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Die Späten Wissenschaftlichen Vorlesungen (1809-1814) – FICHTE (Ph)
FICHTE, J. G. Die Späten Wissenschaftlichen Vorlesungen (1809-1814). Editado por H. G. von Manz, E. Fuchs, R. Lauth, e Radrizzani, I. 3º volume. Stuttgart-Bad Cannstatt: Frommann-Holzboog, 2012. Resenha de: SANTORO, Thiago Suman. Philósophos, Goiânia, v.18, n. 1, p.233-243, jan./jun., 2013
Como terceiro volume da série intitulada J.G. Fichte – Späte wissenschaftliche Vorlesungen (Studientexte), o livro ora avaliado traz a lume importantes textos da fase berlinense do filósofo, que na sua maior parte permaneceram inéditos até metade do século XX, com o início da edição crítica de suas obras completas. O presente volume inclui uma reprodução dos manuscritos originais de três cursos ministrados entre o inverno de 1811 e o verão de 1812, que têm por título Lições sobre a Determinação do Sábio1 (Vorlesungen über die Bestimmung des Gelehrten), Doutrina do Direito (Rechtslehre) e Doutrina da Ética (Sittenlehre). Enquanto objetivo geral da presente resenha, pretendo não exatamente estabelecer uma análise crítica do conteúdo filosófico das obras em questão, algo que sem dúvida necessariamente ultrapassaria em muito o escopo de uma resenha padrão, considerando-se a complexidade dos textos aqui recolhidos, e considerando sobretudo que não são textos de um novo autor senão obras de um filósofo já consagrado na história, mas almejo apenas apresentar de modo sucinto alguns dos principais temas tratados no livro, de modo a instigar a curiosidade filosófica do leitor, e principalmente chamar a atenção para algumas qualidades dessa edição primorosa em novo formato. Segue abaixo, assim, uma breve descrição geral do conteúdo dos cursos em questão.
Também denominado Doutrina Ética para o Sábio2, temos na presente edição o terceiro ciclo de preleções sobre esse tema, intitulado Lições sobre a Determinação do Sábio (Vorlesungen über die Bestimmung des Gelehrten), e proferido em 1811 na recém fundada Universidade de Berlim, um curso que Fichte já lecionara no início de sua carreira acadêmica em Jena (1794)3, e posteriormente no seu retorno à vida universitária em Erlangen (1805).
Na primeira versão do curso, em Jena, encontramos ainda um texto que traz diversas questões teóricas não resolvidas, pois somente alguns anos mais tarde, após a elaboração da Doutrina do Direito de 1976 e da segunda versão da Doutrina-da-Ciência (nova methodo), Fichte responderá de maneira adequada, por exemplo, ao problema do papel que a intersubjetividade desempenha na definição da tarefa do sábio. Além disso, esse texto inicial consagra suas primeiras preleções à descrição de três premissas fundamentais da definição da tarefa do sábio: se na primeira lição temos uma determinação do homem em si, na lição subsequente encontramos uma determinação do homem na sociedade, seguida de uma investigação sobre as distintas posições ou classes profissionais na sociedade. Só a partir dessas etapas seria possível ao filósofo sistemático Fichte deduzir, na quarta lição, uma Determinação do Sábio. Ao final da obra, o autor faz um excurso sobre Rousseau.
Todas essas etapas preparatórias serão suprimidas já na edição de 1805, e o curso de Berlim, seguindo os moldes deste último, apresenta como desenvolvimento ulterior das teses de 1794, além da determinação do sábio, uma espécie de tipologia dos distintos modos de atuação e comunicação desse mesmo sábio. Assim, o referido curso pretende responder, nas próprias palavras de Fichte, às seguintes questões fundamentais: 1) o que é o sábio? 2) como ele se torna sábio? 3) como seu ser interior se exterioriza no fenômeno?4 Engana-se, todavia, aquele leitor que pretende encontrar aqui uma simples investigação superficial acerca do status quo da emergente classe acadêmica na Alemanha da época, ou alguma espécie de manual de etiqueta para o métier do filósofo universitário. Não por acaso decidi traduzir o termo alemão Gelehrte, utilizado no título da obra, por “sábio”, ao invés de “douto” ou “erudito”. De acordo com as primeiras lições do curso de 1811, o sábio serve como uma espécie de mediação entre os aspectos suprassensíveis e sensíveis da realidade. Em outras palavras, Fichte sugere que a essência do sábio, na esteira do modelo platônico, consiste em uma visão de ideias, isto é, em certa compreensão intuitiva do fundamento conceitual que determina a própria realidade humana. Caso o sujeito decida transmitir essas ideias a outros, ele se torna professor. Caso ele pretenda implementar essas ideias no mundo, ele se torna administrador do estado.
Ao responder à segunda questão inicial, Fichte observa que o processo de tornar-se sábio não pode se realizar desde fora, desde um procedimento mecânico, mesmo que através do domínio da razão ou da linguagem, pois o objetivo final dessa formação só é atingido quando o indivíduo acessa sua intuição interna e desenvolve, conforme indica em tom um tanto místico o próprio texto de Fichte, um “olho para o suprassensível” 5 . Somente através desse esforço interno próprio, para além da mera erudição, é que o sujeito alcança o estatuto de sábio.
Nesse sentido, o teor da tese anterior parece delimitar o percurso ulterior da obra, na medida em que Fichte utiliza a distinção entre sábios e não sábios para estabelecer uma controversa estrutura hierárquica de funções sociais (mais uma vez ressoa aqui a politiké platônica). E a partir disso chegamos à tentativa fichtiana de responder à terceira questão fundamental da obra. Contudo, infelizmente a natureza inacabada do texto original (pois não dispomos mais do restante das lições que continuaram o curso de Berlim), ao invés de explicitar a forma de manifestação ou exteriorização do ser interior do sábio, conforme o plano inicial da obra, traz na sua quinta e última lição apenas uma descrição de critérios para a escolha dos distintos tipos de alunos nessa formação.
