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Capitalismo em debate: uma conversa na teoria crítica – FRASER; JAEGGI (C-FA)
FRASER, Nancy; JAEGGI, Rahel. Capitalismo em debate: uma conversa na teoria crítica. São Paulo: Boitempo, 2020. Resenha de: FILHO, José Ivan Rodrigues de Sousa. “A turbulência que se aprofunda ao nosso redor”. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, v 25 n.1 Jan./Jun, 2020.
“A turbulência que se aprofunda ao nosso redor” *.
Capitalismo em debate é, acima de tudo, uma obra filosófica sintomática do tempo presente. E o é porque o capitalismo se encontra em discussão na esfera pública, em especial nos Estados Unidos, onde o livro, há dois anos, viera a lume e onde Bernie Sanders, neste ano, conduziu uma pré-candidatura presidencial declaradamente socialista que angariou intenso apoio e provocou acalorado debate. Essa recente problematização política do capitalismo tem lugar sob uma constelação de graves desenvolvimentos econômicos, políticos e culturais que remontam ao ocaso dos anos 2000: a crise financeira mundial de 2007-2009, o imediato resgate estatal de graúdos bancos privados à beira da falência, o consequente agravamento da crise das finanças públicas, a política de austeridade fiscal então renovadamente receitada e imposta, o duradouro refreamento do crescimento econômico, os protestos massivos que proliferaram por todo o mundo em indignada reação a esse plexo de crises econômicas, os movimentos políticos regressivos que também emergiram mundo afora, as políticas públicas econômicas e culturais promovidas por novos governos de extrema-direita hiper-reacionária que se instalaram com o apoio de tais movimentos e que tanto mantêm como aprofundam a mesma diretriz neoliberal de distribuição regressiva da riqueza social pela qual se nortearam prévios governos de centrodireita e centro-esquerda, além de intensificarem o escangalhamento do Estado de bem-estar social, denegarem as profundas mudanças socioeconômicas necessárias para evitarmos ou enfrentarmos a iminente crise ecológica global, insuflarem o etnonacionalismo e o racismo, reforçarem o machismo e a homofobia e minarem o Estado de direito e a democracia liberal. É sob a opaca radiação dessa constelação capitalista que se gesta o livro de Nancy Fraser e Rahel Jaeggi, e é a tal constelação que ele responde diretamente, sintomatizando o nosso tempo em três sentidos: ele reflete (sobre) um complexo temático discutido publicamente, um complexo de crises distintas e interligadas de alcance global e um complexo heterogêneo de movimentos e lutas sociais.
Vertida para o nosso português por Nathalie Bressiani, filósofa notoriamente versada nas teorias críticas das duas autoras, a obra se torna muito mais acessível no Brasil, onde tanto Fraser como Jaeggi, embora sejam filósofas preeminentes com diversas obras de imenso peso teórico, ainda são pouco traduzidas: justamente as mais importantes obras de ambas (por exemplo: de Fraser, Fortunes of feminism: from state-managed capitalismo neoliberal crisis ; de Jaeggi, Kritik von Lebensformen ) ainda não o foram. Também nesse sentido, Capitalismo em debate é uma novidade muitíssimo bem-vinda: pela precisão e pela consistência teórica do trabalho de tradução e por difundir entre nós o que mais recentemente teorizaram a filósofa estadunidense e a suíça.
É na tentativa de fazer jus à obra (bem como à sua tradução brasileira) que, a seguir, se elabora um panorama interpretativo dela, e se esboçam algumas observações críticas gerais.
À guisa de conversa
O que mais dá nas vistas quando se abre, pela primeira vez, o livro de Fraser e Jaeggi e até provoca um leve estranhamento durante os primeiros progressos da leitura é a peculiar forma discursiva em que o livro se apresenta. Trata-se mesmo de uma “conversa”, conforme advertido pelas autoras já no subtítulo do livro. Mas se trata de uma conversa apenas entre aspas, pois o debate entre elas não se configura, de fato, como uma conversa propriamente dita: falada e espontânea, informal e cotidiana.
Trata-se, antes, de uma conversa escrita (não só transcrita): e escrita com a intenção de constituir um livro, não um livro qualquer, mas um livro plenamente teórico, um livro de teorização crítica da sociedade capitalista. Uma conversa, portanto, minuciosamente organizada em quatro aspectos básicos. Em primeiro lugar, ela põe em foco uma temática ampla e complexa, mas bem demarcada e sistematicamente abordada, abarcando o capitalismo, a própria teorização crítica do capitalismo e, ademais, a práxis política anticapitalista. Em segundo lugar, o livro se desenrola num nível de profundidade teórica deliberadamente restringido, ainda que elevado, pois, mesmo que pretenda ser plenamente teórico, não pretende esgotar a teorização que empreende, nem aprofundá-la tanto que se torne acessível exclusivamente a acadêmicos familiarizados com esse tipo de teorização, inacessível, porém, para grande parte do público potencial. Em terceiro lugar, a “conversa” se caracteriza por uma intencional e constante moderação do seu nível de polemização, considerando que as duas autoras ostentam e mantêm entre si muitas divergências fortes, inclusive divergências de saída (dentre as quais se destaca a divergência quanto a conceber o capitalismo como ordem social institucionalizada, como defende Fraser, ou como forma de vida, como defende Jaeggi 1 ), mas não querem travar a “conversa”, nem a espichar exageradamente, nem a tornar árida com a multiplicação de ressalvas, objeções e encruzilhadas teóricas. E, em quarto lugar, o livro apresenta uma exposição cujo desenvolvimento é articulado em quatro grandes blocos, ou capítulos, bem delimitados e estreitamente justapostos na seguinte sequência: conceituação – historicização – crítica teórica – contestação política (sempre do capitalismo).
Intentando constituir um livro teórico e organizadíssima nos seus aspectos básicos, a “conversa” se faz, então, altamente formal e inteiramente acadêmica.
Por isso, o seu público potencial é formado, sobretudo, por acadêmicos, intelectuais e outros leitores excepcionais, mas não só pelos que já têm alguma intimidade com a teorização crítica do capitalismo. Não se trata, em todo caso, de obra dirigida prioritariamente a “leigos”: inclusive nesse aspecto, a ligação da teoria com a práxis não é, aqui, concebida como imediata; há certo hiato entre o terceiro e o quarto capítulo, entre a crítica teórica e a contestação política, hiato que não é intransponível, mas não pode ser suprimido nem ignorado, de modo que os destinatários preferenciais de Capitalismo em debate são os que transitam em palcos e plateias de debates teóricos.
Retomada de produções acadêmicas individuais anteriores
A maior parte da obra reapresenta, de maneira resumida, mas consideravelmente detalhada, os principais conceitos, explicações, teses e pressuposições de ambas as produções acadêmicas. Assim, quem ainda não travou contato com o que Fraser e Jaeggi, cada uma individualmente, já haviam publicado relativamente à crítica do capitalismo encontra, em Capitalismo em debate, um acesso adequado, amplo e instigante à particular crítica do capitalismo de cada uma das autoras.
No entanto, a obra não se circunscreve a uma reapresentação do já apresentado por cada uma delas alhures. Capitalismo em debate mescla a essa reapresentação, aqui e acolá e até em abundância, novos aprofundamentos, desdobramentos e esclarecimentos teóricos. Justamente a forma de “conversa” que tem a obra possibilita e convida a isso: cada uma das duas interlocutoras, recorrentemente, pressiona a outra a mais bem elaborar alguns aspectos da sua própria crítica do capitalismo, o que conduz, então, a alguns ganhos teóricos de reflexividade, abrangência e clareza.2 Há, ainda, inovações teóricas na obra em relação ao que as autoras haviam teorizado até então 3 Assim, proporciona-se, a quem já havia travado contato com a crítica do capitalismo de Fraser e/ou com a de Jaeggi, a possibilidade de retomar as suas leituras anteriores, levantar novamente questões que essas leituras lhe suscitaram e colocá-las perante a nova obra, tentando encontrar na última respostas para as primeiras, ainda que, nesse movimento, possa, com muita probabilidade, confrontarse com uma segunda onda de questões.
Outra vantagem da forma de “conversa” da obra é que se produz permanentemente a possibilidade de diversas comparações entre as duas críticas. Podem-se comparar os conceitos-chave empregados por cada uma das autoras. Podem-se comparar as explicações fundamentais que cada uma delas dá sobre: ontologia social do capitalismo; desenvolvimento temporal e diversificação espacial do capitalismo; distinção e articulação das dimensões específicas de uma crítica abrangente do capitalismo; análise das lutas sociais anticapitalistas hodiernas. Podem-se comparar, ainda, as teses centrais que cada uma delas articula quando se põem a explorar os terrenos da teoria social, da economia política, da metacrítica social e da análise empírica. E se podem comparar as mais importantes pressuposições subjacentes a cada uma das duas críticas do capitalismo, pressuposições metodicamente trazidas à tona e bastante discutidas em Capitalismo em debate. Além da diversidade do que pode ser submetido à comparação, também são diversos os critérios que podem ser utilizados para comparar: pode-se comparar à luz, por exemplo, dos critérios de fecundidade teórica, capacidade elucidativa, agudeza crítica e conectividade com a práxis política atual. Aliás, as próprias autoras usam, com frequência, os mencionados critérios para exigirem, uma da outra, respostas satisfatórias a várias questões abordadas no livro.
Retomando as suas próprias produções acadêmicas, Fraser e Jaeggi procedem, além do mais, a uma relativa sistematização das suas críticas do capitalismo, as quais se encontravam, até então, dispersas numa vasta lista de artigos e livros. E isso diz respeito principalmente a Fraser, que tem uma carreira acadêmica mais extensa e mais numerosas publicações que Jaeggi e, além disso, está mergulhada, já há uns bons dez anos, num processo de elaboração de uma nova crítica do capitalismo, publicando os seus resultados parciais de modo intermitente e numa prolífica sequência cumulativa, o que lhes impõe o aspecto de partes formadoras de um complexo mosaico ainda inconcluso. Trata-se de uma crítica do capitalismo nova, inclusive, em relação àquela que a mesma Fraser, até então, elaborara 4 e que não era, como a de agora, centrada: (a) nas divisões institucionais axiais que estruturam a sociedade capitalista em diversas esferas funcional, ontológica e normativamente específicas, mas interdependentes; (b) nas várias tendências de crise do capitalismo produzidas pelas incompatibilidades fundamentais e irredutíveis da lógica própria da economia capitalista, de um lado, com as lógicas próprias do poder público, da reprodução social e da natureza não humana, de outro; (c) nas lutas sociais travadas nas fronteiras entre a economia capitalista e os seus imprescindíveis planos de fundo político, sociorreprodutivo e natural. Esse ambicioso projeto teórico de Fraser, no entanto, não havia sido, até agora, realizado de modo concentrado (num grande livro) e rigorosamente sistemático, mas numa comprida fieira de artigos distribuídos entre diferentes revistas e livros, 5 de maneira que, em razão da própria forma artigo, ela não havia conseguido, até agora, conferir à sua nova crítica do capitalismo uma exposição completa e unificada. Apesar do seu currículo acadêmico menos volumoso, também Jaeggi se caracteriza pela mesma dispersão da sua interlocutora – uma dispersão, vale notar, nem errática, nem inconsciente, nem insuscetível à síntese. De fato, também Jaeggi elaborou a sua crítica do capitalismo de modo fragmentário. Num primeiro livro, ela elaborou o seu critério ético para a crítica do capitalismo, a saber, a alienação. Depois, num artigo, elaborou o arcabouço conceitual e explicativo da sua crítica da ideologia. Noutro artigo, veio a elaborar a sua metacrítica, que propõe uma teorização do capitalismo que indissoluvelmente entremeie análise e crítica e seja, ao mesmo tempo, funcional e ética. Elaborou, num terceiro artigo, um conceito funcional e ético de trabalho. Em seguida, noutro livro, elaborou a sua teoria social, centrada nas formas de vida. Elaborou, ainda, num quarto artigo, um conceito amplo de economia, economia como conjunto de práticas sociais específicas, mas inseparavelmente atreladas a outros tipos de práticas sociais e, enquanto conjunto, completamente partes, fundamentalmente características e parcialmente constitutivas de uma forma de vida específica; e assim por diante.6 Portanto, também à crítica do capitalismo de Jaeggi, faltava uma exposição completa e unificada.
Isso ocasionava, para o público leitor, uma expressiva dificuldade para compreender, de modo sistemático, ambas as críticas do capitalismo, já que elas mesmas foram elaboradas pelas suas autoras de maneira paulatina e fragmentária (mas não incoerente).Capitalismo em debate, não obstante, concede a ambas uma significativa chance de se fazerem sistemáticas enquanto teóricas críticas do capitalismo. Essa chance, contudo, é limitada, pois a sistematização não pode, nesse tipo de livro, escrito à guisa de conversa, ser exaustiva, nem definitiva, no que tange a aprofundamento, desdobramento e clarificação do previamente publicado.
A sistematização alcançada é, nesse sentido, relativa: trata-se de alinhavar o já publicado, recuperando explicitamente a sua coerência interna, indo, de vez em quando, um pouco além do já escrito anteriormente, sempre na medida do permitido pela forma “conversa”.
O pronunciado protagonismo de Fraser
A chance de sistematizar as suas dispersas contribuições anteriores para a crítica do capitalismo foi, de fato, aproveitada pelas duas autoras, mas Fraser, visivelmente, a aproveitou muitíssimo mais que Jaeggi. Talvez haja uma razão genética, editorial, para isso: o livro fora encomendado pelo editor estadunidense, ao que tudo indica, como uma homenagem à longeva, profícua e influente carreira acadêmica de Fraser, por ocasião do seu septuagésimo aniversário, em 2017. Ainda que as autoras tenham decidido alterar o propósito do livro proposto pelo editor, dedicando-o, então, ao estágio atual das suas pesquisas, cujo foco é justamente o capitalismo, é nítido que Jaeggi desempenha, predominantemente, o papel de uma entrevistadora, embora saia uma entrevistadora bastante erudita, perspicaz e crítica. Mesmo quando seria esperado que fosse dela a fala principal, o impulso do protagonismo de Fraser, rapidamente, desponta, se imiscui e se instala.
Nos capítulos I e II, que versam, respectivamente, sobre a conceituação e a historicização do capitalismo, o palco é quase unicamente de Fraser. Jaeggi se restringe, quase completamente, a estimular a sua interlocutora a reapresentar (e, aqui e ali, aprofundar, desenvolver e clarificar) duas grandes propostas suas (da própria Fraser): (a) a proposta de conceituação do capitalismo como uma ordem social cuja especificidade histórica reside na institucionalização de uma esfera econômica que é separada das esferas da reprodução social, do poder público e da natureza não humana, mas que é, ao mesmo tempo, dependente dessas três esferas “não econômicas”, ainda que denegue a imprescindível importância econômica que elas possuem e ainda que denegue a parasitação, o esgotamento e a devastação que impõe a elas; (b) a proposta de historicização do capitalismo como uma sequência (retrospectivamente reconstruível como sendo direcional) de regimes de acumulação privada de capital que não se circunscrevem à esfera econômica, mas são, ao mesmo tempo, regimes socio-rreprodutivos, políticos, socioecológicos e racializadores, quer dizer, os regimes de acumulação mercantil, liberal, administrado pelo Estado e financeirizado/neoliberal também abrangem, como componentes “não econômicos” essenciais, mas mantidos no plano de fundo, formas específicas de feminilização do “cuidado” e de seguridade social, formas específicas de configuração das relações entre os poderes privados econômicos e os poderes públicos políticos (nacionais e transnacionais), formas específicas de “natureza histórica” e formas específicas de subjetivação/sujeição política e de expropriação econômica.
Já o capítulo III seria, supostamente, o capítulo em que Jaeggi tomaria o protagonismo na “conversa”, já que se trata de um capítulo dedicado à metacrítica do capitalismo, ou seja, à reflexão sobre os critérios fundamentais com base nos quais se critica o capitalismo e sobre os tipos gerais de crítica do capitalismo. Enquanto Fraser, até então, na sua produção acadêmica anterior, havia se abstido largamente de escrever sobre a crítica do capitalismo, tendo se concentrado em escrever diretamente sobre o próprio objeto da crítica do capitalismo, é de Jaeggi, possivelmente, a principal elaboração da Teoria Crítica recente em termos de metacrítica do capitalismo. Seria, pois, esperado que, nesse capítulo, a voz preponderante fosse a de Jaeggi. Jaeggi chega a retomar a sua metacrítica do capitalismo já no início do capítulo, definindo, assim, os termos da discussão, de modo que a discussão passa, então, a girar em torno de três tipos gerais de crítica do capitalismo, distinguidos uns dos outros pela adoção de um de três critérios fundamentais: a crítica funcional põe em foco as tendências de crise do capitalismo; a crítica moral, a exploração e/ou a injustiça impostas pelo capitalismo; e a crítica ética, a alienação que o capitalismo produz.Definidos desse modo os termos da discussão, Fraser passa, no entanto, a fazer preponderar a sua voz. Primeiro, Fraser concorda com Jaeggi em que não é possível uma crítica puramente funcional do capitalismo, em que toda crítica funcional está ligada, explícita ou implicitamente, a algum ponto de vista normativo e, portanto, a algum tipo de crítica moral e/ou ética, ainda que o desenvolvimento teórico da crítica propriamente normativa se apresente como tímido e fugaz. A partir daí, no entanto, começam a mostrar-se divergências e diferenças entre as duas autoras. Por exemplo, Jaeggi defende que Marx não procedeu a uma crítica diretamente moral do capitalismo, mas Fraser sustenta que há, em Marx, uma dimensão moral explícita, relacionada à justiça política, ou a uma injusta (pois classista) destinação institucionalizada do excedente social. A obstinada oposição que Jaeggi faz a uma crítica moral é, então, contrastada com a insistência de Fraser numa crítica moral centrada nas dominações estruturais não só de classe, mas também de gênero e raça. Além disso (e muito mais importante), Fraser passa a apresentar a sua própria concepção de crítica ética do capitalismo, contrapondo-a abertamente à particular concepção de Jaeggi. E isso leva Fraser a retomar tanto a sua própria conceituação como a sua própria historicização do capitalismo, já desenvolvidas nos dois capítulos anteriores, para salientar-lhes as nuanças propriamente éticas.
Não obstante, é no capítulo III, sem dúvida, que Jaeggi é mais bem-sucedida em expor a sua própria crítica do capitalismo, ao menos nos seus traços gerais: uma crítica baseada em dois critérios entrelaçados, o critério funcional das contradições imanentes e tendências objetivas de crise e o critério ético não essencialista e não substantivo, mas antes processual e formal, da alienação – alienação como obstáculo à liberdade social. Trata-se de uma crítica que, em última análise, põe em relevo a irracionalidade inerente ao capitalismo como uma ordem social que sistematicamente bloqueia experiências sociais e processos de aprendizagem e, assim, distorce profundamente as reações sociais às suas próprias crises, o que acaba por causar e proliferar relações sociais alienadas e fenômenos de estranhamento. Nessa medida, o capítulo III é o capítulo de Jaeggi, ainda que, nele, o desempenho discursivo de Fraser não fique atrás do da sua interlocutora. No capítulo IV, Fraser reassume mais enfaticamente o seu protagonismo no livro. Isso ocorre porque a crítica do capitalismo de Fraser dispõe de uma elaboração acerca das lutas sociais que é muito mais rica e clarificadora do que a de Jaeggi. Essa elaboração se desenvolve em três vertentes diferentes e, não obstante, interligadas. A primeira vertente é a da ressignificação e ampliação do conceito clássico de “lutas de classe” através do conceito novo de “lutas de fronteira” – o que representa uma contribuição original de Fraser para a renovação do marxismo e da Teoria Crítica. Na “A turbulência que se aprofunda ao nosso redor” Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo | Jan./Jun..2020 129 segunda vertente, Fraser realiza uma apropriação crítica do conceito de “movimento duplo” de Karl Polanyi que o transforma num “movimento triplo”, constituído de três amplas tendências de desenvolvimento que atravessam toda a história do capitalismo e se relacionam umas com as outras de maneiras diferentes ao longo dessa história, a saber, as tendências de mercadorização, proteção social e emancipação. Já na terceira vertente, Fraser elabora o diagnóstico acerca do “neoliberalismo progressista” como a corrente política neoliberal hegemônica até há pouco, bem como acerca do recente arruinamento da hegemonia neoliberal sob a pressão geral de movimentos regressivos e emancipatórios, os primeiros alimentando o “populismo reacionário” de extrema-direita, os últimos nutrindo o “populismo progressista” de uma esquerda da qual se espera que possa unir toda a classe trabalhadora em sentido amplo, abarcando todos os expropriados e explorados num bloco contra-hegemônico que vise a uma transformação estrutural da ordem social capitalista. Jaeggi levanta importantes discordâncias e ressalvas a essa tripla elaboração de Fraser. Por exemplo, ela parece adotar uma compreensão mais aguda e mais dramática do racismo, do sexismo e da homofobia que caracterizam os atuais movimentos regressivos e os seus porta-vozes partidários de extrema-direita, em contraposição à proposta de Fraser de compreender essas gravíssimas atitudes sociopolíticas como reações reacionárias à crise da hegemonia neoliberal, suscetíveis, em princípio, ao esclarecimento e à mudança. Além disso, Jaeggi ressalta a necessidade de uma crítica da ideologia hoje, em contraposição à proposta de Fraser de recuperar o conceito de “hegemonia” de Antonio Gramsci. Em todo caso, nesse capítulo final, Jaeggi acaba por restringir-se a comentar as vastas propostas de Fraser.
