Arquivos literários: teorias, histórias, desafios – MARQUES (A-EN)

MARQUES, Reinaldo. Arquivos literários: teorias, histórias, desafios. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015. Resenha de: COELHO, Haydée Ribeiro. Arquivos literários: teorias, histórias, desafios. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2015. Alea, Rio de Janeiro, v. n.  jan./apr. 2017.

Arquivos literários, comparativismo e outras navegações

O livro que resenhamos, do professor e pesquisador Reinaldo Marques, decorre de reflexões teóricas, da prática de pesquisa em acervos e de sua experiência administrativa como diretor do Centro de Estudos Literários e Culturais da Faculdade de Letras da UFMG. Quatro dos nove ensaios que compõem o livro trazem nos títulos o termo “arquivos literários”. Qual o sentido de arquivo literário? Como conceituá-lo? Na “Apresentação”, o autor afirma ser um conceito que “resultou numa ficção teórica para ficar num registro borgiano” (p.10) e “como produto de uma atividade especulativa (…) remete a um objeto mais imaginado e ideal nem sempre localizável no mundo empírico” (p. 11).

Na exposição sobre o arquivo e a Literatura Comparada (“Arquivos Literários e reinvenção da Literatura Comparada”), parte da perspectiva de Spivack diante dos rumos da Literatura Comparada na contemporaneidade, destacando, entre outros, aspectos como a tradução e o diálogo transdisciplinar, o que o leva a ressaltar ainda o sentido da literatura comparada como “multilíngue”. A partir das questões do comparativismo, propõe pensar no “arquivo literário” e “no pesquisador comparatista no arquivo” (p. 18). Em relação ao primeiro aspecto, são objeto de consideração os sentidos topológico e monológico do arquivo; sua desterritorialização e reterritorialização (que se dá na passagem do privado ao público) e o limiar do privado ao público. A “feição heterogênea” dos “fundos documentais” e a abordagem transdisciplinar, que requer metodologias da arquivologia, da museologia e biblioteconomia, são alguns dos pontos que propiciam o estudo do “arquivo literário” sob a perspectiva do comparativismo.

A reflexão teórica sobre o arquivo, advinda de saberes diferentes como Filosofia, Política e, ainda, Estudos culturais, suscita a noção de “arquivo literário” como “espaço aberto e inacabado, zona de contato e relações entre distintas temporalidades e subjetividades, capaz de percorrer descontinuidades e estranhamentos em relação ao tempo presente, a ativar anacronismos potencialmente problematizadores da racionalidade arcôntica, estatal e científica, da evidência histórica, que normalmente rege o arquivo” (p. 22).

Se, por um lado, o arquivista é responsável por zelar pelos documentos, normalizar, hierarquizar, armazenar e recuperar os dados nos arquivos, cabe ao pesquisador comparatista “desconstruir a ordem estabelecida (…) a intencionalidade que a estruturou” (p. 25). Tornando-se um “anarquivista”, o pesquisador comparatista está atento aos jogos que envolvem o poder e o saber, torna-se um “genealogista” (o que remete ao sentido de arquivo para Michel Foucault). É importante salientar que a proposta do autor dos ensaios, conforme esclarece em nota, anarquizar não corresponde a “bagunçar” o arquivo, mas interpretar os documentos, estabelecendo outras lógicas, outros deslocamentos que podem ser realizados com base nas tendências do comparativismo contemporâneo.

O segundo ensaio do livro, “Arquivos literários, entre o público e o privado”, está dividido nas seguintes seções: Arquivos de escritores: desterritorializações e reterritorializações; O público e o privado: rasuras; O arquivo do escritor no espaço privado; e O pesquisador, o arquivo, a lei. Nos primeiros parágrafos do estudo, há o questionamento da crítica textual, tendo em vista outras abordagens como a pós-estruturalista e aquela desenvolvida pelos estudos culturais. Essas tendências, aliadas aos estudos já existentes sobre os arquivos, podem trazer contribuições inovadoras, como fica comprovado ao longo dos nove ensaios de Arquivos literários: teorias, histórias, desafios.

Ao ser evidenciada a diferença entre a noção de “arquivo literário” daquela de “arquivo do escritor”, é ressaltado que este “ganha visibilidade na cenografia do arquivo literário, exibindo máscaras da persona autoral” (p. 35). Na comparação entre posições críticas (de Michel Foucault e de Jacques Derrida), é observado que a concepção de arquivo para o primeiro é “mais acentuadamente discursiva” (p. 36). Para o segundo filósofo, o princípio institucionalizador do arquivo está marcado pelo “lugar de consignação”. O poder arcôntico da interpretação faz com que Reinaldo Marques trate das relações entre a retórica e os arquivos. A explicitação dos sentidos de “mal de arquivo” expõe as singularidades da teoria derridiana.

A noção de “arquivo do escritor” suscita reflexões sobre o público e o privado, abrindo espaço para um campo amplo de indagações. O autor do estudo toma como referência textos básicos da teoria política moderna (A condição humana, de Hannah Arendt e Mudança estrutural da esfera pública, de Jürgen Habermas). No contexto do mundo globalizado, há um “encolhimento do espaço público” (p. 49), havendo repercussões sob o ponto de vista ético. Ao abordar o arquivo do escritor no espaço privado, muitas são as ideias que Reinaldo Marques deixa semeadas no caminho de nossa leitura, cartografada por ele: a institucionalização da vida privada pela difusão da leitura e da escrita; a biblioteca como refúgio, gerando um duplo afastamento (público e civil); o mundo privado da escrita em comunicação com o público; a relação entre a vida privada e o mundo burguês; o “indivíduo privado” buscando os “holofotes da publicidade”; o “entre-lugar” habitado pelo escritor e “a prática de arquivamento de si”. Esse último ponto é exemplificado com base na correspondência trocada entre Abgar Renault e Carlos Drummond de Andrade, escritores mineiros, cujas missivas são abordadas também em outro estudo do livro, tendo em vista o conceito “locação”, associado ao moderno “nos níveis literário, cultural, político e dos afetos” (p. 174).

Ainda no segundo ensaio, na seção destinada ao pesquisador, ao arquivo e à lei, é salientado, entre outros aspectos, no âmbito do público e do privado, o diálogo entre a arquivologia e o direito. Ao mostrar que o trabalho bemsucedido com os arquivos se realiza pela publicação dos resultados, o autor do livro em destaque, menciona dois exemplos de pesquisa “em acervos literários, um de êxito, outro de dificuldades”. No primeiro caso, refere-se aos trabalhos realizados e publicados a partir dos arquivos de Henriqueta Lisboa e, no segundo, ao “Diário alemão”, texto que foi traduzido e mantido inédito por questões jurídicas. Nessa exposição, fica claro que o arquivo e a memória representam um “campo de lutas políticas” (p. 83). É oportuno ressaltar que “Grafias de coisas, grafias de vida” (outro ensaio do livro) aborda justamente o “Diário alemão”, de Guimarães Rosa. O caráter heterogêneo dos “seis cadernos de anotações de João Guimarães Rosa” demandou um trabalho que abarca diferentes questões tratadas nos itens: leitura e escritura como coleção; a memória das coisas: breve biografia de um documento e biografias entrecruzadas.