A presente edição das conferências de Fichte no período tardio de sua filosofia contém ainda duas importantes obras dos ciclos de lições sobre subdisciplinas filosóficas iniciados já no período de Jena, a saber, a Doutrina do Direito e Doutrina da Ética. No que diz respeito ao primeiro, o texto final dessa edição estudantil enfrentou certo desafio editorial. Na edição crítica GA, temos uma reprodução exata do manuscrito resumido e muitas vezes críptico redigido pelo próprio autor. Além disso, há uma versão desse curso editada pelo filho de Fichte6, que no entanto acrescenta, sem indicar precisamente em que situação, passagens do texto fichtiano de 1796 sobre o mesmo tópico, ao considerar que o curso de Berlim faz remissões às preleções desse primeiro ciclo. A presente edição optou por um sensato meio termo, na medida em que adotou o texto original como base, acrescentando quando estritamente necessário à compreensão os trechos de 1796 entre colchetes.
Ainda que através de dois manuscritos de estudantes da época possamos afirmar que Fichte de fato fez referências à sua obra do período jenense sobre direito no curso de Berlim, não se trata aqui no presente texto de uma simples reformulação das teses anteriores. As lições tardias estão estruturadas em duas grandes partes, sendo a primeira uma introdução ao próprio conceito de direito que supera em clareza e facilidade de compreensão a exposição de Jena, e tendo como segunda parte principal uma análise dos contratos de propriedade. Além disso há um anexo relativo ao direito internacional (Völkerrecht), e desaparece o conteúdo, frágil em sentido argumentativo, a respeito do direito familiar que constava na primeira versão da doutrina do direito.
Outra diferença marcante dessa versão tardia da doutrina do direito com relação à anterior consiste na exposição mais direta daquilo que poderíamos denominar por fundamentação do direito. Ao contrário do texto de 1796, redigido ainda na época em que Fichte iniciava o desenvolvimento de seu sistema filosófico, a presente obra pôde já tomar como pressupostas as deduções da intersubjetividade estabelecidas, por exemplo, na Doutrina-da-Ciência nova methodo. Não se pode ler, contudo, nessa diferença de método uma espécie de transformação no próprio projeto fichtiano.
A doutrina do direito de 1796 simplesmente apresenta um prenúncio dessas deduções necessárias ao sistema do filósofo, e agora Fichte pode considerar isso como realizado e explicar a origem do conceito de direito a partir de seu fato fundamental, a saber, a existência de uma comunidade de seres livres.
Uma das teses fundamentais apresentadas na teoria do direito fichtiana envolve a distinção radical entre a esfera jurídica e aquela relativa à moral, ainda que Fichte jamais considere aceitável uma separação absoluta entre ambos os termos. A esfera jurídica, que concerne a totalidade ou conjunto dos indivíduos em sociedade ao invés do indivíduo particular, funciona como um mecanismo de coação, no sentido de que garante ao corpo social a manutenção dos direitos individuais ao exigir de cada cidadão o cumprimento dos seus deveres, através da obediência às normas vigentes em sua legislação. Mas isso não impede a qualquer indivíduo que sua atuação no meio social se paute por princípios éticos, desde que em acordo com tais leis. Nesse sentido, o direito se mostra como condição necessária porém não suficiente para a realização da ética.
Outro aspecto interessante da teoria fichtiana concerne o limite inerente ao papel do estado na definição das atividades individuais. Longe de defender um estado completamente controlador, como algumas de suas críticas mais radicais ao liberalismo econômico feitas em outro texto anterior poderia sugerir7, Fichte admite que a determinação das obrigações políticas do cidadão por parte do governo não pode interferir no uso que cada indivíduo faz de seu tempo de ócio.
Por fim, uma mudança notável que surge nessa nova versão da doutrina do direito diz respeito ao que Fichte denominou Ephorat. Essa instituição, que deveria se contrapor ao abuso de poder por parte do estado, e que em última instância teria o direito de convocar a população à uma espécie de revolta ou revolução coletiva em defesa de sua liberdade, tem agora na teoria fichtiana um papel menor, e acaba se transformando naquilo que Fichte já naquela época definiu como “eforato natural”. Sem dúvida surge aqui uma mudança significativa no pensamento político de Fichte, em grande parte influenciada pela experiência negativa do filósofo após a invasão napoleônica na Prússia, e em consequência disso por sua crescente decepção com os efeitos contraditórios da Revolução Francesa.
Tomando agora em consideração o terceiro texto do livro ora resenhado, vemos na Doutrina da Ética (Sittenlehre) de 1812 uma obra completamente repensada, se a comparamos com a Ética escrita no período de Jena, sem a proximidade teórica antes encontrada entre as duas Doutrinas do Direito. Isso se deve em grande parte ao fato de que Fichte, alguns anos após sua saída de Jena, elaborou uma teoria sobre cinco modos distintos de compreensão ou visão de mundo (Weltansicht). Essa tese, cujo desenvolvimento detalhado aparece em dois textos da fase intermediária, intitulados Anweisung zum seligen Leben e Die Grundzüge des gegenwärtigen Zeitalters, ambos publicados em 1806, apresenta uma escala hierárquica de visões de mundo, e dentre essas cinco etapas encontram-se dois pontos de vista da moralidade, denominados por moralidade inferior e superior.
Fichte indica nesse período que seu texto sobre ética de 1798 se refere ainda àquilo que o autor entende por moralidade inferior, isto é, trata-se neste caso de uma teoria moral que permanece atrelada à lei ordenadora, uma moralidade fundamentada em princípios restritos aos interesses da sociabilidade humana.
Podemos afirmar que o texto reformulado de 1812 representa a tentativa fichtiana de postular uma teoria da moralidade superior, que não mais se restringe à lei simplesmente ordenadora, mas aponta para uma lei ao mesmo tempo criadora. Para compreendermos melhor essa distinção, será necessário indicar qual o papel preciso que a doutrina ética representa na determinação dessa classificação.
Fichte postula na sua teoria dos pontos de vista sobre o mundo uma subdivisão importante. Por um lado, os dois primeiros graus da escala, referentes respectivamente aos pontos de vista da Filosofia da Natureza e da Filosofia do Direito ou da Ética inferior, constituem isso que o autor denomina por Scheinlehre, isto é, uma doutrina da aparência ou da ilusão, na medida em que tais posições não compreendem o estatuto primordial do conceito na fundamentação do mundo manifesto. Do outro lado do espectro encontra-se as posições relativas àquilo que Fichte denomina Wahrheitslehre, ou doutrina da verdade. Temos neste caso dois pontos de vista, a saber, a Doutrina da Religião e a Doutrina da Ciência, que permitem, a partir de vias distintas, a compreensão do fundamento último da realidade, o próprio Absoluto, em sua natureza incompreensível, ou melhor, em sua incompreensibilidade. Nesse sentido, a doutrina da ética tem como função principal servir como mediação desses dois extremos, e isso se realiza através do desenvolvimento de uma Erscheinungslehre, de uma doutrina da manifestação ou do fenômeno.