Uma explicação do predomínio discursivo de Fraser
É possível explicar, com uma combinação de razões filosóficas e razões relativas à peculiar forma discursiva de Capitalismo em debate, a precedência que a crítica do capitalismo de Fraser exerce continuadamente sobre a de Jaeggi ao longo do livro. Ao conceituar o capitalismo como uma ordem social institucionalizada, Fraser monta um quadro conceitual que lhe rende algumas expressivas vantagens em relação a Jaeggi. Em primeiro lugar, o quadro conceitual de Fraser é consideravelmente menos abstrato que o de Jaeggi, o qual tem como cerne os conceitos de forma de vida, prática social, problema e processo de aprendizagem. Em segundo lugar, o quadro conceitual de Fraser é não só aberto à historicização – o de Jaeggi também o é –, mas também inerentemente dependente dela, ou seja, somente pode ser desdobrado teoricamente (e, assim, elucidar o seu próprio objeto) mediante uma narrativa abrangente do desenvolvimento histórico do capitalismo – o que não ocorre com o quadro conceitual de Jaeggi, cujo desdobramento teórico é significativamente independente de narrativas históricas, precisamente porque é de uma abstração elevadíssima. Em terceiro lugar, o quadro conceitual de Fraser tem como critérios da crítica a estabilidade estrutural (ou a sustentabilidade funcional), a não dominação de classe, gênero e raça e a autodeterminação coletiva socioeconômica, critérios com os quais Fraser consegue criticar o capitalismo de modo, ao mesmo tempo, mais simples, mais fértil e mais convincente do que Jaeggi com os seus critérios de êxito na compreensão e resolução de problemas e não alienação (ou apropriação). E, em quarto lugar, o quadro conceitual de Fraser é capaz de esclarecer imanentemente as lutas sociais de outrora e de hoje de modo abrangente e nuançado, quer dizer, oferece um panorama sistemático delas ao longo de toda a história capitalista, tanto no centro como na periferia do capitalismo mundial e em cada um dos períodos específicos dessa história; e oferece, ainda, um discernimento criterioso daquelas lutas conforme se posicionem em relação à mercantilização da sociedade, à proteção da sociedade contra a mercantilização e à emancipação de grupos sociais que permanecem estruturalmente dominados na sociedade capitalista.
Justamente em virtude dessas características do seu quadro conceitual, a crítica do capitalismo de Fraser se sobressai à de Jaeggi na “conversa”. Efetivamente, numa conversa (ainda que seja uma conversa só entre aspas), tende a perder espaço quem discursa muito abstratamente: discursos muito abstratos são mais adequadamente desdobrados em formas de escrever não dialógicas nem inclinadas à altercação oral, quer dizer, em formas de escrever mais monográficas, ensaísticas ou tratadísticas. Nesse sentido, é razoável supor que o quadro conceitual menos abstrato de Fraser tenda a ser propício ao desdobramento do seu particular discurso em Capitalismo em debate, enquanto o quadro conceitual muito mais abstrato de Jaeggi tenda ao contrário. Mesmo no capítulo I e no III, os mais abstratos do livro, a menor abstração do quadro conceitual de Fraser lhe proporciona bastante espaço discursivo. Além disso, as temáticas às quais se dedicam os dois outros capítulos do livro são francamente favoráveis a Fraser: no capítulo II e no IV, dedicados, respectivamente, à história do capitalismo e às lutas anticapitalistas atuais, é quase óbvio que Fraser se destaque muito mais que Jaeggi, dado que, entre as duas, é apenas Fraser que oferece uma crítica do capitalismo eminentemente histórica e explícita e sistematicamente ligada à práxis política anticapitalista.
Estamos conversados?
A forma de “conversa” que as autoras deram ao seu livro lhes permite sempre abrir e abordar uma gama formidável de temas e problemas, ao mesmo tempo que nem sempre lhes permite dar vazão à sua veia teórica na medida necessária. Essa constrição formal da reflexão teórica impõe a Capitalismo em debate três importantes limitações: a primeira diz respeito à relação da teorização que as autoras oferecem com a economia política e, em particular, com a teorização de Karl Marx; a segunda, à clarificação da religião nas suas (perigosas) relações com o capitalismo; e a terceira, à elucidação dos supostos populismos hodiernos. Tais limitações podem ser formuladas através das seguintes questões, que, no livro, ficam intocadas: Que traços fundamentais teria uma nova economia política que levasse a sério seja a concepção expandida de capitalismo de Fraser, seja a concepção alargada de economia de Jaeggi? Permaneceriam sustentáveis as bases do edifício teórico da crítica marxiana da economia política ante as novas, mais profundas e mais complexas concepções de trabalho, natureza, acumulação, contradição, crise, classe, luta de classes, democracia, sociedade e socialismo de Fraser? Como precisamente essas concepções de Fraser impactam as centrais conceituações marxianas de valor e mais-valor? Que lugar a religião ocupa na sociedade capitalista? Ela chegaria a constituir, para Fraser, uma esfera social própria com a qual a economia, assim como com a reprodução social, a política e a ecologia, manteria uma relação de separação, dependência e denegação; ou, para Jaeggi, uma forma de vida de escopo limitado, mas de forte resistência, sob a modernidade como uma abrangente forma de vida secularizada? Ou se circunscreveria ela a um resíduo de eticidade pré-moderna que, embora essencialmente incompatível com a secularidade moderna, pode ser e, de fato, é reaproveitado na sociedade capitalista para fins hegemônicos (diria Fraser, quiçá) ou ideológicos (talvez dissesse Jaeggi)? E que é populismo? Os atuais presidentes estadunidense e brasileiro (Donald Trump e Jair Bolsonaro), por exemplo, são mesmo populistas? Não seria mais adequado caracterizá-los como autoritários ou até fascistas? O que diferiria, hoje, o populismo do autoritarismo e do fascismo? Sem embargo dessas limitações gerais, Capitalismo em debate tem como virtude principal a de ser um livro tempestivo, um livro que liga estreita e profundamente a reflexão teórica ao seu contexto social, um livro que cabe ler justamente em meio à “turbulência que se aprofunda ao nosso redor” (p. 9). Ao final da leitura, permanecem ressoando as palavras de Fraser: “a crise não será resolvida com o ajuste desta nem daquela política. O caminho para a sua resolução só pode ser o da transformação estrutural profunda dessa ordem social”; palavras, aliás, reverberadas por Jaeggi: “sem um projeto emancipatório para além das alternativas às quais as pessoas parecem presas agora, as coisas podem ficar feias” (pp. 241-242).
Referências
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* Trata-se de uma citação da obra resenhada, situada na página 9.
Notas
1 Há outras três divergências centrais entre as autoras, a saber: primeiro, ao passo que Jaeggi parece manter uma considerável abertura para uma teoria da modernidade, ainda que não desenvolva uma, Fraser parece ater-se completamente à teorização do capitalismo, sem preocupar-se em caracterizálo como formação social moderna e em distingui-lo de formações sociais pré-modernas. Segundo, enquanto Jaeggi abraça uma crítica ética do capitalismo que, malgrado formal, é enfática, já que focada na alienação, Fraser assume uma crítica ética do capitalismo que é bastante tímida e parece ser mais política que ética, já que enfoca a autodeterminação coletiva quanto às mais importantes questões econômicas. Terceiro, se Fraser não hesita em conceber os movimentos sociais hodiernos, inclusive os regressivos, como reações diferentes ao neoliberalismo hegemônico, Jaeggi reluta em aceitar tal concepção e não descarta hipóteses que explicam os movimentos sociais regressivos por prismas predominantemente simbólicos, real ç ando, por exemplo, o racismo inveterado, a misoginia visceral, a homofobia entranhada e o ressentimento social que os impulsionaria
2 Por exemplo, quanto à conceituação do capitalismo, Fraser aprofunda reflexivamente a sua própria concepção ao explicitar que ela emprega duas metodologias distintas e que, no entanto, não correspondem a duas, mas a uma única ontologia social, ainda que diversificada para dar conta das diversas esferas sociais em que se divide estruturalmente a sociedade capitalista. Trata-se de uma metodologia estrutural-institucional e de uma metodologia de teoria da ação. Já quanto à historicização do capitalismo, Fraser desdobra a sua concepção, tornando-a mais abrangente, ao apontar um novo regime de acumulação capitalista, vigente do século XVI ao XVIII, anterior ao capitalismo liberal e concorrencial do século XIX, a saber, o capitalismo mercantil. Ademais, Fraser clarifica, quanto à conceituação do capitalismo, que a sua concepção não é meramente funcionalista, mas é também normativa; além do mais, clarifica, quanto à historicização do capitalismo, que o ideal seria elaborá-la de modo conjunto e sistemático, mostrando como as relações profundamente instáveis que a economia capitalista, de um lado, mantém com o poder público, a reprodução social e a natureza não humana, de outro, desenvolvem-se, ao mesmo tempo, distinta e combinadamente.
3 Por exemplo, em relação à crítica teórica do capitalismo, Fraser inova ao afirmar que a sua crítica do capitalismo tem não só uma dimensão funcionalista (focada em contradições estruturais e tendências de crise) e uma dimensão moral (focada em dominações institucionalizadas de classe, gênero e raça), mas também uma dimensão ético-estrutural que diz respeito à falta de autodeterminação coletiva no que se refere a questões econômicas centrais que moldam profundamente a forma de vida abrangente, sobretudo a questão do controle e do emprego do excedente social. E, em relação à contestação política do capitalismo, Fraser também inova ao afirmar que há uma crise de legitimação em curso, uma crise da hegemonia (do senso comum político) neoliberal, sendo que, em artigo publicado três anos antes, afirmara que faltava precisamente tal crise de legitimação.
4 As obras mais emblemáticas da fase anterior da crítica do capitalismo de Fraser são: Fraser & Honneth (2003) e Fraser (2013).
5 Ver, por exemplo, os seguintes artigos: Fraser (2014), Fraser (2018a), Fraser (2016), Fraser (2018b), Fraser (2018c), Fraser (2020).
6 Ver Jaeggi (2014), Jaeggi (2008), Jaeggi (2015), Jaeggi (2018a), Jaeggi (2018b), Jaeggi (2017).
José Ivan Rodrigues de Sousa Filho – Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: ivanrsfilho@hotmail.com
Para la tercera cultura. Ensayos sobre ciencias y humanidades – FERNÁNDEZ BUEY (CCS)
FERNÁNDEZ BUEY, F. (2013). Para la tercera cultura. Ensayos sobre ciencias y humanidades. Prólogo de Alicia Durán, Jorge Riechmann, Jordi Mir y Salvador López Arnal. Edición a cargo de S. López Arnal y J. Mir. Barcelona: El Viejo Topo, 2013. 406p. Resenha de: CUESTA, Raimundo. ¿Tercera cultura o crítica de la cultura? Acotaciones a una obra póstuma de Francisco Fernández Buey. Con-Ciencia Social – Anuario de Didáctica de la Geografía, la Historia y las Ciencias Sociales, Salamanca, n19., p.133-138, 2015.
Un quehacer en la encrucijada del pensamiento crítico
La obra de Francisco Fernández Buey (FBB) plasma las encrucijadas teóricas entre dos ciclos de pensamiento crítico, cuyo devenir generó en nuestra época, parafraseando a R. Keucheyan (2013), una tipología muy variopinta de intelectuales (“conversos”, “pesimistas”, “resistentes”, etc.). El autor aparece como lugar de condensación de relaciones sociales de una época, como “centro de anudamientos”1 del complejo de vínculos y circunstancias que convergen en él. Perteneció a la categoría de los resistentes, de aquellos jóvenes de los años sesenta que, sin renunciar a su pasado, se asomaron al siglo XXI con una mirada crítica renovada, a pesar y sin olvidar las muchas y graves derrotas de la centuria anterior. La princi pal, afirma FFB, fue contar con el estalinismo entre los “tres actos de barbarie” sin precedentes; los otros dos fueron el Holocausto nazi y las bombas atómicas en Hiroshima (Fernández Buey, 1996, p. XXV).
Explicar lo inexplicable conduce a nuestro autor a relacionar la barbarie con la civilización, tal como hicieran, entre otros, M. Horkheimer y Th. W. Adorno en su Dialéctica de la Ilustración (1947)2, lo que le obliga, como firme partidario de la racionalidad científica, a tomar distancia respecto a sus propias ideas frente a los sueños de la razón creadores de monstruos; él mismo se acoge al slogan de B. Russell: “la necesidad de la ciencia para salvarnos de la ciencia” (Fernández Buey, 2013, p. 307). La obra de madurez de FFB acontece sobre un duro paisaje de fondo: la caída del muro de Berlín y la refundación del final de la historia como nuevo metarrelato del neoliberalismo.
Pero, tras el triunfo de la revolución conservadora, el derrumbe del socialismo real y la desagregación de la clase obrera tradicional, en el gozne entre ambos siglos, de las ruinas del viejo marxismo emerge el deseo teórico y práctico de volver a plantear la batalla de siempre, “aunque ahora lo llamen de otro modo”. A esa cita siempre acudió nuestro autor.
Una batalla póstuma por la tercera cultura
El libro póstumo de Fernández Buey (2013), Para la tercera cultura, en realidad, es el resultado de una trabajosa reordenación, a cargo de sus editores y amigos, Salvador López Arnal y Jordi Mir, de una obra sin acabar, y ello se percibe en la factura final de un producto compuesto de partes de muy desigual extensión, profundidad y temática.
En cualquier caso, la experiencia de la lectura es grata e incluso no decae su fuerza a pesar de que desde muy pronto se pone encima del tapete la tesis central del autor, a saber, que la escisión entre cultura científica y cultura humanística (entre las “dos culturas”) es una vetusta equivocación que debe ser superada con una “tercera cultura”, síntesis superadora que no admitiría sometimiento de una a la otra. Tesis central que, por lo demás, sus prologuistas se encargan de subrayar desde el principio.
La obra aparece dividida en cuatro capítulos, otros tantos anexos y un siempre oportuno índice de nombres (en este caso más conveniente por la falta de títulos en las subdivisiones del larguísimo capítulo 1). Efectivamente, en ese capítulo, Humanismo y tercera cultura, que abarca más de la mitad del texto, se efectúa un sugerente recorrido histórico a través de las formulaciones filosóficas, científicas y ensayísticas que han discurrido sobre la dualidad ciencia natural/humanidades. Los conocimientos de FFB como historiador de la filosofía y como teórico de la metodología de las ciencias sociales, tantas veces cultivados en su actividad docente y en sus publicaciones, permiten ahora presenciar la riqueza del debate epistemológico que subyace a la tradicional dicotomía. Si bien la tesis acerca de la convencional y perniciosa escisión entre ciencias/letras resulta una obviedad, el recorrido histórico por los supuestos teóricos de tal disyuntiva nos plantea un problema filosófico de envergadura a propósito del estatuto de las disciplinas y la especificidad de sus objetos y métodos.
Nuestro autor se sitúa siempre a favor de la corriente partidaria de la racionalidad científica y, siguiendo la senda de Lukács, ataca la deriva irracionalista, el asalto a la razón, que se escondería en los pliegues del pensamiento de Nietzsche, Spengler, Heidegger y otros. Una de sus consecuencias, desde finales del siglo XIX, gracias a los neokantianos, sería la búsqueda de un estatuto diferencial para las ciencias del espíritu, y la contraposición irreconciliable entre las ciencias nomotéticas (las explicativas conforme a regularidades comprobadas mediante el método experimental) frente a las idiográficas (las encargadas de dar cuenta de lo particular). La historia justamente estaría en el núcleo de ese debate. FFB, por su parte, contrapone la desviación idiográfica historicista de las artes de Clío frente a la concepción científica del conocimiento de lo social en tanto que ciencias histórico-sociales o sociohistóricas, tal como Marx las concebía.
Este hilo de posiciones contrapuestas se prolongaría, según FBB, hasta el relativismo posmoderno, del cual abomina.
Más allá de las coincidencias o discrepancias con FFB, es de agradecer el dibujo de este brillante fresco acerca del debate filosófico, científico y literario (las fuentes y autores que maneja son fruto de muchas y sustanciales lecturas de campos muy diversos) que sirve a modo de pórtico para traspasar el umbral del estado más actual de la querella sobre las “dos culturas”. El libro toma como base los debates de finales del siglo XIX y los lleva hasta la segunda mitad de siglo XX cuando, merced a la obra de Charles Percy Snow, The two cultures and the cientific revolution (Snow, 1977), renace en los países de habla inglesa tal asunto al calor de la polémica sobre las reformas del curriculum de esos años. Así, la cuestión de una “tercera cultura” se inscribe en la inacabable disputa sobre las humanidades y el sentido de la cultura en la era de la revolución científicotécnica.
El propio autor concibe la “tercera cultura” como algo más que una mera sustitución o hegemonía de una cultura por otra.
A tal efecto comenta la obra del sociólogo e historiador alemán Wolf Lepenies (1994), Las tres culturas, que precisamente considera las ciencias sociales como “culturas puentes para la tercera cultura”, y destaca también la aportación del norteamericano John Brockman (1996), La tercera cultura Más allá de la revolución científica, autor que se erige en difusor del concepto desde los años noventa.
La lectura de estas obras lleva a nuestro pensador a proponer una complementariedad entre ambos continentes científicos: el arsenal explicativo nomotético de las ciencias naturales debería combinarse con las retóricas narrativas y metafóricas procedentes de las ciencias humanas.
Estas tesis de fondo recorren el resto de los capítulos del libro que vienen a ser meras ilustraciones (algunas muy eruditas). En el capítulo 2, Lecturas para la tercera cultura, se efectúa un lúcido recorrido por dos temas: 1) Galileo visto por Brecht y 2) Los árboles del paraíso en la visión de John Milton. En su obra, La vida de Galileo, según FFB, “Brecht rechaza el progresismo ingenuo, advierte de las complicaciones de la vieja función prometeica de la ciencia, llama la atención sobre su función social presente y futura y obliga al espectador a pensar sobre la distancia que, a pesar de los progresos científicos, sigue habiendo entre el conocimiento que se tiene del movimiento de los astros y el conocimiento que el pueblo tiene de los movimientos de los que mandan” (p. 253).
En el subcapítulo segundo, donde más brilla su hermenéutica literaria, confronta las ideas del libro del Génesis con la obra de Milton y lo que en ella habita de la concepción científica que se abre paso en su época.
El motivo bíblico de la sed de saber y el deseo de comer el fruto prohibido del árbol de la ciencia le lleva a practicar una exégesis especialmente sugerente y atrevida, donde, no habiendo juicio moral objetivo (eso sería “ser como Dios”), el “camino oblicuo” de la ciencia nos advierte del “camino del conocimiento que bordea el infierno para evitarlo” (p. 283). Por otro lado, el capítulo 3, Ciencias sociales y tercera cultura, posee una relevancia a la hora de presentar un boceto de sus planteamientos: “la oscilación entre el formalismo y la literatura es el estado natural de las ciencias sociohistóricas”, y añade que “esta situación está llamada a prolongarse algún tiempo y que la modestia metodológica exige hacerse a esa idea” (p. 304). A su entender, existen tres modalidades tradicionales y distintas de concebir la ciencia: como análisis (Science), como crítica social y como cosmovisión (Wissenschaft). Las tres estarían todavía muy presentes. Postula FBB renovar el diálogo entre las tres y contemplar lo problemático de confundir o reducir ciencia social a actividad crítica por el peligro de parcialidad y partidismo (lo axiológico no deriva de ninguna ciencia) que tal posición entraña.
El capítulo de conclusiones no es tanto una recapitulación como un subrayado de la tesis de fundar un nuevo humanismo de nuestro tiempo que implique la prác tica de una ciencia con conciencia y al que están convocados, en virtud de una nueva alianza, los científicos y los humanistas tradicionales.
Por último, el libro se completa con cuatro anexos (medicina hipocrática; Newton/Goethe y la ciencia moderna; sobre la objetividad; sobre ciencia y religión) que, a modo de apunte o boceto, plantean asuntos muy variados atinentes al tema central de la obra.
Los anudamientos críticos de FFB
Pertenece nuestro autor a la categoría de “filósofo sacristaniano”, a la primera generación de discípulos del ilustre y singular filósofo marxista, algunas de cuyas características grupales ha destacado Francisco Vázquez García (2009). De donde se infiere que sus “anudamientos”, nacidos de una apuesta continuada por la ciencia y la objetividad, se ven a menudo rebasados por unos intereses sociopolíticos e inquietudes intelectuales extraños al objetivismo, lo que conlleva alianzas con amigos políticos y extraños epistemológicos. Precisamente a partir de las pinceladas que esta obra póstuma ofrece de su retrato filosófico nos surgen dos cuestiones de disenso, a saber: la relación entre cultura y teoría crítica, y la dimensión histórica y constructiva de todo conocimiento.
En cuanto a la primera, la cultura, un vocablo sustantivizado merced a la revolución conceptual operada el siglo XVIII, aparece en el texto que comentamos naturalizada y sacralizada como una realidad dada y trascendente, lo que impide ver que este heraldo anunciador de la modernidad burguesa3 contiene en su interior más de una mentira (W. Benjamin supo adivinar la barbarie que se agazapa tras los monumentos culturales) y no se puede reducir a un legado incontestable e intangible de bienes espirituales fruto del progreso de la razón humana. Esta concepción de la cultura como razón universal realizada se hace difícilmente cohabitable con el de crítica.
A menudo este término, aunque no sea el caso de FFB, se suele degradar a la condición de una mera habilidad cognitiva.
Cabe, no obstante, traer a colación por su pertinencia el artículo de Max Horkheimer, Teoría tradicional y teoría crítica (1937)4, donde distinguía entre “teoría tradicional” y “teoría crítica”. Allí a la consideración pasiva del sujeto de conocimiento, propia de una concepción positivista, contraponía el concepto de “teoría crítica” como aquella que entiende la relación del sujeto y el objeto como una coimplicación constructiva resultado de la praxis social. Según esta posición gnoseológica no existiría un conocimiento de lo social puro, neutro y desprovisto de valores.
