Maconha: os diversos aspectos, da história ao uso | Luciana Saddi e Maria de Lurdes de Souza Zemel

Maconha Foto Gustavo Carneiro
Maconha | Foto: Gustavo Carneiro/Grupo Folha

A obra “Maconha: os diversos aspectos, da história ao uso” (2021) é uma coletânea composta por 14 textos de divulgação científica, organizados por Luciana Saddi e Maria de Lourdes S. Zemel, ambas psicólogas com experiência no estudo da relação entre família e abuso de drogas, dentre elas, o alcoolismo. Diferente de seu predecessor (Fumo Negro: a criminalização da maconha no pós-abolição), “Maconha: os diversos aspectos, da história ao uso” chega em um momento social e histórico marcado por diversos processos de flexibilização dessa substância em todo continente americano, assim como pela adesão de parte da sociedade civil brasileira a esse debate. Essa mudança de conjuntura amplifica o seu potencial como objeto de informação a ser agregado a essas discussões.

Na condição de historiador, abordamos a obra a partir de dois aspectos que estão diretamente associados ao tema: a ousadia na escolha do tema, sua abrangência e direcionamento a um público não especializado, e a relação que o conjunto de textos constrói com a historicidade do tema. Também registramos o impacto das teses do livro. Embora não exista um momento de síntese, ponto negativo da obra, é possível concluir que o objeto não é a planta ou substância designada “maconha”, mas as formas com as quais nos relacionamos com ela (de ordem pessoal, familiar, comunitária ou institucional). Cabe apontar que determinados modos de lidar não são as melhores alternativas. Elas devem ser revisadas, principalmente as que retiram a autonomia dos indivíduos no tratar com essas substâncias, como é o caso da política de guerra às drogas, pouco eficiente e baseada em lógica coercitiva. Outra conclusão possível é a de que a comunicação e a informação se configuram como as melhores saídas para lidar com os problemas de abuso, implicando, inclusive, em questões-chave como a prevenção e a redução de danos.

A obra quer compartilhar informações científicas para além da bolha acadêmica. Nesse sentido, foi composto por textos objetivos com linguagem de fácil compreensão, educando por meio de conhecimento racionalmente constituído, orientando novas práticas sociais frente à maconha. Seus textos podem ser classificados em dois grupos. O primeiro toma como centralidade as relações que se desenvolvem entre os usuários e as suas comunidades de pertencimento, demonstrando os estigmas normalmente mobilizados  e as suas consequências. Assim é escrito o texto “As famílias e o uso de maconha”, de Silva Brasiliano. A autora propõe uma série de novas formas de agir que colocam o indivíduo e a sua subjetividade como alvo das comunicações, a fim de amplificar o diálogo entre os pais e seus filhos, evitando a sua marginalização a partir do lar. Não se trata de achar culpados, mas de estabelecer uma lógica de cuidados a partir do núcleo familiar.

Em “O uso da maconha por adolescentes: entre prazeres e riscos, 1o barato que sai caro!'”, Maria Fátima Olivier Sudbrack observa as relações estabelecidas entre os adolescentes e os grupos  integrados por eles como forma de compreender quadros de abuso de substâncias. A autora chama atenção para a necessidade voltar o olhar para os motivadores desse contato e de seus possíveis abusos, partindo de questões como a produção do desejo em torno da maconha, assim como necessidades de alívio rápido, característicos das estruturas do Capitalismo. A autora afirma que essas questões devem ser tratadas pelo viés da educação, a fim de constituir autonomia, levando aquele que faz uso a se posicionar frente aos seus comportamentos, e não pela via da criminalização. Leia Mais

Eugenetica senza tabú: usi e abusi di un concetto – CASSATA (HCS-M)

CASSATA, Francesco. Eugenetica senza tabú: usi e abusi di un concetto. Turim: Giulio Einaudi, 2015. 130p. Resenha de: PIETTA, Gerson. Eugenia: uma ciência estigmatizada. História Ciência Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 23  supl.1 Rio de Janeiro Dec. 2016.

Foi lançado em 2015, pela editora Giulio Einaudi, o livro Eugenetica senza tabú: usi e abusi di un concetto, de Francesco Cassata, professor do Departamento de Filosofia, História e Geografia da Universidade de Gênova. Cassata tem trajetória significativa no que diz respeito a pesquisas e produções acerca de eugenia, raça e genética no contexto italiano. O livro é organizado em três capítulos: o primeiro discute o processo de nazificação da eugenia e de banalização do nazismo; o segundo propõe um modelo de descontinuidade no que se refere a um tabu negativo quanto aos usos da eugenia no pós-1945; o terceiro capítulo discute a inadequação heurística do conceito de “retorno à eugenia”.

