática: um balanço crítico”. In: AVRITZER e NAVARRO, Z. (orgs.). A inovação democrática no Brasil: o orçamento participativo. São Paulo: Cortez, 2003, pp. 13-60. [Links]
7 FILOMENA, César L. O agonismo nas relações sociais do partido, dos espaços públicos da sociedade civil e do sistema administrativo estatal: a experiência da Administração Popular em Porto Alegre. Porto Alegre: dissertação de mestrado, Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da PUC-RS, 2006. [Links]
8 Antonio Hohlfeldt retira-se do PT em 1993, filiando-se ao PSDB, e José Fortunati, em 2001, filiando-se ao PDT. Ambos continuaram como figuras de proa na política no Rio Grande do Sul, sendo que Hohlfeldt foi vice-governador do estado (no governo de Germano Rigotto — PMDB) e José Fortunati é, atualmente, o prefeito de Porto Alegre (beneficiado pela renúncia de José Fogaça — PMDB).
9 O que não quer dizer que tenha sido o único critério para nomeações.
[10] BAIERLE, Sergio. “OP ao termidor?”. In: VERLE, João e BRUNET, Luciano (orgs.). Construindo um mundo novo: avaliação da experiência do orçamento participativo em Porto Alegre — Brasil. Porto Alegre: Guayí, 2002, p. 132-64. [Links] Cf. Filomena, op. cit.
11 Cf. AVRITZER, Democracy and the public space in Latin America, op. cit.; “O orçamento participativo: as experiências de Porto Alegre e Belo Horizonte”, op. cit.; “O orçamento participativo e a teoria democrática: um balanço crítico”, op. cit.
12 AVRITZER, Democracy and the public space in Latin America, op. cit., pp. 152-3.
13 Segundo survey utilizado como referência por Avritzer, em 2003, 69% dos participantes do OP de São Paulo pertenceriam a associações voluntárias.
14 NAVARRO, Zander. “Orçamento participativo de Porto Alegre (1989-2002): um conciso comentário crítico”. In: AVRITZER e NAVARRO op. cit., pp. 89-128; [Links] Wampler, Brian. “Instituições, associações e interesses no orçamento participativo de São Paulo”. In: AVRITZER (org.). A participação em São Paulo, op. cit., pp. 371-407; [Links] GURZA LAVALLE, Adrian, Houtzager, Peter e Achrya, Arnab. “Lugares e atores da democracia: arranjos institucionais participativos e sociedade civil em São Paulo”. In: COELHO, Vera Schattan e NOBRE, Marcos (orgs.). Participação e deliberação: teoria democrática e experiências institucionais no Brasil contemporâneo. São Paulo: Editora 34, 2004, pp. 343-67; [Links] Baiocchi, Gianpaolo. Militants and citizens: the politics of participatory democracy in Porto Alegre. Stanford-CA: Stanford University Press, 2005; [Links] COELHO, Vera Schattan e FAVARETO, Arilson. “Dilemas da participação e desenvolvimento territorial”. In: Democracia, sociedade civil e participação. Chapecó: Argos, 2007, pp. 97-126; [Links] WAMPLER, Brian. Participatory budgeting in Brazil: contestation, cooperation, and accountability. University Park, PA: The Pennsylvania State University Press, 2007. [Links]
15 AVRITZER. A moralidade da democracia: ensaios em teoria habermasiana e teoria democrática. São Paulo/Belo Horizonte: Perspectiva/Editora da UFMG, 1996. [Links]
Wagner de Melo Romão – Doutorando no Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade de São Paulo.
Academic capitalism and the new economy: markets, state and higher education | Sheila Slaughter e Gary Rhoades
A discussão sobre como a Educação Superior se transformou nas últimas décadas, acompanhando o processo de globalização econômica e financeira, e sobre como ela tem adquirido uma orientação cada vez mais próxima ao “mercado” não é recente. Também não o são os trabalhos acadêmicos que têm retratado o processo de mercantilização da educação superior observado ao longo das últimas décadas.