En cuanto a la segunda objeción, nuestro autor adolece de un cierto esencialismo cientificista al situar la ciencia en un altar demasiado elevado e intangible. Por muchas reticencias que FFB albergue, todo conocimiento es una construcción sociohistórica, hija de las relaciones de poder, aunque cada disciplina establezca reglas de verdad más o menos refinadas. Los lenguajes explicativos de cada disciplina son modos específicos de afrontar el mundo y su potencialidad obedece a relaciones lógicas y extralógicas (internas y externas). No hay una realidad objetiva a la espera del cazamariposas del sujeto científico, porque el conocimiento del sujeto no es un mero reflejo de un objeto preexistente. Por lo demás, la aspiración a una teoría todoloexplica es una prometeica labor que históricamente ha engendrado indeseables sueños de la razón como, por ejemplo, el materialismo dialéctico, una criatura dogmática nacida en el seno del pensamiento revolucionario5.
Precisamente la idea de escisión de las “dos culturas” es una convención sociohistórica, hija de una determinada historia de la verdad. Randall Collins (2005), en su magna obra Sociología de las filosofías, propone una “sociología interna de la verdad” basada en el conflicto generado dentro de redes de reconocimiento y poder, de modo que la producción de la verdad, tal como sostiene también la sociología genética de Pierre Bourdieu, se ocasiona siempre dentro de un campo, de un espacio social de fuerzas en tensión. Las teorías del campo intelectual contribuyen a explicar la construcción social del conocimiento e incluso constituyen una modalidad más refinada de aceptación de una realidad objetiva (Collins, 2005, p. 8).
De modo y manera que la sociología del campo, gran ausente en la obra que comentamos, no significa que “todo valga”. Pero su ausencia limita, escora y dificulta la tesis de una “tercera cultura”, entendida esta exclusivamente como asunto y objetivo de un debate lógico-racional y no como apuesta inscrita en un espacio sembrado de minas.
Las guerras educativas de los últimos años entre retrohumanistas y eficientistas curriculares son expresión de la supervivencia de la separación de las dos culturas, pero encubren no sólo argumentos racionales, sino también el intento de reformulación del conocimiento y la escuela conforme al nuevo tipo de sociedad del totalcapitalismo.
En efecto, en tiempos recientes ha circulado una literatura acerca del desastre y degradación cultural de nuestro tiempo, cuya fuente nutricia, la madre de todas las guerras culturales, fue la obra del norteamericano, discípulo de Leo Strauss, Allan Bloom (1989), The Closing American Mind (1988), que denunciaba la caída en el relativismo y la insignificancia. Desde entonces la defensa del canon cultural de occidente ha estado al cabo de la calle en intelectuales tipo Mario Vargas Llosa (2012) y en la cofradía de los intelectuales retrohumanistas, donde a menudo la derecha y una cierta izquierda se dan la mano. Esta nostalgia hacia la cultura “culta” atraviesa todo el debate curricular que ha desembocado en un regreso conservador a los valores de siempre dentro del sistema educativo6. Aunque este no sea el planteamiento de FFB sobre la “tercera cultura”, su punto de vista también expresa la caída de las certezas sobre lo que deba ser una cultura crítica. Y, sobre todo, denota una cierta debilidad a la hora de pensar en la tarea de lo que deba consistir la crítica de la cultura aquí y ahora.
En todo caso, el gran valor de esta obra FFB estriba en lo que sugiere invitando a razonar más allá del lugar común. Además, el círculo Sacristán, al que perteneció nuestro autor, merece un lugar destacado en la historia del pensamiento español en los últimos cincuenta años.
[Notas]1. Concepto muy expresivo y de notable poder explicativo manejado por Manuel Sacristán (1987, p. 27).
2. Apareció en ese año por primera vez como libro y fue escrita unos pocos años antes. La historia de este extraño libro puede verse en J.J. Sánchez (1998, pp. 9-46).
3. Como ejemplarmente se ha estudiado en la llamada Historia conceptual (Bregriffgeschichten). Véase una excelente síntesis en Reinhardt Koselleck (2012). Lo cierto es que la historia de las ideas que se trasparenta en el libro de FFB resulta un tanto tradicional (personajes, influencias y consecuencias, etc.).
4. Hay edición española en Paidós (Horkheimer, 2000), que se beneficia de una introducción a cargo de Jacobo Muñoz y que, además, incluye Razón y conservación (1942), otro opúsculo central en la etapa más radicalmente crítica de su autor.
5, El libro del profesor argentino Néstor Kohan (2013), que dispara teóricamente contra todo los que se mueve fuera de la tradición Marx-Lenin-Gramsci-Guevara (y otros), contiene una interesante crítica de la historia de la construcción del DIAMAT (el materialismo dialéctico) como ideología perturbadora del legado de Marx y como pantalla justificadora del marxismo soviético.
6. Como muestra, valga un botón: “Madrid fija las fechas históricas que deben aprender los alumnos”. Así rotulaba la noticia (18 de febrero de 2014) Pilar Álvarez, periodista de El País. Al parecer, la reunión de las autoridades madrileñas con expertos historiadores (Gonzalo Anes, Fernando G. de Cortázar y Carmen Iglesias) llevaba a considerar obligatorio que los futuros egresados de primaria sepan, entre otras efemérides, que la llegada de los romanos a España ocurrió el año 218 a.C. Al poco, 24 de febrero de 2014, en el ABC.es, Esperanza Aguirre, “La enseñanza de la historia”, se felicitaba de la iniciativa, recordaba sus desvelos como ministra de educación y mantenía la tesis de las viles intenciones de nacionalistas e izquierdista a la hora usar la historia como materia de enseñanza.
Referencia princial
FERNÁNDEZ BUEY, F. (2013). Para la tercera cultura. Ensayos sobre ciencias y humanidades. Prólogo de Alicia Durán, Jorge Riechmann, Jordi Mir y Salvador López Arnal. Edición a cargo de S. López Arnal y J. Mir. Barcelona: El Viejo Topo, 406 págs.
Referencias
BLOOM, A. (1989). El cierre de la mente moderna. Barcelona: Plaza y Janés.
BROCKMAN, J. (1996). La tercera cultura. Más allá de la revolución científica. Barcelona: Tusquets.
COLLINS, R. (2005). Sociología de las filosofías. Una teoría global del cambio intelectual. Barcelona: Herder.
FERNÁNDEZ BUEY, F. (2013). Para la tercera cultura. Ensayos sobre ciencias y humanidades. Barcelona: El Viejo Topo.
FERNÁNDEZ BUEY, F. y RIECHMANN, J. (1996). Ni tribunos. Ideas y materiales para un programa ecosocialista. Madrid: Siglo XXI.
HORKHEIMER, M. (2000). Teoría tradicional/teoría crítica. Barcelona: Paidós.
KEUCHEYAN, R. (2013). Hemisferio izquierda. Un mapa de los nuevos pensamientos críticos. Madrid: Siglo XXI.
KOHAN, N. (2013). Nuestro Marx. Madrid: La oveja roja.
KOSELLECK, R. (2012). Historia de los conceptos. Estudios sobre semántica y pragmática del lenguaje político y social. Madrid: Trotta.
LEPENIES, W. (1994). Las tres culturas. México: FCE.
SACRISTÁN, M. (1987). El orden y el tiempo. Madrid: Trotta.
SÁNCHEZ, J.J. (1998). Sentido y alcance de Dialéctica de la Ilustración. Introducción a la obra de M. Horkheimer y Th. W. Adorno. Dialéctica de la Ilustración. Madrid: Trotta, pp. 9-46.
SNOW, Ch.P. (1977). Las dos culturas y un segundo enfoque. Madrid: Alianza.
VARGAS LLOSA, M. (2012). La civilización del espectáculo. Madrid: Alfaguara.
VÁZQUEZ GARCÍA, F. (2009). La Filosofía española. Herederos y pretendientes. Una lectura sociológica. Madrid: Abada.
VV.AA. (2012). Homenaje a Francisco Fernández Buey (1943-2012). Monográfico de la revista mientras tanto, 119.
Raimundo Cuesta – Fedicaria-Salamanca.
[IF]History, literature, critical theory – LACAPRA (Topoi)
LACAPRA, Dominick. History, Literature, Critical Theory. Ithaca, Nova York: Cornell University Press, 2013. Resenha de: FELIPPE, Eduardo Ferraz. Sobre fronteiras e permeamentos. Topoi v.15 n.29 Rio de Janeiro July/Dec. 2014.
Mais conhecida por aqueles que lidam com discussões que tangenciam história, filosofia e literatura, a obra de Dominick LaCapra ainda não obteve uma tradução de fôlego no Brasil. Por mais que entendamos essa lacuna como uma entre muitas, o agora professor emérito da universidade de Cornell propõe uma obra que impõe problemas destacáveis para a historiografia e alça sua reflexão a uma das mais necessárias do cenário universitário contemporâneo. Pode-se conceber que as variações propostas em seus diversos livros, desde as abordagens voltadas à história intelectual, do início da década de oitenta do século passado, até aquelas direcionadas à análise de alguns ficcionistas contemporâneos, tenham sido variações de um problema central da historiografia: os limites e possibilidades da história intelectual. Seus livros dialogam entre si ao mesmo tempo que apresentam uma distinção sensível entre eles; girando sobre seus próprios passos, LaCapra permanece em diálogo com um temário vivo desde os primeiros livros, enquanto joga luzes a um novo horizonte de sentido.
Em tempos de predominância do estruturalismo, LaCapra começou sua carreira acadêmica ao interrogar-se acerca da tese hegemônica da submissão do intelectual ao edifício da história. Nesse instante, percebeu a necessidade de reforma e deslocamento da história intelectual de seu lugar de sinopse de ideias e sistemas de grandes pensadores ou da autoconsideração enquanto história da filosofia. LaCapra dialoga com o cânon ocidental, discutindo e ampliando-o, por meio da crítica aguda a autores contemporâneos seus, como Derrida e Foucault, até autores que o marcaram, como Marx e Benjamin. Inicialmente aposta em uma perspectiva interdisciplinar, de modo que seu ataque às teorias totalizantes não implicou o embarque em propostas pós-modernas pouco atentas à historicidade do texto. Já em Soundings in Critical Theory (1989) o marxismo, a psicanálise e o pós-estruturalismo são articulados à historiografia em sua dimensão crítica e autocrítica. Desse modo, o caminho da história intelectual, em sua diferenciação frente à história social, se bifurca com o caminho da historiografia, sendo a dupla face de uma mesma proposta intelectual sustentada pelo professor de Cornell.
A interdisciplinaridade do início da carreira pode ser detectada nas suas considerações sobre os limites da noção de contexto que impõe a autores como Flaubert e Baudelaire. Essa questão será alvo de uma avaliação específica de Hayden White em “The context in the text: Method and Ideology in Intellectual History” em seu The Content of Form: Narrative Discourse and Historical Representation (1990) em que dialoga com a obra prévia do autor de History, Literature, Critical Theory. O problema do contexto já está presente no início na tese de livre-docência de LaCapra, ao ponderar que Durkheim não deve ser compreendido somente como uma metodologia de pesquisa, mas um texto a ser lido e articulado dentro do contexto. A partir dele, critica algumas análises que o submetem a esse contexto pela utilização de argumentos firmes, postos em contradição com algumas considerações do próprio Durkheim. Essa perspectiva de um ataque ao “historicismo” na leitura dos textos enfatiza sua perspectiva dialógica de relacionamento com o passado. Não se trata de recusar completamente os protocolos de análise, e sim complementá-los e superá-los.
Longe está LaCapra de um subjetivismo relativista que apresenta os textos como desligados do contexto. Afirma, de modo incisivo, em seu History and Criticism (1985), manter uma distância preventiva do chamado “fetichismo de arquivo” (p. 92). A questão central para LaCapra é a recusa explícita de um empirismo radical, utilizado muitas das vezes como “recusa a se ler os textos”, como pondera em Rethinking Intellectual History (1983) (p. 14). A noção de leitura como interpretação é central em toda a sua trajetória intelectual, especialmente aquela enfatizada na década de 1980. O historiador deve evitar uma acumulação neopositivista de informação com o fito de empreender leituras novas que não se resumam a descobrir novas fontes.
Esse percurso levou Dominick LaCapra a entrar em contato com as propostas do “linguistic turn”; contudo, não se deve afirmar, pelo menos de modo tão imediato, que LaCapra deve ser considerado um “historiador derrideano”. Creio que LaCapra não concordaria plenamente com a noção de que não há nada fora do texto; pelo contrário, há uma leitura apropriativa e altamente seletiva voltada a criticar oposições binárias sustentadas por opções historiográficas pouco atentas ao texto. Transcender a análise binária não implica o desconhecimento da sua importância em processos históricos ou no presente, em outro viés, considera que periodização histórica é um tema destacável ao historiador. A desconstrução é incorporada, mas não adotada de forma plena; Derrida e Heidegger estão entre outros autores, como Marx, Freud e Bakhtin, que, por fim, valorizam a intertextualidade como procedimento de escrita, tendo como centro a dimensão retórica dos textos. A estratégia da história intelectual combina investigação empírica com vozes do presente e do passado, que incluem o autor e suas fontes em uma temporalidade marcada por deslocamentos, continuidades e rupturas.
Já em seu History, Literature, Critical Theory (2013), Dominick LaCapra continua sua exploração acerca das relações complexas entre história e literatura, entendendo a história como processo e representação. Trata-se, como sempre fez questão de deixar claro, da incorporação atenciosa da obra de Hayden White, especialmente de seu livro mais famoso, Metahistória (1973). Em termos gerais, seu livro se divide entre um ensaio inicial, três capítulos de análise específica de alguns autores contemporâneos, como W. G. Sebald e J. M. Coetzee, e termina com um epílogo acerca da questão da violência em Slavoj Žižek. Um motivo recorrente do livro é a questão do sagrado, a relação problemática estabelecida com o sacrifício e sua virulenta manifestação como violência política e social.
O foco da discussão acerca da história está na questão da violência, com atenção particular a tema que já se dedicou anteriormente: a “solução final”. Em termos gerais, o autor está atento ao contato entre o sublime, o sagrado, o “pós-secular” e a questão da redenção absoluta, assim como as possíveis implicações da procura pela violência e, por vezes, sacrificial ou as práticas quase-sacrificiais envolvendo transgressão radical, vitimização e a expiação (p. 1). Por diversas vezes, LaCapra deriva o argumento para a reflexão acerca do que chama de “pós-secular”, a época atual. O termo provém de sua leitura de Hans Blumenberg, especialmente de duas obras, The Legitimacy of modern age (1986) e Work on Mith (1985). LaCapra destaca que, para Hans Blumenberg, a descontinuidade entre o mundo pré-moderno e o mundo moderno fundamenta o termo “legitimidade da época moderna”. Esse argumento torna-se mais claro quando propõe a aproximação entre Blumenberg e Jürgen Habermas em seu “Notes on a Postsecular society” (2008), por meio de uma abordagem que valoriza a tradição filosófica e a sociologia.
Em seu livro mais recente, é a questão do trauma e do genocídio nazi o disparador da escrita e dos paradoxos nela enredados. A leitura feita de Coetzee e Sebald, as soluções narrativas levantadas por Jonathan Littell, o fechamento da proposta com Slavoj Žižek, a conexão com a violência, tem no tópico do trauma o porto onde se ancoram afirmativas e de onde partem novos rumos. Está posta, de modo inexorável, a questão da narrativa em nossa lida com o passado. “A abordagem do trauma, mormente sua expressão narrativa, tem sido acompanhada por um paradoxo ou um duplo enlace: o indizível ainda clama por um discurso sem fim” (p. 33). Por vezes um processo de intensificação, por outras um ato de abrandamento, as semelhanças e diferenças entre os testemunhos e todas as tentativas de “representar as experiências traumáticas e eventos” são determinadas por meio da forma com que esse paradoxo é negociado na narrativa.
O temário do trauma ganhou tessitura consistente em seus argumentos ao longo das décadas de 1990 e 2000. A empreitada mais significativa nessa direção foi Writing History, Writing Trauma (2001). A adaptação de conceitos psicanalíticos para a análise histórica está associada ao emprego da crítica sociocultural e política para elucidar o trauma e seus efeitos na cultura. Writing History, Writing Trauma (2001) também marca a tentativa explícita de LaCapra de se diferenciar de Hayden White, por mais que concorde em muitos aspectos, especialmente os dedicados à narração. Atento à leitura que White faz de Roland Barthes, LaCapra enfatiza o vínculo entre o autor de Metahistória e o livro Escrever, verbo intransitivo, especialmente no debate levantado quando da publicação do livro Probing the Limits of Representation: Nazism and the “Final Solution” (1992), de Saul Friedländer.
Especialmente J. M. Coetzee (Elisabeth Costello e Desonra) e W. G. Sebald (Anéis de Saturno) são os ficcionistas atrelados às principais considerações de LaCapra. Além da semelhança por pseudônimos, a escolha por emigrarem de suas terras natais, e a atenção dada pelo primeiro ao segundo, destaca-se a sofisticação da questão da linguagem e a combinação entre análise crítica de outros autores (especialmente de Kafka e Flaubert) com uma autorreflexão profunda ou um “diálogo interno”, nos termos de Mikhail Bakhtin. LaCapra percebe que o Holocausto representa para Sebald aquilo que o apartheid e o colonialismo significam para Coetzee: a questão do mal e o abusivo tratamento de humanos e não humanos. A presença da pesquisa de arquivo, notória em W. G. Sebald, mas também presente em J. M. Coetzee, e a questão da memória estão coligadas ao problema do realismo, especialmente do traumático realismo, em relação à técnica formal de ambos.
O tema do trauma, enquanto modalidade do sublime, permite a LaCapra outros voos associados aos limites e às possibilidades da narrativa. Na verdade, um deslocamento. Passa a estar em jogo o tema da dimensão ética do historiador. Para tanto, a entrada em cena do romance de Jonathan Littell e as questões postas por Saul Friedländer auxiliam no entendimento da questão. Especialmente atento às preocupações do autor de As Benevolentes (2006), de modo destacado por sua atenção ao discurso dos agressores, LaCapra considera que “entender os agressores é importante epistemologicamente, eticamente e politicamente”. Antes, lembra-nos do valor do reconhecimento empático ao inveterar em acontecimentos extremos. Há um duplo caminho sendo percorrido por veredas nem sempre coincidentes ao longo do livro: por um lado, admitir a nossa própria possibilidade de envolvimento no crime, posto que nenhum de nós está plenamente cônscio em suas respostas e, por outro lado, propiciar nossa autocompreensão por meio da tentativa de imputar sentido a Max Aue, personagem principal, como um homem qualquer.
Littell discorda de que seu romance deveria ser chamado de um novo Guerra e paz. A leitura que fez de Maurice Blanchot e Georges Bataille, duas de suas preferências, fundamenta a “zona cinzenta” da escrita na qual todo escritor repousa – o espaço literário que necessita para criar e lapidar o seu Max Aue. A natureza da relação entre agressor e vítima em As benevolentes é confusa e marcada pela ambiguidade do personagem central. O que constitui a “verdade romanesca” para Littell permanece em sombras, mas há a busca por ir além de uma “verdade histórica” sem necessariamente transcendê-la ou falsificá-la. “As benevolentes transcendem a verdade histórica (…) em sua tentativa de amalgamar ou reverter a relação entre agressor e vítima” (p. 116).
O último capítulo e o epílogo deslocam a atenção para a obra de Slavoj Žižek. Ao destacar sua recente exposição midiática, o gosto pelo choque e a presença do paradoxo em sua escrita, LaCapra vai tecendo, com calma e sem grande densidade, seu aproveitamento e crítica da obra de Žižek. O rápido exemplo é quando avalia que o autor de Violência proporciona sempre a “overdose do antídoto” por vezes o “extremo” (p. 154). Sem deter-me em demasia no argumento, LaCapra destaca a busca pelo sublime de Žižek, com sua particular mistura de Lacan e Marx. Enfatiza que a violência é intrínseca à linguagem, especialmente quando pergunta se “os humanos excedem os animais em sua capacidade de violência?” (p. 120). Sua rápida análise de Žižek é concluída com a ponderação de que “para Žižek a essência do humano é o monstruoso, o excesso inumano que marca a incursão do real a possuir uma saída política…” (p. 125)
O texto de LaCapra merece leitura atenta. Tendo sido a coletânea de alguns escritos publicados anteriormente, esse livro tem a marca de um fechamento, não conclusão, de uma carreira de um professor dedicado a pensar Teoria da História e Historiografia. Se esse novo livro dá pouca atenção a alguns temas da década de 1980, como a questão da retórica, tão presente em Rethinking Intellectual History (1983), marca o desaguar de suas reflexões sobre o trauma e algumas ponderações acerca da importância do sublime para a escrita da História.
Sem a preocupação de detalhamentos excessivos acerca da História, ficção ou filosofia, como fez por vezes Hayden White, LaCapra termina por reafirmar o valor do texto, em sua singularidade e historicidade. Evita cair, desse modo, em considerações, por vezes descomedidas, do caráter inovador de alguns projetos intelectuais que, apenas com o título, propõem a reformulação de um campo. De forma sutil, LaCapra coloca interrogações à identidade do historiador sem excessivo alarde, sem demasiado estrondo; contribui, enfim, para novas reflexões para a História sem reduzi-la completamente ao seu nível discursivo, não somente nas cátedras de teoria ou história da historiografia.
Eduardo Ferraz Felippe – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), professor da Escola SESC de ensino médio e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: eferrazfelippe@oi.com.br.
Marx e Habermas: teoria crítica e os sentidos da emancipação – MELO (C-FA)
MELO, Rúrion. Marx e Habermas: teoria crítica e os sentidos da emancipação. São Paulo: Saraiva, 2003. Resenha de: FLECK, Amaro. Marx ou Habermas? Comentário crítico ao livro Marx e Habermas: teoria crítica e os sentidos da emancipação de Rúrion Melo. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, v 19 n.2 Jul-Dez, 2014.
