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Experiências formativas não escolares: História & Teoria da Educação | Matheus da Cruz Zica
A proposta do ebook “Experiências formativas não escolares: história & teoria da Educação”, lançado em 2021, é colocar em evidência outras instituições que promovem a educação não legitimada, como é o caso da instituição escolar, mas que contribuem para a formação dos indivíduos, das suas subjetividades. Essas outras instituições são: o Estado, a medicina, o meio de comunicação jornalístico impresso, os livros, instituições religiosas, o meio social, como a família, a vizinhança etc. O ebook está dividido em três partes, com sete capítulos, onde os autores/pesquisadores corroboraram com a temática principal de pensar a educação e sua história a partir de lugares comuns, ou seja, fora da escola. Organizado pelo historiador, pesquisador e professor Matheus da Cruz e Zica, que tem estudado a “formação” dos indivíduos nos mais diferentes espaços, este ebook apresenta justamente este aspecto formativo das subjetividades em lugares inimaginados.
Assim, na parte I são destacadas as experiências que “a morte” pode proporcionar nesse lugar incomum, fora dos espaços escolares propriamente ditos. De autoria de Thiago Rafael Oliveira, o primeiro capítulo intitula-se “A desinstrução do corpo antes da chegada a Auschwitz: a emergência do homo läger nas narrativas de Primo Levi e Miklós Nyszli (1935-1944)”. Ao traçar um contraponto entre as tristes lembranças dos sobreviventes de Auschwitz e o esfacelamento das bases humanas construídas no decorrer da vida, o autor destaca como o Estado também participa da formação da subjetividade humana. Amparado em Foucault, Oliveira afirma que “em qualquer sociedade, o corpo está preso no interior de poderes muito apertados” e que, por vezes, o Estado busca produzir “corpos submissos”. Leia Mais
Alceu Amoroso Lima e a renovação da pedagogia católica no Brasil (1928-1945): uma proposta de espírito católico e corpo secular – SKALINSKI JUNIOR (RBHE)
SKALINSKI JUNIOR , O. (2015). Alceu Amoroso Lima e a renovação da pedagogia católica no Brasil (1928-1945): uma proposta de espírito católico e corpo secular. Curitiba: CRV, 2015. Resenha de: FIGUEIRA, Felipe Luiz Gomes; BARBOZA, Marcos Ayres. A influência de Alceu Amoroso Lima na pedagogia católica no contexto brasileiro início do século XX . Revista Brasileira de História da Educação, Maringá, v. 16, n. 2 (41), p. 379-385, abr./jun. 2016.
O fim do Padroado no Brasil, que coincidiu com a proclamação da República em 1889, imprimiu no interior da Igreja Católica a necessidade de recomposição de seus quadros institucionais. Embora a Igreja conseguisse algumas concessões do Estado, a Constituição Federal de 1891, fundamentada em princípios liberais, não se mostrou favorável à influência da Igreja, já que determinou a proibição do ensino religioso nas escolas públicas, a laicização dos cemitérios, o fim a subvenção estatal a qualquer culto religioso, entre outras medidas.
Em seu projeto de reconstrução institucional, a Igreja Católica defendeu a inclusão da catequese, da pregação, de ações educativas e da imprensa nos meios sociais. Para defender seus interesses, investia na educação, reclamando o direito de fundar e organizar escolas, cuja finalidade seria formar e educar crianças e jovens conforme os valões cristãos.
Na defesa de seus interesses entre os diferentes segmentos da sociedade civil e política, congregou diferentes intelectuais. Entre os que a apoiaram e defenderam, grande destaque teve Alceu Amoroso Lima (1893-1983), mais conhecido pelo pseudônimo ‘Tristão de Athayde’. Ele se destacou como um dos principais representantes do pensamento católico nos meios culturais e educacionais do início do século XX.
A obra resenhada foi escrita por Oriomar Skalinski Junior, professor do Departamento de Educação da Universidade Estadual de Ponta Grossa, como resultado de sua tese de doutoramento em Educação pela Universidade Estadual de Maringá, defendida em 2014. Intitulada Alceu Amoroso Lima e a renovação da pedagogia católica no Brasil (1928-1945): uma proposta de espírito católico e corpo secular, a tese teve como finalidade analisar a contribuição desse intelectual católico para a renovação dos interesses políticos católicos, entre 1928 e 1945, com base em suas relações com o Estado e sua produção teórica. Sua versão em livro está organizada em três capítulos.