Apesar disso, a motivação e a justificativa para a elaboração desta resenha, além da relevância do tema e da qualidade do livro, remetem a três elementos. O primeiro diz respeito ao diferencial da abordagem teórico-metodológica utilizada, que pode ser entendida como um conjunto de fundamentos para uma “teoria do capitalismo acadêmico”. Essa abordagem centra sua análise na linha nebulosa que separa mercado, Estado e educação superior, assim como nas instituições e nos atores que rodeiam essa fronteira. O segundo elemento se refere ao fato do livro analisar as instituições de ensino superior norte-americanas. As críticas realizadas por estudiosos do tema nos EUA em relação ao modelo de educação superior são pouco absorvidas, intencionalmente ou não, pelos seus pares latino-americanos. O último elemento, que vai ao encontro do segundo, refere-se ao fato de o modelo norte-americano de produção de ciência e tecnologia ser assumido pelos países latino-americanos.
A tese que o livro apresenta é a de que o engajamento das instituições de ensino superior (IES) em atividades associadas ao mercado está se aprofundando. As IES, em particular as faculdades públicas e as universidades que perderam significativamente o suporte do Estado nos últimas décadas, agora desenvolvem, introduzem e comercializam produtos em grande escala no setor privado como uma fonte básica de renda. Atualmente, essas IES estão procurando gerar rendimentos a partir de e para seus núcleos educacionais, de pesquisas e de funções de serviço, abarcando desde a produção de conhecimento (tal como a pesquisa que conduz às patentes) até os currículos dos cursos e ao ensino (por exemplo, por meio dos materiais de ensino introduzidos no mercado).
Assim, o objetivo do livro é detalhar esse agressivo engajamento das IES norte-americanas na economia baseada no conhecimento e analisar os esforços delas em desenvolver, mercantilizar e vender produtos de pesquisa, serviços educacionais e bens de consumo no mercado privado. Para facilitar a visualização e o diferencial deste livro, apresentaremos brevemente o encadeamento dos 12 capítulos que compõem esse trabalho.
O primeiro capítulo, The Theory of Academic Capitalism, apresenta a abordagem teórico-metodológica que está por trás deste trabalho e que explica o processo pelo qual as universidades passaram a assumir nova economia.A base dessa abordagem está nos trabalhos de Foucault (1977, 1980), Mann (1986) e Castells (1996, 2000).
Este capítulo busca dar continuidade e fornecer contribuições ao conceito de capitalismo acadêmico desenvolvido por Slaughter e Leslie no livro Academic Capitalism: Politics, Policies and the Entrepreneurial University, que precede o livro aqui resenhado. Dando seguimento ao que foi analisado por esses autores, que buscaram olhar a invasão do lucro na academia, Slaughter e Rhoades analisam a incorporação de atividades orientadas ao lucro como um ponto-chave na reorganização (e novo investimento) das instituições de educação superior, que permitiu o desenvolvimento de suas próprias capacidades ao contratar novos tipos de profissionais, ao comercializar produtos e ao criar novos canais de comercialização com o mercado.
Sucintamente, a denominação de capitalismo acadêmico na nova economia se refere a um regime que engloba o engajamento de faculdades e universidades no mercado e seu papel na conformação do discurso e do comportamento pró-mercado no âmbito acadêmico. Os autores relacionam essa discussão com os temas sobre o estado neoliberal e a nova economia global estabelecendo, assim, uma intrínseca relação entre organização (IES) e ambiente. Ou seja, o impacto do neoliberalismo nas organizações.
No segundo capítulo, The Policy Climate for Academic Capitalism, os autores analisam de que forma as legislações nacional e internacional (os tratados e os acordos comerciais, por exemplo) contribuem para o desenvolvimento do capitalismo acadêmico na educação superior norte-americana. As legislações analisadas se referem a duas áreas aparentemente distintas, porém intrinsecamente relacionadas: auxílio financeiro aos estudantes e pesquisa. Os autores demonstram muito bem como essas duas áreas se influenciam mutuamente e como isso levou a um direcionamento da educação superior no sentido prómercado.