No início desta resenha, mostrei que o termo “arquivo literário” aparece nos quatro primeiros ensaios do livro em destaque. No volume publicado, como no conto de Jorge Luis Borges, os artigos de Reinaldo Marques se imbricam e se bifurcam. Nesse sentido, a seguir, tratarei de aspectos que se interceptam e que criam outras possibilidades de análise dos arquivos, levandose em consideração o que já foi exposto e outros caminhos apresentados, no livro, sobre os arquivos.

A importância da imagem na cena contemporânea implica o estudo das representações do escritor, como este se encena nos “arquivos literários”. Tomando como referência o texto de Philippe Artières, Reinaldo mostra que, nas sociedades letradas, a existência dos indivíduos se faz pelo registro escrito. Ao utilizar o conceito de “arquivamento do escritor”, ele revela um duplo movimento que está associado ao arquivamento de papéis e ao arquivamento do próprio escritor que produz imagens de si mesmo, ao arquivar. Nos acervos literários, encontra-se uma variedade de imagens de escritores (“grafemáticas, fotográficas, plásticas, entre outras”). Exemplos ilustrativos, de imagens pictóricas, depreendidos do “Acervo de Escritores Mineiros”, dominam parte do ensaio destinado às imagens do escritor e aos arquivos literários. Os aspectos assinalados permitem que o leitor estabeleça conexões com outro texto do volume. Refiro-me ao artigo “O arquivamento do escritor” em que são assinalados “aspectos apontados por Philippe Artières, na constituição de arquivos pessoais” em confronto com “práticas de arquivamento” de escritores mineiros.

O pesquisador, que anarquiza o arquivo, não perde de vista os “restos” dos arquivos. Como dar conta dos “restos e ruínas”? Para essa travessia, Reinaldo se vale teoricamente das noções de “resíduos e farrapos da história”, de Walter Benjamin; da noção de “resto”, de Giorgio Agamben; e das considerações de Jeanne Marie Gagnebin, explicitadas na apresentação do livro do filósofo italiano – O que resta de Auschwitz. Na esteira da História, não faltam ainda em Arquivos literários: teorias, histórias e desafios, comentários sobre as relações entre arquivos literários e a formação do Estado Nacional; sobre o discurso e o saber sobre a literatura “capitaneado pela universidade”; sobre o papel pioneiro da Academia Brasileira de Letras, e a respeito das histórias locais e os arquivos literários brasileiros.

No último ensaio do livro, Reinaldo mostra que Terry Cook, ao abordar a questão dos arquivos, fornece elementos para se pensar na “dimensão subjetiva e de intervenção do arquivista”. Essa vertente da subjetividade, aliada ao conceito de “imaginação construtiva” (termo utilizado por Robin George Collingwood), evidentemente institui uma ligação intrínseca com o conceito de “arquivo literário” decorrente de uma “ficção teórica”. Apoiado na “imaginação construtiva”, que não perde de vista o “faro para a ‘estória’”, o autor do livro oferece múltiplas navegações em rede. Por essa e por outras razões explicitadas, a publicação comentada constitui uma referência fundamental para o estudo dos arquivos.

Haydée Ribeiro Coelho Professora da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Possui Graduação em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (1973); Mestrado em Literatura Brasileira pela Universidade Federal de Minas Gerais (1981); Doutorado em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (1990) e Pós-Doutorado pela Universidad de la República, onde desenvolveu uma pesquisa sobre o exílio de Darcy Ribeiro no Uruguai. Dedica-se, atualmente, às interlocuções culturais, literárias e críticas entre o Brasil e a América Latina. Atualmente, é coordenadora do GT ANPOLL Relações Literárias Interamericanas. E-mail: haydeeribeiro@hotmail.com

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Teoria (literária) americana: uma introdução crítica – DURÃO (AF)

DURÃO, Fabio Akcelrud. Teoria (literária) americana: uma introdução crítica. Campinas/SP: Autores Associados, 2011.Resenha de: PASINI, Leandro. Para onde vai a teoria? Artefilosofia, Ouro Preto, n.15, dez., 2013.

O livro Teoria (literária) americana: uma introdução crítica, de Fabio Durão, se apresenta como obra didática não apenas pela palavra “introdução” do subtítulo como por sua dedicatória aos “alunos da Unicamp”. Contudo, não há no livro sequer vestígio da organização didática tradicional que se esperaria de uma introdução. As corrente s teóricas em voga nos Estados Unidos nos últimos trinta anos, agrupadas sob o nome de Teoria (Theory), não são explicadas uma a uma, segundo critério e hierarquia que revelasse as preferências e a posição do Autor. Seguindo a mais autorizada das antologia s de língua inglesa, a Norton Anthology of Criticism and Theory, em sua edição de 2001, Fabio Durão lista as correntes surgidas depois da Segunda Guerra e que ainda são referência no debate teórico estadunidense: Estudos Culturais, Desconstrução e Pós-estruturalismo, Teoria e Crítica Feminista, Formalismo, Crítica Gay e Lésbica e Teoria Queer, Marxismo, Novo Historicismo, Fenomenologia e Hermenêutica, Teoria e Crítica Pós-Colonial, Psicanálise, Estudos de Raça e Etnicidade, Teoria de Reação do Leitor, Estruturalismo e Semiótica. Mesmo sob uma denominação genérica, é mais de uma dezena de perspectivas teóricas, em que cada um dos nomes pode se desdobrar em outros tantos, a exemplo das vertentes que o item “Desconstrução e Pós-estruturalismo” abriu no ambiente brasileiro. Nesse sentido, Fabio Durão rejeita conscientemente a compartimentação teórica, por um lado, e a postura de divulgador de ideias internacionais, por outro. Com isso, e causando grande espanto no contexto brasileiro, ele recusa a posição de mediador, de alfandegário cultural entre o que se faz nos centros e nas periferias do mundo universitário. Como consequência, não se pode esperar do livro uma simplificação de saberes complexos, como se, depois de sua leitura, fosse mais fácil compreender, por exemplo, Derrida, Spivak, Barthes ou Jameson, ou que uma receita fosse dada para que esses teóricos pudessem caber em um conhecimento panorâmico e pacificado. O livro se propõe, antes, a pensar a teoria teoricamente, ou seja, “tornar a Teoria ela mesma um objeto de reflexão teórica e crítica” (p. 4), encarando-a como uma nova formação discursiva, que será abordada por meio de sua ascensão e do debate que formou em torno de si. Para tanto, não se deve concluir que o Autor se desvincula da Teoria para abordá-la imparcialmente a distância. Seu ponto de partida é a “primazia do objeto”, pensado em consonância com a Teoria Crítica, de Adorno e Benjamin, que nesse caso não trata de questões artísticas e/ou filosóficas, mas da própria Teoria, que passa então por uma autorreflexividade radical. Esse procedimento, de pensar o fenômeno teórico pela perspectiva da Teoria Crítica, se realiza por meio de uma escrita ágil e desabusada, na qual a erudição, que existe, cede passo à argumentação civil e democrática, unindo curiosidade e vontade de conhecer à ausência de jargão e apelos a figuras de autoridade. Fabio Durão não é a priori contra nem a favor da teoria americana, ele não está entre os seus “defensores” nem entre os seus “detratores”. A Teoria é vista como u m fato consumado, pois, como diz o Autor: “seria inútil reivindicar um retorno aos velhos tempos anteriores à febre teórica” (p. 112), mas essa constatação não é um sinônimo de legitimação positiva da Teoria, ao contrário, ela é vista como “um campo marcado por contradições, constituindo-se, por fim, como uma aporia, pois se mostra ao mesmo tempo como imprescindível e insustentável” (p. 3). Entre as várias críticas que o livro dirige a ela, que não são poucas, duas são mais drásticas quando se pensa na relação entre Teoria e literatura: 1. a Teoria, em seus piores momentos, parece ansiar por uma autossuficiência que acaba por destruir os objetos, tornando-se assim intransitiva e autorreferente; 2. a consequência natural dessa autorreferrência é um solipsismo a um tempo ultracomplexo e sem finalidade, dando margem a constantes corridas em busca de uma autoridade abstrata. Contudo, a mistura de disciplinas e saberes, que podem ser vários, além dos imprescindíveis (Linguística, Psicanálise, Sociologia e Antropologia), faz com que o método criado pela Teoria adquira uma flexibilidade capaz de apreender qualquer objeto e se redimensionar em função dele, além de ter produzido a expansão e a multiplicação dos objetos de leitura. Assim, tamanha liberdade faz com que os eles possam ser tanto anulados quanto recriados, como Fabio Durão defende: “O papel da Teoria é contraditório, pois se por um lado ele relativiza a importância do literário, que agora passa a existir lado a lado com os cartoons ou o YouTube, por outro fornece um novo fôlego para a leitura de textos que de outra forma poderiam perder em interesse” (p. 49-50). A matriz prática dessa contradição é descrita no livro como uma crise interna dos estudos literários, devida, entre outros motivos, à redução do es paço socialmente ocupado pela literatura, que foi gradualmente substituído pelos meios de comunicação de massa, bem como às críticas internas da própria arte, presentes nas vanguardas do começo do século XX, e cuja corrente mais radical em sentido antiartístico, foi o Dadaísmo.