Eugenetica senza tabú analisa como se produziu no debate público italiano um aparato discursivo hostil em relação à biomedicina e à genética contemporâneas, produzido, em tese, a partir do caráter negativo que o termo “eugenia” adquiriu após a experiência nazista. A eugenia passou a ser vista como sinônimo de pseudociência reacionária, sexista, racista e antissemita, além de fonte de violência e discriminação, interpretada em todas as especificidades históricas, entre elas a italiana (p.4). Tal interpretação deixa de lado definições conceituais como as de Daniel J. Kevles (1985), Mark Adams (1990) e Nancy Stepan (2005), pioneiros no estudo da história da eugenia, que distinguiram variantes da ciência eugênica a partir de ligações com diferentes contextos nacionais ou regionais. Essa historiografia, à qual a obra de Cassata se associa, reforça a essência não monolítica da eugenia e seu caráter multiforme, nas variantes políticas, sociais e culturais.

Para desconstruir a visão estigmatizada do termo “eugenia” no debate público, Cassata cita como exemplo seu uso pelo movimento sionista em prol do novo hebreu ou mesmo seu caráter modernizante e tecnocrático que atraiu o interesse de grupos distintos como os novos liberais, o fabianismo britânico, as sociais-democracias alemã e escandinava, o progressismo americano, o radicalismo e o comunismo francês. Além da eugenia bolchevista e reformista, chama atenção seu uso por grupos feministas, demonstrando as várias orientações ideológicas e políticas possíveis. Em contraposição aos usos anglo-saxões e nórdicos, como as esterilizações e os exames pré-nupciais, o autor enumera os usos do conceito no mundo latino: a assistência materna e infantil, a medicina social preventiva, o natalismo demográfico, o controle biotipológico e endocrinológico (p.7).

O interesse do autor não é produzir uma história sintética da eugenia, mas refletir sobre o “uso público do conceito, seus tropos, suas contradições e suas funções” (p.7). Segundo Cassata, no debate público italiano houve um movimento de nazificação do conceito de “eugenia” a partir do processo de Nuremberg, ocorrido entre 1946 e 1947, e da conclusiva relação entre genética médica e os crimes de Auschwitz. O autor propõe uma descontinuidade em relação ao tabu da eugenia, que, para ele, não ocorreu com o fim da Segunda Guerra Mundial, e sim no final dos anos 1960 e início dos anos 1970. Ou seja, até a segunda datação, na Itália, a eugenia possuía significado positivo, ligado aos aconselhamentos genéticos na esfera da saúde pública.

O autor faz crítica à forma como o reductio ad Hitlerum – expressão cunhada pelo filósofo alemão Leo Strauss – opera duplamente nos autores André Pichot e Rinhard Weikart, seja pela redução do termo “eugenia” ao contexto nazista e sua ligação ao racismo e ao antissemitismo, seja pela banalização e descontextualização do conceito, interpretado como pseudociência e privado de sua dimensão racional. Há também a reflexão em torno da representação construída no debate público, em que os eugenistas italianos são tidos como aceitáveis, e os eugenistas alemães como reprováveis. Ou seja, em contraposição à eugenia nórdica coercitiva, criou-se a ideia de uma eugenia latina mais branda: católica, sem excessos, moderada e humana, com práticas ligadas à hidroterapia, helioterapia, eletroterapia, aos banhos termais, à biotipologia ortogênica e à endocrinologia de Nicola Pende (p.26). O autor reforça que foi excluída do debate público a campanha racista e antissemita de Pende, que a defendeu em meados de 1930.

Cassata afirma que o uso obsessivo da analogia nazificante da eugenia produziu uma contra-argumentação falaciosa, apontando que o fim da Segunda Guerra Mundial, a descoberta de Auschwitz e o processo dos médicos de Nuremberg teriam inaugurado uma nova era dominada pela recusa de múltiplos preconceitos, seja de raça, de classe ou de gênero, e pela afirmação de um consentimento livre e esclarecido na esfera da reprodução. Utilizando-se de interrogações de Carlo Alberto Defanti, o autor reflete: seria correto falar em colapso do eugenismo? De um lado, menciona o autor, houve a emergência de uma genética, entre 1920 e 1930, que teve como modelo uma eugenia reformadora, solidamente estabelecida sobre a matemática mendeliana e politicamente hostil ao racismo e ao classicismo da eugenia ortodoxa. Por outro lado, a eugenia ortodoxa, coercitiva e violenta, prosseguiu até a década de 1960, como no caso da Carolina do Norte.1 Fica evidente, para Cassata, que, depois da Segunda Guerra Mundial, a eugenia recontextualizou-se em um processo histórico gradual e complexo, presa a ambiguidades e contradições.