O terceiro capítulo – Patent Policies: Legislative Change and Comercial Expansion – busca responder como o Estado, o sistema estatal e as políticas institucionais de patentes criam oportunidades e propulsionam o capitalismo acadêmico.Ao analisar o sistema federal e as políticas institucionais de patentes de seis estados norte-americanos, os autores descrevem e explicam a influência poderosa do Estado e de seu sistema e das políticas de patentes na emergência de organizações que tentam aproximar a nova economia das IES.
A política de patentes revela uma mudança da percepção do conhecimento como bem público para um regime capitalizado. A mudança mais aparente, argumentam os autores, pode ser percebida naquelas IES que expandiram sua capacidade de gestão, permitindo, assim, o engajamento delas na nova economia.
Ao contrário do terceiro capítulo, que busca demonstrar como a policy e a politics influenciam na capitalização do conhecimento, o quarto capítulo Patent Policies Play Out: Student and Faculty Life analisa a prática, focando nos estudantes e nos funcionários das IES. Assim, explora o papel das políticas de patentes no desempenho acadêmico desses atores. Apresenta, ainda, como as regras e regulamentos implantados pelas políticas institucionais de patentes e pelo sistema universitário têm codificado e modificado valores e práticas. Membros da comunidade acadêmica têm sido contratados para identificar e descobrir invenções com potencial gerador de receita que podem ser patenteados. A capacidade gerencial das instituições, fundamental para seu engajamento no capitalismo acadêmico, tem aumentado consideravelmente, conforme mostram Slaughter e Rhoades. Além da interação entre segmentos das universidades e mercado, esses segmentos têm incorporado funções de mercado.
No quinto capítulo, Copyright: Institutional Policies and Practices, é apresentado como as políticas de copyright criam oportunidades para o capitalismo acadêmico. Os autores constataram que essas políticas permitiram que o conhecimento fosse concebido como um material que pode ser legalmente protegido e “empacotado” como se fosse um produto vendido em um mercado convencional.
O sexto capítulo Copyrights Paly Out: Commodifying the Core Academic Function analisa como as questões referentes à propriedade intelectual (artigos, materiais, conhecimentos, etc.) estão aparecendo nos contratos com as associações de classe e como as tecnologias da informação têm impactado a cultura acadêmica. Em relação à propriedade intelectual, os autores constataram que os professores procuram serem detentores dos copyrights tanto para benefícios do mercado quanto para controle de qualidade. No que se refere às tecnologias da informação, a constatação é de que as IES que empregam profissionais da área de administração dessas tecnologias facilitam o uso de tecnologias no desenvolvimento de produtos, mas o uso de recursos do campus aumenta a possibilidade da apropriação dos benefícios da inovação mais pela universidade que pelos professores.
No sétimo capítulo, intitulado Academic Capitalism at the Department Level, os autores analisam as práticas de 135 departamentos – de ciências duras, engenharias e ciências sociais – em onze universidades públicas norteamericanas. O objetivo deste capítulo é demonstrar o grau de penetração do regime de conhecimento baseado no capitalismo acadêmico no nível departamental. De forma geral, os autores verificaram que os departamentos possuem tanto atividades educacionais empreendedoras como de pesquisa. Ainda que o conjunto da academia rejeite a direção gerencial, individualmente os professores e pesquisadores possuem suas próprias atividades empreendedoras.