Há de se questionar se seria possível uma síntese entre os pensamentos de Karl Marx e de Jürgen Habermas, principalmente ao se levar em conta que a teoria do segundo é caracterizada por um progressivo distanciamento das teses defendidas pelo primeiro. Mas, salvo engano, não foi fornecer tal síntese o intuito de Melo ao longo de seu livro. E por isso o título pode soar ambíguo, ao menos na medida em que não fica claro o significado da conjunção “e”. Neste caso, como o autor não busca desenvolver uma teoria crítica que concilie aspectos de ambos os pensadores, mas muito mais afirmar a atualidade e pertinência do segundo frente a uma suposta obsolescência e esterilidade do primeiro (exceto, claro, pelo pouco da teoria marxiana que é preservada na habermasiana, que consiste mais em certo anseio emancipatório comum do que em qualquer convergência em termos de conteúdo ou de diagnóstico), penso que se deve entender tal conjunção antes no sentido pouco usado da contraposição do que naquele usual do complemento.
Na verdade, a obra aqui resenhada é um livro ambicioso, uma vez que pretende operar concomitantemente em distintos níveis. Por um lado, almeja mostrar os desenvolvimentos da teoria crítica – desde seus primórdios com a obra marxiana até os desdobramentos pós -habermasianos da autodenominada terceira geração –, por outro, tenta discutir as tarefas atuais desta corrente de pensamento cujo maior desafio é renovar os seus diagnósticos de época, como bem salienta Melo. Tal meta é buscada tanto no plano, por assim dizer, mais geral, no qual analisa o processo de modernização da sociedade capitalista, quanto em um plano paroquial, ao discutir nuances da recepção brasileira desta tradição crítica e presumidos impasses que caracterizariam seu estágio atual. Com isso, a obra tenta intervir na discussão nacional ao mostrar uma senda que seria, segundo Melo, profícua, mas que tem enfrentado certa resistência entre nós, a saber: aquela contida na teoria habermasiana e desenvolvida também por teóricos posteriores bastante influenciados por ele, tais como Jean Cohen, Axel Honneth e Seyla Benhabib. Neste comentário, gostaria de apresentar de forma sucinta a argumentação de Melo para, depois, tecer três críticas a ela.
- A resenha
O livro aqui tratado é composto por três partes. As duas primeiras tratam do dilema “reforma ou revolução”, a primeira apresentando a vertente revolucionária inspirada no pensamento marxiano e os impasses desta, e a segunda a corrente reformista, também inspirada no pensador socialista, e suas dificuldades. A terceira parte, que pode ser considerada propositiva, busca mostrar uma alternativa a este dilema paralisante que estaria, na visão do autor, solapando a capacidade crítica das teorias que não se conformam com o estado existente das coisas.
Antes de tratar das duas primeiras partes convém apresentar o ideal de sociedade emancipada que seria comum tanto à tradição revolucionária quanto à reformista, ideal este presente na obra de Marx. De acordo com Melo, a sociedade emancipada seria para Marx uma “República do trabalho”, uma “auto-organização holista dos trabalha dores” na qual o “trabalho heterônomo” seria transformado em “trabalho autônomo”. A fundamentação normativa deste ideal se encontraria subjacente ao próprio conceito de trabalho, de modo que tal concepção fica presa ao “paradigma produtivista” e ao “economicismo”, pois compreende todas as relações sociais pelo prisma das relações produtivas e vê a política como mero epifenômeno dos antagonismos econômicos. Melo critica o suposto reducionismo da concepção de práxis marxiana, restrita ao trabalho, e argumenta que isto fez com que Marx não entendesse a emancipação “como um processo intersubjetivo, aberto e reflexivo, de constante disputa e negociação” 2, de maneira que, citando Jean Cohen, a partir de tal modelo produtivista de autorrealização “a liberdade tende a ser sacrificada em nome da abundância” 3. O juízo mais positivo que Melo dirige ao autor de O Capital é que este, em sua obra juveníssima (i.e. na Crítica da filosofia do direito de Hegel e em Sobre a questão judaica ), teria ampliado o conceito do político de maneira que diga também respeito “aos processos sociais que residem na base econômica da sociedade” 4, embora no decorrer de sua obra ele tenha cedido à tendência de “reduzir a interação política à instrumentalidade das relações de classe” 5. Melo não apenas apresenta e critica a concepção de emancipação de Marx, mas também indica uma alternativa: com a distinção habermasiana de interação e trabalho, segundo ele, seria possível entender também a dimensão simbólica (e não somente a produtiva) da ação. Enquanto o trabalho se caracteriza por ser uma ação não linguística, estratégica (i.e. diz respeito a fins), a interação é uma ação linguística e comunicativa (sendo assim um processo reflexivo), dependendo da “cooperação e do assentimento livre de coerção” 6. Portanto, sempre segundo o autor, na dimensão simbólica poderia ser encontrado um ideal emancipatório que não seria caracterizado pelo reducionismo economicista típico da dimensão estratégica. Sem tal distinção não seria mais possível “uma compreensão da dinâmica política em que as condições da emancipação social se encontrem em disputa” 7.
O problema relativo ao próprio ideal emancipatório é comum às duas tradições que se inspiram em Marx, mas isto não as torna iguais. O paradigma revolucionário não só fracassou, uma vez que o proletariado não conseguiu realizar o ideal de uma sociedade emancipada (mesmo onde tenha conseguido fazer a revolução ou onde partidos supostamente defensores dele alcançaram as posições de comando), como tampouco conseguiu deixar um legado. O mesmo não ocorreu com o paradigma reformista. Este, ao abandonar “a perspectiva dogmática da luta de classes”, “a visão holista da sociedade” e “a falsa atitude diante do Estado democrático de direito” 8, contribuiu para a universalização dos direitos civis e para a implementação de políticas redistributivas. No entanto, a limitação da concepção emancipatória dos reformistas, cujo ideal seria tão só “a humanização do trabalho” 9, acaba por desconsiderar os “conflitos e potenciais emancipatórios não limitados à lógica redistributiva” 10 e, com isso, torna-se insensível para o crescimento da burocracia estatal, assim como do paternalismo inerente a ela, decorrentes da forma centralizadora do Estado de Bem-Estar social. Particularmente interessante, na reconstrução de Melo, é que ele nota que não só há um engessamento da democracia pelo fato da cidadania ser “meramente distribuída como benefícios garantidos pela burocracia do Estado” 11, como também que ficam cada vez mais claras as dificuldades da “manutenção do crescimento capitalista implementada por vias intervencionistas” 12, isto é, que o próprio custo econômico do Estado de Bem-Estar social torna-se um fardo demasia do pesado, um fardo que o próprio capitalismo, gerido em grande parte pela intervenção político-governamental, não consegue mais suportar.
A última parte da narrativa trata, justamente, da tentativa de superar aquilo que Melo identifica como o dilema paralisante das forças críticas, a saber, a alternativa entre reforma e revolução. Para tanto, segundo o autor, é preciso o abandono tanto da “utopia de uma sociedade do trabalho” quanto de seu correlato, o paradigma produtivista. Na verdade, os novos movimentos sociais (e o autor elenca: os movimentos dos direitos civis, dos pacifistas, dos estudantes, das feministas, dos gays, dentre outros) alargaram o escopo de reivindicações, trazendo ao âmbito do político diversas demandas que não mais se enquadravam nos limites estreitos de uma esquerda que se ocupava unicamente da luta pela “supressão completa do capitalismo” 13 ou, se resignada, que se engajava em sua reforma. Com a pluralidade das demandas e a nova realidade social do capitalismo tardio seria preciso, sempre conforme o autor – e quase sempre conforme Habermas também –, a substituição da própria orientação da crítica: ela não mais busca a sociedade emancipada, uma vez que “sociedades complexas e pluralistas (…) inviabilizariam a imagem de uma sociedade tomada em seu todo” 14, em vez disso elas almejariam formas de vida emancipadas. Mas a narrativa triunfante que conduz de Marx a Habermas e seus sucessores, em que os déficits de cada estágio da teoria crítica são sanados pela etapa posterior, encontra, tal como Hegel ao se deparar com a plebe, um obstáculo talvez intransponível: a própria democracia vem perdendo sua vitalidade, uma vez que engessou a participação democrática em canais institucionalizados e limitou “as possibilidades de formação espontânea da opinião pública e da vontade coletiva” 15. O autor, no entanto, parece não ver isto como algo que ponha em cheque o projeto da democracia deliberativa e insiste que é preciso um novo engajamento político que respeite as regras do jogo democrático e reconheça a legitimidade do poder existente uma vez que todos “consentiram com tal resolução uma vez que puderam formar a opinião, avaliar as questões envolvidas e contribuir na tomada de decisão” 16.
- A crítica
Antes das críticas, o elogio. O mínimo a ser dito é que a obra contém inúmeras virtudes. Apesar de não concordar, pelos motivos que exporei a seguir, com a argumentação geral de Melo, reconheço a grande pertinência do tema e a grande erudição com o qual é trata do. O autor apresenta uma literatura em grande parte desconhecida ao público brasileiro e trata com desenvoltura não somente o grande número de obras exegéticas sobre as teorias analisadas como também um amplo referencial histórico-sociológico que lida com as transformações da sociedade desde a época de Marx até os nossos dias. No entanto, a opção metodológica pela história dos efeitos (a), uma interpretação demasiado tradicional e restrita de Marx (b), e um otimismo exagerado em relação às potencialidades contidas na teoria habermasiana e de certo número de seus sucessores (c) faz com que, a meu ver, o livro aqui debatido não alcance plenamente o objetivo que ele mesmo propõe: o de renovar a teoria crítica e o de obter a “compreensão profunda do presente” do qual falava Horkheimer.
- a) História dos efeitos?
Melo defende a abordagem da história dos efeitos como a adequada para lidar com os problemas da história da filosofia, uma vez que ela permite “perceber nuances, potencialidades e limitações de uma teoria que só se explicitam a partir da história de seus efeitos” 17. Contudo, a história dos efeitos precisaria se defrontar com uma série de questões bem mais ampla do que aquela que efetivamente enfrenta, ao menos no caso desta obra. Para começar, é praticamente impossível fazer um panorama da totalidade dos efeitos de uma obra como a de Marx, uma vez que ela recebeu interpretações inteiramente díspares e motivou cursos de ação totalmente opostos. Basta lembrar que sua obra foi usada tanto para legitimar os regimes do socialismo real mente existente quanto para criticá-los e questioná-los; tanto para justificar as opções em geral autoritárias dos partidos comunistas oficiais como os modelos libertários dos movimentos autonomistas; houve quem a leu como um advogado da causa do trabalho e houve quem a leu como um defensor da preguiça (opção esta do próprio genro de Marx, Paul Lafargue). O autor, infelizmente, desconsidera tal pluralidade e dedica atenção apenas a duas tendências predominantes do movimento operário 18. Isto aponta para um segundo problema: a história dos efeitos precisa tratar de forma mais refinada a complexa relação que há entre teoria e prática. Se é certo que Marx escreveu sua obra sempre em contato próximo com os movimentos dos trabalhadores, é igualmente certo que esta não foi apenas a expressão teórica daqueles, mas sempre manteve uma tensão e mesmo uma distância crítica com relação a eles. Assim, seria necessário mostrar como se dá esta relação, reconstruindo as tendências predominantes do movimento operário e mostrando como Marx se relacionou com elas. Há, por assim dizer, um abismo entre a obra marxiana e doutrinas por ela inspiradas que não é transposto, tampouco se constrói os meios para fazê-lo. A história dos efeitos, assim, é transformada apenas num rótulo para legitimar uma interpretação que ignora boa parte das nuances e ambiguidades do texto original, pois nada disso importa, mas sim o modo como Marx foi supostamente lido. Ora, a teoria crítica tem pouco a ganhar escolhendo metodologias que apenas reforçam as tendências dominantes, seja na sociedade, seja na exegese de um autor. Antes, sua função deveria ser a de escovar a história a contrapelo, também no caso da história da filosofia.
Ademais, a opção pela história dos efeitos é deveras parcial, sendo aplicada a Marx, mas não a Habermas. Por quê? Não se encontra explicação, mas a exegese da obra habermasiana é feita em geral com a intenção de mostrar as melhores potencialidades nela contidas ou aquilo que seria a sua “verdadeira teoria”, em vez de explicá-la a partir dos efeitos que ela tem causado. E há de se lastimar isto, sobre tudo porque, salvo engano, Habermas parece um tanto descuidado em suas intervenções. Não é à toa que o Partido Popular espanhol, e mais especificamente o então presidente José Maria Aznar, mostrou grande entusiasmo pelo conceito de “patriotismo constitucional”, um conceito que lhe pareceu feito sob medida para sustentar políticas xenofóbicas sem ter que perder a pose liberal 19. Também as fortes críticas ao paternalismo inerente ao Estado de Bem-Estar socialdemocrata, por mais corretas que sejam na maioria das vezes (e reconstruídas com grande esmero no livro aqui comentado), ao olhar retrospectivo do presente parecem ter errado o alvo: num momento em que a teoria deveria ter defendido o legado do Estado de Bem-Estar social diante da ameaça iminente de seu desmonte retrógrado, ela se junta ao coro dos críticos buscando mostrar antes as deficiências daquele que está saindo de cena do que as daquele que está entrando: o Estado centauro neoliberal 20. Por fim, também no atual debate sobre a argumentação religiosa na política, as sugestões de Habermas costumam dar aval, ou ao menos assim têm sido interpretadas por grande parte de seus leitores (que é o único que importa na história dos efeitos), aos desmandos da maioria religiosa 21.
- b) Por uma outra interpretação de Marx
Em sua interpretação da obra marxiana, Melo, em geral, apenas avaliza a interpretação de Habermas, segundo a qual Marx teria fica do preso ao paradigma produtivista, ao âmbito do trabalho, à filosofia do sujeito ou da consciência. No entanto, a interpretação habermasiana da obra de Marx é claramente deficitária, e isto fica evidente a partir da análise das poucas passagens em que o teórico de Düsseldorf se aproxima do texto marxiano, em vez de comentá-lo à distância 22. Melo tenta, assim, corroborar textualmente uma crítica cuja condição de existência parece ser esta não familiaridade. Neste aspecto, ao menos, o resultado é pouco promissor, uma vez que o autor parece comprometido de antemão a ler Marx a partir da interpretação habermasiana e a não romper com esta de jeito algum. Um exemplo disso é o tratamento dado à categoria trabalho, categoria esta que, por sinal, desempenha uma função proeminente na leitura de Melo. Para ele, o conceito de “trabalho abstrato” significa, grosso modo, o trabalho remunerado, típico do capitalismo industrial, o qual é contraposto ao “trabalho concreto” que seria aquele típico dos artesãos ou da sociedade feudal 23. Ora, salvo engano, “trabalho abstrato” e “trabalho concreto” são duas dimensões do trabalho que produz mercadorias, o primeiro gerando valor e o segundo criando valor de uso (não sendo, portanto, dois tipos de trabalhos distintos, mas duas facetas de um mesmo trabalho, tal como se caracteriza na sociedade capitalista quando se generaliza a forma-mercadoria) 24. Melo defende a tese segundo a qual o trabalho seria, para o autor socialista, “a atividade humana mais essencial” 25. No entanto, é preciso perceber que em diversos casos isto não ocorre. Assim, por exemplo, ele diz na Introdução à Para a crítica da economia política que “o trabalho é uma categoria (…) moderna” 26, e em inúmeros textos a sociedade comunista é vista como uma na qual tal atividade é abolida (caso de A Ideologia alemã ) ou reduzida a uma quantia mínima (caso dos Grundrisse e de O Capital ). Ora, se o trabalho fosse realmente visto como a atividade humana essencial por Marx, não seria de se esperar que a sociedade emancipada se caracterizasse por fazer ao máximo tal atividade, e não por reduzi-la ao mínimo? Não seria um quid pro quo falar de uma “utopia da sociedade do trabalho” cujos partícipes não trabalham? Diversos autores têm apontado para ambiguidades da categoria trabalho no texto marxiano, e de fato algumas vezes é possível encontrar nele esta compreensão atemporal de trabalho, quase metafísica, à qual Melo se atém. Esta, por sinal, é a interpretação do marxismo tradicional e as críticas feitas por Melo seriam, a meu ver, plenamente pertinentes, caso se dirigissem tão somente a ela. Se tivesse por alvo ou interlocutor uma corrente exegética da obra de Marx como a da Escola de Budapeste (da “ontologia do ser social” do Lukács tardio), as deficiências que o autor elenca poderiam, acredito, ser facilmente corroboradas textualmente. Porém, na medida em que tem por interlocutores autores que rompem com o marxismo tradicional, como é o caso, no âmbito internacional, de Moishe Postone, de Helmut Reichelt, de Roman Rosdolsky, e no âmbito nacional de Ruy Fausto, de Jorge Grespan e de Paulo Arantes, Melo acaba por direcionar a crítica para teóricos cujo ideal de emancipação em nada se assemelha a esta religião do trabalho por ele reconstruída.
Ademais, quando Melo afirma que Marx fica preso ao paradigma da produção e à filosofia da consciência, ele está projetando em sua obra a distinção habermasiana de trabalho e interação e dizendo que o seu projeto de crítica da economia política está inserido no primeiro e que exclui o segundo. Mas esta é uma boa chave para pensar a obra marxiana? Acredito que não. A crítica da economia política inicia justamente pela análise da mercadoria, a forma elementar da riqueza nas sociedades capitalistas. Mas a mercadoria não é o produto criado na relação do homem isolado com a natureza, e sim, basicamente, uma forma de relação social, uma vez que ela é feita de antemão visando a troca. O intercâmbio mercantil, analisado à exaustão na obra marxiana, é uma forma de interação, intersubjetiva, linguística e simbólica, embora, como grande parte das interações intersubjetivas realmente existentes não seja realizada a partir da “cooperação e o assentimento livre de coerção dos participantes” 27 que caracteriza a interação habermasiana segundo Melo (uma vez que pressuporia o “entendimento que habita no interior do próprio medium linguístico” 28, pressuposto este só encontrado idealmente). Mesmo o processo de trabalho é analisado na crítica da economia política marxiana como um processo intersubjetivo, permeado pela linguagem, sujeito a acordos, conflitos e regulações, e não como uma relação de sujeito-objeto, como Melo afirma 29. O mesmo se passa com a acusação de “economicismo”. Melo discorre ao longo de várias páginas a tese de que Marx projeta as relações econômicas em todas as outras esferas, que ele compreende toda a sociedade a partir da perspectiva econômica e que é incapaz de perceber como se dá a ação comunicativa que supostamente seria determinante na esfera política. No entanto, Melo dedica pouca atenção para a questão do que significa o subtítulo da obra magna de Marx, “crítica da economia política” e, por conseguinte, ao próprio projeto teórico marxiano. Salvo engano, Marx não se propõe a fazer uma análise oniabarcante da sociedade ou oferecer um quadro ou gramática de todos os tipos de conflitos sociais (embora o marxismo tradicional, que se constitui como uma visão de mundo que pretende explicar tudo a partir da obra de Marx, por vezes faça isto), mas sim a analisar o modo de produção capitalista e criticá-lo de forma imanente 30. A tese de Marx é que o capitalismo cria uma nova forma de dominação na qual o processo econômico ganha vida própria e passa a sujeitar os indivíduos, transformando-os em meras engrenagens de seu mecanismo de autovalorização. Portanto, a crítica de Marx é que o modo de produção capitalista justamente transcende a esfera da economia, dissemina-se também em outros âmbitos, criando uma nova forma de dominação. Marx critica a sociedade capitalista precisamente por ela ser economicista, por ela estar presa ao paradigma da produção. Neste ponto parece haver uma confusão entre a dimensão normativa e a dimensão descritiva tanto da obra de Marx (de modo que aquilo que o autor de O Capital descreve como o estado existente das coisas, um mundo dominado pelo paradigma da produção e pela ótica da economia, é visto como a sociedade ideal socialista) quanto na exegese da sociedade atual (em que o mundo parece não mais se pautar por um ideal produtivista, já tendo saído da sociedade do trabalho, simplesmente porque gostaríamos que este fosse o caso), ou ao menos não vejo como alguém possa defender, na era do precariado, que a sociedade do trabalho chegou ao fim 31.
Por fim, por mais interessante que possa ser a concepção do âmbito político do juveníssimo Marx, uma teoria crítica adequada para lidar com os problemas contemporâneos certamente tem muito mais a ganhar com releituras de O Capital e do restante da obra tardia do autor. Postone, por exemplo, não tem sido discutido por ter consegui do oferecer uma “salvação” de Marx ou uma interpretação autêntica do mesmo (como Melo sugere 32 ), mas basicamente por conseguir esclarecer, a partir da obra marxiana, alguns aspectos da dinâmica do capitalismo atual, tal como a criação de uma população supérflua que não consegue mais ser inserida na esfera da produção. Nesse sentido, Melo, que justamente busca pensar uma teoria crítica adequada para o presente, não dá atenção ao fato de que nos últimos trinta ou quarenta anos as desigualdades materiais cresceram de forma abissal, de forma que é preciso urgentemente repensar a primazia das “demandas por reconhecimento de diferenças culturais” 33, e tampouco atribui importância à circunstância de que, no mundo pós-2008, os questionamentos acerca do capitalismo retornaram e, tão cedo, não deverão ser relegados a segundo plano 34.
