Tiempos críticos: historia, revolución y temporalidad en el mundo iberoamericano: sieglos XVIII y XIX | Fabio Wasserman

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Fabi Wasserman | Foto: Rodrigo Lorett/Perfil

Se durante boa parte de sua história o tempo foi considerado apenas como uma das premissas implícitas ao ofício da historiografia, capaz de evidenciar por si próprio suas formas de recortá-lo, periodizá-lo e datá- -lo, nesta última metade de século a situação é outra. Uma breve vista aos índices das principais revistas acadêmicas dedicadas à teoria e prática historiográfica revela que nas últimas décadas a problemática das temporalidades tem ganhado espaço cada vez mais relevante nas discussões sobre a história e suas formas de escrevê-la. Vivemos uma crise temporal.3

Evidencia essa tendência não só o fator quantitativo, mas também o qualitativo, expresso nos debates que vêm sendo travados, em escala global, acerca das formas de conceituar e abordar o tempo como elemento central para qualquer narrativa histórica. Mesmo com o recente crescimento no número de estudos que elegem a temporalidade enquanto objeto de análise, ainda não se foi capaz de sanar a escassez de diálogo que afasta dois tipos de história: uma mais voltada à investigação dos eventos e das estruturas sociais, que por vezes considera o tempo simplesmente como dado ou data; e outra, intelectual, que encara a temporalidade como problemática final de sua investigação (por vezes desencarnada). Encontrar meios de aproximação e cruzamento entre as duas tem sido um dos desafios de nossa geração. Leia Mais

El poder de los comienzos: ensayo sobre la autoridad – D’ALLONNES (HH)

D’ALLONNES, Myriam Revault. El poder de los comienzos: ensayo sobre la autoridad. Buenos Aires: Amorrortu, 2008, 256 p. Resenha de: BATALHONE JÚNIOR, Vitor Claret. O poder dos começos: uma reflexão sobre a autoridade. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 7, p. 331-337, nov./dez. 2011.

O poder dos começos 332 Em Que é autoridade, Hannah Arendt estabeleceu as características fundamentais do conceito de autoridade. Arendt inicia seu ensaio advertindo que a questão proposta no título deveria ser outra: não o que é autoridade, mas o que foi a autoridade. Segundo Arendt, a autoridade haveria desaparecido do mundo moderno em função de uma crise constante. Entretanto, mesmo diante dessa crise, a autora formulou uma definição do conceito de autoridade que pudesse ser compreendido “a-historicamente”, ou seja, apesar de tal conceito ter sido pensado sobre uma base de experiências históricas determinadas, ele possuiria um conteúdo, uma natureza e uma função definidos, passíveis de serem compreendidos ainda hoje mesmo apesar do suposto fenômeno de desaparecimento da autoridade do mundo moderno.

Segundo a autora, a crise da autoridade seria originariamente política, tendo sido os movimentos políticos e as formas de governo totalitárias surgidas durante a primeira metade do século XX, antes sintoma de nossa perda da autoridade do que resultado das ações de governos totalitários. A ruína “mais ou menos geral e mais ou menos dramática de todas as autoridades tradicionais” foi o grande substrato possibilitador da ocorrência generalizada de governos totalitários a partir do início do século XX. Entretanto, a crise da autoridade não permaneceu restrita à esfera dos fenômenos políticos, tendo sido justamente o “sintoma mais significativo da crise, a indicar sua profundeza e seriedade”, sua difusão “para áreas pré-políticas tais como a criação dos filhos e a educação”, nas quais a autoridade sempre fora compreendida como necessária e natural.

Era através da necessidade política básica de dar continuidade a uma civilização estabelecida, “que somente pode ser garantida se os que são recém-chegados por nascimento forem guiados através de um mundo preestabelecido no qual nasceram como estrangeiros”, que o fenômeno e o conceito da autoridade adquiriam suas forças e sua capacidade de estruturação de um mundo comum (ARENDT 2007, p. 128).