No primeiro, ‘O Brasil na aurora do século XX: intelectuais, hegemonia e educação’, o autor destaca o papel exercido pela Igreja Católica na educação. O fim do Padroado trouxe grandes desafios e novas demandas de ordem social, organizacionais e políticas. Para ampliar a base de sua ação pastoral, da qual uma das grandes preocupações era a situação da classe operária em face das demandas do liberalismo econômico, a Sé Católica contou com o apoio de um grande contingente de padres e freiras da Europa.
A Igreja não criticava os aspectos econômicos e políticos das ações liberais, mas centrava-se no afrouxamento da moral em uma sociedade laicizada. Nesse contexto, a educação caracterizou-se como área estratégica para a construção da hegemonia do catolicismo. Foi preciso adaptar a população às demandas típicas da sociedade de mercado: as práticas comerciais e industriais, sofisticadas pelo avanço dos instrumentos de produção, exigiam uma mão-de-obra qualificada, mas a maioria da população em idade escolar ainda era analfabeta.
A disseminação de novos padrões culturais se faria por meio do desenvolvimento da leitura, da escrita e da aritmética, tendo em vista as habilidades intelectuais requisitadas para o desenvolvimento do capitalismo industrial brasileiro, o qual demandava a mobilização da sociedade como um todo. Assim, atribuía-se à educação um papel importante na organização desse novo projeto societário: “Tratava-se de modernizar as práticas pedagógicas a partir da ideia básica de que os avanços científicos e tecnológicos da época demandavam uma contrapartida educacional” (p. 40).
O sentimento nacionalista em defesa da educação ia além da simples alfabetização da população; “pretendia-se que a escola […] passasse por uma transformação em seus objetivos, seus conteúdos e em sua função social, tornando-se uma instituição capaz de formar o ‘caráter nacional’ e alavancar o progresso brasileiro” (p. 44). A partir de 1928, nesse processo de renovação da educação no Brasil e de defesa da formação moral e intelectual, o pensamento de Alceu Amoroso Silva ganhou proeminência como liderança intelectual à frente do Centro D. Vital.
No segundo capítulo, ‘A direção intelectual de Alceu Amoroso Lima como elemento renovador da pedagogia católica no Brasil (1928-1945)’, o autor discute a influência de Alceu Amoroso Lima junto às instituições católicas na ordenação da sociedade civil. A partir de 1920, a hierarquia da Igreja Católica vinha estimulando a participação de seus intelectuais nos diferentes segmentos institucionais da sociedade para garantir que o Estado fosse organizado com base em princípios cristãos.
Alceu Amoroso Lima, ao aceitar a direção do Centro Dom Vital em 1928, propôs à instituição o desenvolvimento de uma cultura católica superior. A organização de cursos e conferências temáticas ligadas à filosofia, à sociologia e à religião tinha como objetivo o fortalecimento da intelectualidade católica. Além disso, a criação de organizações e associações leigas vinculadas ao Centro Dom Vital influenciaria os diferentes segmentos da sociedade civil.
O movimento católico teve destaque a partir de 1930, particularmente após o golpe, quando os intelectuais católicos deram suporte e legitimidade ao Governo Provisório. Em 1931, como resultado dessa aliança, ocorreu o retorno do ensino religioso, em caráter facultativo, nos cursos primário, secundário e normal das escolas públicas. Os intelectuais liberais, na IV Conferência Nacional de Educação organizada pela Associação Brasileira de Educação em 1930, apresentaram uma nova proposta política de educação para o país. Entre os idealizadores desse movimento, destacaram-se Lourenço Filho, Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira. O conflito acirrou-se com a publicação do Manifesto dos pioneiros da educação nova, em 19 de março de 1932, nas principais capitais do Brasil. “No texto os reformadores da educação adotavam princípios marcadamente liberais e defendiam a escola pública, laica, gratuita e obrigatória” (p. 68). Os pioneiros argumentavam que a educação no país estava desarticulada e fragmentada, o que, do ponto de vista deles, era um obstáculo ao desenvolvimento econômico brasileiro. A nova política nacional de educação defendida pelos liberais era apoiada na adoção de métodos ativos “[…] baseada nos avanços dos campos da sociologia, da biologia e da psicologia” (p. 69).