- c) A construção de uma teoria crítica da sociedade adequada ao presente
Minha discordância com Melo, no entanto, não se limita à (pouca) importância dada ao pensamento marxiano na tentativa de atualizar a teoria crítica da sociedade e oferecer um diagnóstico de época adequado ao presente, mas diz respeito também ao quanto a teoria habermasiana pode fazê-lo. Melo praticamente aceita como pressuposto que a teoria de Habermas é apta para lidar com os problemas de nosso tempo. Ao contrário dele, acredito que, apesar de Habermas ainda estar vivo e produzindo freneticamente, sua teoria está baseada em um diagnóstico obsoleto (ao menos no que tange a mediação entre a esfera política e a econômica, tal como reconstruído no livro aqui comentado) e que só tomando grande distância deste diagnóstico poderemos ver o que em sua teoria não está totalmente ultrapassa do 35. Dito de forma muito direta, a teoria habermasiana foi forjada em uma situação social muito peculiar e excepcional, a do Estado de Bem-Estar social amplo e vigoroso que esteve vigente na Alemanha do pós-guerra em uma época de imensa prosperidade econômica que se refletiu em melhorias generalizadas no padrão de vida. Hobsbawn, na Era dos extremos, designa tal período como “a era de ouro” do de resto catastrófico “breve século XX”, embora ressalte que, se é certo que praticamente toda a população europeia (ocidental) gozou das benesses dessa época, nem todo o resto do mundo teve tal sorte 36. Na época, estava bem assentada a crença de que tais benesses seriam duradouras e se disseminariam aos poucos pelo mundo, e tal crença estava tão arraigada no pensamento habermasiano que no término do artigo “trabalho e interação” ele afirmava que “apesar da fome reinar ainda sobre dois terços da população mundial, a eliminação da fome já não é nenhuma utopia no sentido pejorativo” 37. Se lhe parecia que a fome e a miséria poderiam estar com os dias contados, o mesmo não ocorria a respeito da servidão e da humilhação, e por isso Habermas se dirige de forma cada vez mais enfática aos conflitos que não podem ser chamados de redistributivos ou, em seu linguajar, não dizem res peito à esfera do trabalho. É evidente que nem o mais otimista dos analistas sociais acredita hoje que a fome possa acabar num futuro próximo. Na verdade, a quantia de pessoas passando fome no mundo se estabilizou em um patamar altíssimo (870 milhões de pessoas, segundo os dados da FAO em 2013) e é muito provável que, em consequência da atual crise econômica e também por causa do aquecimento global, volte a aumentar. Quando o Estado de Bem-Estar social entra em crise, ao longo dos anos oitenta, Habermas endossa o coro liberal que vê no excesso de regulação sobre o mercado uma patologia. Na verdade, ele chega mesmo a afirmar coisas que se parecem muito mais com a pregação neoliberal do que com a teoria crítica, tal como a tese de que sociedades complexas como as nossas “não podem se reproduzir se não deixam intacta a lógica de auto-orientação de uma economia regulada pelos mercados” 38. É difícil pensar numa afirmação que pode ser considerada mais refutada do que essa pelos aconteci mentos dos últimos tempos. Uma teoria crítica hoje não pode deixar de lado o mercado capitalista e os malefícios dele decorrentes como se fossem danos necessários à autorreprodução material da sociedade. Isto nos afasta terminantemente do diagnóstico habermasiano. Melo, contudo, cita a frase recém referida de forma positiva, anuindo com seu conteúdo 39.
O fato de endossar sem mais o datado diagnóstico de Habermas se reflete em diversos âmbitos do livro de Melo. Assim, com toda razão, ele diz que os “novos movimentos sociais” fazem demandas que se diferenciam daquelas do movimento operário tradicional, mas parece considerar como novos movimentos apenas aqueles de meados do século passado cujas reivindicações básicas eram por direitos civis.
Mas será que não surgiu nada de novo neste ínterim? Os dias de ação global na década de noventa, assim como o Occupy Wall Street ou mesmo o Movimento Passe Livre têm demandas muito distintas daquelas. As demandas de tais movimentos não podem encontrar espaço na crença de que a emancipação diz respeito apenas a formas de vida, e não a própria esfera da sociedade, uma vez que ou todos vivemos numa cidade na qual o transporte público seja eficiente e voltado para as pessoas, não para o lucro, ou ninguém pode ver-se emancipado do trânsito caótico que inferniza a vida dos habitantes de qualquer cidade mediana ou maior do que isso, exceto talvez os riquíssimos que desfilam pelo céu em seus helicópteros (aliás, isto já era válido para então, pois também a emancipação do medo da possibilidade de eclosão de uma guerra nuclear só pode ser coletiva, ou melhor, universal) 40.
Ademais, diversas vezes ele afirma que o ideal socialista clássico perdeu seu referencial concreto, que as ideias precisam estar ancoradas de alguma forma na realidade. Mas isto não é válido, infelizmente, também para o ideal de democracia deliberativa de Habermas? A distância que separa nossas democracias realmente existentes da ver dadeira democracia deliberativa habermasiana não é tão gigantesca quanto aquela que os marxistas mais bem intencionados afirmavam haver entre o socialismo realmente existente e o verdadeiro ideal socialista? Melo acredita que não. Isto porque a democracia deliberativa não é apenas um experimento mental, mas algo latente nas nossas democracias de massa. Mas isto nos coloca num dilema em que é difícil decidir qual alternativa consegue ser pior: ou aceitamos o sistema político atual como legítimo, como democrático, e afirmamos assim que a democracia realmente existente já é a democracia deliberativa, mas aí temos de reconhecer que um sistema político incapaz de dar fim mesmo à fome (e outras formas extremas de sujeição) em meio a uma abundância material nunca antes vista em nada é emancipatório; ou, ao contrário, afirmamos que o sistema político atual é ilegítimo, uma pálida imitação da verdadeira democracia, mas com isso apelamos para um ideal de modo algum ancorado na realidade. Ora, o ideal habermasiano é sem dúvida bonito e digno de valor, mas tão idealiza do e abstrato quanto o projeto kantiano para a paz perpétua.
Por fim, voltando à questão da imbricação entre economia e política, Melo tenta, em seu livro, mostrar que o dilema reforma versus revolução não faz mais sentido nos dias de hoje, pois a esquerda cai em impasses insanáveis tanto ao tentar suprimir o capitalismo quanto ao tentar reformá-lo. A opção habermasiana, contudo, mostra impas se ainda maior, verdadeiro cul de sac : é preciso, ao mesmo tempo, controlar o sistema econômico e deixar intacta a sua lógica de autor regulação; impedir a colonização de outras esferas pelos imperativos econômicos sem, no entanto, colocar em risco a própria saúde do capitalismo. Ora, isto é uma miragem. Diante do dilema reforma/revolução não há terceira via, salvo sem deixar de ser esquerda, i.e., sem deixar de combater as desigualdades sociais, e resignar-se ao capita lismo atualmente existente como se este fosse o melhor dos mundos possíveis. Ao fim e ao cabo é o que parece fazer Habermas. Parece-me não haver escolha mais equivocada.
Notas
1 Agradeço os comentários e críticas de Alessandro Pinzani e Denílson Werle
2 MELO, R. Marx e Habermas. Teoria crítica e os sentidos da emancipação. São Paulo: Saraiva, 2013, p.137.
3 Idem, p. 126.
4 Idem, p. 140.
5 Idem, p. 141.
6 Idem, p. 179.
7 Idem, p. 186
8 Idem, p. 191.
9 Idem, p. 192.
10 Idem, p. 191.
11 Idem, p. 225.
12 Idem, p. 224.
13 Idem, p. 271.
14 Idem, p. 295.
15 Idem, p. 316.
16 Idem, p. 319.
17 Idem, p. 340.
18 Algo que vai contra a sua própria observação de que “a teoria crítica não pode reproduzir acriticamente a voz do movimento social. Marx não havia feito isso” (MELO, R. Marx e Habermas. Teoria crítica e os sentidos da emancipação, p. 268).
19 Cf. ZIZEK, S. O filósofo estatal. Folha de São Paulo, 24 de Março de 2002, disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2403200206. htm>.
20 O conceito de Estado centauro é desenvolvido por Loïc Wacquant em “Três etapas para uma antropologia histórica do neoliberalismo realmente existente”. Wacquant afirma que o Estado centauro: “exibe rostos opostos nos dois extremos da estrutura de classes: ele é edificante e ‘libertador’ no topo, onde atua para alavancar os recursos e expandir as opções de vida dos detentores de capital econômico e cultural; mas é penalizador e restritivo na base, quando se trata de administrar as populações desestabilizadas pelo aprofundamento da desigualdade e pela difusão da insegurança do trabalho e da inquietação étnica. O neoliberalismo realmente existente exalta o ‘ laissez faire et laissez passer ’ para os dominantes, mas se mostra paternalista e intruso para com os subalternos” (WACQUANT L. Três etapas para uma antropologia histórica do neoliberalismo realmente existente. Caderno CRH, v. 25, n. 66, 2012, p. 512).
21 Uma boa discussão sobre este assunto se encontra no debate entre Pinzani (2009) e Araújo (2009). In: PINZANI, A. et al. O Pensamento vivo de Habermas. Uma visão interdisciplinar. Florianópolis: Nefipo, 2009, p. 211-228.
22 Para citar apenas um exemplo: em Teoria do agir comunicativo Habermas fala, se referindo a O Capital, que “o valor de uso está para o valor de troca assim como a essência está para a aparência” (HABERMAS, J. Teoria do agir comunicativo. São Paulo: Martins Fontes, 2012, p. 614), provavelmente querendo dizer que “o valor está para o valor de troca assim como a essência está para a aparência”, correção que por si só já impede a rejeição em bloco por parte de Habermas das obras de Backhaus, Krahl, Reichelt e outros. É conveniente recordar que tais categorias (valor, valor de troca, valor de uso) são termos -chave da crítica da economia política de Marx.
23 MELO, R. Marx e Habermas. Teoria crítica e os sentidos da emancipação, pp. 34, 108-9, 182. Habermas também interpreta assim tais categorias em: HABERMAS, J. A Crise do Estado de bem-estar social e o esgotamento das energias utópicas. Novos Estudos CEBRAP, n. 18, 1987, pp. 105-6.
24 MARX, K. O Capital. Livro I, Volume I. São Paulo: Nova Cultural, 1985, pp. 49-53.
25 MELO, R. Marx e Habermas Teoria crítica e os sentidos da emancipação, p. 123.
26 MARX, K. Introdução à Para a crítica da economia política. In: Para a crítica da economia política; Salário, preço e lucro; O rendimento e suas fontes; A economia vulgar. São Paulo: Abril Cultural, 1982, p. 16.
27 MELO, R. Marx e Habermas. Teoria crítica e os sentidos da emancipação, p. 179.
28 Idem, ibidem.
29 Cf. Idem, p. 180.
30 Não deixa de ser curioso observar que Melo, seguindo Cohen, faz uma crí tica a Marx que o próprio Marx havia feito a outros críticos de sua época, a saber, a de achar que só os proletários sofriam nas condições atuais. Cito um trecho de Sobre o suicídio, de Marx: “A pretensão dos cidadãos filantropos está fundamentada na ideia de que se trata apenas de dar aos proletários um pouco de pão e de educação, como se somente os trabalhadores definhassem sob as atuais condições sociais, ao passo que, para o restante da sociedade, o mundo tal como existe fosse o melhor dos mundos” (MARX, K. Sobre o suicídio. São Paulo: Boitempo, 2006, p. 22).
31 Cf. MELO, R. Marx e Habermas. Teoria crítica e os sentidos da emancipação, p. 263. Diversas outras afirmações ao longo do livro parecem um tanto descontextualizadas hoje em dia, como, por exemplo, esta: “Mesmo que uma crise econômica pudesse ocorrer algum dia, o argumento que defendia tanto a sua inevitabilidade quanto sua determinação econômica se enfraquece sensivelmente” (p. 222). Ora, a crise atual é antes econômica do que de legitimação.
32 Cf. Idem, p. 341.
33 Idem, p. 42. Não defendo, de forma alguma, que as demandas culturais não tenham muita importância ou mesmo que devam estar subordinadas a outras reivindicações. Apenas constato, seguindo Nancy Fraser, que uma nova esquerda precisa conciliar estes tipos de demandas em vez de seguir opondo uma à outra como ela tem feito, de forma infrutífera, nos últimos decênios. Aliás, penso que o verdadeiro “dilema paralisante” nas forças críticas é justamente este que opõe as demandas por redistribuição às demandas por reconhecimento.
34 Como observa Fraser: “a crítica da sociedade capitalista, crucial para as primeiras gerações, quase desapareceu da agenda da teoria crítica. A crítica centrada na crise capitalista, especialmente, foi declarada reducionista, determinista e ultrapassada. Hoje tais verdades estão em frangalhos” (FRASER, N. Marketization, social protection, emancipation: toward a neo-Polanyian conception of capitalist crisis. In: CALHOUN, C. e DERLUGUIAN, G. (ed.). Business as usual: The roots of the global financial meltdown. New York: New York University Press, 2011, p. 137).
35 A meu ver, o grande legado habermasiano foi a ênfase colocada nos procedimentos. Seria um grande retrocesso voltar a dar atenção somente aos re sultados das políticas sem levar em consideração também o modo como são tomadas as decisões e como elas são postas em prática.
36 Cf. HOBSBAWN, E. Era dos extremos: o breve século XX. São Paulo: Companhia das letras, 1995, pp.253-282.
37 HABERMAS, J. A Crise do Estado de bem-estar social e o esgotamento das energias utópicas. Novos Estudos CEBRAP, n. 18, 1987, p. 42.
38 HABERMAS, J. O que significa socialismo hoje? Novos Estudos CEBRAP, n. 30, 1991, p. 56. Esta afirmação é problemática não apenas enquanto prescrição, mas igualmente como descrição do que ocorre. O mercado neoliberal não é marcado por uma ausência do Estado, mas pela completa subordinação das sempre presentes intervenções estatais às finalidades mercantis (para uma análise mais adequada a respeito disso, cf. WACQUANT L. Três etapas para uma antropologia histórica do neoliberalismo realmente existente. Caderno CRH, v. 25, n. 66, 2012).
39 MELO, R. Marx e Habermas. Teoria crítica e os sentidos da emancipação, p. 250.
40 A emancipação sempre se refere a algo de que é preciso libertar-se. Insistir em uma emancipação da sociedade significa, portanto, que há coações sociais que impossibilitam a independência e autonomia das pessoas em determina da sociedade. Tais coações podem ser econômicas (como o agente capital na crítica da economia política de Marx, que faz com que toda a sociedade se subordine ao imperativo do crescimento econômico), políticas, urbanas etc.
Referências
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FRASER, N. Marketization, social protection, emancipation: toward a neo-Polanyian conception of capitalist crisis. In: CALHOUN, C. e DERLUGUIAN, G. (ed.). Business as usual: The roots of the global financial meltdown. New York: New York University Press, 2011, pp. 137-157.
HABERMAS, J. Teoria do agir comunicativo. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
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_____________. O que significa socialismo hoje? Novos Estudos CEBRAP, n. 30, 1991, p. 43-61.
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_________. O Capital. Livro I, Volume I. São Paulo: Nova Cultural, 1985.
_________. Sobre o suicídio. São Paulo: Boitempo, 2006.
MELO, R. Marx e Habermas. Teoria crítica e os sentidos da emancipação. São Paulo: Saraiva, 2013.
PINZANI, A. Fé e saber? Sobre alguns mal-entendidos relativos a Habermas e à religião. In: PINZANI, A. et al. O Pensamento vivo de Habermas. Uma visão interdisciplinar. Florianópolis: Nefipo, 2009, p. 211-228.
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ZIZEK, S. O filósofo estatal. Folha de São Paulo, 24 de Março de 2002, disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/ fs2403200206.htm>.
Amaro Fleck – Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: amarofleck@hotmail.com
Max Horkheimer and the foundations of the Frankfurt School – ABROMEIT (NE-C)
ABROMEIT, John. Max Horkheimer and the foundations of the Frankfurt School. Cambridge: Cambridge University Press, 2011. Resenha de: NOBRE, Marcos; JANUÁRIO, Adriano; CONCLI, Raphael; YAMAWAKE, Paulo. Os modelos críticos de Max Horkheimer. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.96, Jul, 2013.
Max Horkheimer and the foundations of the Frankfurt School, de John Abromeit, vem somar-se a uma dupla já estabelecida de estudos de referência sobre o nascimento e o desenvolvimento da Teoria Crítica (que, em alguns lugares, como nos Estados Unidos e na França, ainda é conhecida pelo equívoco rótulo “Escola de Frankfurt”): A imaginação dialética, de Martin Jay1, e A Escola de Frankfurt, de Rolf Wiggershaus2. O livro de Abromeit não tem a abrangência desses dois. Dedica-se apenas ao exame aprofundado de parte da trajetória intelectual de Horkheimer, de seu nascimento, em 1895, até o ano de 1941, que marca uma redução ao mínimo das atividades do Instituto de Pesquisa Social em Nova York e uma virada no pensamento do teórico social. Mas é de Horkheimer que se trata: as fases de sua produção examinadas no livro são não apenas altamente profícuas como também inaugurais, o que é sugerido pela ambição teórica bem mais ampla estampada no subtítulo: apresentar nada menos do que “as fundações da Escola de Frankfurt”.
Nessa comparação com os dois outros estudos de referência sobre a Teoria Crítica, importa também não apenas a distância temporal que os separa, mas a diferença de fontes. John Abromeit pesquisou em um momento em que já se encontrava em pleno funcionamento o Arquivo Max Horkheimer e em que já tinha sido completada a publicação dos Escritos reunidos pela editora Fischer. Além disso, o livro pretende não apenas reconsiderar as “fundações” da Teoria Crítica, mas recuperar o modelo crítico formulado por Horkheimer para levar adiante essa tradição intelectual. Para isso, parte de um diagnóstico do campo crítico marcado por duas balizas fundamentais. De um lado, quer abrir caminhos que não se fechem na conhecida “aporia” da Dialética do Esclarecimento3. De outro lado, aceita implicitamente o desafio colocado pela teoria crítica de Habermas, ao indicar que é possível construir uma alternativa a essa aporia a partir do movimento teórico fundamental realizado por Horkheimer nos anos 1925-1931, que teria significado nada menos do que uma “ruptura com a filosofia da consciência”. Com isso, torna-se possível reconstruir de outro modo o próprio desenvolvimento da Teoria Crítica, de maneira a fugir à interpretação de conjunto consolidada por Habermas4:
Uma biografia intelectual que aspire a se manter fiel ao espírito crítico de Horkheimer — como esta pretende — deve não apenas tentar apresentar suas ideias em toda sua complexidade e radicalidade para assim salvá-las da onda de amnésia e conformismo que ameaçam devastar o presente. Tal obra deve também procurar identificar os fatores sociais e históricos que condicionaram sua teoria crítica nos vários estágios de seu desenvolvimento. Só assim será possível o direcionamento para a importante tarefa final de determinar quais aspectos da teoria crítica de Horkheimer ainda são relevantes no presente e quais devem ser revisados ou abandonados5.
Se a explicitação desse engajamento e dessa tomada de posição já distingue de saída o livro de John Abromeit dos livros de referência de Martin Jay e de Rolf Wiggershaus, a sua escolha de objeto aprofunda as diferenças. A grande sacada do livro pioneiro de Martin Jay –orientador de John Abromeit, cuja tese de doutorado foi a base para a redação do livro — esteve em realizar a “biografia” intelectual de uma instituição (o Instituto de Pesquisa Social) entre as décadas de 1920 e 1940, o que lhe permitiu escapar à ideia confusa (e redutora, como mostrou o próprio Jay em seu livro) de uma “Escola”. Essa abordagem lhe permitiu ainda mostrar em ato a ideia-força do “materialismo interdisciplinar”, que guiou o trabalho coletivo a partir dos anos 1930.
A escolha de Abromeit não é menos engenhosa: reconstruir o momento inaugural dessa vertente intelectual permite abrir o campo das possibilidades de desenvolvimento teórico, trilhadas ou não, tanto em relação ao passado como em relação ao presente, concretizadas em uma direção determinada, abandonadas ou retomadas. Não é outra a razão pela qual o livro se encerra em 1941, com a Dialética do Esclarecimento já a caminho, momento em que Horkheimer decide por tomar um dos muitos possíveis caminhos que ele mesmo havia aberto. A consolidação dessa virada está no artigo “The end of reason”, de 19426, cuja versão em alemão tem por título “Razão e autopreservação”. A partir daí, segundo John Abromeit, o “abandono por Horkheimer do modelo de uma dialética da sociedade burguesa levou ao desaparecimento de distinções-chave que tinham estruturado seu trabalho anterior tanto em nível sincrônico como diacrônico”7.
A reconstrução do projeto de uma “antropologia da época burguesa”, conjugado a uma determinada apropriação do “materialismo” e à ideia de um livro sobre “lógica dialética”, surge como configuração por excelência do trabalho de Horkheimer nos anos 1930. O livro de John Abromeit está armado de maneira a mostrar como esse projeto tinha várias possibilidades de desenvolvimento, sendo o resultado dos anos 1940 (que gira em torno da Dialética do Esclarecimento) apenas uma das suas possíveis realizações. Com isso, Abromeit aponta também, implicitamente, que seria possível continuar esse projeto em sentido diverso da Dialética do Esclarecimento no momento presente.
Esse sentido diverso pode ser relacionado a uma tendência atual no campo crítico de tematizar o afastamento da Teoria Crítica de certa concepção de pesquisa empírica. Pois retomar e pôr em relevo os trabalhos de Horkheimer anteriores a 1941 possui também essa intenção, embora não explicitamente declarada, de mostrar os vínculos desse período de sua produção com um determinado modo de realizar pesquisa empírica desenvolvida então no Instituto de Pesquisa Social. O livro de Abromeit pode ser lido também como uma defesa de uma maneira possível de articular teoria social e pesquisa empírica, da qual os trabalhos de Horkheimer da década de 1930 seriam exemplares.
Se, após a leitura do livro, a estatura intelectual atribuída a Horkheimer parece mais do que justificada, por outro, a reconstrução do seu modelo crítico dos anos 1930 nesses termos é, por exigir ênfase na originalidade das formulações, pouco convincente. Pode ser que John Abromeit tenha razão em seu diagnóstico de que houve “uma forte tendência na literatura secundária a subsumir a obra de Horkheimer e de Adorno a um conceito mais geral de ‘marxismo ocidental’, que tem como ponto de partida a ênfase metodológica de Lukács no conceito de totalidade, no de forma-mercadoria e no de reificação”. Mas combater essa tendência — vale dizer, em boa medida, combater a versão de Habermas do desenvolvimento da Teoria Crítica — não exige necessariamente se colocar a tarefa nos termos em que pôs o livro: “Um dos principais objetivos deste estudo como um todo foi o de demonstrar que o caminho de Horkheimer para a Teoria Crítica foi independente daquele de Lukács e de Adorno”8.