Dessa forma, a filósofa Myriam d’Allonnes partiu das reflexões sugeridas por Arendt para compor seu instigante livro intitulado O poder dos começos: ensaio sobre a autoridade. Porém é importante ressaltar que, se Arendt preocupou- -se com o conceito de autoridade segundo uma perspectiva na qual o conteúdo do conceito recebeu atenção privilegiada, tratando das experiências históricas grega e romana, d’Allonnes ampliou sua reflexão agregando também uma abordagem formal do conceito, a qual foi proposta pelo filósofo Alexandre Kojève.

Em seu ensaio filosófico intitulado “A noção da autoridade”, Kojève, inspirado na filosofia de Hegel, partiu de suas reflexões acerca do direito e da ideia da justiça para estabelecer um estudo formal do fenômeno da autoridade, determinado alguns tipos e características essenciais. Para o autor, o estudo detalhado e aprofundado da autoridade seria um primeiro passo indispensável para a compreensão dos fenômenos do Estado, principalmente para que fossem evitadas as confusões entre as noções de poder e de autoridade.

Assim como Arendt, Kojève também recorreu a uma compreensão do passado clássico greco-romano e à fenomenologia para estabelecer o que seria a autoridade. Em relação ao que foi a autoridade no período clássico, o autor colocou que a formalização das práticas autoritárias do âmbito doméstico grego foi elaborada primeiramente na filosofia de Platão e de Aristóteles, argumentando, entretanto, que o conceito da autoridade foi formulado de maneira sistematizada apenas com o advento da fundação de Roma e com o legado do direito romano.

A grande diferença entre os estudos de Arendt e o de Kojève é que enquanto aquela procedeu a um estudo mais ligado ao conteúdo conceitual, às experiências históricas que conformaram o conceito, esse, não negligenciando tais características, esteve mais concernido com a estrutura formal do fenômeno da autoridade. A partir da junção desses dois enfoques distintos, porém não excludentes, partiu Myriam d’Allonnes ao propor uma reflexão mais aprofundada sobre a autoridade. Como esclarece a autora, sendo a autoridade um fenômeno essencialmente social e histórico, “universal quanto a seu conceito e polimorfa em relação a suas figuras”, demanda para sua ótima compreensão uma análise tanto formal quanto de conteúdo conceitual (D’ALLONNES 2008, p. 26).

Segundo a autora, é comum que se diga, desde as esferas acadêmica e política até às esferas da educação e das relações familiares, que estamos vivendo uma crise da autoridade. Porém, a crença na perda de qualquer tipo de autoridade através dos tempos considerados modernos seria antes de tudo, resultado de uma má compreensão sobre o fenômeno da autoridade, que teria como causa fundamental a alteração que temos experimentado em nossa relação com o tempo, uma vez que a autoridade tem a ver essencialmente com o tempo. A autora argumenta que ao entrarmos na modernidade nossas formas de se relacionar com a dimensão temporal se alteraram profundamente, de maneira que se alteraram também nossas formas de compreender e de experimentar a autoridade. Para d’Allonnes, as sociedades modernas, especificamente as sociedades democráticas e liberais, são construídas a partir do pressuposto básico da autonomia do indivíduo, fato que estaria estritamente vinculado à experiência do rompimento com as formas antigas de autoridade e tradição. Dessa forma, a crise da autoridade estaria vinculada essencialmente à ruptura da tradição e a uma crise mais profunda das formas modernas de experiência temporal: O movimento de emancipação crítica que caracteriza a modernidade tem feito desaparecer toda referência ao terceiro? A provada perda dos modos tradicionais de gerar sentido produziu tão somente vazio e ausência de sentido? […] Não reconhece a igualdade alguma dissimetria? Nestas condições, onde radica a autoridade, se a sociedade deu a si mesma o princípio constitutivo de sua ordem (D’ALLONNES 2008, p. 13-14)? Diante de tais questões, a autora nos propôs algumas considerações bastante significativas. A primeira consideração proposta por d’Allonnes é que a autoridade seria intrinsecamente vinculada ao tempo, não tanto porque o conceito e o fenômeno poderiam alterar-se conforme condições históricas e sociais, mas antes porque a autoridade existe num mundo cuja estrutura é essencialmente temporal. Assim como “o espaço é a matriz do poder”, “o tempo é a matriz da autoridade”. O caráter temporal da autoridade estaria vinculado à sua essência derivativa e seria uma dimensão inevitável de todo laço social, constituindo o que a autora denominou como a duração pública, ou seja, aquilo capaz de manter a duração de um mundo comum. Se o espaço público possibilita a convivência com nossos contemporâneos, a força de ligação da autoridade, assim como da tradição, permitiria que estabelecêssemos comunhão com nossos antecessores e sucessores, de forma que a duração de um mundo comum possibilitaria uma espécie de contemporaneidade em relação àqueles que nos antecederam ou que podem nos suceder. Segundo d’Allonnes, o que entrou em falência não foi a autoridade, mas as cadeias tradicionais de autorização: o fundamento da autoridade teria se alterado.