Justamente por essa razão o texto da Ética de 1812 se divide em duas partes principais. A parte inicial apresenta uma dedução do sujeito, da causalidade real, da vontade e do dever, a partir do próprio conceito, enquanto fundamento provisório da moralidade. Na segunda parte encontramos propriamente a Erscheinungslehre, uma fenomenologia que desvenda a natureza provisória daquele conceito, na medida em que revela o caráter fenomênico de toda figuração ou imagem do Absoluto. Não por acaso o texto da presente obra encerra com uma longa discussão a respeito da relação entre as doutrinas da religião e da ciência.
Finalmente, gostaria de tecer um comentário a respeito de certa importância pragmática dessa série. Até meados do século passado considerado por grande parte da comunidade acadêmica filosófica como um dos mais obscuros membros do idealismo alemão pós-kantiano, Johann G. Fichte finalmente recuperou, após o elogiável esforço realizado pelo comitê da edição crítica de sua obra, seu verdadeiro estatuto como um dos pilares da história da filosofia. Com a recente finalização da referida edição das obras completas do filósofo (conhecida como Johann G. Fichte Gesamtausgabe der Bayerischen Akademie der Wissenschaften ou, abreviadamente, GA), podemos agora avaliar corretamente a importância e atualidade deste que, em sua época, sem dúvida foi um dos mais admirados pensadores germânicos.
Não há como negar que o trabalho da edição crítica seguiu um padrão de rigor e minúcia exemplar, algo que se percebe imediatamente no imenso aparato de notas explicativas, nos índices remissivos separados por autores ou personagens mencionados, locais, e assuntos, tudo isso acompanhado, em cada volume, de uma introdução geral bastante detalhada bem como de prefácios para cada um dos textos principais. Somando-se a qualidade gráfica da impressão e o zelo pela impecável escolha do material de encadernação, compreende-se porque a GA de Fichte tornou- se de fato um modelo de edição crítica em meio à comunidade acadêmica da área.
No entanto, o alto custo dos 42 volumes da obra completa faz com que poucas sejam as bibliotecas universitárias a adquirir e disponibilizar a coleção, ao menos em nosso país, e não se faz necessário observar que o mesmo vale ainda mais para aquisições individuais. Nesse sentido, a edição da versão estudantil do mesmo texto da GA, infelizmente por enquanto restrita aos manuscritos, tanto do próprio Fichte como de seus alunos, referentes aos cursos realizados na Universidade de Berlim (série IV da edição crítica) – bem como ao segundo volume da série I, edição em separata dos importantes textos inaugurais Ueber den Begriff der Wissenschaftslehre e Grundlage der gesammten Wissenschaftslehre 1794/95, preenche uma lacuna na medida em que disponibiliza, em formato completo e ao mesmo tempo economicamente acessível à maior parte dos estudantes e pesquisadores, fontes imprescindíveis para a correta compreensão do pensamento do filósofo tanto em seu período inicial quanto em sua fase tardia, como bem representa o recém publicado terceiro volume da série aqui em foco.
Notas
1 Sigo aqui a sugestão da tradução portuguesa (cf. nota seguinte), com a diferença de que traduzo “Bestimmung” por “determinação”, ainda que a primeira tenha adotado “vocação” para traduzir mais livremente o termo.
2 Cf. Fichte, J. G. Die späten wissenschaftlichen Vorlesungen (1809-1814), p.xvi da introdução do editor.
3 Existe uma tradução portuguesa para essas conferências de Jena em: FICHTE, J. G. Lições sobre a Vocação do sábio. Trad. Artur Morão. Edições 70: Lisboa, 1999.
4 Isso já aparece no primeiro parágrafo da obra em questão. Cf. GA II 12, p.313. Como de praxe, GA refere- se à edição crítica da obra de Fichte (Gesamtausgabe), seguido do número da série e do volume correspondente.
5 Cf. GA II 12, p.343.
6 Cf. Fichte, J. G. Sämmtliche Werke, vol. X.
7 Refiro-me aqui ao texto do autor intitulado Der geschlossene Handelsstaat (O Estado Comercial Fechado), publicado em 1800. Cf. GA I 7.
Referências
FICHTE, J. G. Die Späten Wissenschaftlichen Vorlesungen (1809-1814). Editado por H. G . von Manz, E. Fuchs, R. Lauth, e Radrizzani, I. 3º volume. Stuttgart-Bad Cannstatt: Frommann-Holzboog, 2012.
_________. Gesamtausgabe der Bayerischen Akademie der Wissenschaften. Reihe II: Nachgelassene Schriften, v. 12 (1810-1812). Editado por R. Lauth, E. Fuchs, H. Gliwitzky, e P. K. Schneider, Stuttgart-Bad Cannstatt : Frommann- Holzboog Verlag 1962-2012.
_________. Sämmtliche Werke. Editado por Fichte, I. H.
Berlin: de Gruyter, 1962.
_________. Lições sobre a Vocação do Sábio. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1999.
Thiago Suman Santoro – Professor Adjunto na Faculdade de Filosofia da Universidade Federal de Goiás (UFG), Goiânia, GO, Brasil. E-mail: thsantoro@gmail.com
Autobiografia – KELSEN (NE-C)
KELSEN, Hans. Autobiografia. Tradução de Gabriel Nogueira Dias e José Ignácio Coelho Mendes Neto. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011. Resenha de: BATALHA, Carlos Eduardo. O jurista como verdadeiro teórico do Estado. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.91, Nov, 2011.
Não parece datada a afirmação de que “ocupa-se uma posição no espaço jurídico conforme se está mais perto ou mais longe de Hans Kelsen”1. Ainda hoje diversos juristas referem-se ao autor da Teoria pura do Direito como uma espécie de símbolo, ao mesmo tempo central e superior, para a compreensão do Direito.