Como consequência dessa armadura argumentativa, é preciso notar a estranheza ou a novidade, ao menos no Brasil, de a Teoria ser objeto da Teoria Crítica, tendo em mente que esta se constituiu enquanto tal justamente pela plataforma de dar primazia a uma alteridade, colocando os conceitos em movimento ao contato com as obras artísticas. O perigo de uma Teoria Crítica cujo objeto é a Teoria reside principalmente na possibilidade de perda dessa alteridade, daquela “consciência da não id entidade entre o modo de exposição e a coisa” (ADORNO, Theodor W. Notas de literatura. São Paulo: Ed. 34/Duas Cidades, 2011, p. 37). Resumindo, entre Teoria Crítica e Teoria insinua-se, como que por contágio, uma perda de diferenciação cujo custo seria o evolar-se do adjetivo “Crítica” e a subsunção de Teoria como apoteose, mesmo que a intenção seja (auto)crítica. Parte central desse problema está presente no modo como Fabio Durão se comporta em relação aos objetos artísticos em comparação com o ethos anteriormente consolidado pela Teoria Crítica. Em dado momento, ele alerta para o perigo de se ler “Bakhtin sem Dostoievski ou Rabelais, Walter Benjamin sem Goethe, Deleuze sem Proust ou Kafka, Lacan sem Freud, Freud sem Sófocles ou Shakespeare” (p. 111). Dentro ou fora da Teoria Crítica – mas posta como pressuposto sobretudo por esta –, o contato com os objetos como configuradores do teórico é fundamental. Daí a pergunta: quais são os objetos literários ou artísticos que, presentes a cada entrelinha de Teoria (literária) americana, constituiriam a força dessa alteridade como resistência ao universal da Teoria? Salvo engano, as leituras constitutivas do Autor, subjacentes à sua perspectiva, não são literárias, mas teóricas, mais especificamente Adorno e Fredric Jameson. Essa questão se repõe na própria escrita do livro, que percorre com vivacidade e rapidez muitos campos teóricos diversos. A presença configuradora de uma obra ou de um conjunto orgânico de obras afetaria, em primeiro lugar, o estilo. Cada obra literária possui um travejamento próprio e oferece resistência ao campo da Teoria (tomada como um todo abstrato), pois aceita, virtualmente, algumas ideias teóricas mas não outras. Implicitamente, Teoria (literária) americana, mesmo defendendo os objetos, pare ce recusar, por sua própria natureza, o contato com uma ou conjunto orgânico de obras, que, por especificar o horizonte especulativo, colocaria diante do crítico um sem número de determinações e atritos a serem configurados pela escrita que seria, de certa forma, contaminada por alguns elementos desse(s) objeto(s). Contudo, essa imersão completa no campo da Teoria permite ao Autor captar a sua especificidade, a contradição viva e o nervo crítico que ela contém. Ao ser capaz de fundir diversos saberes e de refletir sobre os próprios pressupostos dessa fusão, a Teoria erige, como diz o Autor, “a transdisciplinaridade como seu princípio mais interno de funcionamento” (p. 13-14). A “visão de mundo” subjacente a essa prática é a radical separação entre o pens amento e a coisa. Como todo saber é construído, a própria construção do conhecimento passa ser o objeto da Teoria. É esse tipo de “relativismo construtivista” que permite o “trânsito entre todos os saberes da humanidade”, e, posso acrescentar, os conhecimentos passam a ser concebidos sobretudo como linguagem, fazendo migrar para o centro da reflexão da Teoria a atenção à linguagem anteriormente restrita aos estudos literários. A Teoria monta um campo de forças próprio em cujo centro ela mesma habita. Fabio Durão fala de uma exacerbação dos metadicursos da teoria literária” que passa a “constitui um campo (semi)autônomo. Ocorre a emancipação da Teoria em relação aos objetos, aos quais os estudos literários anteriores se modelavam; e essa emancipação possui um a liberdade virtualmente ilimitada de construir objetos de leitura e conhecimento, pois não apenas tudo pode ser objeto da Teoria como as mais imprevisíveis relações entre as coisas do mundo podem ser erigidas em objeto. Entretanto, se as potencialidades são enormes, as realizações são geralmente solipsistas, hipersofisticadas e herméticas, desabrochando o obscurantismo e a intransitividade do seio da liberdade, da práxis e da pluralização almejadas.