O que a autora propõe é que a autoridade está vinculada essencialmente às formas de temporalidade: se é o tempo que “tem força de autoridade”, se a autoridade apenas existe e é exercida quando as ações humanas estão inscritas num devir histórico, a alegada crise da autoridade estaria relacionada antes de tudo a uma crise das formas tradicionais de experimentação do tempo. Na modernidade, a ruptura com a tradição, ou antes, o desejo de ruptura, conduziu- -nos a uma perspectiva segundo a qual a orientação das ações humanas e os vínculos sociais começaram a emanar de projetos de futuro. Assim, a autora nos questiona se “o desmoronamento contemporâneo das perspectivas ligadas a essa autoridade do futuro não contribuiu para levar ao seu paroxismo a crise da autoridade”. Para a autora, a questão da autoridade deve ser colocada segundo a perspectiva de seu poder instituinte e de sua estrutura temporal (D’ALLONNES 2008, p. 15-18; 75).

Em relação à sensação de perda de sentido experimentada no mundo moderno, d’Allonnes argumentou que tal fenômeno não significa, entretanto, a perda efetiva de sentido ou um vazio de experiências, mas a perda de uma unidade de sentido existencial comungada socialmente. Segundo a autora, já que não mais emanam orientações do passado via tradição, o homem moderno estaria fadado a criar sentido para seu próprio mundo, vivendo sob a condição de uma pluralidade de sentidos existenciais e de autoridades capazes de fundamentar as ações humanas.

Em relação à característica proposta por Arendt acerca da estrutura hierárquica essencial a toda relação autoritária, hierarquia que seria justamente o elemento comum entre quem exerce autoridade e aqueles que a sofrem, d’Allonnes argumentou que não se trataria de uma relação hierárquica estrita, mas antes, de uma dissimetria aceita e justificada por todos os elementos implicados nessa relação.

Justamente por não implicar uma relação do tipo mando/obediência em sentido estrito é que a autoridade pode ser compreendida como algo que não anula a liberdade daqueles que a sofrem, mas antes, implica uma restrição da liberdade de ação. A autoridade é reconhecida e legitimada “não porque aplicam aos vivos um colar de ferro do que foi e tem que seguir sendo imutável”, mas porque ela aumenta a força das ações e confirma as experiências dos indivíduos.

“A autoridade não ordena, aconselha”, é “um conselho que obriga sem coagir”, ou ainda, na célebre expressão de Mommsen, a autoridade é “menos que uma ordem e mais que um conselho” (D’ALLONNES 2008, p. 28-29; 66).

Segundo d’Allonnes, esse “aumento”, tão característico do fenômeno da autoridade que está presente inclusive na etimologia latina da palavra – auctoritas, augere –, é em realidade um excesso de significação inerente a todo tipo de ação humana, mas que, nos atos e eventos que fundam uma estrutura de autoridade, sobrevive ao próprio ato de fundação e possibilita uma espécie de continuidade duradoura para a produção de novos significados relacionados ao ato de fundação. Por isso é necessário ter em consideração outra distinção proposta pela autora. Segundo d’Allonnes, “assim como a autoridade não se confunde com o poder, tampouco se reduz à tradição entendida como depósito sedimentado”, pois a essa espécie de “tradição sedimentada” não corresponderia necessariamente o referido excesso de significação do ato fundador, o qual, antes de sedimentar significações, possibilita a produção continuada de uma cadeia de significados. A fundação implica no reconhecimento de uma anterioridade de sentido, ou seja, em um excesso de significação oriundo do passado em relação aos eventos de um determinado presente. E tal excesso não somente possibilita a continuidade de uma cadeia de ações e experiências, como também determina em grande parte as significações criadas a partir de um ato fundador (D’ALLONNES 2008, p. 33-34; 95; 248).