Para consolidar os interesses da Igreja Católica em contraposição aos liberais reformadores da educação, foi criada a Liga Eleitoral Católica (LEC), da qual Alceu Amoroso Lima era secretário. A ideia era captar apoio político em defesa dos interesses da Igreja Católica, congregando importantes intelectuais socialmente representativos e segmentos da classe média. O movimento conseguiu a inclusão de importantes conquistas na Constituição de 1934: apoio financeiro do Estado à Igreja; proibição do divórcio, reconhecimento do casamento religioso, ensino religioso nas escolas públicas e subsídios estatais para instituições escolares católicas. Essas medidas, entre outras, contribuíram para criação de um estabelecimento de ensino superior católico na capital do país.
O primeiro passo foi a criação da Ação Universitária Católica (AUC) em 1929, a qual segundo Alceu Amoroso Lima destinava-se a complementar a formação e a educação religiosa de seus participantes e prepará-los para a vida pública. Em 1946, nascia a Universidade Católica do Rio de Janeiro, resultado dos esforços empreendidos desde a fundação do Centro D. Vital, passando pela Ação Universitária Católica, pela Juventude Universitária Católica e pelo Instituto Social do Rio de Janeiro. Em 1947, a Santa Sé conferiu à instituição as prerrogativas de pontifícia, o que a igualava às demais universidades católicas do mundo.
O pensamento progressista de Alceu Amoroso Lima, fundamentado nos princípios da democracia cristã defendida por Jacques Maritain, fez com que a relação entre ele e o recém empossado Dom Jaime de Barros Câmara (1894-1971) como arcebispo da arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro, em 1943, após a morte de Dom Sebastião Leme, fosse abalada. Dom Jaime Câmara defendia um posicionamento mais tradicionalista em relação aos simpatizantes das ideias socialistas. A ideia era combater o comunismo. “Nesse cenário Alceu Amoroso Lima concretizou sua opção pela defesa da liberdade como valor basilar para qualquer organização social, condenou o Estado Novo e convocou os intelectuais católicos para a defesa da democracia” (p. 89), posicionamento defendido em suas principais obras: Debates pedagógicos (1931) e Humanismo pedagógico (1944).
No terceiro capítulo, ‘Alceu Amoroso Lima e a renovação da pedagogia católica em Debates Pedagógicos (1931) e em Humanismo Pedagógico (1944)’, o autor analisa a primeira obra do pensador católico: Debates pedagógicos (1931). Trata-se de uma coleção de artigos sobre educação, em particular sobre o retorno do ensino religioso às escolas públicas, nos quais ele se contrapôs às ideias liberais do laicismo no sistema pedagógico republicano. Na visão de Amoroso Lima, essas ideias provocaram uma cisão entre instrução e educação, comprometendo a formação dos alunos. Era preciso, segundo Skalinski Junior, investir em uma pedagogia católica. Alceu Amoroso Lima defendia a renovação dos métodos pedagógicos em favor de uma pedagogia integral, visando o desenvolvimento dos diferentes aspectos da potencialidade humana e a elevação espiritual da personalidade.
Amoroso Lima, em seu projeto de ação pedagógica católica, tinha a universidade como destaque. A pedagogia liberal havia, em seu entender, exaltado as ciências experimentais ou sociais em detrimento das ciências filosóficas e religiosas. Por meio da cooperação com a Igreja, restaurar-se-ia a unidade filosófica da universidade e se recuperaria a universalidade cultural e a espiritualidade cristã em face da confusão mental típica do ‘modernismo’ liberal.
As ideias liberais dominantes no campo da educação, segundo Amoroso Lima, contribuíam para que o aluno ficasse órfão da educação moral e religiosa, tão importantes para a formação do corpo e do caráter. A volta do ensino religioso nas escolas públicas seria, portanto, fundamental para a superação da ‘atmosfera de indiferentismo moral e religioso’ decorrente das práticas educacionais liberais, alicerçadas no que o autor chamava de naturalismo pedagógico e de sociologismo pedagógico. Segundo Amoroso Lima, tais abordagens arrastavam a inteligência ao estado de desordem e ao enfraquecimento geral. Era preciso “[…] corrigir os desvios derivados do laicismo republicano, efetivamente, um primeiro passo para a restauração intelectual e moral dos espíritos afetados pelo naturalismo, pelo materialismo e pelo agnosticismo” (p. 108).
