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Tácito e a metáfora da escravidão – JOLY (RBH)
JOLY, Fábio Duarte. Tácito e a metáfora da escravidão. São Paulo: Edusp, 2004, 162p. Resenha de: BENTHIEN, Rafael Faraco; PALMEIRA, Miguel S. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.26, n.52 , dec. 2006
Há todo um significado especial envolvendo a produção de um livro sobre a metáfora da escravidão no Brasil. Originalmente uma dissertação em História Econômica defendida na Universidade de São Paulo em 2001, esse livro apresenta-se ao leitor como um estudo “da escravidão no Alto Império Romano” e, em especial, da “estreita associação entre política e escravidão” constatada naquela sociedade (p.25). Para nossa sorte, porém, a abrangência de suas questões vai além do recorte anunciado. Fábio Duarte Joly realizou, em verdade, uma instigante pesquisa sobre certas formas de classificação social vigentes no Mediterrâneo do primeiro século depois de Cristo e sobre as relações de poder que as instituem (ou são por elas instituídas). Partindo das obras de Tácito, Joly aborda o fenômeno da escravidão antiga salientando não os usuais recortes econômicos e jurídicos recorrentes na historiografia, mas sim suas decorrências políticas. Tal postura implica o reconhecimento do escravo e do homem livre como categorias de apreensão da lógica das ações sociais. Nesse ínterim, tais termos não servem apenas para nomear estatutos sociais específicos, mas também para localizar e reforçar ideologicamente o suposto lugar de cada indivíduo, seja ele escravo ou não, nos quadros hierárquicos de sua própria sociedade. Eis aí a força e a pertinência desse estudo.
O livro tem seu argumento desenvolvido ao longo de três capítulos, aos quais se somam uma introdução e uma conclusão. A parte substantiva da argumentação é inaugurada com o primeiro capítulo: “História, Retórica e Metáfora em Tácito”. O autor apresenta aí, de forma sucinta, aspectos da biografia taciteana, atentando tanto para lacunas informativas, como para problemas relativos à datação e à preservação dos textos a ele atribuídos. Segue-se então a explicitação do ponto de vista analítico que norteia o trabalho: explorar a lógica social da retórica de Tácito. Esta aposta se traduz aqui no esforço de tomar elementos retóricos não apenas como um dado de estilo — o que, segundo Joly, tem sido a regra nas apreensões desse historiador antigo —, mas como algo passível de ser explicado na relação com seus contextos de produção e recepção. Embora não se possa mapear com precisão a circulação da obra, o autor enfatiza, por meio do que chama de a metáfora da escravidão, o vínculo de Tácito com a elite imperial romana. Sendo as diversas alusões metafóricas às figuras de escravos e libertos um dado naturalizado na obra do historiador, pode-se supor, por meio delas, a abrangência e o significado dessas categorias para o projeto político e a visão de mundo dessa elite.
Em “Escravos e libertos em Tácito”, o segundo capítulo, o autor investiga — a partir, sobretudo, dos Anais e das Histórias — as idéias de Tácito a respeito da instituição servil. A análise então se centra nas referências literais a duas categorias jurídicas e sociais do Principado: libertos e escravos. Joly observa como o historiador antigo situa tais grupos na sociedade romana e quais critérios de classificação social mobiliza. O juízo emitido a respeito tanto do escravo quanto do liberto tem como medida a lealdade (fides) devida respectivamente ao senhor ou ao patrono. Tácito mostrava-se de modo geral hostil a esses dois grupos, pois entendia que ambos agiam, em regra, egoisticamente, e não de acordo com o interesse de senhores ou patronos; saudava, porém, a grandeza do espírito de alguns raros escravos e libertos, os quais teriam se sacrificado em defesa das causas desses mesmos superiores. Tácito tinha, portanto, como bem nota Joly, uma concepção ética da escravidão. Ou seja, o que definia a seus olhos a qualidade do escravo ou liberto era uma maneira de se comportar. Em algumas passagens dos escritos taciteanos, dedicadas à gestão da escravidão, esta instituição aparece também caracterizada como uma relação de dependência “cuja manutenção oscila entre o emprego da violência e da coerção legal e o recurso da cooptação por meio dos benefícios, como a concessão da liberdade” (p.105). Vale dizer: a concepção ética de escravos e libertos, bem como a idéia da escravidão como relação de dependência são as chaves pelas quais Tácito extrapola o sentido literal de tais categorias e, por meio do recurso à metáfora, converte-as em instrumentos de apreensão de práticas sociais e políticas em seu mundo.