Afirmar, por exemplo, que as formulações de Horkheimer dos anos 1930 têm por pano de fundo conceitual as formulações de História e consciência de classe9, de Lukács, em nada diminui a originalidade do então diretor do Instituto de Pesquisa Social. Pelo contrário, apenas torna mais precisa essa originalidade, dando-lhe maior substância. Isso se exprime até mesmo em oscilações argumentativas sintomáticas: “Como mostraram Michiel Korthals e Ferio Cerruti, Horkheimer não se apropriou do conceito de totalidade de Lukács seja nesse período, seja posteriormente”, o que contrasta com uma afirmação poucas linhas adiante: “Depois de sua ruptura com Hans Cornelius, Horkheimer usaria o conceito de totalidade tanto em termos metodológicos como substantivos em sua teoria social, mas permaneceram importantes diferenças em relação a Lukács”10.
De um lado, John Abromeit propõe uma mudança de foco extremamente fecunda: retirar os escritos de Horkheimer da rubrica abstrata da “metodologia” de maneira a mostrar o vínculo indissolúvel, no campo da Teoria Crítica, entre a sistematização teórica e a investigação empírica. Com isso, consegue não apenas dar ao projeto de uma “Antropologia da época burguesa” (e, em especial, ao artigo “Egoísmo e movimento de libertação”11) o destaque e a centralidade que merece, mas consegue despertar o interesse com respeito às possíveis linhas de continuidade desse projeto no momento atual. De outro lado, entretanto, esse movimento muitas vezes acaba por reduzir a importância de outros textos do período que merecem pelo menos igual destaque, como é o caso de “Teoria Tradicional e Teoria Crítica”12. Assim como teria sido necessário atribuir pesos diferentes a diferentes influências teóricas, seria necessário também distinguir as diferentes estaturas de textos que possuem temas tão variados; uma análise mais de perto desses textos apontam que não são todos de mesma densidade e fecundidade.
Seja como for, é já muito impressionante a segurança e o interesse no manejo simultâneo de tantas fontes de alta densidade. A estratégia adotada por John Abromeit suplanta largamente essas possíveis objeções pelas possibilidades de leitura e de caminhos para a renovação da Teoria Crítica que seu livro oferece. Não por último porque o livro, no seu conjunto, é um plaidoyer pelo pluralismo e pelo diálogo no interior do campo crítico, sem em nenhum momento abdicar dos necessários embates teóricos que marcam a vitalidade dessa tradição.
De maneira consequente, o objetivo de abrir um leque muito mais amplo de possíveis caminhos para a Teoria Crítica determina também a estrutura do livro. A ênfase na fase decisiva de formação de Horkheimer (1925-1931) prepara a apresentação das muitas linhas de desenvolvimento que marcaram o período seguinte (1932-1941). E, no entanto, a periodização foi estabelecida a partir da articulação conceitual da trajetória de Horkheimer, e não a partir de eventos histórico-mundiais como a crise de 1929, a ascensão do nazismo ao poder, em 1933, ou a eclosão da Segunda Guerra Mundial, em 1939. A falta dessa referência a eventos histórico-mundiais é de grande importância, tanto pela centralidade da noção de “diagnóstico de tempo” no campo da Teoria Crítica quanto pelo próprio gênero do livro, uma “biografia intelectual”: não são os sucessivos diagnósticos de tempo de Horkheimer nesse período especialmente conturbado que estruturam o livro.
Desde a introdução, Abromeit levanta, mediante a leitura e a organização dos textos de Horkheimer do período, pelo menos cinco temas que contribuem para jogar uma nova luz na Teoria Crítica hoje: “história intelectual materialista”, “história sociopsicológica”, “antropologia da época burguesa”, uma “abordagem verdadeiramente interdisciplinar para a Teoria Crítica” e “pensamento pós-metafísico”. Mais do que uma enumeração de temas, é uma tese de leitura que procura mostrar que a obra de Horkheimer extrapola os ensaios metodológicos — nos quais se concentram a maioria dos comentadores. Ao dar ênfase a esses novos temas, Abromeit introduz uma nova organização na obra de Horkheimer.
Max Horkheimer and the foundations of the Frankfurt School possui nove capítulos e dois excursos, além de uma introdução e um epílogo. A primeira seção (capítulos 1 e 2) pretende reconstruir o período que vai desde a infância de Horkheimer até 1925, ano em que escreve sua tese de livre-docência [Habilitationsschrift], intitulada Zur Antinomie der teleologischen Urteilskraft [Sobre a antinomia do juízo teleológico]13, apresentada na Universidade de Frankfurt. O primeiro capítulo se concentra na infância e adolescência, destacando suas primeiras experiências emocionais, políticas e intelectuais, período em que Horkheimer escreve uma série de textos literários. Já o segundo capítulo — centro dessa primeira seção — trata dos anos como estudante em Frankfurt, nos quais Horkheimer entra em contato com as principais correntes teóricas que estavam em seu estágio “mais avançado”, mais especificamente, com os avanços na filosofia, na psicologia e na sociologia. A exposição em maior detalhe desse período de estudos iniciais de Horkheimer tem, para Abromeit, o objetivo de primeiramente se contrapor aos comentadores que não atribuem qualquer importância teórica a essa fase. Embora Horkheimer não tenha produzido nesse período seu modelo crítico mais acabado, Abromeit sustenta que é nesse momento — entre 1920 e 1925 — que surgem alguns elementos importantes do modelo da década de 1930.
Segundo Abromeit, esse período da formação acadêmica fornece a Horkheimer três elementos centrais que acabaram por reverberar na fase madura do desenvolvimento de sua “Teoria Crítica primeira” (early Critical Theory) na década de 1930. O primeiro desses elementos é a aproximação e o interesse de Horkheimer pela pesquisa empírica, utilizando-se dessas últimas — desenvolvidas pela Gestalt — para se contrapor aos neokantianos do início do século. Essa contraposição crítica, segundo Abromeit, é justamente o escopo de sua tese de livre-docência. O segundo elemento que Horkheimer desenvolve é o conceito de “totalidade”, esboçado a partir de seu contato mais direto com a psicologia de modo geral. O último elemento destacado nesse período é a ideia de unidade entre “razão prática e teórica”, que será crucial para seu modelo crítico dos anos 1930. Nesse quadro geral surge pela primeira vez a ideia de “interdisciplinaridade”, que será um dos elementos principais da Teoria Crítica de Horkheimer na década de 1930.
A segunda seção do livro (capítulos 3, 4 e 5) cobre o período 1925 a 1931, culminando com o momento em que Horkheimer assume a direção do Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt. A principal tese desse bloco de capítulos é a de que a Teoria Crítica primeira de Horkheimer teria se constituído, ainda que em linhas gerais, em meados dos anos 1920, e não apenas quando assume a direção do instituto, como defende a grande maioria dos comentadores.
No capítulo 3, Abromeit apresenta a intenção de Horkheimer de construir uma “interpretação materialista da filosofia moderna”. O início desse projeto marca seu afastamento de Hans Cornelius e da “filosofia da consciência” no momento em que Horkheimer se torna Privatdozent em Frankfurt. Para Horkheimer, um dos principais problemas da “filosofia da consciência” é seu afastamento das condições históricas nas quais seus conceitos surgem. Com o intuito de evitar esse problema, ele desenvolve suas teses sobre a “interpretação materialista da história da filosofia moderna”, tomando o seu surgimento como vinculado ao surgimento da “época burguesa”. Abromeit ressalta que Horkheimer tentava superar a “filosofia da consciência” através do “materialismo”, isto é, vincular a “filosofia da consciência” ao surgimento da “época burguesa”. Nesse momento, Horkheimer dá os primeiros passos para constituir uma teoria social própria, o que o faz iniciar seus estudos do pensamento de Marx com o objetivo de construir uma “teoria sociológica adequada”14.
Nesse sentido, para Abromeit, a obra Dämmerung: Notizen in Deutschland [Crepúsculo: notas na Alemanha]15 serve como importante fio condutor de seu argumento mais geral para essa fase da produção de Horkheimer. Publicada somente em 1934, mas cujos excertos são datados do período de 1926 a 1931, e sob o pseudônimo de Heinrich Regius, Dämmerung representaria uma tentativa de atualizar a teoria de Marx a partir da ideia de “subjetividade”, sendo esta vinculada ao modo como a sociedade capitalista produz e reproduz seus próprios meios. Para Abromeit, Dämmerung se utiliza de aforismos, anedotas, metáforas e exemplos concretos para expressar as tendências sociais mais gerais da sociedade capitalista, assim como expressa também os mecanismos próprios desse modo de produção, os quais estão incrustados na sociedade. Em Dämmerung surge a ideia de que a “epistemologia” daquele momento não seria “consciente de suas determinações sociais” e, nesse sentido, ela acaba por reforçar e justificar as condições injustas da sociedade capitalista. Horkheimer pretende com esse escrito defender uma “individualidade concreta” contraposta ao “capitalismo monopolista”. É nessa obra que ele teria começado a esboçar uma vinculação entre a pesquisa empírica e uma possível renovação do marxismo.
Essa necessidade de renovação do marxismo vinculado à pesquisa empírica fez com que Horkheimer levasse adiante a integração da psicanálise à teoria contemporânea da sociedade, objeto de discussão no capítulo 5. Para Abromeit, as investigações empíricas de Erich Fromm realizadas no final da década de 1920 foram cruciais para o desenvolvimento da Teoria Crítica. Após relatar como Horkheimer e Fromm se conheceram, assim como as aproximações teóricas de ambos, Abromeit passa a apresentar o “lugar teórico da psicanálise no pensamento de Horkheimer”, “uma teoria materialista da subjetividade que pode ajudar a explicar melhor a consciência das ações individuais e dos grupos sob determinadas condições”16. Evitando a categoria de “inconsciente coletivo”, Fromm direciona suas análises para as “experiências individuais” e de “grupos que sofrem a mesma pressão”17, isto é, seu intuito é observar o indivíduo concreto num contexto histórico determinado. Essa perspectiva foi incorporada pelo primeiro modelo crítico de Horkheimer. No contexto dessa colaboração surgiu o trabalho A classe trabalhadora na Alemanha de Weimar. Abromeit considera esse o “primeiro trabalho da Teoria Crítica”, tomando esse período como aquele em que Horkheimer começa a traçar as linhas de seu primeiro modelo crítico.
Não obstante, Abromeit registra uma mudança no pensamento de Horkheimer a partir do momento em que assume a direção do instituto. Essa mudança teria se dado justamente porque Horkheimer disporia então de um aparato institucional para implementar seu projeto de Teoria Crítica. Cada capítulo do “coração” do livro, a sua terceira seção (capítulos 6, 7 e 8), pretende expor um dos três conceitos mais importantes para a Teoria Crítica “durante este momento particular”18, uma espécie de convergência e concentração de temáticas ainda mais amplas do período anterior: “materialismo” (cap. 6), “antropologia da época burguesa” (cap. 7) e, por fim, “lógica dialética” (cap. 8).
No curto capítulo 6, Abromeit apresenta o conceito de materialismo em Horkheimer a partir de dois temas — que se referem a dois textos da primeira metade da década de 1930 — nos quais seus escritos incidem: “Materialismo e metafísica”19 e “Materialismo e moral”20. O materialismo, segundo Abromeit, surge primeiramente como uma espécie de “negação determinada” do “idealismo”. Ele aponta que, para Horkheimer, os princípios universais de certas teorias expressam, na verdade, interesses particulares de “grupos” em momentos históricos determinados. Nessa expressão de interesses particulares em princípios universais, Horkheimer entende que “os conceitos”, de modo geral, vinculam-se às classes sociais bem como à posição que estas ocupam na estrutura histórica e social. É nesse sentido que o “materialismo” surge nesse período também como tentativa de compreender a “moralidade”, na medida em que tenta compreender como “a moralidade moderna se tornou a moralidade burguesa”. Registre-se aqui, de passagem, uma dificuldade de leitura específica: não se sabe ao certo o que distinguiria fundamentalmente esse tema e esse capítulo daquele dedicado à “lógica dialética” (cap. 8).
Os conceitos de “antropologia da época burguesa” e “época burguesa” são o tema do capítulo 7. Aqui, Abromeit aponta que Horkheimer se contrapõe a um conceito tradicional de “antropologia” que acaba por hipostasiar uma essência humana a-histórica, assim como hipostasia também um “indivíduo abstrato”. A noção de antropologia de Horkheimer incorpora uma “teoria dialética da história” que leva em conta um período histórico específico — tal como a “época burguesa” — e admite a existência de grupos particulares que compartilham a mesma experiência social. A influência de Fromm no pensamento de Horkheimer é marcante nesse período, fazendo com que este último levasse em conta em seus escritos a relação não somente entre indivíduo, história, sociedade e grupo, como também a constituição psicológica dos indivíduos em determinada sociedade e em determinada época — destaca-se aqui a distância dos trabalhos de Peter Stirk e Helmut Dubiel sobre Horkheimer. A noção de época histórica em Horkheimer se aproximaria da noção de Marx, mas iria além, na medida em que pressuporia uma independência da “cultura” frente ao “mundo físico”.
É nesse sentido que “Egoísmo e movimento de libertação”21 de Horkheimer é apontado como principal escrito do período. Segundo Abromeit, esse ensaio foi o mais influente entre os teóricos críticos do período. Tanto é assim que ele surge citado nos textos de Marcuse, Adorno e Benjamin. Horkheimer teria levado adiante seu conceito de “antropologia da época burguesa” nesse ensaio justamente porque vinculou a análise histórica dos movimentos de libertação com o surgimento do “egoísmo”, apresentando ambos como tendências presentes no nascimento da sociedade burguesa. Nessas análises históricas estão presentes também, de forma marcante, os conceitos advindos da psicanálise. É principalmente com o conceito psicanalítico de “introversão” que Horkheimer compreende o discurso para as massas, em momentos revolucionários, como um “movimento de manipulação”. Disso surge a noção de “nova barbárie”, que possui sua historicidade no decorrer da “época burguesa” e que se encontra na tendência histórica tanto da “integração das massas”, quanto da institucionalização da “crueldade racionalizada”. Essas condições permitem a Horkheimer compreender que na “época burguesa primeira” se desenvolve o “fascismo no século XX”.
Outro trabalho importante que também se insere nessa perspectiva da “antropologia da época burguesa” é Estudos sobre autoridade e família22. Ao examinar mais de perto essa obra, levando a sério a reivindicação de Horkheimer de que ela visa a uma articulação efetiva entre o arcabouço teórico que apresenta e a pesquisa empírica — assim como as relações destas com a noção mesma de “interdisciplinaridade” —, Abromeit novamente destaca-se de leituras tradicionais, como a de Rolf Wiggershaus. Contudo, a importância decisiva de Estudos reside no fato de a obra servir como fonte de um conjunto relevante de categorias da psicologia social para a elaboração da ideia de antropologia da época burguesa: as contribuições de Erich Fromm, especialmente suas teses psicanalíticas sobre o caráter masoquista ou autoritário como tipo dominante na Europa contemporânea, permitirão a Horkheimer uma melhor compreensão do desenvolvimento histórico de seus conceitos centrais desta primeira Teoria Crítica23.
A conexão com a série de “reflexões sobre a lógica dialética”, tema do capítulo 8, é explicitada desde o início: Horkheimer considerava o conceito de antropologia burguesa também como parte do projeto mais amplo sobre a lógica dialética24. Mas, devido aos percalços ocorridos no período — as várias mudanças do instituto, em fuga do nazismo e da guerra —, esse projeto acabou se transformando substancialmente. É nesse sentido que, para Abromeit, os escritos reunidos sobre a lógica dialética possuem um duplo caráter: por um lado, eles fazem parte dos desenvolvimentos da Teoria Crítica primeira de Horkheimer nos anos 1930; por outro, constituem também as bases para a composição da Dialética do Esclarecimento, obra publicada em 1947. As reflexões sobre lógica dialética, segundo Abromeit, partem da crítica à filosofia cartesiana e ao empirismo, retomando assim o tema da “crítica à filosofia da consciência” presente na segunda metade da década de 1920. E é com o estudo de Hegel que Horkheimer aprofunda sua concepção de lógica dialética, movimento que termina com a “reformulação da Teoria Crítica de Marx” numa tentativa de juntar tanto a lógica categórica quanto a própria história. Essa reformulação é sintetizada no notório ensaio “Teoria Tradicional e Teoria Crítica”. Para Abromeit, esse ensaio faz parte das reflexões sobre lógica dialética, o que acaba por diminuir o peso da psicanálise e da pesquisa empírica presentes em outros ensaios da década de 1930.
Finalmente, a última seção do livro trata do gradual afastamento do modelo primeiro de Teoria Crítica de Horkheimer. A tese de Abromeit é a de que uma separação de Fromm (Excurso I) e uma aproximação de Adorno (Excurso II), somadas à tese do capitalismo de Estado desenvolvida por Friedrich Pollock, passaram a influenciar decisivamente a teoria de Horkheimer, distanciando-o da Teoria Crítica primeira dos anos 1930. A tese defendida por Abromeit é que o conceito de “capitalismo de Estado” acabou ocupando um espaço cada vez maior nos escritos de Horkheimer, culminando esse movimento de distanciamento em O fim da razão25, ensaio que seria o limite entre a Teoria Crítica primeira e as primeiras reflexões que levariam à Dialética do Esclarecimento.
A centralidade que o conceito de capitalismo de Estado acabou ocupando teve consequências: Horkheimer acaba por abandonar o modelo da “dialética da sociedade burguesa” e desaparecem as distinções-chave que estruturavam seu pensamento inicial26. Mais que isso, Horkheimer abandona as análises dos “potenciais revolucionários” que pautaram o início da era burguesa de tal modo que o conceito de capitalismo de Estado e “sua lógica imanente” permite a ele igualar as diferenças entre “pensadores opostos do mesmo período”, assim como as diferenças de “pensadores e conceitos de diferentes períodos”. Perde-se assim a característica fundamental de sua primeira Teoria Crítica: a dialética da sociedade burguesa e sua historicidade. Abromeit destaca também que essa mudança está diretamente relacionada à grande influência das “Teses sobre História”27 de Walter Benjamin tanto em Horkheimer quanto em Adorno. A influência desse texto levou os autores a interpretarem o passado a partir do presente, acabando por levá-los a um processo de “des-historicização” de seu pensamento.
Por isso, com o modelo da Dialética do Esclarecimento, segundo Abromeit, perde-se o que há de mais rico para contribuir com a teoria social contemporânea. É nesse sentido que a Teoria Crítica primeira de Horkheimer da década de 1930 pode “contribuir para uma renovação da Teoria Crítica”. Com isso, o posicionamento de Abromeit a respeito da interpretação da obra de Horkheimer surge de modo marcante: a crítica à Dialética do Esclarecimento é acertada quando se refere somente a essa obra. Essa crítica, como mostra Abromeit, não se estende aos escritos anteriores a O fim da razão. Daí que ele afirme que o mais interessante da obra da primeira geração da Teoria Crítica está no projeto da década de 1930.
O gênero “biografia intelectual” permite a John Abromeit resolver, pela primeira vez e de maneira convincente, intrincados problemas teóricos dos estudos sobre Horkheimer, como é o caso do famoso “juízo existencial” que ocupa posição de destaque no ensaio “Teoria Tradicional e Teoria Crítica”28. Mostra-se igualmente capaz de dar explicação convincente e coerente em aspectos para os quais as fontes são escassas, como é o caso do capítulo 5 do livro, que trata da integração da psicanálise na teoria social de Horkheimer (mesmo se aqui fica a impressão de que a importância de Reich foi subestimada, por exemplo). Não por acaso, portanto, John Abromeit encerra o livro apontando para um modelo de renovação da Teoria Crítica que é aguardado com expectativa: “Um novo modelo de Teoria Crítica necessitaria preservar as tradições do materialismo histórico e da psicanálise junto com os melhores aspectos da tradição política democrática liberal”29. Mas, antes de exigir do autor que continue a trilha que ele próprio abriu, cabe antes recomendar à leitora e ao leitor que aproveite a leitura deste livro excepcional.
Notas
1 The dialectical imagination: a history of the Frankfurt School and the Institute of Social Research 1923-50. Boston: Little, Brown and Co., 1973. [ Links ] [Ed. bras.: A imaginação dialética: história da Escola de Frankfurt e do Instituto de Pesquisas Sociais 1923-1950. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008].
2 Die Frankfurt Schule. Geschichte, Theoretische Entwicklung, Politische Bedeutung. Munique: Hanser, [ Links ] 1986. [Ed. bras.: A Escola de Frankfurt: história, desenvolvimento teórico, significação política. Trad. Vera de Azambuja Harvey. São Paulo: Difel, 2002].
3 ADORNO, T. e HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Trad. Guido de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, [ Links ] 1985.
4 HABERMAS, J. Theorie des kommunikativen Handelns, Band 1. Handlungsrationalität und gesellschaftliche Rationalisierung. Frankfurt am Main: Suhrkamp, [ Links ] 1995.
5 ABROMEIT, J. Max Horkheimer and the foundations of the Frankfurt School. Cambridge: Cambridge University Press, 2011, p. 170. [ Links ]
6 HORKHEIMER, M. “The end of reason”. Studies in Philosophy and Social Sciences, vol. IX, Nova York, [ Links ] 1942.
7 ABROMEIT, op. cit., p. 395.
8 ABROMEIT, op. cit., p. 392.
9 LUKÁCS, G. História e consciência de classe. Estudos sobre a dialética marxista. Trad. de Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
10 ABROMEIT, op. cit., p. 82.
11 HORKHEIMER, M. “Egoismus und Freiheitsbewegung”. In: Gesammelte Schriften. Band 4: Schriften 1936-1941. Org. A. Schmidt. Frankfurt: Fischer, 1988, pp. 9-88. [ Links ]
12 Idem, “Traditionelle und kritische Theorie”. In Gesammelte Schriften. Band 4: Schriften 1936-1941, op. cit., pp. 162-216. [ Links ]
13 HORKHEIMER, M. “Zur Antinomie der teleologischen Urteilskraft”. In: Gesammelte Schriften. Band 2: Schriften 1922-1932. Org. A. Schmidt. Frankfurt: Fischer, 19885, pp. 15- [ Links ]72.