No trabalho de Casssata, além da emergência do que é conhecido como “aconselhamento genético” (genetic counseling), o desenvolvimento de controle médico de duas patologias genéticas é considerado historicamente relevante para compreender a transformação do conceito de “eugenia”: a fenilcetonúria e a talassemia. Isso porque a forma de pensar maneiras de lidar com as patologias havia se alterado: de uma forma ortodoxa e coercitiva de eugenia – considerada insensata moral e cientificamente – para uma forma de eugenia mais sensível e humana.2 A partir da pesquisa de Lionel Penrose, aponta Cassata, foi possível uma mudança substancial da eugenia para a genética humana na abordagem da fenilcetonúria, também ocorrendo uma mudança semântica, posto que era sugerida uma solução preventiva para uma doença mental. Na esteira dessa interpretação, o autor investiga a talassemia.3 A pesquisa sobre a doença, realizada entre 1946 e 1961 na Universidade de Roma, foi financiada pela Fundação Rockefeller. Foram examinadas, em todo o território italiano, mais de trinta mil pessoas. A investigação concluiu que a doença era hereditária, e, assim sendo, com o emprego de testes de triagem, seria possível fazer uma campanha para prevenir a união matrimonial entre os portadores da doença, e mesmo alcançar a eliminação da enfermidade.4 A partir dessas mudanças no campo da genética humana, emerge a expressão genetic counseling, cunhada por Sheldon Reed em 1947. Com esse novo olhar, alterou-se o termo “paciente” para “cliente”, além de se praticar o ensino da autonomia e da não coerção. Esses casos são sinais e evidências de que Nuremberg não representou censura nas pesquisas eugênicas, conforme apontou Cassata.

Cassata trabalha com um terceiro uso público do conceito de “eugenia”, ao referir-se a uma categoria monolítica denominada “retorno à eugenia” (p.48), que desconsidera a complexa dinâmica de desenvolvimento da engenharia genética e da medicina individualizada do século XXI. O autor traz à tona e relaciona dois eventos: a sentença do caso Buck versus Bell, de 1927, no qual estava em julgamento a esterilização de uma família dita degenerada; e uma sentença de 2013, o caso Myriad, no qual a empresa Myriad Genetic pretendia patentear produtos da natureza – genes humanos isolados. A pretensão do autor ao relacionar os dois casos foi refletir sobre processos jurídicos envolvendo o público e o privado.

A perspectiva utilizada por Cassata para refletir sobre como ocorreram os debates em torno da eugenia, sobretudo a partir da opinião pública italiana e em três momentos diferentes, é relevante porque expõe os equívocos nas interpretações que são divulgadas popularmente e aceitas pelo público não acadêmico. Tal abordagem instiga também trabalhos para a compreensão da eugenia no contexto público, nacional e internacional, não só na Europa mas também na América Latina, possibilitando alargar a discussão sobre o conceito de “eugenia latina”, fortemente enfatizado na historiografia recente.

Referências

ADAMS, Mark B. Eugenics in the history of science. In: Adams, Mark B. (Org.). The Wellborn science: eugenics in Germany, France, Brazil and Russia. New York: Oxford University Press. p.3-7. 1990. [ Links ]

KEVLES, Daniel. In the name of eugenics: genetics and the uses of human heredity. Berkeley: University of California Press. 1985. [ Links ]

STEPAN, Nancy Leys. A hora da eugenia: raça, gênero e nação na América Latina. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. 2005. [ Links ]

Notas

1 O estado da Carolina do Norte, nos EUA, continuou a autorizar esterilizações eugênicas sem consenso legal até o fim dos anos 1960, sobretudo em mulheres afro-americanas em condição de extrema pobreza.

2 A fenilcetonúria, ou PKU, é uma grave anomalia do metabolismo, que se transmite como caractere autossômico recessivo, causando lesão cerebral irreversível.

3 Uma anomalia no sangue, de caráter hereditário, que era frequente em regiões da Itália mediterrânea e insular e nos anos 1920 estava ligada à etiologia de uma grave enfermidade conhecida como a doença de Cooley (na nomenclatura atual, denominada talassemia maior, ou anemia mediterrânea).

4 Caso interessante ocorreu em outubro de 1949, durante o 50º Congresso da Sociedade Italiana de Medicina Interna, no qual os pesquisadores apresentaram os resultados da pesquisa. Na ocasião, o hematólogo Giovani Di Guglielmo propôs a esterilização de todos os portadores da doença. Já o antropólogo Sergio Sergi invocava um exame de sangue obrigatório para todos nas áreas afetadas (p.39).

Gerson Pietta – Doutorando, Programa de Pós-graduação em História/Universidade Federal do Paraná. gersonpietta@gmail.com