Tal excesso de sentido das estruturas de autoridade estaria vinculado de maneira essencial ao poder instituinte dos atos ou eventos fundadores, reforçando a experiência do continuum temporal. “A força da ligação da autoridade está intimamente vinculada, portanto, a esse interesse na durabilidade por meio da instituição”. Portanto, o poder instituinte dos atos e eventos fundadores só é possível graças ao referido excesso de sentido presente no momento fundador.

O potencial instituinte da fundação criaria dessa forma uma estabilidade de sentidos capaz de manter um mundo de significações comuns, de tal maneira que se tornaria possível a experiência de mundos também comuns entre sujeitos do passado, do presente e do futuro. Mundo compartilhado o qual a autora define como um inter-esse, como algo referente a uma estrutura intersubjetiva.

A instituição de um mundo comum possibilitaria a reprodutibilidade estrutural do mundo de sentidos compartilhado assim como do fenômeno da autoridade.

Considerando o referido poder instituinte da fundação, que possibilita o surgimento do fenômeno da autoridade, Myriam d’Allonnnes sugere ainda que o reconhecimento inerente a toda relação de autoridade – pressuposto essencial, uma vez que não existe autoridade sem reconhecimento –, implica mútua e necessariamente, a noção de legitimidade. “A autorização, considerada sobre o eixo da temporalidade, e sem importar em que direção [seja em relação à dimensão do passado, seja em relação à do futuro], é uma busca de justificação”.

E é justamente a partir de tais reflexões que a autora afirma existirem “três elementos essenciais que excedem a relação mando / obediência” e que caracterizam o fenômeno da autoridade, a saber: o reconhecimento, a legitimidade, a precedência (D’ALLONNES 2008, p. 69-70).

Por fim, devemos ter em mente que a autoridade está estritamente vinculada a uma temporalidade divergente daquela na qual estariam situados os sujeitos que a exercem. É dentro desta temporalidade outra que um sujeito ou grupo de sujeitos pôde estabelecer uma fundação qualquer. Justamente pelo fato de que toda autoridade implica uma dimensão temporal outra que não necessariamente aquela dos sujeitos que a exercem é que tal fenômeno implica de forma necessária uma exterioridade, uma alteridade, ou seja, uma dimensão transcendente que lhe assegura continuidade derivativa ao longo do tempo. Assim, a autoridade pode ser considerada como sendo um “sempre já aí”, “uma obrigação herdada e um recurso para a ação que se inicia”, pois apenas se aumenta o que já existe (D’ALLONNES 2008, p. 72-73; 190).

Entretanto, isto não elimina o fato de que possa haver autoridades cuja fonte emanadora esteja relacionada às dimensões temporais do presente ou do futuro. Tais modulações temporais apenas alterariam a forma como a autoridade adquire seu lastro. Segundo François Hartog, esse processo de instituição de autoridades ligadas ao futuro – a uma dimensão do “não ainda” em contraposição ao “já aí” do passado e da tradição –, seria essencialmente constituinte das formas como a civilização ocidental moderna lidou com o grande processo de laicização operado em um primeiro momento a partir da Europa.

Tal autoridade do futuro estaria relacionada à criação dos inúmeros projetos de futuro elaborados pelas filosofias da história a partir do século XVIII e que ganharam força ao longo do século XIX: as utopias modernas do progresso. Já em relação ao tipo de autoridade lastreado no presente, Hartog escreveu que essa é a forma típica da espécie de temporalidade na qual a tensão fundadora entre um “não ainda” futuro e um “já aí” pretérito seria permanente (HARTOG 2007, p. 29-33). Nessa situação, a autoridade estaria ora baseada nos elementos do passado, ora nos nas projeções de futuro, capazes de estabelecerem ligações significativas em relação a uma determinada realidade do presente. Por isso existiria nas sociedades contemporâneas, tal qual afirmou d’Allonnes, um grande espaço entre o que as sociedades postulam e reclamam e aquilo que elas realmente são ou fazem.