A explicação desse paradoxo pode ser encontrada em um argumento constante ao longo do livro: a semelhança entre a natureza da Teoria e a lógica do capitalismo tardio estadunidense. O Autor julga possível “identificar na liberdade enunciativa do teórico algo da flexibidade que se exige do trabalhador no novo mercado e da produção pós-fordista” (p. 31). Essa relação não se dá de modo genérico, mas tem em seu “espaço enunciativo”, a universidade, o seu instrumento específico de realização, em que ocorre a transposição para a teoria americana do um modo de produção social, adequando seu funcionamento à universidade produtivista atual. A abundância, o múltiplo, a pluralidade e todo o discurso do “excesso” vinculado pela aliança entre a Teoria e a noção de “pós-modernidade” não se colocam no mundo sob a égide exclusiva da liberdade mas também da produção capitalista, da lógica da moda e da frenética produção e consumo de mercadorias. Eis a face de conformidade plena da Teoria com o mundo em relação ao qual ela se pretende radicalmente crítica. Desenvolvendo um pouco essa questão, pode-se explorar mais a relação entre a fusão de disciplinas e a lógica produtiva pós-fordista. Não me parece que essa relação aconteça somente no plano da produção. Há no próprio movimento abstrato de nivelamento de todos os conhecimentos, todas as linguagens e todos os objetos algo daquela lógica de mediação universal e abstrata que Marx viu na forma-mercadoria. Para dizer brevemente, a possibilidade de equalizar todos os produtos do homem foi conseguida pela abstração do valor de uso no valo r de troca. O teórico e seu texto, em seu grau máximo de flexibilidade, não se assemelham a essa forma de mediação universal e abstrata entre conteúdos e formas por vezes muito diferentes? Em outras palavras, não assume o seu trabalho e o resultado dele como uma mimese da forma-mercadoria ? Se essa dedução estiver certa, ela se coloca em outro nível em Teoria (literária) americana, pois se transforma em uma pergunta que deve ser feita em relação ao próprio Autor: ao analisar essa “formação discursiva”, ele mesmo se desidentificaria do processo de mediação universal e abstrata da natureza da mercadoria presente na prática contemporânea da Teoria? Porventura não faria Fabio Durão a mimese de seu próprio objeto, incorporando em sua capacidade de transitar entre tantas correntes críticas com tanta desenvoltura algo da abstração sem finalidade da forma-mercadoria? O livro corre esse risco, e ele nunca é de todo dissipado. Porém, mais importante do que constatar o perigo é ver como nele a exigência de recuperação dos objetos ganha novo sentido. Seguindo a linha mestra de raciocínio do livro, o aspecto positivo da contradição da Teoria, a sua demanda de liberdade, ao mesmo tempo que se adapta ao mercado neoliberal, possui uma dimensão utópica: “uma utopia do conhecimento, livre das amarras da tradição e da nacionalidade” (p. 29). Porém, como separar essa extrema liberdade autoproclamada da arbitrariedade advinda muitas vezes de instâncias de poder contrárias à mesma liberdade proposta pela Teoria? A resposta compõe o eixo mais importante da discussão proposta pelo livro: “a teoria americana é legítima quando permite o surgimento de um objeto que sem ela seria inconcebível” (p. 116). Nesse sentido, os objetos que precisam ser recuperados não são os antigos objetos da teoria literária, pois aqui não se trata de uma nostalgia ou de simples vinculação à Teoria Crítica. Não é o caso de voltar a ler os textos como Benjamin lia Kafka, Goethe ou Baudelaire, ou Adorno lia Eichendorff ou Beckett, embora esses ensaios de maneira alguma saiam do horizonte. Os objetos a serem recuperados, se entendo bem o sentido profundo do livro, ainda não existem ; eles não são “coisas” que foram abandonadas e podem ser simplesmente reencontradas. A demanda de Fabio Durão é por novos objetos que surgiriam somente quando a Teoria refletisse radicalmente sobre ela mesma, exasperando as suas insuficiências e fazendo surgir de uma severa autocrítica a possibilidade de emancipação real, uma emancipação que gerasse um “outro”. Assim, os objetos são uma espécie de alteridade utópica nascida da autorreflexão da Teoria sobre seus paradoxos, uma tentativa de sair de si mesma por uma dialética implacável, da qual decorreria no campo dos estudos literários, uma exigência de transformação social, uma práxis libertária. Alcançar a alteridade é também alcançar aquela limitação e particularização que definem uma personalidade – um nome –, e buscam retomar algo de humano, de realmente diferenciado, na lógica produtiva e mercantil atual. Recuperar os objetos, então, não é somente um conselho ou uma exigência, é igualmente uma promessa de felicidade e de superação da mercadoria no âmbito dos estudos literários.

Leandro Pasini.

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Nuevo diccionario de la teoría de Mijail Bajtin – ARÁN (B-RED)

ARÁN, Olga Pampa. Nuevo diccionario de la teoría de Mijail Bajtin. Córdoba, Argentina: Ferreyra Editor, 2006. 284p. Resenha de: PISTORI, Maria Helena Cruz. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.7 n.2, São Paulo July/Dec. 2012.

Se Aurélio define dicionário como um “conjunto de vocábulos duma língua ou de termos próprios duma ciência ou arte, dispostos alfabeticamente, e com o respectivo significado […]” (grifo nosso), a proposta de um dicionário da teoria de Mikhail Bakhtin poderia se apresentar como a expressão da repetibilidade, do reiterável, da “explicação” monológica de termos. E ainda: se o léxico é apenas um dos aspectos do texto/enunciado/discurso na concepção bakhtiniana, sempre seria bastante complexa a tarefa de reunir o vocabulário do Círculo numa obra, com a finalidade de compreender o significado de cada termo ou conferir-lhe certa estabilidade de sentido. Fiel ao pensamento bakhtiniano, contudo, o diálogo está presente em todos os verbetes deste Nuevo Diccionario: com o autor/autores do Círculo, com o leitor, com diferentes comentaristas e críticos ao redor do mundo, ora com a teoria e/ou crítica literária, ora com a filosofia, a linguística, a psicologia, a antropologia…

O Nuevo diccionario de la teoría de Mijail Bajtin, publicado por Ferreyra Editor, Córdoba, Argentina, é dirigido e coordenado por Pampa Olga Arán, doutora em Letras Modernas e professora de Teoria y Metodología del estudio literario na Escuela de Letras da Facultad de Filosofía y Humanidades na Universidade Nacional de Córdoba. Arán esclarece, no Prólogo, que houve uma primeira edição, em 1998, mas que esta é uma nova versão, fruto do trabalho desenvolvido por ela, com a ajuda de Candelaria de Olmos – mestre em Sociosemiótica no Centro de Estudios Avanzados e chefe de Trabajos Prácticos de Semiótica na Escuela de Letras da Universidade de Córdoba, e uma equipe de investigadores, jovens em sua maioria. As diferentes vozes que se articulam no desenvolvimento dos 55 termos selecionados da obra bakhtiniana estão distribuídas entre as assinaturas de Pampa Olga Arán (13 verbetes), Candelaria de Olmos (8) e Lucas Berone – mestre em Sociossemiótica (9), responsáveis, assim, pela redação de mais da metade dos verbetes; os restantes são trabalhados pela equipe. O projeto contou ainda com o apoio econômico do Centro de Investigaciones de la Facultad de Filosofía y Humanidades e da Secretaría de Ciencia y Técnica.

A obra apresenta uma bem cuidada bibliografia de referência final, dividida em bibliografia específica de textos de Bakhtin; bibliografia específica de textos de Bakhtin e seu Círculo; estudos críticos e biográficos sobre Bakhtin; seleções bibliográficas; publicações periódicas; endereços URL. A seguir, breve notícia biográfica de todos os autores-colaboradores e o índice final dos termos.

Nas palavras da organizadora, “la forma de entradas múltiples y de recorridos simultáneos parece ser la que mejor se adecua al pensamiento abierto e inconcluso de Bajtín para quien nunca había sido dicha la última palabra”. Excelente justificativa, sobretudo ao mencionar as entradas múltiplas e as recorrências simultâneas, porque os termos da obra remetem constantemente uns aos outros, além de apontar para fora de si mesmos. Há mais: todos se inter-relacionam, não há como definir um sem que se defina sua ligação com os demais, constituem um sistema de pensamento “aberto e dinâmico”, em processo, e dependem de uma compreensão responsivo-ativa – de ao menos duas consciências. É por isso que as várias leituras da obra bakhtiniana, e ainda de seus críticos e comentadores, como é o caso deste Nuevo Diccionario, são sempre bem-vindas (ainda que seja para refutá-las, o que não é este caso).