14 ABROMEIT, op. cit., p. 141.
15 HORKHEIMER, M. “Dämmerung. Notizen in Deutschland”. In: Gesammelte Schriften. Band 2: Schriften 1922-1932, op. cit., pp. 312- [ Links ]452.
16 ABROMEIT, op. cit., p. 200.
17 Ibidem, p. 207.
18 Ibidem, p. 227.
19 HORKHEIMER, M. “Materialismus und Metaphysik”. In: Gesammelte Schriften. Band 3: Schriften 1931-1936. Org. A. Schmidt. Frankfurt: Fischer, 1988, pp. 70- [ Links ]105. [Trad. bras. “Materialismo e metafísica”. In: Horkheimer, M. Teoria crítica I: uma documentação. Trad. de Hilde Cohn. São Paulo: Perspectiva/ edusp, 1990.]
20 Idem, “Materialismus und Moral”. In: Gesammelte Schriften. Band 3: Schriften 1931-1936, op. cit., pp. 111- [ Links ]149. [Trad. bras. “Materialismo e moral”. In: Horkheimer, Teoria crítica I, op. cit.]
21 HORKHEIMER, “Egoismus und Freiheitsbewegung”, op. cit.
22 HORKHEIMER, M; Marcuse, H.; Fromm, E.; et al. Studien über Autorität und Familie. Forschungsberichte aus dem Institut für Sozialforschung. Mit einem Vorwort von Ludwig von Friedeburg. Reprint der Ausgabe Paris 1936. Klampen, Lüneburg 2005. [ Links ]
23 Sobre este ponto, registre-se o aparecimento, em 2013, do interessante livro de Katia Genel, Autorité et emancipation. Horkheimer et la Théorie critique (Paris: Payot & Rivages). Como no caso de John Abromeit, a visada mais ampla da autora é a de uma reconstrução não apenas da trajetória intelectual de Horkheimer, mas do conjunto da Teoria Crítica. Katia Genel, no entanto, o faz a partir da noção de “autoridade”. O que a leva a sustentar a tese de que, nessa vertente intelectual, a noção fundamental é antes a de “autoridade” do que a de “dominação”, por exemplo. O livro de John Abromeit se posiciona claramente contra tal possibilidade de reconstrução (ver, por exemplo, a nota 13, p. 303).
24 ABROMEIT, op. cit., p. 302.
25 HORKHEIMER, M. “The end of reason”. Studies in Philosophy and Social Sciences, vol. IX, Nova York, [ Links ] 1942
26 ABROMEIT, op. cit., p. 395.
27 BENJAMIN, W. Obras Escolhidas; vol.1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, [ Links ] 1994.
28 ABROMEIT, op. cit., p. 330.
[29] Ibidem, p. 430.
Marcos Nobre – Professor no Departamento de Filosofia do IFCH da Unicamp e pesquisador do Cebrap.
Adriano Januário – Doutorando no programa de pós-graduação em Filosofia da Unicamp.
Raphael Concli – Mestrando no programa de pós-graduação em Filosofia da Unicamp.
Paulo Yamawake – Mestrando no programa de pós-graduação em Filosofia da Unicamp.
Critical reflection in the classroom: Consciousness, praxis, and relative autonomy in social studies education – AU (CSS)
AU, W. Critical reflection in the classroom: Consciousness, praxis, and relative autonomy in social studies education. In A. P. DeLeon & E. W. Ross (Eds.), Critical theories, radical pedagogies, and social education: New perspectives for social studies education (pp. 163-181). Rotterdam: Sense Publishers, 2010. Resenha de: Abbott, Laurence. Situating radical pedagogies in social studies classrooms: An extended review of Critical Theories, Radical Pedagogies, and Social Education. Resenha de: ABBOTT, Laurence. Canadian Social Studies, v.45, n.1, p.59-70, 2012.
Introduction
As a student and teacher of social studies curriculum and pedagogy, I have encountered a range of conceptions of social studies, by experiencing and witnessing it as both practice and as praxis. Social studies pedagogy, at least in scholarly discourse, is contested, complex, evolving, dynamic, and amorphous (Clark, 2004; Nelson, 2001). As a school subject, it offers multifold potential to be a site of insightful and enriching engagement in the life world contexts that students inhabit, as well as a venue for purposeful and deliberate agency, encouraging students and teachers to engage in transformative action (den Heyer, 2009; Richardson, 2002; Sears, 2004; Segall & Gaudelli, 2007; Westheimer & Kahne, 2004). Social studies pedagogy in practice, however, is often conservative, reified, and stultifying. Its Deweyan democratic promise is largely undermined through covert class and race-based streaming that serves, more often than not, to sustain the status quo rather than encouraging students and teachers to overcome it (Apple, 1986; Hyslop-Margison & Sears, 2006; Kahne, Rodriguez, Smith, & Thiede, 2000).
The scholarly literature critiquing social studies pedagogies is vast, rich, with the most provocative critiques emerging out of neo-Marxian inspired perspective. Critical Theories, Radical Pedagogies, and Social Education: New Perspectives for Social Studies Education, edited by Abraham DeLeon and E. Wayne Ross, is a refreshing collection of essays that offers a range of critical and radical voices which are generally marginalized in the critical social studies ‘mainstream.’ The editors argue that there is an urgency to transform social studies pedagogy and activate students’ and teachers’ potential to be agents who can address and overcome economic, social and political disparities in power, wealth, and access to resources, especially in the context of current global economic crises (DeLeon & Ross, 2010).
Critical theory-inspired pedagogies are eclectic and can prove difficult to reconcile with each other. Essays in this collection concurrently complement each other while challenging each other for pride-of-place in the struggle for attention and justice, sometimes leveraging power in ways that harm other marginalized communities and causes. What is evident in reading these essays is the intellectual and emotional challenge of grasping the complex challenges and tensions teachers encounter when their commitment to social justice is overwhelmed by a torrent of injustices. A further complicating reason that justifies teachers’ resistance is the demand for a depth of understanding of political, social, and economic theories beyond anything that teacher education programs provide.
What is common among these essays is their critiques of neo-liberalism and marketplace logics. As an increasingly experienced reader of this genre, I have learned to both expect a bit of the unexpected, but to also encounter the familiar. The familiar is that these essays challenge readers to think and reimagine teaching practice and praxis, yet they are, collectively, light on remediation. The consequence is an audience problem.
While there is much here for people in the academy, the counter-neoliberal discourses in these essays are short on deliverables for practicing and pre-service teachers, an irony I am sure is not lost on this books’ editors. This collection is a good read with valuable insights that can impact teaching practice. Critical social studies pedagogies demand intellectual engagement and imagination if teachers are to make their subject area about fostering a desire to learn and act for change. While teachers may not buy, fully, into what is offered in these essays, readers have the chance to play with ideas they might not have otherwise encountered.
Working through the chapters
In chapter one, Abraham DeLeon (2010) argues for the inclusion of anarchistic radicalism in social studies. He points out that previously edited volumes of radical theory infused critical social studies pedagogy and omitted anarchist praxis. In this essay, DeLeon offers a critique of neo-Marxian critical theory’s “over-reliance on a mythical state coming that may or may not come into being” as a temporal condition that tantalizes agents with the potential for change in an imminent future time (p. 3). Anarchism, instead, demands that teachers and students be autonomous agents to facilitate change both now and in the immediate future. He suggests that anarchism’s potential stretches beyond neo-Marxian inspired critical theory by promoting action and sabotage to address, undermine, and overcome economic oppression. He writes that social studies teachers must imagine a praxis where sabotage-as-pedagogy is thought of as “creative and hopeful in remaking our world into something new,” and that sabotage can be a “model for direct action” (p. 3) in social studies classrooms.
This sense of urgency runs through the whole collection of essays, yet, talk of a crises in social studies, especially in regards to engaged citizenship is not new (Sears & Hyslop-Margison, 2007). Current economic conditions both in North America and globally are aggravating economic and political disparities at a faster tempo than just a decade ago, but this receives insufficient attention in social studies classrooms. DeLeon argues that exploitive neo-liberal education has made “the lived reality of social studies is one of innate boredom where students are drilled about dates, dead white men are deified and worshiped, history is offered as a totalizing narrative and [students] are fed a decontextualized and sanitized curriculum” (2010, p. 5). As a counter-argument, DeLeon offers a subversive, infiltrating vision of social studies. His most radical idea is infiltrationism.
Infiltration must be a long-term commitment to secure the credentials and tenure necessary for subversion. While there may be committed individuals willing to invest the time, infiltration seems like a strategy unlikely to succeed. For the radical pedagogue, sustaining a cover identity long enough to infiltrate a school and secure tenure runs contrary to the urgency at play in this essay. Further, the language of sabotage is likely to be understood in reductive ways, limiting the scope of what it might mean. Recognizing these opposing tensions, DeLeon’s anarchism is tempered by pragmatism later in the chapter which renders some of his ideas more palatable to risk-taking teachers. For instance, ‘micro-resistance’ pedagogies with rhizomatic potential can encourage students to challenge assumptions, market logics and the authority of Western epistemologies.
In chapter 2, Nirmala Erevelles takes on the ostensibly open-mindedness of the academy that is too often a cleverly cloaked closed-mindedness clothed in liberal idealism, good will, and altruism. Too many faculty and students seem unable and unwilling to move from conversation about to praxis for social justice. A central issue is the convenient invisibility of domains that many students and scholars, myself included, have little exposure to. Erevelles helps unpack a range of intertwining domains of invisibility by employing a transnational feminist disability studies perspective to reveal how the privilege-to-not-know is reinforced by market logics that pit marginalized identifications against one another in a struggle for pride of place.
Some genuine intellectual work is necessary to ascertain Erevelles’ pedagogic implications for social studies education. Readers are challenged early in her essay to take on the nature of privilege that opens the door to pity, revulsion, and surprise at the conditions in the wake of Hurricane Katrina. Although questions central to purposeful democratic discourse and critical historical engagement likely permeated many social studies classrooms in the aftermath of Katrina, especially regarding the responses by various levels of government, what understandings might students and teachers have taken from classroom conversations, research, and action? Did Katrina-focused pedagogy lead to meaningful changes in the ways students live with each other and understand their capacities to act to transform their communities and the world? Many teachers and students likely explored difficult questions about how governments responded, or the historical, political, social and economic circumstances led to the conditions in New Orleans, or critically analyzed the media coverage. While these avenues of inquiry are necessary and important to explore, Erevelles pushes readers to ask important critical questions likely left out in many classrooms: To what extent was the objective of government intervention the restoration of the status quo and the reconcealment of categories of the marginalized? What is the function of pity? Why is it that remediation after a crisis functions to re-conceal those we typically fail to see? How might we reconcile our indifference to the invisible with our rhetoric on equality? Erevelles argues that marginality and invisibility are hierarchical, meaning that pride-of-place struggles take place beyond the gaze of the middle class. Critical disability studies offers an avenue to grasp how sublime taxonomies pathologize difference, forcing marginalized individuals and communities to cleave difference along imposed categories of gender, race, and ability/disability, competing for scarce resources and the attention of power, and denying access to means and opportunities to exercise collective political, economic and social power, themselves.
Pride-of-place in critical discourses frequently comes into play in social studies pedagogy, and justice-focused remediation as pedagogy crosscuts many domains. Which crises and injustices get our attention? How can we know, understand, and share with students the complexity of crises that are simultaneously distinct and integrated? How might the blurring of lines between and among the crises be an opportunity for democratic learning and living? Which pedagogies justly treat the multitude of injustices? In chapter 3, Rebecca Martusewicz and Gary Schnakenberg make a case for the immediacy and divisiveness of ecojustice in public discourse. They argue that social studies classrooms are especially well suited to its pursuit concurrently with social justice and democracy. They open their chapter by articulating the goals of ecojustice pedagogy, among which is the necessity for students to engage in:.
an analysis of the linguistically rooted patterns of belief and behavior in Western industrial cultures that have led to a logic of domination leading to social violence and degradation, and secondly, to identify and revitalize the existing cultural and ecological “commons” that offer ways of living simultaneously in our own culture, as well as in diverse cultures across the world. (Martusewicz & Schnakenberg, 2010, pp. 25-26).
The revitalization of the commons is tied to countering the effects of a culture of violence embedded in capitalist neo-liberal logics. This, of course, is no easy task for teachers.
Martusewicz and Schnakenberg argue that the ecological crisis is actually a cultural one tied up in transactional nature of language which reinforces status quo structures and epistemological assumptions in schools.
Interrupting and challenging epistemological and disciplinary constructs that inhabit social studies is necessary for students to appreciate the possibility that other logics might govern human/human and human/environment relationships, but it is a pedagogic minefield for insufficiently committed and prepared teachers, students, and administrators. Importantly, this is where this chapter’s authors tread into a critical site of resistance for social studies education – the challenge to extend our gaze to recognize the limitations and situatedness of our worldview. The dominant Western worldview posits capitalism and consumerism as inevitable products of progress. Its historical legacy of colonialism, racism, and oppression are too often characterized as unpleasant practices of less enlightened prior generations subsequently eliminated through legislation and social change (Hyslop-Margison & Sears, 2006; McMurtry, 2002). For teachers and administrators to alert students to the nature of the market logics that scaffold their worldview and encourage them to imagine alternatives, they must become political in ways that put employment and funding at risk. Following from the first essay in this collection, perhaps ecojustice might benefit from the notion of micro-resistance.
As a form of micro-resistance, for example, teachers might exploit neo-liberal logics to provoke critical engagement. How might critical pedagogies become more than as subversive acts that undermine the security of the status quo? While I offer this somewhat facetiously, the struggle to overcome the resistance of teachers and public education to radical and transformative pedagogies seems ironic, since teachers, as a category of labourers, and “are by far the most unionized people in the USA, [with] more than 3.5 million members” according to Rich Gibson (2010, p. 43). Yet, in chapter four, Gibson notes that unions no longer function in dialectic tension with those in control of the capital funding for education. His Marxian analysis employs dialectical materialism to reveal the historical tension at the heart of the public education project, where the discursive freedoms of school occur in an environment in which capitalism and exploitation operate in both sublime and significant ways that inhibit and suppress students’ capacities for agency and engagement. He writes that the “relationship of school to society where schools are, for the most part, capitalist schools is a reality ignored by liberal and even radical educators, particularly in the field of social studies” (p. 44).
While Gibson engages in a momentary ad hominem treatment of President Obama as “the demagogue,” and US Secretary of Education Arne Duncan as “Chicago’s education huckster,” in the early stages of his analysis of capitalist education, the name calling is politically purposeful (p. 45). He argues that democracy, so central to civics and social studies in schools, is taken up in schools in ways that dilutes and diminishes collective will, eroding community-mindedness. Capitalism appeals to individual desires, consumption, and competition. He suggests that the agenda for public education under the current administration has become more corporatist than prior administrations, and that standardized curricula and a passive-aggressive relationship with teachers reinforces economic stratification along race and gender-based lines.
His analysis infers that the vision of schools as sites of Deweyan democracy and possibility are illusory manifestations of a capitalist curricula where freedom and critical engagement are tantalizing promises meant more to satisfy the rhetorical needs of policy makers than provoke engagement. Much of his critique of the capitalist agenda for public education is not new. What is new to me is where he takes his analysis in relation to unions and the diminished character of their antagonistic relationship with capital, especially in public education. Teachers in the United States, and, for that matter, Canada, are largely white and middle class. Historically, unions emerged to maintain the whiteness of labour and the professionalization of teaching moved teachers’ unions into securing and sustaining middle-class status for practitioners. As teachers’ wages rise, job security and the freedom to consume makes advocacy of a radical agenda difficult to reconcile with the class interests of teachers.
Like the authors of the previous chapters, Gibson argues for the necessity of recognizing, understanding, and challenging the epistemic and ontological assumptions.
Similar to other authors in this volume, Gibson advocates for pedagogies that encourage and foster collective interests to displace ones that overtly and covertly train students to be consumer citizens by limiting the potential scope of agency and participatory citizenship to consumer-like decisions.
Citizenship is a thematic concept central to social studies curricula that is semantically slippery, simultaneously possession and practice, yet in many classrooms its complexity is likely reduced in the interests of clarity and accessibility (Kymlicka & Norman, 1994; Osborne, 2005; Osler & Starkey, 2005). When citizenship is filtered through a liberal egalitarian middle-class lens and shared with students as an enlightened progress narrative, the extension of citizenship to the previously disenfranchised is celebrated as resolved rather than unpacked and analyzed. In chapter 5, Anthony Brown and Luis Urrieta Jr. take up another important body of constraints limiting the scope of personal agency and engaged citizenship through a comparative analysis of the enfranchisement of African Americans and Mexican Americans. The history of citizenship as a possession in the United States is an ongoing story still permeated by race. Brown and Urrieta Jr. employ racial contract theory to argue that the extension of citizenship to African Americans and Mexican Americans only occurs under conditions that advance white interests and always comes at the price of sustaining marginality.
As they trace elements of the African American citizenship narrative through manumission societies and segregated schools, and the history of Mexican and Latino/Latina citizenship in the US, Brown and Urrieta Jr. strike notes that hit analogous registers in Canadian citizenship narratives. Limiting the extension of citizenship rights to marginalized communities has long been based on notions of White Anglo-Protestant notions of moral superiority in both the United States and Canada (Banks & Nguyen, 2008; Willinsky, 1998). While this gets plenty of attention in scholarly writing and increasing attention in curriculum documents and textbooks, citizenship as a racialized discourse operates in tension with a powerful legislation-transforms-reality fallacy which posits that once a notion becomes law, lived reality is fundamentally and permanently transformed, therefore resolving the injustice. In my own experience as a teacher and teacher educator, I have encountered many students for whom egalitarian rights legislation has closed the book on racism as a current phenomenon.
Brown and Urrieta Jr. point out that egalitarian legislation sublimely extends white privilege, yielding legislative and administrative opportunities that draw on judicial decisions to re-secure the marginal status of racialized communities. What emerges out of this chapter is a rich historical appreciation of how whiteness continues to manifest itself as normative condition in curricula, rather than as a category of identification, thus avoiding meaningful interrogation in schools as it operates as the frame through which students are taught to perceive themselves and the world.
Throughout these essays, readers are regularly reminded of how market logics erode community-mindedness. In chapter 6, Kevin Vinson, Wayne Ross, and Melissa Wilson both sustain this theme and depart from the expected. Their essay takes up critical social studies education in relation to Guy Debord’s notion of spectacle for which they provide readers with sufficient explanation before transitioning into their conversation about social studies.
Debord’s spectacle offers an interesting frame for unpacking and understanding human interaction with and in relation to streams of images encountered in the everyday consumer world. Despite being articulated nearly half-a-century ago, Debord’s works is still timely, as images increasingly reach us through multiple and converging vectors, aggressively marketed to complement, supplement, and supplant one another.
Fundamentally, for social studies teachers and students, is learning how to understand and counter(balance) the effects of the spectacle, especially in how it erodes community and human-to-human relationships. Vinson, Ross, and Wilson make clear that rather than being Luddites, they appreciate the ways that technology can be purposeful and valuable. Their critique is that interactions inside and outside of schools are over-mediated and that “we simply e-interact as if there were no other choice. This is Debord’s “pseudo-world,” his “autonomous movement of non-life”” (p. 86).
Critical to understanding and addressing the challenges posed by the ways that capital-driven technologies and marketing shape human interaction and purposeful citizenship, teachers and students need to learn together to understand how spectacle functions through the dominance of images that elevate virtual experiences over lived ones. The spectacle is alienating as it mediates the boundaries between people, making them spectators in their own lives, subjecting them to marketing as a key element of almost any interaction. When spectacle takes on the appearance of life and supplants real life, it diminishes possibilities for community cohesiveness to exercise political, economic, and social agency.
This provides a foundation for the authors to offer a vision for critical social studies pedagogy, resituating it in the living world of people and their communities. To counter the powerful neoliberal thread of the spectacle, where individualism and narrow parochialisms suppress and deny community, critical pedagogy returns to its roots, to some extent, complemented by a range of traditional and contemporary critical perspectives and frames, such as drawing substantially on the work of Joe Kincheloe.
They do offer a more current vision of critical pedagogy as theory and praxis which ties in well with the visions for social studies pedagogies offered throughout this volume and other recent articulations of purposeful critical engagement (den Heyer, 2009; Segall & Gaudelli, 2007).
This leads to the articulation of a Debordian vision of critical citizenship, a radical, playful, and purposeful reimagination of community-minded interaction and engagement, which emphasizes the humanness of community. Its constructed situations are intended to be playful and game-like, not governed by market-like competition rules.
The intention of the game is to imbue human communities with life in the pursuit of liberation, countering the effects of the spectacle that diminish engagement. Constructed situations are one of three elements necessary to engage in Debordian citizenship as praxis. The second element, the dérive, is an especially urban element of the playfulness of this vision of citizenship, involving walking or strolling in your community, not guided by a desire to necessarily reach a destination, but meant to facilitate encounters with the communities where we reside, restoring our connection with the people and places where we live. The idea of the dérive is to counter the idiocy of separation emerging out of the technological boundaries we purchase and erect around ourselves, and, instead, engage in a living critique of the spectacle. The final element is the détournement, “a mode for subverting the normal, [and] of contradicting or negating accepted behavior” (p. 105) such as squatting or occupying a public park to disrupt and reconstruct the ambiance of public spaces.
So, where does this fit in relation to radical social studies pedagogy? The authors argue that teachers must help students develop critical competencies that will help to ground them in recognizing and resisting the institutional and neoliberal mechanisms that perpetuate the spectacle and promote community fragmentation. Debord’s writing offers avenues to engage in necessary inquiry about how our lives are shaped by the ubiquity of technology, especially how it mediates our connections and relationships from micro to macro levels, interrupting, controlling, and constraining what information reaches us by distracting or redirecting our attention while normalizing the capitalization of our gaze.