Destarte, segundo Myriam d’Allonnes, toda autoridade – considerando que toda autoridade é um fenômeno histórico e social por natureza – exige um ato ou evento fundador cuja instauração está situada em uma dimensão temporal transcendente ao próprio fenômeno de seu exercício. Assim, a fundação seria essencialmente marcada por um excesso de sentido que ultrapassaria o momento específico da fundação e emanaria tal potencial de significação em relação aos sujeitos pertencentes à estrutura do fenômeno autoritário. Tal excesso de significação, reapropriado, remanejado com liberdade restrita por parte dos elementos pertencentes à cadeia da autoridade, implicaria necessariamente no reconhecimento da autoridade daqueles que a exercem, uma vez que seria através desses indivíduos que o excesso de significação da fundação chegaria aos demais elementos. Enquanto houvesse a possibilidade de existir o reconhecimento da autoridade, a continuidade de um determinado corpo social estaria estabelecida e garantida ao longo de um continuum temporal, pois estariam instituídos os parâmetros de significação segundo os quais o referido corpo social se configurou e se reconfigura continuamente.

Entretanto, o surgimento de novas fundações não estaria eliminado enquanto possibilidade. Uma vez que novas fundações surgem, novos significados e novas estruturas temporais e de autoridade são conformadas, reorganizando o corpo social. Ou, como colocou a autora, “o que é a autoridade senão o poder dos começos, o poder de dar aos que virão depois de nós a capacidade de começar por sua vez? Quem a exerce – mas não a possui – autoriza assim aos seus sucessores a empreender por sua vez algo novo, isto é, imprevisto.

Começar é começar a continuar. Mas continuar é, também, continuar começando” (D’ALLONNES 2008, p. 253). Por aliar as abordagens de Arendt e Kojève e avançar a discussão, creio que Myriam d’Allonnes tornou seu El poder de los comienzos fundamental a todos aqueles que se dedicam a estudar o que é a autoridade, tornando-se consequentemente, uma autoridade sobre o tema.

Referências

ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2007.

KOJÈVE, Alexandre. La notion d’autorité. Paris: Éditions Gallimard, 2004.

HARTOG, François. Ouverture : autorité et temps. In: FOUCAULT, Didier; PAYEN, Pascal (Orgs.). Les autorités : dynamiques et mutations d’une figure de référence à l’Antiquité. Grenoble: Éditions Jérôme Millon, 2007, p. 23-33.

Vitor Claret Batalhone Júnior – Doutorando Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: bitaka@gmail.com Rua Silva Só, 272/402 – Santa Cecília 90610-270 – Porto Alegre – RS Brasil Palavras-chave Autoridade; Temporalidades; Modernidade.

História e Teoria. Historicismo, Modernidade, Temporalidade e Verdade | José Carlos Reis

Nesta obra, José Carlos Reis transparece, com erudição, a importância da filosofia e de suas construções teóricas. Nas páginas finais do último artigo, ele ressalta: “Filosofia e história são atitudes complementares – toda pesquisa filosófica é inseparável da história da filosofia e da história dos homens e toda pesquisa histórica implica uma filosofia, porque o homem interroga o passado para nele encontrar respostas para as questões atuais” (p. 240). O livro é uma junção de ensaios do próprio autor, cada um com uma especificidade singular e, ao mesmo tempo, contínua, linear: todos tratam de “teoria da história”. Valendo-se de uma abordagem dos principais parâmetros contemporâneos do contexto historiográfico, Reis interroga, instiga, mostra caminhos, posicionamentos. Seu poder de síntese é invejável: diz muito em tão pouco. Para quem já estava cansado ou mesmo entediado com as discussões sobre verdade, modelos epistemológicos, historicismo, além das que envolvem concepções de tempo histórico e das oposições entre modernidade e pós-modernidade, o autor demonstra que ainda é possível um pensamento crítico e um esforço reflexivo.