Não há uma justificativa no Prólogo quanto à seleção dos termos. Por exemplo, os verbetes argumentoconhecimentocronotopodialogismogêneros discursivosparódiatexto, na realidade apresentam diferente relevância na obra do Círculo. Isto é, percebemos que não se trata de uma seleção de conceitos-chave para a compreensão da obra bakhtiniana, antes da seleção de noções que, naquele pensamento, assumem sentido e relevo particular.

A escolha do gênero parece ainda estar motivada pela epígrafe: “mi predilección por las variaciones y por heterogeneidad de términos en relación con un solo fenómeno” (Bajtín “De los apuntes de 1970-1971” Bakhtin, From Notes Made in 1970-71). Nesse sentido, lembramos que o problema terminológico na obra do Círculo não se atém apenas a essa predileção por variações e heterogeneidade de termos, expressa na epígrafe. Na realidade, a isso se acrescentam as traduções desconcertantes, surgidas no Ocidente a partir da década de 1960, publicadas fora da cronologia em que foram redigidas, muitas vezes refletindo e refratando teorias do espaço-tempo correspondente. Brandist, para quem a terminologia do Círculo, e especialmente aquela de Bakhtin ele mesmo, é muito particular e tem uma pluralidade de conotações, lembra que há termos como stanovlenie, que conheceu dez diferentes traduções no inglês, aparecendo de quatro formas distintas num mesmo ensaio. Isso também ocorreu de diferentes formas nas traduções para o francês, italiano, alemão, espanhol e português. É só pensarmos na possível confusão que poderia se formar em torno do vocábulo extraposición/exotopia, presente no Nuevo Diccionario. Constando do Prefácio de Tzvetan Todorov, na edição francesa de Estética da Criação Verbal, é o termo que ocorre na primeira tradução – do francês – que tivemos no Brasil. Paulo Bezerra, ao traduzir diretamente do russo, vai substituí-lo por distância ou distanciamento, com uma bela justificativa para isso na Introdução.

Independente dessas questões, ou talvez até por elas mesmas, este Nuevo Diccionario pode (e deve) ser lido como um hipertexto, que organiza cada um dos verbetes com uma introdução, apresentando o sentido mais geral do conceito na obra do Círculo. A partir daí, o autor rastreia a noção nas obras em que é encontrada, muitas vezes seguindo a ordem cronológica, e oferece ao leitor uma visão de como o conceito vai se estabelecendo ou se complementando (ou até se modificando) ao longo de todas elas, caso dos gêneros discursivos, por exemplo; ou então, como o Círculo restringe sua utilização a umas poucas obras, como é o caso de hibridación ou grotesco. No geral, há ainda uma conclusão mais ou menos avaliativa da fecundidade heurística da noção.

Alguns colaboradores são mais explícitos nos comentários e apreciações do conceito e estendem-se em aproximações com outras teorias. A meu ver, essa interação é extremamente enriquecedora. A esse respeito, o verbete sentido/significado, cuja autoria é de Analía Gerbaudo, é exemplar. Inicialmente, a autora já adverte da riqueza dos “aportes teóricos’ bakhtinianos tanto para a literatura como para a linguística. E aí, enquanto faz uma tomada panorâmica da questão sentido/significado na obra do Círculo, vai aproximando (e distinguindo) essa conceituação de outras, sobretudo de teóricos contemporâneos do Ocidente, como J. Derrida, Blanchot, o Barthes tardio, e mesmo Benjamin. Consciente está, porém, do desacordo entre os críticos dessas possibilidades de confrontação, pois conclui apresentando-nos, num breve balanço, especialmente a posição de comentadores bakhtinianos, como Ponzio, Zavala, Stewart, Morson e Holquist a esse respeito. Justifica-se, porém, com trecho do próprio Bakhtin, quando fala da “infinita heterogeneidade de sentidos” nos Apontamentos de 1970-1971: “La redujimos tremendamente mediante selección y modernización de lo seleccionado. […] Estamos empobreciendo el pasado y no nos enriquecemos nosotros mismos”. Desperta a curiosidade intelectual de nós, leitores, na comprovação das potencialidades de tais diálogos.

Convém assinalar que o referido problema de tradução eventualmente dificulta até nossa leitura de brasileiros, ainda que espanhol e português sejam línguas tão próximas. É o que pode ocorrer ao buscarmos o termo discurso. À primeira vista, o Diccionario não trata desse conceito essencial na obra do Círculo… Mas aí nos damos conta da existência do verbete palabra/discurso, assinado por Cristian Cardozo. E evocamos o conhecido ensaio de Voloshinov: no francês, Le discours dans la vie et le discours dans la poésie, Contribution à une poétique sociologique; no espanhol, La palabra en la vida y la palabra en la poesia. Hacia uma poética sociológica; na recente tradução para o português organizada pela equipe de Valdemir Miotello, A palavra na vida e discurso na arte. Introdução ao problema da poética sociológica. No entanto, palabra/discurso estão muito mais próximas no espanhol, diferentemente do que acontece em português (e também parece ser o caso do russo slovo). A partir de uma definição mais geral do termo na obra do Círculo, atribuindo-lhe inclusive a responsabilidade de conceituar toda a obra bakhtiniana como “una larga reflexión sobre ‘la vida de la palabra’ y sus modos históricos y sociales de producción de sentido, apropiación y refración” (p.203), o autor conclui o verbete com a importante afirmação de que “para estudiar la palabra como discurso no se la puede cosificar…” (p.211).

Em alguns momentos da consulta do Diccionario encontramos analogias intrigantes, como a de Candelaria de Olmos ao afirmar que Bakhtin parece substituir o binômio saussuriano langue/parole pelas relações dinâmicas entre gênero/enunciado: “a pesar de ser individual e irrepetible, el enunciado tiene un carácter social, mientras que el género – lejos de ser un sistema abstracto y normativo – , se presenta como un reservorio de reglas más o menos flexibles según el caso, elaboradas a lo largo de su uso, en situaciones histórico-sociales concretas” (p.138). Ou, ao consultarmos o verbete texto, também de responsabilidade de Olmos, constatamos a falta de referências importantes para a compreensão bakhtiniana do conceito, na medida em que a autora não busca o diálogo com as importantes obras de autoria disputada Voloshínov/Bakhtin, que poderiam enriquecê-lo… Por outro lado, há aí o posicionamento crítico frente à noção, situando-a em oposição ao estruturalismo ou ao pensamento sistêmico de Lotman, destacando a perspectiva polêmica bakhtiniana e apontando-lhe uma possível ambiguidade: “Hay que decir, pues, que la definición bajtiniana de texto es, cuanto menos, ambigua y que si en un sentido el término funciona como sinónimo del de enunciado; en otro, es su opuesto diametral y señala más bien, la materialidad del fenómeno (impresión, reproducción, etc). Esta ambigüedad es particularmente notable en ‘El problema del texto en la filología, la lingüística y otras ciencias humanas”. Sem dúvida, a compreensão responsivo-ativa do leitor deve levá-lo a refletir a esse respeito, instaurando novo diálogo com as obras do Círculo.

Cabe ainda um breve comentário sobre o verbete dialogismo, de importância primordial no pensamento bakhtiniano, muito bem organizado e de grande utilidade para o estudioso da linguagem (entre outros). Assinado pela coordenadora da obra, Pampa Olga Arán, de início apresenta uma visão cronológica de seu desenvolvimento e das várias ocorrências na obra do Círculo para, ao final, defini-lo como um “postulado que al condensar el imaginario de la dinámica histórica y social, atraviesa todos los conceptos, los une y les otorga sentido”.