Technology as spectacle is increasingly central to curriculum and pedagogy by replacing and bypassing libraries, changing the ways students research and write, adding technology-based outcomes and standards to programs of study, and filling classrooms with expensive equipment that must be integrated into pedagogy. But how might technology’s pedagogic value be extended beyond content sharing and mediating students’ relationships with information? Students in technological societies implicitly recognize progress narratives as consumers of media devices. In chapter seven, Brad Porfilio and Michael Watz take on the place of progress and critical history in unpacking the progress narratives of industrialization, particularly how such stories operate to construct non-white others, concurrently suppressing and concealing inequity and injustice while celebrating technological advancement.
They begin with a consideration of world and state fairs to explore the naturalness of progress narratives that employ industrialization as evidence of the superiority of white Euro-American culture. Such fairs render an image of industrial progress and commercial output as natural material manifestations of human desire that ignores and erases the presence of underclasses and non-white others in the process of rendering a fantasy encounter with a promising present and glorious future. Porfilio and Watz argue that teachers and students need to take advantage of critical history opportunities to develop skills, values, and dispositions that contribute to the critical literacies necessary to redefine and reimagine themselves and their communities. In social studies and history education this means sharing the tools and understandings that allow them to unpack ‘progress’ to appreciate the absence and ignorance of other narratives not present in the narrative they know (den Heyer & Abbott, 2011).
dentify key zones of resistance in the American context that are extendable to other domains. Standardized exams and neo-liberal competitiveness policies tied up in programs like No Child Left Behind and Race to the Top deny social studies pedagogic time and resources, as well as critical literacy, in favor of functional literacy and numeracy. Further conservative pedagogic practices in social studies tend to render history as a stream of information celebrating the progress narrative and its ethno-racial and gender-limited gaze, which results in social studies and history classes being perceived as dull, resolved, uncontested and meaningless.
Their critical history of fairs and sporting events as spectacle is insightful, as they draw on Debord, neo-Marxian analysis, and critical race and gender theories. They argue that the bombardment of the working class with spectacle after spectacle is intended to stupefy and limit the scope of participatory citizenship to marketplace decisions. The authors offer insight into large-scale sporting events, gender-coded as male, such as the Olympics, that follow the market logics of competition and superiority tied to tremendous capital power. This capital is employed to overcome and suppress the interests of marginalized communities and transform cityscapes and landscapes by displacing the poor and others who have limited political and economic power.
Sporting events, though, are only one form of spectacle taken up in their chapter.
Political spectacle, too, warrants attention as a rich site for the application of critical literacies by students and teachers. Here, readers encounter an unpacking of fearmongering as a national, political and economic discourse, the normalization of the erosion of privacy and other sublime and overt policy actions, all complex and confusing, and all conveniently distilled down for the stupefied consumer by media outlets driven by advertising and powerful interests. Unquestionably, Debord’s spectacle offers an alternative lens and playful manner through which students and teachers can critically encounter, understand, and engage with corporate power. Fundamentally, the playfulness of constructed situations, the dérive, and the détournement offer avenues to humanize communities and address injustices, and are potentially appealing in social studies classrooms because they seem to lack the overtly anarchistic edge of other radical pedagogies. But, in the light of the Occupy movement’s moment in the sun, its détournement of disruption and parody, interrupting neo-liberal logics, fell victim to the spectacle itself. Its transformative power initially exploited technology to humanize the movement, but was too static to sustain momentum. The ubiquity of media avenues for the Occupy movement to reach their audience operated in tension with the deliverablesbased expectations of a consumer audience. Occupy’s disruption served as a distraction rather than an interruption of the ambiance of the public space. In some respects, the message acted to reinforce the spectacle and diminish individual and community agency.
The challenge that critical social studies pedagogy comes up against with students is not only continuing to hold their attention, but in viewing and participating in disruptions of the spectacle, youth need to perceive that change is taking place and that somehow their participation contributes to change. While constructed situations like the Occupy movement may wake them up to possibilities, an absence of perceived transformation and agency risks alienating youth from commitments to critical engagement. When media coverage whithers and the détournement is no longer trending, students’, teachers’, and the community-at-large lose interest.
In chapter 8, The Long Emergency, David Hursh writes that the dominant approach to social studies pedagogy in the United States is to offer a myopic and exceptionalist vision of American society as the best of all worlds and the rightful terminus of the Western telos. He argues that social studies must be an interdisciplinary venue where students take on the essential question of our time: “How are we to create a world that is environmentally and economically sustainable?” (p. 139). The structure of the question opens curricular opportunities for students and teachers to engage in environmental and social justice oriented citizenship that impacts both themselves and their communities, by engaging a question worthy of resolution through purposeful transformative pedagogies (den Heyer, 2009; Henderson & Gornik, 2007; Westheimer & Kahne, 2004). As a central question around which teachers can build their pedagogies, students are positioned as agents capable of sharing in the resolution of the challenges rather than being, largely, receivers of others’ wisdom.
We must include children in resolving the long emergency because their future is at stake. Collectively, the challenges are deep-rooted in the physical, temporal and ideological realms of the Western episteme, and solutions, even if they come soon, are too late to prevent damage (Hursh, 2010; Smith, 2006). Hursh notes the lack of political will to make schools into sites of research, imagination, and action for change, in an education system where neo-liberalism is ubiquitous, unacknowledged and uninterrogated. The notion that economic choice is the key means of exercising one’s democratic franchise has permeated the language of schooling, government policy, and public discourse to the extent that students, teachers, and the public have accepted the atomism of neo-liberal subjectivity as normal.
In chapter 9, William Aramline builds on this by arguing that schools must offer opportunities for horizontal democracy where students can imagine themselves as engaged agents. This means that students must develop intellectual capacities to understand the contextual complexities necessary for purposeful participation in the polity. Armaline, like Hursh, argues that students need an appreciation of the complexity of the challenges they face as members of communities, but he shifts the centrality of social studies inquiry to human rights rather than the environmental and economic foci of the previous chapter. Like Hursh, Armaline’s approach to social studies is a form of pedagogic détournement in the sense that students and teachers extend the parameters for decision-making beyond the mundane choices normally offered to students, negotiating with the curriculum rather than consuming it.
In fostering students’ intellectual and democratic capacities, Armaline envisions schools as preparing students to understand and appreciate the complexity of their political, social, geographic, historic, and economic contexts. This vision is one that is intended to undermine the hidden curricular notion that schools are there to train a workforce and sustain status quo inequalities (Hyslop-Margison & Sears, 2006).
Aramline draws on Joel Spring’s advocacy for education as a human right as well as a human rights discourse, emphasizing an emancipatory education to counter sublime and ignored narratives and assumptions that maintain the status quo.
In chapter 10, Wayne Au examines critical reflective practices in social studies education. His essay speaks to the potential of social studies praxis in accessing the ameliorative capacities of education to address social, political and economic inequalities and injustices. He begins with an accessible introduction to a dialectic theory of consciousness and its relationship to praxis and the generation of knowledge. Drawing on the work of a number of theorists, he argues that appreciating the dialectic tension of consciousness in relation to the material world is necessary to understand human capacities to both change the material world and to adapt to it. Au, drawing on Freire, points out that praxis emerges from the tension of being and consciousness that is inseparable from the world. Further, drawing on Vygotsky, being cannot be sustained as a solitary act; it is relational, acting as a foundation for language, thinking, and community, and praxis is the conscious human capacity to adapt, reflect and transform material reality so as to reveal “how external relations impinge upon our praxis – our thinking and acting – and considering whether such relations contribute to or liberate us from forms of oppression” (p. 169). Critical reflection must be introspective and retrospective, seeking to ensure that praxis does not result in the reproduction of oppressive conditions. The point he is making is an important one – students and teachers must appreciate that they have the capacity to think and act in ways that challenge the assumed order of things.
The collection of essays concludes with a brief chapter by Stephen Fleury where he offers his own critique of the essays in this book and speaks to the need for critical and radical pedagogies for social studies, as well as for the larger educational project. Social studies, it seems, is bereft of theory and lacks a coherent social vision and ethic. This is consistent with the critiques of social studies to which we are all familiar – it is a subject area where engagements with the social world seldom engage, account for, or interrogate the epistemological frame through which knowledge and understanding of the world are encountered and developed. The stories shared with students are linear, national egomassaging, and reflective only to the extent that they are shared with students as enlightened and redemptive narratives already resolved by scholars and intellectuals for students to consume.
Fleury reinforces a point that permeates the text and the title of this collection, that approaches that critically challenge status quo practices are inevitably considered subversive. Social studies has long had an identity crisis that reinforces it listlessness (Clark, 2004; Nelson, 2001). The authors of essays in this collection still see possibility and promise in social studies as a subject area that can be a site of transformative engagement and that can interrupt conventional and conservative knowledge acquisition.
Appreciating how neoliberal thinking permeates this review
A book review inescapably functions to assess the potential value of a piece of writing for the field. While this collection is interesting, theory rich, and a challenging read, as a reviewer, I struggle with trying to figure out who the audience might be for this book. Some content is approachable for undergraduates in teacher education programs, but many essays require readers to have a good handle on theory and a solid grasp of the nature and evolution of social studies curriculum and pedagogy. While I read these essays as a researcher and teacher educator, I also tried reading them as a classroom teacher looking for the kind of pedagogic deliverables these essays are trying to counter. For better or worse, there are few deliverables that yield discreet and deployable pedagogies.
I did find congruencies with my thinking, theorizing, and teacher education practice, but my experience with the latter tells me, anecdotally, that pre-service and practicing teachers will be the most strident resistors of the kinds of critical engagements taken up in this book.
The knowledge-as-commodity model is a feature of Western (and Western-style) education that is very difficult to disrupt, a point made by directly and indirectly in throughout this book. Further, the logics that reinforce status quo economic, social and political divisions and maintain conditions of injustice are ontologically well entrenched in the Western episteme. Essay authors know that what they are offering is a hard sell, and that transforming practice is daunting, feels risky, and, potentially, compromises the middle-class safety.
As a Canadian, I found these essays had an especially American flavour, particularly in relation to national education policy and standards, but also in relation to the nature of the narratives in which critical and radical pedagogies were grounded. A certain amount of intellectual work is involved in identifying and articulating analogous narratives in politically, socially, economically, and geospatially in Canada. This, too, might make it a more difficult sale in Canada.
References
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[IF]Transformação da teoria crítica – BORGUES (FU)
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En el siglo pasado hubo en el norte de Europa regímenes políticos nacidos por refinamientos de la inspiración iluminista que lograron una muy satisfactoria distribución del bienestar, que se abstuvieron de las guerras y del fascismo y que bregaron por los derechos humanos en el mundo, y, sin embargo, hoy desandan el camino y tienen populosos partidos xenófobos y reaccionarios. En la inmensa Rusia, hubo una sociedad nacida de una utopía postiluminista que logró eliminar el hambre y el analfabetismo de sus incontables millones, cambió el arado de madera por las centrales nucleares y ayudó a la descolonización del África, pero poco después produjo campos para disidentes, una casta de burócratas con discursos dogmáticos y terminó implosionando ante los ojos incrédulos del mundo. Por su parte, en decenas de países hay millones de ciudadanos explotados y humillados generación tras generación que apoyan entusiastamente a los propios partidos y regímenes que los han colocado sistemáticamente en esa situación.
¿Podría haber tarea más urgente que la renovación de la teoría crítica de la sociedad?
Transformação da teoria crítica de Bento Borges aborda el proceso intelectual de búsquedas y transformaciones protagonizado por Jürgen Habermas desde la teoría crítica como crítica de las ideologías hacia una pragmática universal con argumentos contrafácticos como fundamento para una teoría de lo social que pretende seguir siendo crítica y mantener sus aspiraciones de incidencia en la transformación de las sociedades contemporáneas.
Como es obvio, Borges se impuso un acotamiento temporal bien preciso para su trabajo: llegar hasta los escritos preparatorios de la teoría de la acción comunicativa, pero no aventurarse en los meandros de esa obra gigantesca, lo cual no solo se justifica por razones prácticas si no también porque allí se cierra una etapa en la evolución intelectual de Habermas. La investigación, realizada con encomiable rigor y afán de claridad, virtudes no siempre presentes en escritos de teoría social y filosofía, comienza tratando de captar el sentido fundamental de la idea crítica desde Kant y Hegel hasta las fuentes del marxismo, el propio Marx y luego dos orientaciones básicas de la Teoría Crítica de la primera generación: Horkheimer y Marcuse. Recuerda que el sentido de la “crítica” en la Escuela de Frankfurt pretende combinar la crítica dialéctica materialista de Marx con la motivación moral del criticismo kantiano y el sentido trascendental de este último en la autoevaluación de las propias capacidades racionales humanas. Ese capítulo es especialmente importante porque conecta desde el comienzo la teoría crítica con una sensibilidad ética y social que ha sido fundamental en la tradición filosófica. Es un capítulo donde quedan insinuadas algunas tensiones que han problematizado a la Teoría Crítica y al pensamiento de cambio desde entonces, a saber: tensión entre la urgencia del cambio y la preservación de los valores liberales, entre intereses de clase e intereses universales, entre teoría y práctica, entre intelectuales y militantes, entre lo material y lo moral, entre la eficiencia y la justicia; entre, al fin: la ideología, la ciencia y la filosofía.
Analiza luego el sentido de la crítica en la primera etapa de la obra de Habermas: la crítica del positivismo, la tesis de los intereses del conocimiento, la revalorización del psicoanálisis como modelo de disciplina autorreflexiva y el análisis habermasiano del capitalismo tardío que en ese momento recién comenzaba a despuntar. Precisamente el contexto histórico donde los reclamos ya no apuntan solo a la situación de explotación laboral sino también a los problemas de género, del medio ambiente, de la paz, etc., es el correlato del desplazamiento del eje en el pensamiento social de Habermas desde la centralidad de la categoría del trabajo hacia la centralidad de la acción comunicativa, que marcará su alejamiento de la matriz social marxista.
En suma, la atinada estrategia general de la investigación de Bento Borges consiste en mostrar que había toda una serie de nuevos sentidos y temas de la crítica social y cultural que empezaban a reclamar un punto de convergencia, un eje de sentido. Si bien esta primera parte del libro se completa con un seguimiento de la exploración que Habermas realiza sobre teoría de la argumentación, desde el capítulo 4, el libro nos muestra que Habermas iba a encontrar ese punto de apoyo para su teoría crítica renovada en sus estudios sobre pragmática universal y luego (capítulo 5) especialmente en el argumento contrafáctico. Analiza la construcción de la pragmática universal de Habermas como el resultado de un largo periplo por la filosofía analítica del lenguaje que comienza en las Investigaciones de Wittgenstein, de donde toma especialmente la idea de juegos de lenguaje, sigue con la teoría chomskyana de la competencia comunicativa y finaliza en la teoría de los performativos de los actos de habla de Austin y Searle. Considera la teoría de la competencia lingüística de Chomsky como sistema de reglas basadas en la estructura innata del lenguaje humano, pero muestra que Habermas va a cambiar el enfoque monológico de Chomsky por un enfoque de raíz wittgensteiniano que hace hincapié en la intersubjetividad básica del lenguaje y de la comunicación. Como dice Bento Borges: “A mútua reflexividade das expectativas é a condição para que os dois parceiros possam se ‘encontrar’ na mesma expectativa colocada objetivamente com a regra, ‘partilhar’ seu significado simbólico” (p. 108).
Sin embargo, es la teoría de los actos de habla de Austin la que va a marcar el pasaje de una teoría de la competencia lingüística a una teoría de la competencia comunicativa y con ello el pasaje de la filosofía de la conciencia a un paradigma de la comunicación. Las proferencias que son el objeto de Austin tienen “além do significado de sua parte proposicional, um significado que se liga à situação de fala como tal” (p. 118). Y, así como la competencia linguística remitía a reglas abstractas, la competencia comunicativa captada en la Pragmática Universal (PU) remite para una “situación ideal de habla”. Los Universales Pragmáticos (UP) son para Habermas condición de posibilidad del habla y de la acción comunicativa con lo cual comienza a esbozar su programa de “desenvolver uma teoria da competência comunicativa em termos de uma pragmática universal” (p. 121).
En esta época Habermas intentó varias clasificaciones de los actos de habla acercándose mucho a la clasificación de Searle en actos: comunicativos, constatativos, representativos y regulativos. Los PU son estructuras universales de la situación de habla que operan como condición de posibilidad de los diversos actos de habla. En artículos de 1970 y 1971 deja claro que esos UP implican también ciertas distinciones conceptuales (o categoriales) y ciertas condiciones de simetría sin las cuales no son posibles. Esas condiciones caracterizan idealmente a la intersubjetividad pura pero de algún modo están presupuestas aunque mínimamente en todo acto comunicativo, sin esa presuposición no es posible la comunicación. Con ello queda delineada la idea de la “situación ideal de habla”. Precisamente la SIH ya está presupuesta en los universales pragmáticos que son condición de posibilidad del habla y de la acción comunicativa. Dice Bento Borges: “A condição básica inicial para a comunicação implica numa simetria ligada aos atos comunicativos: todos os falantes-ouvintes potenciais devem ter as mesmas chances de começar, continuar e retomar discursos, através da fala e da contrafala, da pergunta e da resposta, da réplica, etc.” (p. 124). Quien actúa comunicativamente tiene necesidad de asumir ciertos presupuestos contrafácticos sobre significados, sobre pretensiones de validez, sobre la capacidad de sus interlocutores, etc. Las condiciones del habla empírica distan muchas veces de la SIH pero “esa suposición, aún cuando se haga contrafácticamente, es una ficción operante en el proceso de comunicación” (Habermas, 1989, p.155).
Para Habermas la SIH tiene un status semitrascendental, status que por cierto ha sido muy discutido durante los 90, pero que él creyó ver en la medida en que: por un lado, la SIH ya está presupuesta en toda comunicación real y efectiva y, por otro, que esa SIH, como ideal, rebasa las comunicaciones cotidianas en tanto ellas siempre encierran un cierto monto de asimetría, de coerción, de ilusión, etc. Precisamente la posible confrontación comparativa entre la SIH y las condiciones empíricas de la interacción y la comunicación reales es la que posibilita la función crítica de la SIH.
Habermas insiste en que la SIH no equivale a un principio regulativo kantiano ni a un concepto existente en el sentido de Hegel, pues si bien no se ha concretado históricamene tampoco es un mero ideal al modo de la metafísica clásica, sino algo ya implícito en las estructuras básicas que posibilitan nuestra comunicación y que de alguna manera proporcionan una imagen de la vida buena. Una “forma de vida inspirada na antecipação formal do diálogo idealizado” (p. 136), con lo cual pretende estar alcanzando un fundamento para la teoría crítica que, como él ansiaba, no sea ni contextual ni relativista.
Borges señala con acierto dos problemas pendientes en este tema de la SIH y su rol crítico-transformador. Por un lado, que no es claro de qué modo tal anticipación podría favorecer nuestro acercamiento hacia una forma mejor de vida. Y, por otro lado, que “é obscuro o status da antecipação da situação ideal de fala” (p. 136) y dedicará el resto del capítulo 5 a una investigación sobre este último aspecto a partir de los enunciados contrafácticos. Para ello, revisa extensamente – mucho más allá de Habermas por cierto – el tratamiento de los mismos especialmente en la tradición de la filosofía analítica desde Toulmin y Quine, pasando por Bunge, David Lewis, Jaegwon Kim, Nicholas Rescher, hasta los artículos canónicos de Nelson Goodman, Wilfred Sellars, Robert Stalnacker, Ernest Nagel y Saul Kripke. El centro de esa ardua exploración es la interpretación pragmática de los argumentos contrafácticos tal como sobretodo aparece en la polémica entre N. Goodman y W. Sellars. Como es sabido, se trata de un problema arduo que no está para nada resuelto. La exploración de Bento Borges es por demás seria y meritoria aunque quizás se le puede reclamar la ausencia de una síntesis final del capítulo que concretara los resultados obtenidos y su posible conexión con la propuesta habermasiana.
En términos generales un argumento contrafáctico es un razonamiento que pretende sacar conclusiones a partir de una premisa condicional que sabemos que no es verdadera (o de la negación de una premisa verdadera). En este sentido, para Habermas la SIH opera como una suposición contrafáctica con relación a la cual se puede evaluar la racionalidad comunicativa de los consensos, de las acciones cooperativas, e incluso de las instituciones y normas. De modo que provee de un criterio de evaluación crítico que apunta a un mejoramiento de las condiciones de interacción basado no en una mera norma abstracta sino en las potencialidades racionales implícitas en la estructura de nuestra intersubjetividad tal como esta se muestra en las estructuras básicas de nuestra competencia comunicativa. Como Habermas lo explicitará más adelante, consigue con ello esbozar los lineamientos para un pensamiento postmetafísico en la medida en que encuentra una pauta normativa capaz de guiar nuestras evaluaciones críticas que no es una hipóstasis metafísica ni un mero consenso contextual. Una pauta a la altura de una teoría crítica que pretenda superar el contextualismo relativista sin recaer en la metafísica clásica.
En las conclusiones, Bento Borges se asoma a las relaciones de los contrafactuales con el pensamiento trascendental y a la estructura lógica del pensamiento contrafactual. Ambos temas han tenido desde entonces desarrollos técnicos interesantes, por ejemplo en relación a los “mundos posibles” y la lógica modal; más allá de ellos, creo, con el autor, que la insistencia habermasiana en la SIH y en los contrafactuales apunta a explicar un potencial de racionalidad que la evolución sociocultural va generando y que explica la posibilidad de crítica y de proyecto más allá de las limitaciones reales o de estructuras con claros déficits de racionalidad, de justicia y de diálogo. Un anuncio realmente bienvenido en un ambiente sociocultural – el de los 80 y 90 – invadido por el pensamiento único y coartado por la tesis postmoderna del “fin de las utopías”. En esa insistencia de algún modo se sintetiza el propósito habermasiano de refundamentar una normatividad que apoye los proyectos de cambio y una epistemología que refunde esa propia teoría.
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Ricardo Joaquín Navia – Universidad de la República. Montevideo, Uruguay. E-mail: naviamar@adinet.com.uy
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