No primeiro capítulo, o autor traz a “história da história”, analisando desde a metafísica até a pós-modernidade. A preocupação dos historiadores com a “humanidade universal” e o “sentido histórico” pautam sua análise. Ele quer discutir a passagem modernidade/pós-modernidade e suas possíveis repercussões na historiografia. Começa com os gregos, que não teriam construído a idéia de “humanidade universal”, tendo sido formulada com os romanos. Com o Cristianismo, a história esteve dominada pela Providência Divina e o futuro dependia da fé. A partir do século XIII ele perde sua força e surge uma outra representação da história: a “modernidade” e sua busca da racionalização.

A modernidade trouxe uma nova consciência do sentido histórico, uma nova representação da temporalidade histórica e, com ela, o mundo se fragmentou em valores distintos. O espírito capitalista (entenda-se burguês) é moderno, desencantado, secularizado, racional, tenso.

No século XVIII retorna a idéia de história universal. Pensa-se em direitos universais. Nesse momento, a modernidade através das filosofias da história recolocaria à história a questão do sentido histórico: é o desenvolvimento do processo de progresso, revolução, utopia; a idéia de história está dominada pelos conceitos de razão, consciência, sujeito, verdade e universal.

No século XIX , a história-conhecimento torna-se científica, o conhecimento histórico aspira a objetividade científica, a verdade. A eficácia da história está em servir ao Estado e às instituições da sociedade burguesa. Nietzsche seria o primeiro a romper com o conhecimento histórico científico e, a partir do século XX, aprofundariam-se as críticas, passando-se a recusar o determinismo, o reducionismo e o destino inescapável. A pós-modernidade concretizou-se no pós-1945, não acreditando na razão, pois os sentidos são multiplicados – o universal se pulveriza, fragmenta-se – e a história global é descartada. Os interesses voltam-se ao pequenos dados, aos indivíduos, o olhar em migalhas opera por fatos, biografias, múltiplas narrações: é a desaceleração da história. O estruturalismo aprofundou a revolução cultural pós-moderna, desconfiando do sujeito, da consciência, da revolução, da razão. Para Reis, estamos vivendo a pós-modernidade. O novo ambiente cultural é complexo e ambíguo: os historiadores pensam em rupturas, fragmentação, individualismos em plena globalização. O conhecimento histórico prioriza a esfera cultural, as idéias, os valores, as representações, linguagens, e a história torna-se ramo da estética, aproximando-se da arte, da literatura, do cinema, da fotografia, da música.

No segundo capítulo, Reis procura fazer um balanço das possíveis perdas e/ou dos possíveis ganhos do percurso da história do “global” às “migalhas”. Para tal, segue os pressupostos de François Dosse, o crítico francês dos Annales que destacou a descontinuidade presente nos “seguidores” dos “pais fundadores”. Para conseguir um balanço entre perdas e ganhos, Reis conceitua história global e história em migalhas. História global teria dois sentidos: “história de tudo” e “história do todo”. O primeiro sentido seria entendido por “tudo é história”, o segundo seria a intenção de apreender o “todo” de uma época. Este último sentido não teve espaço na terceira geração dos Annales. Já as migalhas, podem significar a multiplicação dos interesses e das curiosidades históricas; a fragmentação, a especialização extrema, a desarticulação dos tempos históricos. Ou, no sentido otimista, as migalhas significaram o amadurecimento do projeto inicial; a história escrita no plural, múltipla, que analisa partes da realidade global. Por fim, nosso autor faz uma enumeração riquíssima em termos de prós e contras dessa passagem do global às migalhas, colocando-se no lugar de quem avalia uma perda ou um ganho.