Na parte da análise dedicada à obra Humanismo pedagógico: estudos de filosofia da educação (1944), Skalinski Junior discute seus desdobramentos para a educação e a prática pedagógica. Segundo Amoroso Lima, o trabalho pedagógico ocorreria com base em princípios de ordem geral e especiais. A centralidade do processo educativo seria o próprio indivíduo, isto é, “[…] o desenvolvimento pleno de sua humanidade, ou seja, o seu desenvolvimento como pessoa” (p. 112).
Para Amoroso Lima, a prática educativa defendida pelo liberalismo republicano tinha uma tendência negativa: a mutilação da educação e da formação humana. Além disso, ele se posicionava contra o comunismo: essa visão de mundo contribuiria para a descristianização da escola. A retomada do ensino religioso nas escolas públicas possibilitaria o desenvolvimento integral do indivíduo: físico, intelectual e espiritual. Nesse sentido, a educação moral e religiosa cristã como parte da preparação pedagógica da população ajudaria na edificação das qualidades da razão, da vontade e do temperamento.
O papel civilizador da universidade, de acordo com Amoroso Lima, seria a integração entre a vida cultural e a vida prática. Nesse contexto, o professor teria papel de destaque: mais que um transmissor de conhecimentos, ele seria um formador de personalidades. A família também teria uma missão importante. Para ele, “[…] a escola deveria ser o prolongamento da família, bem como o laço que a ligaria ao Estado, no que diz respeito às questões formativas” (p. 118).
Os fundamentos da educação cristã eram defendidos por Amoroso Lima como caminho para a superação do liberalismo, do laicismo e do materialismo produzidos pela sociedade burguesa. Esses fundamentos fortaleceriam a vida espiritual e o papel da família, especialmente no que diz respeito ao desenvolvimento integral da pessoa, em seus aspectos físico, intelectual e espiritual. Desse modo, visando restaurar a ordem moral de forma a garantir a unidade social, na prática humanista pedagógica proposta, Amoroso Lima enfatizava os fundamentos espirituais e religiosos do catolicismo, a defesa da liberdade em detrimento da autoridade, contrapondo-se ao “[…] esfacelamento das tradicionais instituições e a desorientação das consciências […]” (p. 131).
Na ‘Conclusão’, Skalinski Junior afirma que as proposições pedagógicas de Alceu Amoroso Lima correspondiam ao objetivo de impulsionar as potencialidades humanas com base em uma ação educacional integral. Para tanto, eram necessárias a retomada e a recomposição dos valores cristãos na formação do caráter da pessoa, do ‘caráter nacional’. “Suas ações em favor da cultura católica, em diferentes âmbitos das sociedades política e civil, contribuíram para a difusão e para o fortalecimento de um conjunto de valores que entremearam as ações da militância católica para os fins educacionais” (p. 143).
Escrita em uma linguagem clara, direta e objetiva, fundamentada em Antonio Gramsci (1891-1937), abordando o início do século XX, a obra é uma referência importante para os estudos no campo da historiografia da educação brasileira. Mais ainda, interessa aos pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento porque analisa um dos mais prestigiados e influentes pensadores católicos desse período que, dialogando, com diferentes segmentos da sociedade civil, visava atualizar o discurso e a ação pastoral da Igreja na sociedade globalizada.
Felipe Luiz Gomes Figueira – Professor de História no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Paraná – Câmpus Paranavaí. Mestre em Educação (UEL, 2012) e Doutor em Educação (UNESP-Marília, 2015). Líder do Grupo de Pesquisa Bildung. E-mail: felipe.figueira@ifpr.edu.br
Marcos Ayres Barboza – Psicólogo no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Paraná – Câmpus Paranavaí. Mestre em Educação (2007) pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Estadual de Maringá/UEM-PR Estudante do Grupo de Pesquisa sobre Política, Religião e Educação na Modernidade. E-mail: ayresbarbosa@hotmail.com
Jan Hus – cartas de um educador e seu legado imortal – AGUIAR (RBHE)
AGUIAR, T. B. Jan Hus – cartas de um educador e seu legado imortal. São Paulo: Annablume; Fapesp; Consulado Geral da República Tcheca, 2012. 444 p. Resenha de: NASCIMENTO, Renata Cristina de Sousa. Cartas de Jean Hus: Indícios de uma intenção educativa. Revista Brasileira de História da Educação, Maringá, v. 15, n. 2 (38), p. 309-314, maio/ago. 2015
Partindo da proposta epistemológica de Carlo Ginzburg (1989), no ensaio Sinais: raízes de um paradigma indiciário1, Thiago Borges de Aguiar procurou, em sua pesquisa, conhecer e interpretar a ação educativa de Jan Hus, pregador e importante intelectual, que viveu na Boêmia e morreu condenado pela inquisição em 1415. Ele procura os indícios de um educador, que esteve presente através de suas cartas. “Destas chegaram até nós cerca de uma centena, escritas no período de 1404 a 1415, com aproximadamente 80% em latim e o restante em tcheco” (AGUIAR, 2012, p. 39). Em que sentido essa documentação pode expressar a perspectiva educativa de Hus? É preciso ter em mente que a análise de fontes narrativas, como as cartas, sofre a interferência de nossos padrões conceituais, nem sempre compatíveis com a realidade em que foram concebidas. Presente, pois, esta ‘recomendação metodológica’, de aproximação com o passado medieval, dentro do que é possível ao pesquisador de hoje, o autor buscou por meio de dados, aparentemente negligenciáveis, remontar uma realidade complexa, seguindo pistas que poderiam elucidar a rede de relações em que o clérigo boêmio estava inserido, e o discurso educativo presente em seus escritos.