Contemporâneo de uma geração de intelectuais austríacos que se destacaram para além do contexto europeu, Kelsen estudou e lecionou na Universidade de Viena no começo do século XX. Dirigiu-se à Alemanha em 1930, mas sua origem judaica e sua imagem pública como redator e guardião judicial da primeira Constituição democrática da Áustria o tornaram vulnerável à perseguição nazista. Após buscar refúgio em outros países, chegou aos Estados Unidos em 1940, onde se estabeleceu e se aposentou como professor da Universidade da Califórnia, vindo a falecer em 1973. No Brasil, sua obra tornou-se referência a partir da elaboração da Constituição de 19342, e, por volta de 1950, foi aqui consolidada no campo da Filosofia do Direito, ganhando lugar cativo em manuais e monografias dedicados às questões da justiça, da ciência do Direito e da estrutura do ordenamento jurídico3.
Tão ampla foi a recepção das concepções kelsenianas que ela própria acabou por se tornar objeto de discussão. Ao menos desde 1970, tanto herdeiros quanto críticos de Kelsen têm se preocupado com a reavaliação da apropriação de sua teoria. De modo geral, é possível dizer que esse reexame tem sido marcado por três atitudes distintas. Por um lado, tem-se a revisão dos fundamentos da Teoria pura do Direito, seja reconsiderando os vínculos de Kelsen com o neokantismo, seja promovendo sua aproximação com o neopositivismo lógico e a filosofia analítica. Por outro lado, há a atualização do horizonte de inserção da obra de Kelsen, na busca por sua integração ao debate contemporâneo sobre a jurisdição e o papel da interpretação na determinação do direito. Há também, por fim, a denúncia da trivialização do pensamento kelseniano, decorrente da simplificação e da distorção de suas ideias para fazê-las circular no dia a dia dos juristas como uma espécie de “senso comum teórico”4.
Como resultado desse reexame, várias sutilezas do pensamento de Kelsen obtiveram reconhecimento. Vê-se agora com maior clareza o equívoco de atribuir a ele “a redução do direito à lei”, “a existência de um direito sem moral”, “a desconsideração da dimensão humana e seus valores”, ou de acusá-lo de “ter colocado no mesmo nível as normas de um Estado totalitário e as de um Estado democrático”. Contudo, ainda há muitos outros aspectos de sua obra a serem revistos, atualizados e descobertos.
A recente publicação da tradução brasileira da autobiografia escrita por Kelsen em 1947 coloca em evidência alguns desses aspectos. Acompanhada de uma “autoapresentação” — elaborada em 1927 como explicação da gênese intelectual da Teoria pura do Direito —, a autobiografia ultrapassa tanto o testemunho pessoal quanto a condição de museu dos conceitos kelsenianos. Por meio de rigorosa seleção de episódios, Kelsen enfatiza elementos que o debate filosófico-jurídico no Brasil muitas vezes considerou secundários. Nesse sentido, ainda que por contraste, sua autobiografia nos auxilia a traçar os caminhos pelos quais sua teoria foi aqui incorporada à Filosofia do Direito. Ao mesmo tempo, ela também nos ajuda a entender melhor os limites de nossa apropriação da Teoria pura do Direito.
Como se sabe, o ambiente que recepcionou a obra de Kelsen no Brasil começou a se configurar antes mesmo da criação dos primeiros cursos jurídicos nacionais. Ao longo do século XVIII, um pequeno grupo da sociedade brasileira já se dirigia à metrópole portuguesa para realizar estudos superiores em Direito. E o debate intelectual que ali se encontrava não era exatamente o moderno confronto entre a tradição romano-canônica e a nova orientação do direito racional. Enquanto as concepções jusnaturalistas assumiram pela Europa uma função crítica e revolucionária, as reformas pombalinas incorporaram o discurso jusnaturalista para articular ortodoxia religiosa e manutenção do poder real em Portugal. Difundia-se um jusnaturalismo pela via do catolicismo, a serviço do Estado nacional, da centralização administrativa e das prerrogativas da monarquia. Essa perspectiva encontra-se claramente delineada no Tratado de Direito Natural escrito pelo futuro inconfidente Tomás Antônio Gonzaga5. Elaborado como tese para concurso na Faculdade de Leis de Coimbra, esse tratado examinava as concepções propostas por Grotius, Pufendorf e Thomasius para submetê-las à crítica, assentando, em primeiro lugar, a origem divina de imutáveis princípios necessários para o Direito natural e civil. Tal associação entre jusnaturalismo e filosofia católica nunca deixou de compor o quadro da Filosofia do Direito no Brasil, seja no século XIX, por meio de obras marcadas por certo ecletismo espiritualista, seja no século XX, com o empenho de diversos juristas na restauração da tradição escolástica6.
No entanto, com a criação dos cursos jurídicos em São Paulo e Olinda, após a Independência, surgiram condições para que trabalhos doutrinários introduzissem elementos característicos da modernidade na determinação do Direito. A defesa de limitações constitucionais ao poder governamental, assegurando áreas de autonomia à vida privada, fez com que instituições e princípios próprios do Estado liberal começassem a ser empregados na compreensão da estrutura legal do país. A divulgação do liberalismo veio acompanhada da importação de teorias ligadas ao iluminismo francês e ao idealismo alemão, com especial atenção para a filosofia de Immanuel Kant, lida por intermédio das obras de Karl Krause e Ludwig Noiré. O que se assimilou do kantismo, porém, não foi suficiente para apreender seu projeto de filosofia crítica. Fala-se em “filosofia transcendental”, “apriorismo” e “coisa em si mesma”, menciona-se a combinação de liberdade e coerção no domínio do Direito, mas o criticismo não é mais que um “ponto intermediário” entre as atitudes dogmáticas e céticas, de modo a conciliar a tradição escolástica com os valores emergentes das revoluções burguesas. Também havia dificuldades práticas para consolidar a compreensão liberal da ordem jurídica como um sistema impessoal, fundamentado em princípios gerais e aplicado segundo critérios objetivos. O aparato jurídico então existente não deixava de ser considerado, em sua aplicação, como um instrumento manipulável, a serviço de arranjos pessoais, trocas de favores e relações orientadas por critérios de lealdade. O que se desenvolve a partir da criação das academias de Direito é, portanto, a percepção da distância — quando não do desencontro e da contraposição — entre as “diretrizes básicas” da formação jurídica nacional e as “necessidades reais” da vida social, gerando um debate, que se torna recorrente no ensino jurídico do país, sobre a relação entre “as leis abstratas e formais” e “a prática concreta e material” do Direito7.