O terceiro capítulo, intitulado “A especificidade lógica da história”, levanta questões que colocariam em dúvida a possibilidade do conhecimento histórico, entre elas: “A história é um conhecimento possível?”. Salienta a importância da reflexão teórica problematizante, alertando sobre a impossibilidade de ser historiador sem tomar o conhecimento histórico como problema. A questão a ser pensada seria a existência de um conhecimento histórico reconhecível. Esse conhecimento talvez estivesse na recusa da ficção. Nessa luta contra a ficção, a história aproxima-se da ciência. Quanto a possibilidade de história científica, José Reis apresenta quatro modelos: nomológico, compreensivo, conceitual e narrativo. O modelo nomológico, centrado em Hempel, defende a unidade da ciência, as explicações causais; é um modelo neopositivista, que busca encontrar leis gerais, da mesma forma que as ciências naturais. O modelo compreensivo tem dois expoentes: Dilthey e seu método da compreensão e interpretação das ciências do espírito, e Weber com uma visão racionalista da compreensão. A sociologia compreensiva busca interpretação da conduta humana; para compreender, pode-se construir o “tipo ideal” de uma ação racional. Para Reis, Weber ainda sustenta uma visão racional da história. O modelo conceitual está baseado na história científica weberiana: ela é racionalmente conduzida, fundamentada na compreensão e em conceitos. A compreensão e subjetividade incluídas na história não abdicariam a abordagem científica da mesma, presentes através de tipos e conceitos. Paul Veyne, com influência weberiana também defendeu a história conceitual, que para ele estaria entre a ciência e a filosofia. Para o Veyne de “O Inventário das diferenças”, a história conceitual seria científica porque oferece uma inteligibilidade comparativa. Já o Veyne de “Como se escreve a história”, tem a história como “narrativa verdadeira”, mas não científica. François Furet, também influenciado por Weber – e Reis salienta que os Annales “parecem dever mais a Weber do que querem admitir” – percebe a história como oscilação entre arte da narração, inteligência do conceito e rigor das provas, mas não como ciência. Por fim, no modelo narrativo e atual (alguns autores sustentam que o discurso histórico sempre foi narrativa), espera-se uma relação mais estreita com o vivido, o tempo, os homens. A história-problema entrou em crise por afastar-se dos homens e negar a temporalidade. Para Veyne, a história é uma narrativa que explica enquanto narra, é compreensão, é atividade intelectual. Paul Ricoeur esclarece a estrutura de uma nova narrativa histórica, lógica e temporal, ou seja, temporalidade e a narratividade se reforçam. Ricoeur defende o primado da compreensão narrativa em relação à explicação, sendo a narrativa histórica uma representação construída pelo sujeito, que se aproxima da ficção e retorna ao vivido. A história, em última análise é a narrativa do tempo vivido.

No quarto capítulo, Reis discute as posições da verdade sobre o conhecimento histórico. Os céticos em relação à história fazem várias objeções à possibilidade da objetividade e verdade em história, entre elas estaria o fato desse conhecimento estar ligado ao presente (que sempre reinterpreta o passado), à subjetividade, à compreensão e à intuição; ainda ao fato de não produzir explicações causais, de ser conhecimento indireto do passado, de utilizar a mesma linguagem da ficção, de utilizar fontes lacunares, de ser interpretação e construção de um sujeito e ter o conhecimento pós-evento. O conhecimento objetivo seria aquele válido para todos, universal, analítico, problematizante, necessário. Para Reis não há razão para o ceticismo. Ele cita Koselleck, para quem a história precisa sustentar duas exigências: produzir enunciados verdadeiros e admitir a relatividade. Na tentativa de indicar posições para o alcance da verdade histórica, Reis busca as teses de alguns autores. Divide-os em realistas metafísicos e nominalistas. Começando pelos primeiros, tem-se que para Ranke a história produziria verdade através do método crítico. Nesse sentido o sujeito não se anula, apenas se esconde, se autocontrola. Weber não vê a possibilidade de abordar o real em si, apenas aspectos, partes. O sujeito divide-se em esferas lógicas autônomas. Duas subjetividades buscam a verdade, que é conhecimento empírico. Em Marx, o sujeito deve assumir sua subjetividade. A verdade não é universal, mas de um grupo social. O conhecimento histórico produzido é objetivo, mas parcial, relativo, pois o historiador precisa tomar partido. Para Ricoeur, a verdade é traduzida pelo sujeito de forma comunicável a partir de uma objetividade que exige a presença da subjetividade. Na mesma direção, Marrou declara ser a objetividade histórica, específica, subjetiva, através de valores éticos universais. Todos procuram critérios universais para a verdade, todos são construções totalizantes da verdade histórica. Nos nominalistas, a subjetividade é plena, o universal é impensável. Em Foucault a verdade é construção de um sujeito particular e expressa relações de poder: essas relações criam linguagens e saberes para se legitimarem. Michel de Certeau tem a história como fabricação do historiador, um discurso que emerge de uma prática e de um lugar institucional e social. Duby assume a história subjetiva, que estaria próxima da literatura e do cinema, onde a imaginação e o sonho não são proibidos. Por fim, Koselleck sustenta a verdade histórica caleidoscópica, se relaciona com a história da história, examina a historiografia anterior. O passado é selecionado, reconstruído em cada presente. Reis conclui esse capítulo ressaltando que a verdade histórica é obtida com exame exaustivo do objeto, com todas as leituras possíveis.

