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Teoria da História (v.3) História Viva: formas e funções do conhecimento histórico | Jörn Rüsen
Retrato de Jörn Rüsen/What is Metahistory/vimeo.com/2020.
RÜSEN, Jörn. História Viva: teoria da história - Formas e funções do conhecimento histórico. Tradução de Estevão de Rezende Martins. Brasília: Editora UNB, 2007, 159p. Resenha de: ROCHA, Sabrina Magalhães.[1] História da Historiografia. Ouro Preto, n.1, ago. 2008.
História Viva: teoria da história: formas e funções do conhecimento histórico é a mais recente publicação brasileira da obra do historiador alemão Jörn Rüsen.
Lançada pela editora da Universidade de Brasília e traduzida pelo professor Estevão de Rezende Martins em 2007, essa obra corresponde ao último volume da trilogia intitulada Teoria da História, cujos dois primeiros volumes se encontram publicados pela mesma editora. Trata-se, certamente, de uma importante publicação que viabiliza ao leitor brasileiro o contato com a reflexão desse importante historiador, ainda pouco conhecido nos círculos acadêmicos nacionais.
Sua significação se revela também na medida em que a obra preenche um espaço importante no que se refere à discussão teórica sobre o conhecimento histórico, contribuindo para minorar essa grande lacuna em nosso mercado editorial.
Configurando-se, portanto, como último volume de uma trilogia, essa obra conclui a reflexão que Jörn Rüsen vinha desenvolvendo nos dois números anteriores: Razão Histórica e Reconstrução do Passado. Compreendida nesse sentido, a obra pode ser considerada como parte de um sistema. Contudo, e embora guarde uma conexão íntima com os volumes anteriores, História Viva pode ser apreendida isoladamente, tendo em vista que se dedica a refletir com profundidade sobre dois pontos específicos desse sistema mais amplo. Essa questão que se está tratando como um “sistema” da trilogia de Rüsen refere-se à reflexão, pela perspectiva da teoria da história, sobre a matriz disciplinar da ciência da história. Nesse sentido, enquanto nos volumes anteriores se trata de idéias e métodos, nesse terceiro a reflexão é dedicada às formas e funções do conhecimento histórico.
A perspectiva central da obra de Rüsen é refletir sobre o conhecimento histórico a partir da teoria da história, ou, em seus próprios termos, entender a teoria da história como autocompreensão da ciência da história. Trata-se de uma produção situada em um contexto de retomada das discussões teóricas acerca do conhecimento histórico. Rüsen faz parte de um conjunto de pensadores contemporâneos, como Reinhart Koselleck, Hayden White, Michel Foucault, François Hartog, Frank Ankersmit, dentre muitos outros, que, especialmente a partir da segunda metade do século XX, defrontou-se com os desafios impostos pelas novas configurações nas esferas econômica e política, e, por sua vez, com a crise de paradigmas nas ciências humanas e sociais. Tratava-se de conjunturas originais que transmitiram suas incertezas para o âmbito do conhecimento histórico, colocando-lhe questões relativas à sua fundamentação, seu estatuto de cientificidade, sua relação com as artes. Configurou-se, portanto, um quadro que demandava reflexões teóricas, mas não mais nos moldes dos grandes modelos explicativos elaborados no século XIX. A teoria será revestida por outras formas, as respostas oferecidas não serão sistemáticas, unívocas ou finalistas, mas múltiplas, e, em grande medida, fragmentárias.
Partindo desse contexto, pode-se compreender o desejo de Rüsen de entender a teoria da história como autocompreensão da ciência histórica, como sua resposta, sua formulação particular. Formulação essa que se desenvolve a partir da argumentação de que a história continua sendo um conhecimento, uma disciplina científica, ainda que uma ciência formatada por uma racionalidade particular. Esse será, portanto, o pressuposto básico que perpassa os três volumes de sua obra. Em História Viva, o autor aborda as formas e funções do conhecimento histórico, ou, a historiografia e a formação histórica, procurando pensá-las a partir da própria cientificidade da história. A tese desenvolvida aqui é que mesmo nesses dois âmbitos, constantemente tratados como acessórios, como externos, se revela a racionalidade do conhecimento histórico, a história enquanto uma ciência. Sobretudo, esses dois aspectos, historiografia e formação histórica, são partes constituintes dessa racionalidade, momentos da investigação nos quais o saber histórico efetivamente se completa; como o próprio autor insinua no título da obra, se torna vivo.