Determinar a especificidade desses empregos metafóricos é a proposta do terceiro capítulo, “Tácito e a metáfora da escravidão”. Nele, Joly atenta para o uso das categorias escravo e liberto em dois contextos específicos na obra de Tácito: 1) em sua apreciação da participação política de magistrados e senadores na vida política imperial; e 2) nas práticas administrativas perpetradas por administradores de província. Fica registrada nessas circunstâncias a tensão entre dois pólos: as esferas pública e privada da administração imperial romana. No primeiro contexto, tal embate se dá entre a liberdade de expressão do Senado e o regime patriarcal imposto pela casa imperial. Tácito entende como nociva a concentração de poderes nas mãos do imperador, o que lhe permitiria sobrepor-se às prerrogativas do Senado. Isto, porém, apenas parece viável em função da atuação dos próprios círculos aristocráticos romanos, os quais preferiram tornar a esfera pública uma extensão da casa imperial para disto obterem vantagens materiais. Ao agir assim, sugere o historiador antigo, esses círculos de magistrados e senadores se comportam de maneira egoísta, como típicos escravos e libertos. No segundo contexto, as mesmas questões se fazem sentir na administração provincial. Joly explora uma série de exemplos taciteanos acerca da má utilização de cargos públicos em prol de vantagens materiais particulares. De qualquer maneira, o que parece preocupar Tácito é a possibilidade da instauração de uma tirania irreversível do imperador, inviabilizando eticamente o exercício da liberdade.
Embora os procedimentos metodológicos utilizados no livro e sua conclusão sejam por demais coesos para que lhes sejam dirigidas críticas maiores, é salutar atentar agora para algumas lacunas na análise de Joly. Uma delas é documental. O autor sustenta sua argumentação tanto no vínculo social entre Tácito e a elite imperial romana, como na sua particular forma de apresentação naturalizada da metáfora da escravidão, a qual não requer explicações por parte do historiador antigo. A estes dois suportes poder-se-ia acrescentar mais um: os demais textos de época, ou próximos a ela (Sêneca e Suetônio, entre outros). Joly os cita apenas en passant, sem se permitir exercícios comparativos. Talvez por este viés seja possível definir melhor os vagos contornos que no livro adquire o contexto social da obra tacitiana. A outra falta é conceitual. Joly se vale de conceitos como espaço político, público e privado, cultura política, participação política, entre outros, sem que sinta a necessidade de os definir. Afinal, existe uma cultura política no Principado romano? Caso exista, qual a sua especificidade? E, mais, seria possível aplicar a moderna oposição público/privado para torná-la inteligível? Qual a razão disto?
Deixando de lado essas pequenas lacunas, reconhece-se aqui Tácito e a metáfora da escravidão como um exemplo de trabalho equilibrado no trato com fontes e bibliografia. Ele escapa, assim, aos vícios de uma argumentação por demais colada ao corpus documental e se esquiva de criticar modelos a partir simplesmente de outros modelos, sem referenciar a documentação primária. Há, além disto, a estratégica escolha do tema. “A escravidão antiga”, afirma Norberto Guarinello no prefácio a esta primeira edição, “tem recebido no Brasil um tratamento que, talvez, só seja possível num país que conheceu de perto a experiência dessa forma terrível e extrema de dominação social” (p.15). Com efeito, sendo Fábio Duarte Joly um historiador natural do país da metáfora da escravidão moderna, seu trabalho não atesta somente a vitalidade da História Antiga no Brasil, ou mesmo as vantagens de se fazer uma História Antiga a partir do Brasil, mas demonstra, a despeito do que dizem os profetas da História-disciplina sobre as (im)possibilidades de se conhecer a História-matéria — ora amparados pelo culto à subjetividade, ora apegados à ilusão de poder anulá-la —, ser também graças ao enraizamento social do pesquisador, e nem sempre apesar dele, que a investigação historiográfica produz seus bons frutos.
Rafael Faraco Benthien – Mestrando, FFLCH-USP.
Miguel S. Palmeira – Doutorando, FFLCH-USP.
[IF]