Nesse contexto, a referência a Kant acabou por adquirir novos contornos a partir da segunda metade do século XIX. Os ensaios e estudos do germanista Tobias Barreto articularam a inserção do Direito no âmbito da cultura e essa perspectiva o levou a negar a universalidade do fenômeno jurídico, em face da historicidade do ser humano. Influenciado pela obra de Rudolf von Ihering, Barreto acabou por atribuir maior peso às noções de finalidade e valor, como elementos definidores do próprio homem. Com isso, encaminhou-se para a substituição do jusnaturalismo por um humanismo (que depois repercutirá no culturalismo de Miguel Reale). Além disso, o que se destaca na filosofia do direito de Barreto é sua vinculação às teorias evolucionistas de Ernest Haeckel. Graças a essas teorias, sua recepção do pensamento de Kant e Ihering resultou em um naturalismo evolucionista, que não só abriu os estudos jurídicos brasileiros para o campo sociológico, como também propagou por aqui a definição do Direito em função da coação.
Esse naturalismo evolucionista ainda não correspondia, porém, à afirmação do método positivo como base para o conhecimento jurídico. Tobias Barreto chega a mencionar Augusto Comte em alguns ensaios, mas ao longo do século XIX as obras jurídicas nacionais ainda se inseriam no domínio das belles-lettres. O desenvolvimento dos estudos científicos no Brasil ocorreu inicialmente entre engenheiros, médicos e militares. E o movimento positivista obteve maior repercussão quando essas categorias profissionais alcançaram a posição de “nova burguesia” do país, a partir de 18708. Para os juristas, essa situação somente começou a se alterar com o debate entre Pedro Lessa (inclinado ao positivismo e ao naturalismo spenceriano) e João Mendes Júnior (herdeiro da tradição escolástica), que colocou a questão da Ciência no centro da Filosofia do Direito. Depois, já na primeira metade do século XX, o problema recebeu atenção particular (e orientação assumidamente positivista) de Pontes de Miranda, que manteve alguns elementos do pensamento de Ihering, mas os incorporou em uma concepção de ciência jurídica como ciência causal, não finalista, para assim aproximar o “processo de revelação científica da norma” à metodologia das ciências naturais e comprovar valores “com os números das estatísticas e com as realidades da vida”9. Foi nesse contexto que as diferentes linhas do debate filosófico-jurídico no Brasil acabaram por articular uma versão peculiar da contraposição entre compreensões jusnaturalistas (ainda orientadas pela tradição escolástica) e enfoques positivistas (aqui vinculados a um naturalismo evolucionista).
A recepção brasileira da teoria kelseniana ocorreu a partir dessa contraposição. Enquanto Kelsen era identificado como “niilista político” na edição de 1939 da Meyers Konversations-Lexikon, uma das principais enciclopédias alemãs (que expressava então o discurso nacional-socialista)10, sua obra era caracterizada entre nós como “apogeu da corrente do positivismo jurídico” e “ponto culminante da escola técnico-jurídica”11. A Teoria pura do Direito foi situada, antes de tudo, como oposição ao jusnaturalismo. Uma vez inserida na polêmica com a tradição do Direito natural, a preocupação kelseniana de delimitar, com exatidão, o objeto da ciência jurídica transformou-se em um programa de “reducionismo”. Devido à sua recusa sistemática a ultrapassar o Direito positivo na construção do conhecimento jurídico, Kelsen seria o mais típico defensor da redução simplificadora do Direito à norma jurídica, afirmando que “não há outro Direito além do Direito positivo” e que este “não é mais do que seriação gradativa de normas”12.
Na condição primordial de positivista reducionista, Kelsen não chega a ser igualado a outros teóricos então presentes no cenário nacional. Nota-se, por exemplo, que sua teoria diverge da proposta de Pontes de Miranda quanto à utilização da causalidade como nexo necessário para formulação da ciência jurídica. A importância atribuída à categoria da imputação nunca deixou de ser reconhecida. Contudo, a peculiaridade kelseniana que impressiona os juristas brasileiros de imediato parece ser a oposição entre ser e dever ser. Essa oposição os leva muitas vezes a entender que o estudo do Direito estaria todo no domínio do dever ser, “não existindo ponto de contato” com o “ser”. O neokantismo em Kelsen deixaria o jurista “desconectado do direito enquanto ser”, no plano da pura normatividade lógica, separando de modo tão radical realidade natural e norma jurídica que isso o levaria a “separar não menos radicalmente o social e o jurídico”. A identificação do elemento formal do Direito (sua normatividade) implicaria “sacrifício ou esquecimento” pelos juristas da própria realidade do Direito, deixada para o estudo exclusivo dos cientistas sociais. O positivismo reducionista seria, na verdade, puro normativismo.
O “purismo”, porém, não se esgota nesse “desligamento” da realidade. Ele também é entendido desde o início como “ausência de juízos de valor”, tendo em vista a criação de condições para descrição “objetiva” da realidade jurídica. Essa leitura da pureza metodológica de Kelsen pode ser vinculada ao célebre debate alemão, ocorrido no início do século XX, sobre a importância de distinguir conhecimento e valor no âmbito das ciências sociais13. Mas o que dela se retira na recepção brasileira é a defesa de uma completa subjetividade de todos os juízos de valor. Por meio de uma confusão entre “relativização dos conteúdos normativos”, “relativismo moral” e “ceticismo”, entende-se que Kelsen teria introduzido na ciência jurídica “o desprezo pela concepção do Direito como realização da ideia de justiça”, relegando a moral e a política ao “plano da ideologia”. Desse modo, o positivismo teria como fruto o relativismo dos valores, a começar pelo valor da justiça.
No lugar dos valores, o fundamento do fenômeno jurídico estaria deslocado na teoria de Kelsen para uma norma hipotética, de caráter lógico-transcendental e validade pressuposta, que obrigaria o pensador do Direito a tomar como o primeiro de uma série hierárquica um enunciado prescritivo posto, tornando possível pensar um conjunto de normas juridicamente válidas como um ordenamento (uma unidade sistêmica) sem recorrer a elementos “metajurídicos”, “extrapositivos” ou “não científicos”. Não é estranho, pois, que o debate em torno do positivismo de Kelsen sempre acabe por dedicar muitas páginas à teoria da norma fundamental. Também não deve espantar que, entre diversas questões levantadas por essa teoria, o problema da relação entre validade e eficácia receba grande destaque entre os juristas brasileiros. Trata-se, pois, de um recorte que assume o puro normativismo e o relativismo para colocar Kelsen em oposição direta ao discurso jusnaturalista, que, por meio de uma teoria da justiça, dedicava-se à identificação absoluta dos pressupostos éticos e políticos do Direito positivo.