No primeiro capítulo, “Tópica: formas da historiografia”, Rüsen reflete sobre a formatação historiográfica do conhecimento histórico, sobre a escrita da história propriamente dita, sua constituição em uma narrativa. Partindo da elaboração de uma diferenciação entre pesquisa histórica e historiografia, demonstra-se como essas duas operações, apesar de distintas, guardam conexões entre si e se constituem em operações científicas. Uma das principais singularidades dessa análise, portanto, é a atribuição de estatuto de cientificidade também ao procedimento de escrita da história. Na construção de Rüsen esse argumento justifica-se na medida em que reconhece a interpretação como uma operação cognitiva da pesquisa. Nesse sentido, é a pesquisa que revela um sentido narrativo à historiografia, e não essa que lhe impõe tal característica.
Há aqui o pressuposto de uma organização do real preexistente, um sentido que não deve ser imputado, mas apreendido pelo pesquisador. Rüsen afirma que a historiografia não deve criar, mas “rememorar sentido”.
Compreendendo pesquisa e historiografia como racionalidades, Rüsen associa a primeira a uma função cognitiva e a segunda a uma função comunicativa, desenvolvendo um raciocínio kantiano. A historiografia, através dos procedimentos da estética e da retórica, transmite a “razão pura”, a análise teórica obtida pela pesquisa, a uma “razão prática”, que se relaciona diretamente com as formas de vida. Pesquisa e historiografia seriam, portanto, processos da constituição narrativa de sentido. Propõe-se então que essa constituição pode ser configurada em uma tipologia, apresentando assim quatro topoi: o primeiro, o tradicional, volta-se para as origens, tendo a interpretação da experiência do tempo determinada pela categoria continuidade; o segundo, o exemplar, é um topos cujas determinações de sentido são mais abstratas que no topos tradicional, refere-se às formatações historiográficas no modelo da historia magistra vitae, em que as expectativas são orientadas pelas experiências; já o terceiro, o topos crítico, seria aquele que esvazia os modelos de interpretação histórica dominantes, problematiza-os, desestabiliza-os, representa a ruptura da continuidade; por fim, o topos genético refere-se à interpretação da experiência do tempo em que o foco central é a própria mudança temporal, sendo marcado por categorias como “processo”, “progresso”, “evolução”, “revolução”.
Esses tipos não seriam formas puras já que estariam sempre articulados uns com os outros em contextos complexos, em grande medida contextos de tensão. Para o autor, essa seria uma tensão responsável por conferir à historiografia uma historicidade interna própria. Tal afirmação parece-nos ser um dos pontos menos seguros da obra ou, pelo menos, pouco esclarecido. Ao afirmar que a tensão entre os tipos dota a historiografia de historicidade, Rüsen está concebendo-os em uma perspectiva de epocalidade, de sucessão temporal.
Poder-se-ia vislumbrar em sua elaboração até mesmo uma perspectiva evolutiva, em que o topos genético supera, em um sentido hegeliano, os demais. Ao que nos parece, tal abordagem da história da historiografia demanda alguns cuidados, especialmente pelo fato de que ao se trabalhar com uma perspectiva evolutiva corre-se o risco de não historicizar devidamente o objeto. Contudo, como se disse, essa é uma questão que parece passar pela obra de forma um pouco obscura, especialmente porque a própria construção em tipos ideais parece apontar não para a sucessão, mas para a convivência entre os quatro topos.