A primeira edição da correspondência de J. Hus foi realizada no século XVI, pelo reformador Martinho Lutero, intitulada Epistola Quadam Piissima et Eruditissima Iohannis Hus. Outras edições foram publicadas seguidamente. Destas Aguiar trabalhou diretamente com duas: a que chamou Documenta, editada por Frantisek Palacký no século XIX, e a outra Korespondence, publicada em Praga em 1920 por Václav Novotný. Tanto o Documenta quanto a Korespondence possuem traduções para o inglês. Grande parte das cartas foi escrita na prisão, no período em que Hus esteve cativo na cidade de Constança. Como a publicação de Lutero foi a precursora da preservação da correspondência, é preciso considerar que parte delas pode ter sido perdida.
O autor analisa a forma de se escrever cartas no século XV, destacando que, nessa época, o manuscrito deixou de ser um objeto quase sagrado, tornando-se um veículo de transmissão do saber. Essa mudança foi notória a partir do século XII com a organização das universidades. Outra importante transformação narrativa foi o aumento significativo da escrita pessoal, privada. Em relação à correspondência hussita, partes dessas cartas também podem ser consideradas pastorais, endereçadas a uma comunidade específica, ou seja, aos praguenses, especialmente os que frequentavam a Capela de Belém, espaço de pregação e vivência direta do clérigo boêmio. Outra parte considerável, um total de 107, é constituída por cartas pessoais que esperavam por resposta. Nessas fontes, o autor procurou indícios de uma intenção educativa em Hus, pois ele correspondeu-se com todas as camadas sociais da época. “Hus era professor da Universidade de Praga e pregador da Capela de Belém. Esses dois lugares marcaram os espaços a partir dos quais ele participou de uma rede de relações, por meio da correspondência.” (AGUIAR, 2012, p. 97). Suas cartas são consideradas pelo autor como artifícios de ensino. Nelas teria a intenção de aconselhar; continuar seu trabalho intelectual; elaborar uma refutação às diversas acusações que lhe foram imputadas; defender a verdade; dar continuidade à sua tarefa pastoral. A produção escrita de J. Hus é imensa, incluindo, além das cartas, diversos sermões, textos devocionais e teológicos. Entre estes, o mais conhecido e discutido no âmbito acadêmico é o Tratado sobre a Igreja (Tractatus de Ecclesia). Nesse texto, afirmou que o pontífice não seria o chefe da Igreja Universal, motivo fulcral em sua condenação à morte como heresiarca, pelo Concílio de Constança no século XV. Uma característica de seus escritos é o uso da língua tcheca e não somente do latim. Devido a isso, sua produção também possui grande valor linguístico. Na busca pelo educador, o autor afirma que Hus realizou ação educativa por meio de sua produção escrita e de seus sermões. Em sua feroz oposição à Bulla indulgentiarum Pape Joannis XXIII, construiu parte de sua argumentação por intermédio de seus sermões na Capela de Belém, e de debates realizados na Universidade de Praga, o que lhe valeu, mais uma vez, a excomunhão2. Outra aproximação discursiva é com Paulo de Tarso. Assim como Paulo, Jan Hus educava por meio de cartas, escrevendo por estar distante. Nelas também afirmava que poderia morrer por defender a verdade, assim como Cristo o fizera. “Ele precisa escrever para pregar e defender seus princípios” (AGUIAR, 2012, p. 168). Parte importante da produção das cartas hussitas, segundo o autor, foram suas narrativas de viagem. Em agosto de 1414, o clérigo da Boêmia anunciou sua decisão de aceitar o convite do rei Venceslau e ir à Constança. Em seu trajeto, enviava cartas detalhadas sobre as cidades pelas quais passava, e a forma como era recebido. Com sua prisão em Constança, seu estilo de escrita sofreu alterações. Aguiar analisa, então, como os temas prisão e morte tornaram-se constantes em sua correspondência. Sua concepção de ensino adquiriu, ainda mais, um viés religioso. Ao escrever ao povo da Boêmia, enfatizava a importância da salvação e do louvor a Deus.