Concluindo, apenas alguns poucos comentários: como esperado em obras coletivas, há diferentes profundidades e perspectivas na exposição e apreensão dos conceitos, o que de nenhum modo invalida o Diccionario. Em termos de complementação, a obra ganharia bastante – e também o estudioso de Bakhtin e seu Círculo, se houvesse a correspondência de cada um dos verbetes com outras línguas (o francês e o inglês); mas esbarramos aí novamente no problema da tradução. Por fim, é preciso destacar que livros organizados ou redigidos por especialistas brasileiros da obra bakhtiniana, como Beth Brait, Carlos A. Faraco, Irene Machado, Gilberto de Castro e Cristóvão Tezza foram consultados e fartamente citados.

Enfim, o Nuevo diccionario de la teoría de Mijail Bajtin revela-nos, antes de tudo, a penetração e a vitalidade da teoria do Círculo no país vizinho e, especialmente, na Universidade Nacional de Córdoba. Mas se, como nos diz Bakhtin, “um enunciado sempre cria algo novo”, na luta constante pela compreensão, este Nuevo Diccionario permite enriquecimento e mudança de todos nós, leitores/autores. Vale a pena! 

Maria Helena Cruz Pistori – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP/FAPESP, São Paulo, São Paulo, Brasil; mhcpist@uol.com.br.

Trilogia do controle – LIMA (PL)

Em Trilogia do Controle, composta na década de 1980, pelos livros O controle do imaginário, Sociedade e discurso ficcional, e O fingidor e o censor, Luiz Costa Lima encalça as vias que o levaram a pesquisar sobre o veto à ficção, o controle do imaginário, inquirindo a “qual interesse a que o suposto veto responderia” e “por que seria ele consumado justamente por aqueles que se dedicavam ao poético”.

É um trabalho de fôlego, erudito, crucial não apenas para estudantes ou professores das Letras, mas para todos aqueles que se interessam pelas Ciências Humanas. Costa Lima desvenda como e por que o controle sobre o imaginário traz as relações de poder provenientes do Estado, da Igreja, desde a baixa idade média até a nossa contemporaneidade. O autor, ao estudar o veto ao ficcional, oferta rico estudo das relações entre História e Literatura, suas aproximações e seus distanciamentos, especialmente no que concerne à primeira ser ligada à verdade e à razão, e a segunda ao fingimento e à mentira. Leia Mais

Giorgio Agamben: Poetry, philosophy, criticism / Alberto Pucheu

Ao se debruçar sobre o conjunto da obra de um dos maiores críticos literários da atualidade, o italiano Giorgio Agamben, Alberto Pucheu Neto, nessa monumental obra, esclarece e perscruta as sendas do processo de criação artística entre a relação que envolve a poética e sua imbricada conjunção com a filosofia, sem olvidar de como a crítica no mundo ocidental construiu seu arcabouço a partir da linguagem, do texto como elemento semântico e sintagmático de explicação do mundo, à medida que a razão instrumental ora recorria à poesia, ora se distanciava dela, enquanto mecanismo compungido de expiação do sentimento de descoberta do cosmos.

Essa é uma das razões pelas quais o pensamento filosófico e teórico do século XIX caracterizou-se pela invenção de uma escrita poético-teórica, ou seja, o processo de designação de uma linguagem responsável até pela própria criação dos sentidos, dando conta de uma explicação causal das coisas. Giorgio Agamben denuncia a separação ocidental entre filosofia e poesia. O que no princípio nasceu imbricado com os gregos, aos poucos se deslindava para uma ruptura da qual a poesia cada vez mais ficava resguardada não como mecanismo de elucidação do não revelado, mas como manifestação isolada de seus criadores, os poetas, como se suas conjunções expostas sob forma poética não contivessem em si um processo de exposição, até mesmo da linguagem. Para tanto, a crítica pode ser poesia e a poesia, crítica, segundo Pucheu, porque a suposta dicotomização entre ambas dificulta a compreensão de como a crítica, nasce a partir da poesia, instrumentalizando sua interpretação, assim como a crítica ao desvendar as filigranas da poesia, é, em sua essência, também poesia, estabelecendo intermediação, paralelismo, imbricação.

Para Alberto Pucheu, Giorgio Agamben aposta numa reconciliação de uma “teoria nela mesma literária”, a fim de encontrar a unidade da palavra despedaçada. A aposta reside em (PUCHEU, 2010, p. 20).

Lidar com a filosofia, a literatura e seus entornos interventivos a partir da busca incansável por uma nova modalidade de escrita, que reconcilie o cindido ocidental em um novo destino, é o projeto perseguido por Giorgio Agamben desde a primeira página de abertura de seu primeiro livro, quando assume a herança nietzschiniana de uma anunciada reversão de Kant.

A estética tornou-se um elemento da própria configuração instrumental da reflexão desgastada da própria arte. Propôs-se a ser maior que o ato da criação, de desapego às forças internas da criação para medir a transmissão e valor da obra. Ora, a obra não se resume ao seu resultado impresso, aquilo de que a crítica e a estética tentam dar conta, já que cada vez que se “retira um livro da estante para ler, outro livro, desse mesmo livro, permanece lá, para sempre invisível, para sempre ilegível”, na asserção do escritor egípcio Edmond Jabés, segundo Pucheu (2010, p. 56); afinal, toda obra escrita é apenas um prelúdio de uma obra ausente.

Outro problema colocado pela teoria literária do século XIX é a difícil desvinculação entre poesia e prosa — uma análise acurada da obra de Euclides da Cunha dá conta disso, afinal, as estruturas poéticas comportam diferenças de uma prosa que se proveu de elementos poéticos ao longo da história como estância criadora de sua narração, posto que a prosa contém em si elementos de sonoridade.

A sonoridade existente no processo de hibridização da prosa está contida em estâncias como a Versura do enjambement, ou como diria o próprio autor (PUCHEU, 2010, p. 76): A versura é o momento exato em que ela própria, enquanto disjunção, dá passagem e nascimento à articulação necessária dos versos. Assim, a versura do enjambement, fazendo a palavra retornar à sua origem criadora, manifesta a ideia do verso e, não menos, a ideia de linguagem: confundindo-se com ela, o poema, como um de seus lugares privilegiados, se fende em duas movimentações vazadas, a mostrar as duas forças intrínsecas a ele e a ela.

Ao evidenciar as diferenças entre poesia e história e poesia e cinema, o autor não se propõe a destacar a importância desta primeira em detrimento de qualquer outra forma de linguagem, expressão ou explicação do mundo; ao contrário, os mecanismos de legibilidade de linguagens como a histórica e a cinemática, ao se colocarem por vezes como não poesia, é que perdem sua força inextrincável não de explicação, mas de expiação dos sentidos, ou seja, aquilo que não pode ser explicado nem tudo pode ser explicado – deve ser intuído pelos sentidos, sorvido, consumido, compungido. Desta feita, Pucheu recorre à alusão feita pelo cineasta Abbas Kiarostami, que, afastando cinema de literatura e aproximando-a da poesia, se nega a aceitar um cinema que conte tudo, que explique didaticamente o sentido das coisas, que conte histórias. Para Abbas, a incompreensão faz parte da essência da poesia. O cinema deveria fazer a mesma coisa.