Uma outra questão que se pode colocar a essa tipologia refere-se a sua operacionalidade. Certamente, essa não é a preocupação central de Rüsen; mas se trata de uma questão relevante, especialmente para aqueles que se dedicam à história do conhecimento histórico. Rüsen constrói uma análise sofisticada teoricamente e em muitos pontos esclarecedora, contudo, podermos nos interrogar sobre sua utilização como ferramenta teórica, como categoria que auxilia e viabiliza a compreensão histórica da historiografia. Ao que nos parece, a tipologia construída pelo autor coloca alguns problemas ao historiador, especialmente por minimizar as relações das formatações historiográficas com seus contextos de produção. Uma possível aplicação direta dessa formulação incorreria, portanto, no risco de apagar o caráter propriamente histórico da historiografia. No entanto, esse é um risco apresentado por quaisquer categorizações, no qual por vezes é produtivo incorrer a fim de se buscar aspectos poucos iluminados por uma análise mais particularista. Nesse sentido, pode-se compreender que a construção de Rüsen poderia sim se prestar como um importante instrumento teórico de análise para a história da historiografia, desde que conjugada com esse olhar mais “individualizante”.
Já o segundo e último capítulo, “Didática: funções do saber histórico”, tem como tema central a práxis como fator determinante da ciência histórica. Nesse sentido, Rüsen se propõe a elaborar os pontos da didática da história que são relevantes para a teoria da história, compreendendo tanto a historiografia quanto o aprendizado como operações constitutivas da ciência histórica. Rüsen defende que o pensamento histórico só se “forma” plenamente quando se relaciona diretamente ao todo, ao agir e ao eu de seus sujeitos. A formação histórica representa, então, o conjunto de competências de interpretação do mundo e de si próprio, articulando orientação do agir com autoconhecimento. Em outros termos, formação histórica seria a capacidade de constituir sentido narrativamente, uma capacidade que não é inata, que requer aprendizado.
Parece se processar, assim, um salto quanto ao capítulo anterior no que se refere à constituição narrativa de sentido. Como se analisou, o autor coloca à historiografia o papel de “rememorar” um sentido pré-existente no real e que se revela através da pesquisa histórica. Tratando da formação histórica, a operação parece ser invertida. Rüsen defende que é importante conhecer essa construção que denomina de “história objetiva”, mas que os sujeitos não se constituiriam se aprendessem somente ela. É necessário possuir a própria capacidade de constituir sentido, apropriar subjetivamente esse aprendizado histórico objetivo, e, logo, imputar-lhe novos sentidos. A formação histórica cumpre assim uma função de orientação cultural, na medida em que viabiliza a consciência da própria relatividade histórica e da dinâmica temporal interna da relatividade histórica. Nas palavras de Rüsen, viabilizando o autoconhecimento e a orientação para o agir, ela abre uma chance para a liberdade.
Expressos esses pontos, faz-se necessário retornar à questão inicial de Rüsen: “o saber histórico pode ser utilizado na prática sem perder sua cientificidade?” Sua resposta passa pela própria fundamentação da formação histórica. Rüsen afirma que quando se completa, quando está “formado”, o saber histórico dos sujeitos estabelece um equilíbrio argumentativo entre o relacionamento com a experiência e o relacionamento com o sujeito, correspondente, portanto, ao nível argumentativo da história como ciência. É interessante observar que mesmo construindo um “sistema” que busca afirmar a história como uma disciplina científica, Rüsen argumenta contrariamente ao excesso de especialização e de metodologização da ciência histórica, afirmando que esse caminho a desvincularia de sua função e de sua própria fundamentação, qual seja, a relação, o contato com a práxis, com a experiência.
O autor conclui sua obra remetendo-se à relação entre história e utopia e argumentando que se pode visualizar em ambas um superávit de expectativas, a vontade humana de querer ser outro. Contudo, entre elas há a diferença substancial de que a história não ficcionaliza o real como a utopia, mas historicizao, logo, o desejo de mudança, de transcendência, aparece como possível, esperável, pois é fundado na experiência. Com isso, podemos também concluir retomando a tese que perpassa toda a obra e também se revela nessa construção história-utopia. Todo o esforço de Rüsen pode ser compreendido a partir de seu anseio em demonstrar que a história é uma disciplina científica, com uma racionalidade particular, que tem como princípio e como fim a relação com a experiência, com a práxis. Utilizando a teoria da história como autocompreensão da ciência histórica, essa se revela, então, como uma disciplina científica, mas em íntima relação com a experiência histórica, que emerge de seus anseios e tem como função responder a eles.
[1] Mestranda em História Universidade Federal de Ouro Preto Rua Prefeito João Sampaio, 80 - São Gonçalo Mariana - MG 35420-000.