Thiago Aguiar oferece importante contribuição de cunho histórico, quando analisa as cartas enviadas a partir do dia 18 de junho de 1415, data da formulação final da sentença de morte na fogueira. “Neste período entre 18 de julho, quando recebeu a versão final de suas acusações, até 6 de junho, quando ocorreu seu julgamento, condenação e morte, encontramos vinte e cinco cartas escritas por Hus” (AGUIAR, 2012, p. 205). Nestas narrou pormenores de seu julgamento e a impossibilidade de defesa, criticou a desorganização do Concílio, a incompetência e fragilidade intelectual de seus adversários. Elas serviram também como possibilidade de se defender, já que não obteve em Constança espaço real para explicar seu pensamento, expresso em seus escritos. Essas fontes singulares revelam a memória de seus últimos dias e sua convicção de luta pelo que considerava verdade.
Na terceira parte do livro, o autor desenvolve o que chama de construção de um educador por seu legado. Neste âmbito, demonstra como aqueles que foram influenciados por Hus reelaboraram seu legado em diferentes épocas e contextos. Um dos primeiros biógrafos de Hus foi Petr de Mladoñovice, também responsável pela preservação de suas cartas. Mladoñovice foi seu aluno na Universidade de Praga, tendo sido escolhido pelo nobre Jan de Chlum, a quem Hus dirigiu parte de sua correspondência, para acompanhar o clérigo da Boêmia até Constança. Após a morte de Hus, tornou-se professor na Universidade de Praga, assumindo aos poucos papel de destaque entre os Utraquistas3. Seu relato sobre J. Hus é intitulado Historia de sanctissimo martyre Johanne Hus4, primeiramente publicado em Nuremberg em 1528, também por influência de Lutero. Como o próprio nome revela, essa narrativa foi fundamental na construção de Hus como mártir. O mártir defensor da verdade. “Preservar a memória e a verdade por meio do fiel registro do que aconteceu durante o Concílio de Constança foi uma intenção e pedido do próprio Hus” (AGUIAR, 2012, p. 248). Em suas cartas, sempre repetia que não era um herege, e sim um defensor do que era a verdade. Petr de Mladoñovice é o responsável pela divulgação do que a tradição diz que seriam as últimas palavras do mestre Hus: “Tem piedade de mim, ó Deus, eu me abrigo em ti” e “[…] em tuas mãos eu entrego meu espírito”. Uma clara analogia aos últimos momentos da crucificação de Cristo, narrada no evangelho de São Lucas.
A partir da página 274, Aguiar passa a construir o trajeto da expansão da memória de Hus além de sua terra natal, ou seja, a Boêmia. Mesmo com as cinco cruzadas enviadas a essa região, após a eleição do papa Martinho V em 1418, a memória da vida e do sacrifício de Hus, e de seu companheiro e principal discípulo Jerônimo de Praga, também condenado à morte na fogueira em Constança, não parou de crescer. A igreja da Morávia, de influência hussita, é resultado do grupo conhecido como União dos Irmãos. Jan Amós Comenius (1592-1670), destacado educador, foi um de seus mais famosos bispos.