E quanto à história? Essa, por seu turno, no afã e desiderato de “explicar” tudo, ao ter se abastado da poesia e da literatura no século XIX, perdeu a sua força criadora, sua capacidade de imbricar-se nos mecanismos da existência humana pela dinamicidade da vida, por aquilo que, ainda que não realizado no plano do real vivido, nem por isso deixou de existir, tal como o livro que, tirado da prateleira, continuou a existir como preâmbulo de outro livro ainda não escrito. A história também se faz daquilo que se sentiu, daquele que se desejou, mesmo não efetivado no plano das relações objetivas.

Por essa razão é que Pucheu, no seu último e quarto ensaio, mostra as intrínsecas relações entre poesia e filosofia, mostrando como poetar e filosofar está carregado de sentidos e de uma captura da ou das existências. Para o autor, segundo o italiano Giorgio Agamben, “na busca de acesso a uma autêntica compreensão do problema da significação, o que está em jogo é a reflexão ocidental sobre o significar ou a linguagem. Entender esta questão é entender a necessidade de filosofar” (PUCHEU, 2010, p. 119).

Não à toa o autor culmina sua obra citando Hegel na sua explanação sobre o enigma na arte egípcia os diferentes níveis do simbolismo na arte, a superação das artes por outras artes, e o esforço de Édipo em decifrar o enigma da esfinge, ou seja, libertar a Grécia do que “ainda possuía de egípcio”, ou, “a vitória do humano sobre a naturalidade da animalidade presente na figura da Esfinge”, pletora vontade potente do herói civilizador moderno.

Giorgio Agamben e Alberto Pucheu Neto são interseccionais. O pensamento dos dois se funde nessa obra reveladora de como a trajetória de um pensamento instrumental ocidental pode levar a existência humana a um aprisionamento de um tipo de linguagem. Ser interseccional é romper com a atomização dos sentidos, com o encaixotar das formas de expressão, é perceber o mundo através das suas múltiplas formas sem encerrá-las em seus sentidos estanques, é enxergar o que de filosofia existe na poesia e o que de poesia contém a substância filosófica, é retornar para casa, para quando homens e mulheres se preocupavam em existir desvelando os mistérios, e não meramente afirmar que até os mistérios são criações da linguagem, como se antes da linguagem existisse o nada.

A poesia e a filosofia não são turistas, são viajantes. O turista quer chegar ao seu destino de qualquer forma, ele quer chegar. O viajante está preocupado com o caminhar, com o processo. Ele se descobre no percurso.

José Henrique de Paula Borralho – Universidade Estadual do Maranhão – EMA São Luís, Maranhão – Brasil. E-mail: jh_depaula@yahoo.com.br.


PUCHEU, Alberto. Giorgio Agamben: Poetry, philosophy, criticism. Rio de Najeiro: Beco do Azougue, 2010. 168, p. Resenha de: BORRALHO, José Henrique de Paula. Outros Tempos, São Luís, v.8, n.11, p.341-344, 2011. Acessar publicação original. [IF].

 

Rio-Durham (NC)-Berlim: um diário de idéias – DURÃO (A-EN)

DURÃO, Fábrio Akcelrud. Rio-Durham (NC)-Berlim: um diário de idéias. Campinas: Editora da UNICAMP/IEL/Setor de Publicações, 2008. Resenha de: LOSSO, Eduardo Guerreiro Brito. Teoria e ascese cotidiana. Alea, Rio de Janeiro, v.11 n.2, dec., 2009.

O livro do professor do Departamento de Teoria Literária da Unicamp, Fábio Durão, é um acontecimento único na produção editorial da teoria no Brasil. Trata-se de um “diário de idéias” feito de fragmentos aforismáticos que discorre de maneira muito pessoal sobre a situação da teoria nos três países – Brasil, EUA e Alemanha – que fizeram parte da formação do autor; por outro lado, aborda de maneira muito teórica experiências pessoais e cotidianas. É na duplicidade constitutiva da proposta que vamos nos adentrar.

Os fragmentos focam diferentes insights da relação de um personagem teórico com dois ambientes aparentemente estranhos: a universidade e o cotidiano. O desafio é, precisamente, pensar um com os olhos do outro, de modo que, recolhendo o melhor da teoria (a virulência crítica) e do cotidiano (a delimitação prática), haja de certo modo uma correção mútua do pior e potencialização mútua do melhor. Na teoria, o problema está na pletora de objetos mapeados e fabricação de modos de interpretação infinitos que neutralizam um trabalho do pensamento feito de irrupções, elaboração e pausas – momentos de silêncio. Essa questão aparece no interior de teorias atuais (desconstrução, estudos culturais), bem como na dimensão da prática universitária: excesso competitivo de estudo, iconização do nome dos filósofos, economia das citações, classificação de teorias como modos de leitura da realidade, métodos de ensino da literatura (p. 14, 21, 41). No cotidiano, a dificuldade está em lidar com a estrutura perversa do sistema de nos levar a vivências já preparadas, um consumo de modos de viver prévios. São analisados vários exemplos: os 100 sabores da loja de sorvete (p. 24, fragmento 19), as janelas dos apartamentos americanos (p. 25, fragmento 20), a visita e foto turística obsessiva por todos os lugares (p. 26-27, fragmento 22), o trabalho da audição nas salas de concertos (p. 24, fragmento 18) etc. A reflexão do cotidiano se desdobra em tornar o olhar estrangeiro uma forma metodológica de crítica de diferentes culturas, cotejando entre si EUA, Brasil e Alemanha, algo que poderíamos chamar de crítica da cultura comparada.

Por outro lado, o olhar desconfiado frente ao cotidiano não poupa o próprio cotidiano da universidade: pensa-se o quanto a vida intelectual está aprisionada em práticas estandardizadas e o quanto a reflexão sobre o seu cotidiano ataca diretamente a reificação do conteúdo produzido. Em ambos os casos, o personagem teórico dos fragmentos elenca os modos de reprodução da vida falsificada no mundo administrado em tempos pós-modernos e se coloca em questão, em primeira pessoa, na prática mais pessoal e inalienável (em pleno conflito com a inoculação íntima da alienação), sobre como agir e reagir, como avaliar e apreciar o que advém da imediaticidade do cotidiano.

Contra as diversas formas de ascese obsessiva que o sistema impõe (criando modelos de conduta, verdadeiros personagens típicos da cultura, como o do playboy brasileiro) (p. 45-46, fragmento 49), o ousado e modesto teórico não deixa de, ao procurar surpreender teoricamente um campo de problemas do cotidiano feito para se conservar impensado, praticar uma outra ascese. Trata-se de uma ascese da resistência (ou na expressão do esclarecedor prefácio de Marcus Siscar, “postura de resistência”) (p. 8) contra vivências imediatas impostas pelo sistema de conduta do estado falso, contra a aniquilação da experiência feita pelo controle disciplinar do espaço-tempo de trabalho e lazer; trata-se, enfim, de suspender o fluxo de imposições imediatas com a mediação de uma teorização do cotidiano. Isto é, nada mais ascético, mesmo que tal suspensão seja, em certos aspectos, anti-laboral, feita na mesa de bar, contrária à abundância de referências, ferramentas, possibilidades infinitas. A ascese moderna da teorização do cotidiano é contra, no fundo, pseudo-asceses que obedecem a modelos midiáticos e institucionais disciplinares, mesmo quando tais modelos se reproduzem no lugar que mais deveria questioná-los: na universidade pós-moderna, no próprio modo de vida dos críticos da reificação.