No oitavo capítulo Administrative Academic Capitalism, os autores exploram de que forma os reitores das IES contribuem para o regime de capitalismo acadêmico. Para explorar essa questão, eles analisaram o caso da Internet 2, uma organização de reitores das universidades norte-americanas. A partir da análise dos documentos do sítio eletrônico dessa organização, os autores constataram que os reitores trabalham de forma semelhante a presidentes de corporações e líderes de várias agências governamentais na construção de infra-estrutura de tele-comunicações para a nova economia. As universidades e as corporações seguem uma estrutura de propriedade intelectual que permite que cada um lucre com os produtos e os processos derivados da pesquisa publicamente financiada ao construir a infra-estrutura da Internet.
No capítulo nove, Networks of Power: Boards of Trustees and Presidents, os autores analisam como as redes universitárias estão conectadas e como essas redes de trabalho contribuem para o argumento do livro. Para tanto, estudaram as características e procedimentos adotados pelos comitês encarregados da administração universitária das dez melhores universidades privadas e das dez melhores universidades públicas que recebem a maior parte dos fundos da National Science Foundation (NSF). Além disso, analisaram a interlocução entre os comitês que participam da NSF Research 500 e as 30 primeiras corporações públicas capitalizadas nos Estados Unidos. O resultado dessa análise mostra que os comitês privados estão intrinsecamente conectados, permitindo uma maior vinculação das redes universitárias com as necessidades da nova economia, na forma de uma rede semi-formal.
O capítulo Sports ´R´Us: Contracts, Trademarks and Logos, escrito por Samantha King e Sheila Slaughter, suscita debate sobre estudantes como mercados cativos. Apoiadas em estudos sobre marcas e imagens, as autoras examinam contratos relativos às marcas de esportes como Nike, Adidas e Reebok. Também analisam as licenças de marcas registradas quanto aos nomes, logos e mascotes das instituições. Aconclusão é de que as empresas de calçados esportivos procuram universidades para introduzir suas marcas no mercado. Por outro lado, essas empresas encontram universidades ansiosas para vender seus programas de esportes como um ambiente de anúncio. A partir da década de 90, as universidades passaram a desenvolver produtos com nome, logo e mascote da instituição para os estudantes, quase tão agressivamente como as empresas fizeram. Frequentemente, universidades e empresas oferecem produtos com licença compartilhada (por exemplo, agasalhos esportivos com o logo da universidade).
O penúltimo capítulo, intitulado Undergraduate Students and Educational Marketing, explora o relacionamento das instituições e os estudantes no contexto de mercantilização das IES. Baseados em fontes secundárias, os autores exploram três temas conectados. O primeiro se refere ao crescente marketing institucional das IES, em particular, aquele que visa capturar um segmento maior de estudantes com maior poder aquisitivo. O segundo está relacionado à elitização da educação superior, noção de que as instituições atendem a um segmento cada vez mais restrito da sociedade. E o último tema refere-se à ênfase no consumo. Este tem a ver com a comoditização da educação superior que passa a ser vista como uma mercadoria que pode ser adquirida e consumida como qualquer outra.
No último capítulo – The Academic Capitalism Knowledge/Learning Regime -, os autores revisitam a abordagem teórico-metodológica, assim como, examinam alguns capítulos em um contexto mais amplo. Buscam, também, explorar as contradições, as ironias e as inconsistências do regime de conhecimento baseado no capitalismo acadêmico.
As principais contribuições deste livro estão no desenvolvimento de fundamentos para uma teoria do capitalismo acadêmico na nova economia e na centralização da academia como ator do processo de mercantilização da educação superior. O livro proporciona uma leitura muito interessante no sentido de desmistificar a academia como “vítima” dos interesses econômicos e de destacar o papel desta como ator dinamizador do processo de mercantilização do conhecimento.
Milena Pavan Serafim – Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Política Científica e Tecnológica da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. E-mail:milena@ige.unicamp.br.
SLAUGHTER, Sheila; RHOADES, Gary. Academic capitalism and the new economy: markets, state and higher education. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 2004. Resenha de: SERAFIM, Milena Pavan. Avaliação: Revista da Avaliação da Educação Superior v.15, n.1 Sorocaba 2010