A leitura das memórias de Kelsen nos permite, todavia, ir além dos limites desse recorte. A começar pela curiosa carência de menções aos temas mais discutidos entre nós. Não há nenhum destaque para a formulação da concepção de norma fundamental ou mesmo para a discussão da relação entre validade e eficácia. A respeito da discussão do papel dos juízos de valor ocorrida entre os sociólogos alemães, também não há indicação alguma. Kelsen apenas cita de passagem um contato tardio com Max Weber, reconhecendo que demorou a se familiarizar com seus escritos, pois, mesmo no período em que estudou em Heidelberg, não frequentou o círculo mais próximo do sociólogo14. Na autobiografia, o enfoque empírico-relativista surge tão somente como pressuposto da compreensão da contraposição entre formas autocráticas e democráticas de governo15. E a elaboração de uma teoria sistemática do positivismo jurídico, ligada à crítica do Direito natural, não aparece como ponto de partida. Tal teoria teve como marco a publicação de As bases filosóficas da doutrina do Direito natural e do positivismo jurídico em 1928 e somente foi desenvolvida após a mudança para a Alemanha em 193016. Foi nesse período que a preocupação com a ideia de justiça tornou-se parte das investigações científicas de Kelsen, que passou a se dedicar à redação de uma história da teoria do Direito natural sob a forma de uma “sociologia da crença na alma” como “crítica fundamental de toda a metafísica”17. Em seu autorretrato, Kelsen explicita que sua “estrela-guia desde o início” foi a filosofia de Kant18. Por isso, encontra-se já em suas primeiras obras o recurso à oposição entre ser e dever ser. A pureza não se reduz à defesa de um “puro normativismo”. Ela está ligada a outras questões.
Para que se tenha uma boa medida dessas questões, merece atenção a narrativa feita por Kelsen das dificuldades enfrentadas durante o período em que atuou na Corte Constitucional que ele mesmo projetara19. Ocupando mais de dez páginas no centro da autobiografia, essa narrativa jamais caracteriza a atividade de magistrado como simples função técnica. Diante das dúvidas interpretativas decorrentes de um Código Civil com princípios contraditórios sobre a possibilidade de dissolução do vínculo matrimonial20 e dos problemas sociais decorrentes dos tribunais que começaram a declarar de ofício a invalidade dos mesmos casamentos cuja celebração tinha sido autorizada por órgãos administrativos do Estado21, a atuação dos magistrados da Corte tinha em vista tanto a preservação do direito existente quanto a manutenção da autoridade do Estado baseada nesse direito. Sua decisão, assim, foi
determinada não apenas por sua prática em adotada em casos de conflito de competência, mas também pelo esforço de restaurar a autoridade do Estado ameaçada pelo conflito aberto entre os tribunais e as autoridades administrativas.22
Esse e outros episódios reforçam a percepção de que o significado da obra de Kelsen não se deixa apreender por meio da contraposição esquemática entre jusnaturalismo e positivismo jurídico. Por toda a autobiografia (e também na “autoapresentação”) parece claro que a reflexão kelseniana está enraizada em outro debate, relativo à unidade política e à crise da teoria geral do Estado23. Antes da Primeira Guerra Mundial, ela se dedica a ressaltar que a “vontade do Estado” não poderia ser uma entidade fisicamente real como a vontade dos indivíduos, mas apenas uma expressão antropomórfica do dever ser do ordenamento estatal24. De modo próximo a Windelband, que tomou a filosofia kantiana como base para atribuir aos valores uma existência própria, não psicológica, estruturada como a dimensão de “validade do dever ser”, Kelsen opera a transição da teoria geral do Estado para o plano da “validade objetiva”, apartado da esfera subjetivista do psicologismo. Com isso, alcança um duplo resultado: por um lado, identifica o significado não psicológico e exclusivamente normativo do conceito de vontade específico para a teoria do Direito; por outro lado, compreende que os problemas da teoria geral do Estado “mostravam ser problemas de validade e produção de um ordenamento normativo coercitivo”25. Formula, então, sua tese da identidade do Estado com o direito positivo, que é a verdadeira base tanto para a proposição da unidade entre Estado e Direito quanto para a defesa de que Direito é somente Direito positivo26. Em suas palavras,
A questão decisiva com relação à essência do Estado me parecia ser o que constitui a unidade na multiplicidade dos indivíduos que compõem essa comunidade. E não pude encontrar outra resposta cientificamente fundamentada a essa questão senão a de que é um ordenamento jurídico específico que constitui essa unidade, e de que todas as tentativas de fundamentar essa unidade de modo metajurídico, ou seja, sociológico, devem ser consideradas fracassadas.27
Após a Primeira Guerra, quando a crise prática e téorica da unidade política se agrava, a reflexão kelseniana encaminha-se para a discussão das tendências anarquistas da teoria marxista do Estado, a defesa do parlamentarismo ante quaisquer ditaduras e a compreensão da ideologia libertária da democracia por meio de um duplo contraste: por um lado, o confronto entre essa ideologia e a realidade social, entendida esta como o sentido efetivo dos ordenamentos jurídicos positivos tidos como democráticos; por outro lado, o confronto entre ideologia democrática e a situação psicológica dos indivíduos submetidos aos ordenamentos jurídico-democráticos28. Não abandona, porém, a tese fundamental de que o Estado, do ponto de vista de sua essência, é um ordenamento jurídico relativamente centralizado. Com essa tese, o poder deixa de ser um fenômeno quase natural para se tornar um fenômeno jurídico. A coerção jurídica é vista agora como um poder autorizado e as prescrições somente possuem significado jurídico se emanam de uma instância que foi autorizada dentro de uma ordem escalonada de normas produzidas juridicamente. A criação legislativa é aplicação do direito, da mesma forma que uma decisão judicial é continuação (ainda que formal) do processo jurídico de produção do direito. Isso permite a Kelsen algo mais do que se opor à tradição jusnaturalista: com a concepção de autorização, torna-se possível também rejeitar influentes teorias imperativistas do Direito (por exemplo, as teorias de Hobbes e Austin), que associavam o fenômeno jurídico aos comandos de um soberano juridicamente ilimitado29.