O quinto capítulo traz a discussão sobre o tempo histórico em Ricoeur, Koselleck e nos Annales. O historiador tem interesse no temporal, na alteridade humana, não deseja conhecer o que está fora do tempo, o que não muda, deseja sim, conhecer a mudança, logo o tempo da história seria um terceiro tempo. Para Ricoeur, o tempo histórico refere-se à vida humana e o calendário é indispensável, pois é ele que numera e em cada marca dessa numeração existiu um homem individual (social). Outro conceito é o de geração, trata-se de vida compartilhada. O tempo histórico representa permanência de gerações e seqüência de gerações. A terceira conexão são os vestígios, os arquivos, pois as gerações deixam sinais, marcas, que são buscadas pelo historiador. Koselleck critica o conceito de tempo calendário, mas não o descarta, advertindo para o conhecimento interior do mundo humano, a idade interna de uma sociedade, ou seja, a relação estabelecida entre seu passado e seu futuro. Na perspectiva dos Annales, o tempo histórico é estrutural – influência das Ciências Sociais que compreendiam o tempo como “estrutura social” – existindo a recusa da mudança, em favor do modelo, da quantidade, da permanência. A influência foi o aparecimento na história do mundo mais durável, mais estrutural (estruturas econômicas, sociais, mentais), de movimentos lentos, com desaceleração das mudanças, e é justamente o conceito de “longa duração” que permitiu maior consistência ao terceiro tempo do historiador.

O sexto e último capítulo é dedicado à contribuição de Dilthey para a história, que, aliás, é considerado como o pensador que “redescobriu a história”. Dilthey é associado ao historicismo, embora seja difícil enquadrá-lo em algum rótulo. Ele estaria entre um historicismo romântico e um epistemológico por buscar compreender o homem enquanto ser histórico, compreender a alteridade e todos os aspectos da vida de um povo; a história em Dilthey é mudança e o que permanece é compreensão, comunicação entre homens diferentes, sendo o homem “experiência vivida” e a verdade, o processo histórico.

No contexto do século XIX, Dilthey apontou o caminho da história, da vida, tendo por missão da história “apreender o mundo dos homens através do estudo das suas experiências no passado” (p. 241). Reis diz que em Dilthey filosofia e história estão unidas. Talvez esse fato tenha cativado nosso autor a ponto de despertar tanto seu interesse por Dilthey.

De fato, Reis cativa o leitor com sua narrativa, sua exposição, sua paixão pela teoria. Este livro é mais uma referência obrigatória a todos que se preocupam em pensar o papel da teoria na contemporaneidade; ele incita os historiadores ao conhecimento dos paradigmas atuais das ciências sociais. Se José Reis pretendia com este livro, “fazer circular, renovar, estimular e transmitir cultura” (p. 13), parece-nos que ele conseguiu!

Mauro Dilmann – Mestrando em História pela Unisinos/RS.


REIS, José Carlos. História e Teoria. Historicismo, Modernidade, Temporalidade e Verdade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003. Resenha de: DILMANN, Mauro. Cantareira. Niterói, n.9, 2005. Acessar publicação original [DR]