Daí a relevância, aqui, de nossa resenha dever abrir um parêntese para a diferença entre ascese e disciplina. A disciplina é imposta por educadores e instituições para a obtenção de êxitos em avaliações (provas, concursos), a ascese é construída por um sujeito singular para realização de um desejo absoluto (principalmente no caso da mística) por meio da renúncia a prazeres mundanos. A ascese tradicional de monges foi feita com base numa instituição que fomenta lugares de recolhimento, como o mosteiro, a disciplina tradicional se dá sempre no interior de uma instituição que controla o espaço-tempo do indivíduo – escola, hospital, prisão. Contudo, podemos pensar que, atualmente, com a informalização das atividades trabalhistas, o controle vigilante ao ar livre de cada movimento dos cidadãos, a passividade forçada da televisão e a atividade falsa dos jogos e da navegação virtual, entre outros fenômenos, o regime disciplinar se torna onipresente. A ascese, hoje, é em grande parte uma radicalização da disciplina: a anorexia das patricinhas, os workaholics, o planejamento sufocante dos turistas com seu roteiro, tudo isso é uma forma de, por meio de sacrifício dos prazeres do ócio, obter as virtudes do sistema: beleza, dinheiro, sucesso, signos de poder. Logo, a prática ascética é, nesses casos, nada mais do que o desdobramento exagerado da disciplina atual, em harmonia com o conceito de ascese protestante dos primeiros capitalistas de Weber, sendo dela a perfeita herdeira. Quando Fabio Durão pensa, nos EUA, o quanto o gordo se tornou proletário e o jovem marombeiro frequentador de academia, o burguês atual (p. 20, fragmento 13), está se referindo, a nosso ver, a uma das metamorfoses recentes da ascese burguesa.

Contudo, se o mundo é cada vez mais disciplinar e suscita asceses heterônomas, é necessário um grande esforço – ascético – para resistir não só à reprodução prática da disciplina imposta pela falsificação da existência, mas principalmente aos valores dessa falsificação. Isso só pode ser feito com a ascese singular do teórico crítico, que insere mediações do exercício crítico de pensar, suspensões, pausas, sedimentações. É uma ascese estética, hedonista, por um lado, para abrir espaço ao potencial crítico do ócio (que só é ócio do ponto de vista do mero cálculo das horas de trabalho, porém na verdade é outro tipo de trabalho ininterrupto, como provam as especulações do nosso personagem teórico pensando no vendedor turco na Alemanha) (p. 56-57, fragmento 64); e ainda mais trabalhosa, por outro, por demandar um esforço de recusa monstruoso diante da facilidade imediata.

Por isso, consideramos esse um livro genuinamente ascético. Ele nos apresenta uma estimável ascese teórica, e nos convida, sem dúvida, a praticar uma outra, contribui decisivamente para a ascese singular de cada um, pois asceses explícitas na escrita teórica servem para entrarem em diálogo, dialética. Nesse sentido, o livro abre uma perspectiva riquíssima – pouco percebida em outros livros que procuraram uma reflexão parecida, como Minima moralia de Adorno, Cool memories de Baudrillard, Rua de mão única de Benjamin –: tornar a teoria menos reprodutora de si mesma, por mais que ela deva se distanciar da prática, e mais prática, por mais que sua imanência seja insolúvel. Mas em que sentido a teoria deveria tornar-se mais prática, se justamente ela deve lutar contra a resistência à teoria das visões utilitaristas? No fato de que, justamente, ela pensou pouco um tipo de prática que a literatura pensou muito: a cotidiana, em forma de diário, na primeira pessoa; encarar a pobreza e a riqueza da experiência individual. É uma forma de a teoria ser mais literária, ainda que o livro sabiamente evite narrativas pessoais, não fale de amores nem de família, selecionando, no limite, apenas pequenos momentos de conversas com amigos para decolar o vôo de reflexões ao rés do chão. O objeto da teorização do cotidiano impele ao enfoque pessoal, mas na medida certa, de modo a focar fenômenos culturais gerais, que, entretanto, atingem intimamente a vida do dia a dia de todos.

A forma do diário, enfim, aproxima-se menos da autobiografia, demasiadamente individual, do que de textos ascéticos tradicionais, que observam o cotidiano com vistas a criticá-lo e transformá-lo com o olhar pessoal e exercícios específicos; mas é claro que a semelhança para por aí, pois o pensamento é laico e o objetivo não é religioso. Ainda assim, quando recusamos a semelhança superficial, insistimos na semelhança profunda (vinda da mais extrema diferença histórica) de uma resistência mediante certas renúncias: na ascese tradicional, aos prazeres mundanos, na ascese teórica, aos gozos da vida falsificada. Assim como para o asceta tradicional o mundo é pecado, para o teórico crítico, o mundo é regido pelo estado falso, e uma experiência que possa sair daí, na medida do possível, só se dá no deserto solitário da teoria sem concessões ao pecado capital de entregar a vida aos ditames da maioria. O conceito de prática aqui, portanto, não é privilegiadamente político, mas ligado ao âmbito da experiência individual, não é só a micro-política, é a micro-existência de viver a minúcia profana. É aí, a nosso ver, que a teoria pode e deve tornar-se mais prática: em pensar e experimentar uma prática impensada e mal praticada, precisamente, pela teoria e mesmo pela vida universitária.

Com isso, o teórico não se furta aos prazeres da indústria cultural, não é tão chato assim, mas vai surpreender a lidar com a imediaticidade precisamente lá onde ela mais está nos invadindo, conquistando, assim, territórios que os papers e a codificação da forma nas revistas acadêmicas insistem em não tocar (para uma análise de uma das formas de codificação do artigo científico, “Sobre o conceito de X em Y”, ver p. 42, fragmento 45). Quando a teoria se torna mais prática, intrometendo-se na dimensão da objetividade mais intransitável e impensada pela filosofia (ainda que Montaigne, pré-românticos alemães e muitos outros desmintam o muro estabelecido pelos sistemas filosóficos e sejam sempre mal aproveitados), a teoria se mostra mais digna de seu nome. Se a forma ensaística foi parcialmente codificada pelo artigo universitário, mesmo assim os fragmentos do livro expõem o grau de distância que o artigo acadêmico se encontra de uma crítica que atinja hábitos tornados regra de conduta na concretude da vivência diária.

Por isso e muito mais, o livro de Fábio Durão dá um sopro renovador na teoria literária brasileira. Lembro que o Brasil produz trabalho de qualidade na área de teoria geralmente quando aborda objetos de estudo nacionais, restringindo o alcance da teorização ao seu território, daí o fato de a sociologia da literatura ter dados frutos mais rentáveis. Contudo, falta uma simultânea ousadia e consistência para pensar também simultaneamente o aqui e o ali e refletir sobre a teoria, hoje globalizada, sem cair em classificações escolares, métodos fixos de interpretação ou mera reprodução de escolas importadas. Durão realiza essa difícil tarefa da forma (no duplo sentido) mais modesta. Em primeira pessoa, trata até mesmo o Brasil como , enquanto está na Alemanha e nos EUA, mas justamente nesse momento a tradição não só de pensar o Brasil como do exercício autônomo de pensar dos brasileiros, feito precisamente sob a pressão do deslocamento do exílio, está dando seu mais novo salto.

Eduardo Guerreiro Brito Losso – UFRRJ

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Investigações | UFPE | 1987

Investigacoes Linguistica e Teoria Literaria Investigações | UFPE | 1987