No que diz respeito ao “purismo” proposto por Kelsen, sua autobiografia deixa claro que essa proposta foi se constituindo aos poucos, por meio de diferentes atitudes metodológicas30. Inicialmente, a teoria pura se caracterizava pelo objetivo central de determinar a relação precisa (e não a desconexão) entre o dever ser (da norma jurídica) e o ser (da realidade natural) no conceito de Direito31. A purificação das doutrinas jurídicas correspondia basicamente à tarefa de encontrar, entre os dois extremos dessa relação, “o meio-termo correto”. Assim sendo, ela operava por meio da substituição de postulados metafísicos por categorias transcendentais como condições da experiência, acompanhada pela transformação das oposições entre direito objetivo/direito subjetivo, direito público/direito privado, Estado/Direito, antes consideradas absolutas (por serem “qualitativas e transistemáticas”), em diferenças relativas (de caráter “quantitativo e intrasistemático”). Somente mais tarde, Kelsen se dirigiu à crítica da tendência ideológica de dar aparência de justiça ao Direito positivo32. A pureza revelou-se então como exigência de despolitização33. Foi assim que a Teoria pura do Direito acabou por desenvolver seu caráter “radicalmente realista”, que se manifesta na recusa à valoração do Direito positivo34.
A autobiografia também indica que o projeto de purificação se adequa à preocupação de Kelsen com o desencontro entre conhecimento e ação, ou seja, com a difícil relação entre teoria e prática. Essa preocupação aparece em tantos momentos que se tem a impressão de que ela é a legítima constante de todas as fases da Teoria pura do Direito. Ela aparece, por exemplo, de modo discreto, na lembrança dos episódios ligados à questão do equilíbrio europeu. Ao final da Primeira Guerra, Kelsen se vê envolvido nas negociações entre o governo austríaco e o movimento nacionalista tcheco, quando ainda pretendia-se conciliar a formação de novos Estados nacionais, fundados no direito de autodeterminação dos povos, com a manutenção do bloco austro-húngaro no centro da Europa35. Em outro contexto, às vésperas da Segunda Guerra, acompanha a resistência do governo tchecoslovaco em admitir que os movimentos separatistas dos sudetos e dos eslovacos ampliavam suas forças em face do progressivo desmoronamento do sistema internacional estruturado em Versalhes. Kelsen foi consultado oficialmente em ambas as situações. E sugeriu diretamente aos dirigentes políticos que as dificuldades decorrentes das demandas por autonomia nacional fossem contornadas com a formação de um Estado federado. Suas propostas, porém, não tiveram condições de passar para o plano da ação: quando foram levadas em consideração, “era tarde demais” — repete o jurista — e acabaram por perecer diante de outros eventos históricos36.
Em outros momentos, a preocupação com a relação entre conhecimento e ação é enunciada diretamente. Na narrativa dos fatos que conduziram à sua nomeação para o cargo de professor ordinário em Viena37, bem como nos episódios da promoção de Leo Strisower à posição de professor catedrático38 e da aprovação da livre-docência do marxista Max Adler39, Kelsen expressa com clareza sua orientação geral de que o conhecimento científico deve permanecer independente da ação política. Por um lado, entende que “um professor e pesquisador não deve se filiar a partido nenhum”. Por outro lado, defende que a filiação a um partido político não poderia ser um motivo para excluir pessoas da carreira acadêmica, “à condição de que seus trabalhos tivessem a qualidade científica necessária”. A expressão dessas diretrizes é também a oportunidade para que Kelsen assinale:
pessoalmente, tenho toda simpatia por um partido socialista e ao mesmo tempo democrático, e nunca dissimulei essa simpatia. Porém, mais forte do que essa simpatia era e é minha necessidade de independência partidária na minha profissão. O que eu não concedo ao Estado — o direito de limitar a liberdade da pesquisa e da expressão do pensamento — eu não posso conceder a um partido político por meio da submissão voluntária à sua disciplina.40
Ao final de suas memórias, Kelsen retoma mais uma vez sua preocupação, ao registrar as peculiaridades da formação jurídica norte-americana. Nesse contexto, destaca que as faculdades de Direito estadunidenses, com seus cursos profissionalizantes, não apresentam interesse por uma teoria científica do Direito. Chega a pensar que talvez o Direito como objeto de conhecimento científico estaria mais bem localizado no âmbito de uma faculdade de Filosofia, História ou Ciências Sociais. Entretanto, também assinala que em Viena seus professores de Direito público (Edmund Bernatzik e Adolf Menzel) lhe pareciam pouco ou nada interessados em problemas téorico-jurídicos41. E afirma: durante todos os anos como professor no departamento de Ciência Política na Universidade da Califórnia, em Berkeley, não encontrou um único aluno que quisesse se especializar em teoria do Direito ou mesmo em Direito internacional42. Nesses termos, Kelsen parece concluir que no Direito não há interesse por Ciência, da mesma forma que na Ciência não há interesse por Direito.
Todas as preocupações, porém, não fazem com que a conclusão geral trazida por estas memórias seja qualquer espécie de “derradeira negativa”. Ainda que Kelsen tenha afirmado que “a relatividade dos valores experimentei em minha própria carne”43, sua autobiografia não se apresenta, ao final, como um conjunto de lições de relativismo. Se é certo que o lugar da justiça não é preenchido no interior da Teoria pura do Direito, não é adequado, porém, esquecer que seu autor aproveita todas as oportunidades para assumir e defender o valor da independência. Não apenas sob a forma de liberdade científica ou política, mas também, na autobiografia, como independência dos magistrados e das instituições jurídicas. O episódio que levou a seu afastamento da Corte Constitucional austríaca serve para registro e reafirmação da importância desse valor44. Relembrando situações nas quais o problema da relação entre teoria e prática se tornou evidente, Kelsen não se abstém de expressar sua convicção de que a verdade e as formas jurídicas constituem o campo apropriado para a construção de uma teoria do Estado. Em meio às artes de governar, o jurista é revelado como o mais apropriado teórico do Estado, não apenas por formular o discurso da soberania, mas principalmente por manifestá-lo como supremacia do ordenamento jurídico e, em especial, da Constituição. E, se o jurista é o verdadeiro teórico do Estado, seu positivismo jurídico transforma-se, socialmente, em um projeto de Estado de Direito. Conclusão menos niilista não poderia existir. Resta à Filosofia do Direito no Brasil dar a esse projeto a devida atenção.