Sem dúvida, o mais importante divulgador do legado de Hus foi Martinho Lutero (1483-1546). Leitor dos escritos hussitas, ele o considerava um verdadeiro cristão. Foi, como já afirmado, o primeiro a publicar suas cartas. Essa divulgação da memória escrita de Hus ocorreu justamente na época do Concílio de Trento (1545-1563), claramente como uma advertência contra a injustiça. Os elogios de Lutero a Hus elaboraram, ao longo do tempo, outra imagem desse personagem, para além de mártir e defensor da verdade: a de precursor do protestantismo, ao lado de John Wycliffe (1328-1384). Lutero afirmou, no prefácio à segunda edição das cartas, que se Hus tivesse sido um herege, ninguém sob o sol poderia ser visto como verdadeiro cristão. Outro escritor protestante que contribuiu para a rememoração de Hus, como precursor reformista, foi John Foxe, que viveu na Inglaterra ainda no século XVI. Aguiar analisa a importância desse autor, entre outros, na introdução do pensamento hussita entre os protestantes. Foxe foi um dos primeiros a traduzir para o inglês os primeiros escritos sobre Hus, sendo também autor do Livro dos Mártires.
Na discussão sobre as traduções da obra de Hus, o autor diz que “[…] cada nova publicação das cartas de Hus é uma nova leitura, acrescentando interpretações e propondo mudanças na compreensão desta correspondência” (AGUIAR, 2012, p. 288). Na França, destaca a figura de Émile de Bonnechose (1801-1875), que publicou, em sua época, dois importantes livros sobre Hus. Entre eles, a biografia intitulada “Os Reformadores Antes da Reforma: Século XV”. Nessa obra, aparece uma nova imagem dos hussitas, como defensores da liberdade de consciência. O contexto da França revolucionária e anticatólica foi fundamental nessa nova reelaboração. Outra contribuição de Thiago Aguiar foi a apresentação de grande parte da historiografia tcheca sobre a reforma na Boêmia. Para ele, “[…] existiram muitos Hus, dependendo da época que se escreveu sobre ele” (AGUIAR, 2012, p. 301). As fontes são as mesmas, mas cada historiador reconstruiu o próprio personagem.
Outro destaque é o uso da figura de Hus como símbolo nacional, representação identitária para o povo tcheco. O nacionalismo do século XIX e a luta pelo fim da anexação ao Império Austro-Húngaro contribuíram para a rememoração do legado desse personagem. As várias mudanças políticas no mapa da região, a criação da Tchecoslováquia e da futura República Tcheca buscaram também em J. Hus uma simbologia, revelando a longa duração do imaginário sobre ele. Essa busca pelo Hus histórico o recriou através de um discurso laudatório e até apologético. Em relação à área da educação, ele também foi visto como o educador da nação tcheca. Outro viés do legado do clérigo da Boêmia foi a construção de sua primeira estátua em 1869 e de seu memorial em 1915. Por fim, o autor procura, no legado imagético de Hus, sua herança cultural. Dividindo a análise em rostos e cenas, Aguiar faz uma rápida discussão sobre algumas representações escultóricas, desenhos, gravuras e imagens construídas desde a idade média. Entre elas, destacou as de mártir, santo, intelectual pregador e defensor da verdade. Percebe-se a inter-relação da narrativa escrita com a imagética. De que maneira Hus é lembrado nos dias de hoje? É importante sua contribuição na área da educação?
Como um personagem é uma construção contemporânea, o livro em análise pode ser visto como um novo olhar, uma nova leitura sobre o clérigo da Boêmia, garantindo uma contribuição da historiografia brasileira, por meio de Thiago Aguiar, na rememoração e reconstrução discursiva de Hus, um indício de seu legado imortal.
Notas
1GINZBURG, C. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
2O papa enviou a sentença de excomunhão maior, que foi tornada pública em 18 de outubro de 1412.
3 Utraquistas é um dos nomes atribuídos ao grupo dos Hussitas, posteriores à morte de Jan Huss, que defendiam o oferecimento da comunhão com o pão e com o vinho (sub utraque specie) também para os
leigos. O utraquismo foi condenado como heresia pelos Concílios de Constança, Basiléia e Trento (AGUIAR, 2012, p. 245).
4 O relato de Petr foi publicado na Boêmia apenas em 1869 por Palacký, sendo posteriormente revisto, a partir de novas fontes, em 1932 por Novotný. Esta última edição é base para a tradução de Matthew Spinka em 1965. Essa versão é a que foi utilizada pelo autor (AGUIAR, 2012).
Renata Cristina de Sousa Nascimento – Doutora em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Participante do NEMED (Núcleo de Estudos Mediterrânicos – UFPR). Professora da Universidade Federal de Goiás (UFG), da Universidade Estadual de Goiás (UEG) e da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (Mestrado em História). E-mail: renatacristinanasc@gmail.com