Notas
1 Cf. REALE, Miguel. Teoria tridimensional do Direito. 5. ed. rev. e aum. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 118. [ Links ]
2 Cf. ALENCAR, Ana Valderez A. N. “A competência do Senado Federal para suspender a execução dos atos declarados constitucionais”. Revista de Informação Legislativa, v. 15, n. 57, jan.-mar.1978, pp. 239- [ Links ]43; Prutsch, Ursula. “Instrumentalisierung deutschsprachiger Wissenschafter zur Modernisierung Brasiliens in den dreißiger und vierziger Jahren”. In: Lechner, Manfred; Seiler, Dietmar (orgs.). Zeitgeschichte.at. 4. österreichischer Zeitgeschichtetag’ 99. Innsbruck: Studienverlag, 1999, pp. 361- [ Links ]69.
3 Cf., em particular, ABREU, João Leitão de. A validade da ordem jurídica. Porto Alegre: Globo, 1964, pp. 49-71 e 125- [ Links ]71.
4 Para a primeira atitude, temos como exemplo obras de Sônia Broglia Mendes, Fernando Pavan Baptista e Henrique Smidt Simon. Para a segunda atitude, consideramos os trabalhos de Gilmar Ferreira Mendes e Lenio Luiz Streck. Já a atitude de denúncia foi aqui caracterizada segundo a obra de Luís Alberto Warat.
5 Cf. MACHADO, Lourival Gomes. Tomás Antônio Gonzaga e o direito natural. Rio de Janeiro: mec, [ Links ] 1953; Grinberg, Keila. “Interpretação e Direito natural”. In: Gonzaga, Tomás Antônio. Tratado de Direito natural. São Paulo: Martins Fontes, 2004, pp. VII- [ Links ]XXXV.
6 Cf. PAUPÉRIO, A. Machado. A Filosofia do Direito e do Estado e suas maiores correntes. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1980, pp. 153- [ Links ]6.
7 Cf. FERRAZ Jr., Tercio S. “A Filosofia do Direito no Brasil”. Revista Brasileira de Filosofia, v. 45, n. 197, 2000, pp. 14- [ Links ]6.
8 Cf. COSTA, João Cruz. Contribuição à história das ideias no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956, pp. 138- [ Links ]46.
9 Cf. FERRAZ Jr., “A Filosofia do Direito no Brasil”, op. cit., p. 24; NADEr, Paulo. Filosofia do Direito. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, pp. 278- [ Links ]81.
10 ENGLARD, Izhak. “Nazi criticism against the normativist theory of Hans Kelsen: its intellectual basis and post-modern tendencies“. Israel Law Review, n. 32, 1998, p. [ Links ] 183.
11 A expressão aparece na tese escrita por Miguel Reale entre 1939 e 1940, para concurso à cátedra da Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Cf. Reale, Miguel. Fundamentos do Direito. 3. ed. fac-símile. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, pp. 151 e 157. [ Links ]
12 A ênfase na caracterização de Kelsen como positivista estrito ou pleno pode ser encontrada em vários autores. Aqui tomamos por base, além da tese de Miguel Reale, obras de Alysson Leandro Mascaro, Aurélio Wander Bastos, Eduardo C. B. Bittar, Fábio Ulhoa Coelho, Paulo Dourado de Gusmão e Paulo Nader.
13 Cf. LOSANO, Mario. Introdução. In: KELSEN, Hans. O problema da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1998, pp. x- [ Links ]xv.
14 Idem, ibidem, p. 49.
15 Idem, ibidem, p. 32.
16 Kelsen, Hans. Autobiografia, p. 97. [ Links ]
17 Idem, ibidem, p. 98.
18 Idem, ibidem, p. 25.
19 Idem, ibidem, pp. 81-93.
20 Idem, ibidem, p. 84.
21 Idem, ibidem, p. 87.
22 Idem, ibidem, p. 90.
23 BERCOVICI, Gilberto. “Carl Schmitt e a tentativa de uma revolução conservadora”. In: ALMEIDA, Jorge; Bader, Wolfgang. Pensamento alemão no século XX — Grandes protagonistas e recepção das obras no Brasil. Vol. I. São Paulo: Cosac Naify, 2009, pp. 69- [ Links ]72. Nesse sentido, as origens da obra de Kelsen estão ligadas à sua crítica à teoria do Estado de Georg Jellinek. Cf. Dias, Gabriel Nogueira. Positivismo jurídico e Teoria geral do Direito na obra de Hans Kelsen. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, pp. 116-23 e 137- [ Links ]40.
24 Kelsen, Autobiografia, op. cit., p. 25.
25 Idem, ibidem, p. 31.
26 Idem, ibidem, p. 28.
27 Idem, ibidem, p. 72.
28 Idem, ibidem, pp. 32-33.
29 Cf. HÖFFE, Ofried. Justiça política — Fundamentação de uma filosofia crítica do Direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 2001, pp. 127- [ Links ]31.
30 KELSEN, Autobiografia, op. cit., p. 43.
31 Idem, ibidem, p. 29.
32 Idem, ibidem, p. 25.
33 Idem, ibidem, p. 27.
34 Cf. KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. 6. ed. Coimbra: Arménio Amado, 1984, pp. 161 e 292; [ Links ] Kelsen, Hans. O problema da justiça. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. [ Links ] 70.
35 KELSEN, Autobiografia, op. cit., pp. 60-4.
36 Idem, ibidem, pp. 104-5.
37 Idem, ibidem, p. 69-70.
38 Idem, ibidem, p. 73.
39 Idem, ibidem, p. 74.
40 Idem, ibidem, p. 71.
41 Idem, ibidem, p. 51.
42 Idem, ibidem, p. 108.
43 Cf. KELSEN, Hans. Testimonio radiofônico — Radio Bremen, 1958. Revista de investigaciones juridicas, México, n. 27, 2003, p. [ Links ] 142.
[44] KELSEN, Autobiografia, op. cit., p. 92.
Carlos Eduardo Batalha – Professor titular de Filosofia Jurídica da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo e membro do núcleo Direito e Democracia do Cebrap.